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Onde a Cegonha Poisou Contos Autobiográficos do “meu Manuel”
Manuel Luís Rodrigues Sousa
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FICHA TÉCNICA edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sitio do Livro) título: Onde a Cegonha Poisou autor: Manuel Luís Rodrigues Sousa arranjo de capa: Patrícia Andrade foto capa: Manuel Luís Rodrigues Sousa paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, março 2016 isbn: depósito legal: © Manuel Luís Rodrigues Sousa
publicação e comercialização:
www.sitiodolivro.pt
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NOTA DO AUTOR
Porquê o título e subtítulo deste livro ONDE A CEGONHA POISOU – Contos Autobiográficos do “meu Manuel”? Faz parte da minha bibliografia um livro com o título PRECE DE UM COMBATENTE – Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial, o único além do que agora me proponho a escrever. Como o próprio título e subtítulo sugerem, tem a ver com o meu cumprimento do serviço militar como combatente na guerra colonial. Pensei em pôr-lhe o título “O “Meu Manuel” – Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial”, como homenagem aos meus pais. Acabei por lhe dar aquele título, PRECE DE UM COMBATENTE – Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial, como tributo às madrinhas de guerra, figura criada na época da guerra do Ultramar pelo Movimento Nacional Feminino, jovens como nós que se correspondiam connosco, nessa qualidade de madrinhas de guerra, que, na troca de correspondência, com as suas cartas e aerogramas, tornavam mais leve o nosso cativeiro de guerra, com base nesta minha missiva de então: 5
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“Jumbembém, 12 de Março de 1973 Dedicada madrinha: Acabou de chegar um helicóptero a este fim de mundo. O “pombo-correio” que trouxe no bico as sempre esperadas mensagens para todos nós militares, aqui neste cativeiro de guerra, no meio do nada. Melhor dizendo, no meio do mato, onde o calor intenso, a poeira vermelha, as tempestades tropicais e as ferradas de enxames de mosquitos já pouco incomodam, comparando com o silvo das balas, o troar dos canhões e morteiros, o metralhar da “costureirinha” e o cheiro a pólvora queimada, em dias de “festa” cá em Jumbembém e arredores. Uma dessas mensagens era a sua para mim desejada carta, a que estou a responder através deste meu “bate-estradas”, cujas linhas os meus olhos percorreram avidamente, como sedento no deserto à procura de uma gota de água, bebendo as suas palavras uma a uma, que me transmitiram, bem-haja por isso, esperança e coragem para melhor suportar estes momentos tão difíceis, neste meio hostil, longe de familiares e amigos. Fixei-me demoradamente a contemplar o bonito sorriso do seu rosto, patente na fotografia que teve a amabilidade de me enviar, como que deslumbrado e encantado pela sua beleza e, particularmente, pela brancura da sua tez, já que há tanto tempo não via uma mulher branca e tão bonita. Aqui as bajudas sendo algumas também bonitas, a cor da sua pele, como sabe, é diferente…, fazem parte de outra cultura. Vejo em si a minha confidente, imagino-a até como a minha “Nossa Senhora”que me ampara, e, como tal, veja nesta minha mis6
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siva uma oração, uma prece deste combatente, para que continue a conceder-me a graça da sua simpatia e do seu conforto. Termino, agradecendo-lhe esse seu gesto altruísta, de dispensar parte do seu tempo a confortar este simples soldado que sou, ao serviço da Pátria. Com as suas palavras, creia, neste quotidiano de guerra, – o perigo que espreita por entre o capim, por detrás de cada árvore, sob o chão das picadas – sentir-me-ei mais confiante, mais seguro, mais afoito, do que com a própria espingarda que tenho por companheira. Adeus, até à volta do correio. Manuel Luís Rodrigues Sousa” (Excerto do livro PRECE DE UM COMBATENTE – Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra colonial)
Mesmo assim, no desenvolvimento interior do livro, ainda me referi algumas vezes à personagem do “meu Manuel”, sempre associada à figura dos meus pais. Como exemplo apresento aqui dois pequenos excertos do início e do fim daquele livro: “...Nesse dia, a primeira vez que saía de casa, como passarinho de voo errante ao sair do ninho, os meus pais quiseram acompanhar o “meu Manuel”, o quarto de oito filhos, o segundo de quatro rapazes a cumprir o serviço militar, até ao transporte mais próximo que me levaria a Vila Real...” 7
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“...Quando saía do táxi, ali no meio de tanta gente, rapidamente fui abraçado pela minha cunhada Ilda, pelo meu irmão Fernando e logo depois, a chorarem de emoção, a minha mãe e o meu pai. Para eles tinha chegado o “meu Manuel”. Um cenário comovente naquela mistura de comoções, mesmo sendo de alegria, próprio da chegada de um combatente na época, que acabou por contagiar muitas das pessoas que presenciaram este almejado e comovente encontro...” Oriundo que sou de terras do interior transmontano, Folgares, Freixiel,Vila Flor, Bragança, nasci no seio de uma família humilde e numerosa de oito irmãos. Sendo este livro uma sucessão de contos autobiográficos situados privilegiadamente naquela pequena aldeia onde nasci, deu assim origem ao título “ONDE A CEGONHA POISOU”. Os meus pais, nos anos cinquenta do século passado, como tantos outros lá na aldeia, referiam-se aos filhos, a mim e aos meus irmãos, com a terna expressão, o”meu Fernando”, a “minha Natália”, o “meu Manuel” (que era eu), a “minha Isabel”, o “meu Zé” (José), a “minha Cristina” e o “meu Armindo”. Um dos meus irmãos, o anterior a mim, que também se chamava Manuel, faleceu ainda de tenra idade, sendo-me atribuído a mim depois o mesmo nome, perfazendo assim os oito irmãos. Não pensava, tão cedo, escrever outro livro. Porém se o viesse a fazer, prometi a mim próprio, o título ou o subtítulo teria de fazer referência ao “meu Manuel”, homenageando então os meus pais, Francisco António Sousa e Maria dos Remédios Rodrigues, por aquela expressão tão terna e doce, 8
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ainda audível, ilusoriamente, claro, de uma forma muito nítida pelos meus ouvidos e sentida no mais íntimo de mim, não obstante terem decorrido muitos anos após a sua partida. No fundo, perante a evidência de nunca mais ser tratado com esta deliciosa expressão maternal e paternal, escrevendo sobre ela, é uma forma de sempre manter viva esta lembrança já distante e nostálgica. Como exemplo, se alguém perguntasse aos meus pais, se ainda fossem vivos, a que se reporta o conteúdo deste livro, eles pronta e orgulhosamente, na sua simplicidade, responderiam: “São contos do “meu Manuel”. Daí o subtítulo “Contos Autobiográficos do “meu Manuel”, a forma simples e simbólica que eu encontrei para os reverenciar. É assim, sob este título e subtítulo ONDE A CEGONHA POISOU – Contos Autobiográficos do “meu Manuel”, que me proponho levar os leitores comigo no regresso ao meu passado, ao expor-lhes, em forma de contos, com alguns poemas pelo meio, momentos por mim vividos ao longo da “maratona” que tem sido o meu percurso de vida desde a minha aparição aqui na terra, cuja linha de partida foi naquele bonito recanto transmontano. Nesses contos da vida real, nunca perdendo a espinha dorsal de cada história, aproveito a oportunidade para, em cada descrição, trazer à liça acontecimentos e episódios colaterais, de modo a proporcionar aos mesmos leitores o retrato, tão completo quanto possível, dos aspectos social, político, económico, cultural e religioso do país de então, entre outras curiosidades, particularmente a nível local. 9
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Sempre que oportuno, no desenvolvimento do enredo desta obra, faço questão de registar nomes de pessoas e de famílias, além dos meus familiares, a maior parte delas já falecidas, que me viram nascer e crescer, fazendo, por isso, parte do meu tesouro de memórias, indissociáveis, portanto, da minha identidade. Na construção dos textos, fiel às minhas origens, utilizo palavras de uso local, assinaladas em itálico e entre aspas, cujo significado o leitor encontrará em glossário anexo a este livro. Como ilustração dos textos, em casos pontuais, e para melhor compreensão, utilizo alguns esboços da minha autoria, em vez de fotografias. Tal como fiz ao escrever o livro anterior, vou começar a reunir alguns textos que tenho vindo a redigir desde há uns tempos a esta parte, dispersos por aí, por blogues, que se coadunam com o formato deste projecto, e reuni-los agora neste livro, de forma a evitar que se percam no tempo, perpetuando, assim, o seu conteúdo. É também, escrevendo este livro, atenuar a saudade do anterior, ao não mais poder entrar nos textos do seu conteúdo, escrevendo, corrigindo, enquanto esteve em aberto, até ser entregue na editora para edição e publicação. Oxalá, também desta vez, eu consiga “levar a carta a Garcia” nesta aventura que hoje começa (16 de Novembro de 2014). Se o conseguir, os meus pais, lá no céu, orgulhar-se-ão do “meu Manuel”.
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A 12 de Março de 1951, caindo um forte nevão, uma cegonha poisou nas fragas do cume de um monte onde se situa a pequena e altaneira aldeia de Folgares, freguesia de Freixiel, no concelho de Vila Flor, Distrito de Bragança, onde, já cansada, depositou uma pequena trouxa branca que, no bico, transportava. Com esta metáfora da lendária ave que traz os bebés, quis dizer que vim à luz do dia numa pequena comunidade de gente humilde, apinhada num pequeno concentrado habitacional no alto daquela terra fria, sobranceiro à sede da freguesia, Freixiel, a rivalizar em altitude com o santuário de Nossa Senhora da Assunção, em Vilas Boas, que se ergue imponente defronte, para Nascente, a cerca de quinze quilómetros de distância. Como recente membro de uma família cristã, e como a pequena capela de S. Luís da aldeia na época não tinha pia baptismal, recebi o sacramento do baptismo na igreja de Pereiros de Ansiães, Carrazeda de Ansiães, em cuja paróquia aquele torrão onde nasci estava integrado. Comecei a ter a noção de onde me encontrava, a descobrir o meu mundo, a partir do momento em que a minha 11
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memória começou a registar as primeiras lembranças, com cerca de três a quatro anos de idade. O primeiro espaço que descobri foi uma casinha térrea a um nível inferior ao da rua em cerca de três a quatro degraus de madeira, estendendo-se depois o soalho da cozinha. Em frente, ao fundo, do lado direito, para quem descia os degraus, situava-se a lareira atrás do “escano” que a tornava mais aconchegante, cuja fogueira, acesa na pedra do lar, crepitava livremente, sem chaminé, em direcção ao tecto de telha antiga sobre ripas de madeira. Também ao fundo, do lado esquerdo, próximo da lareira, situava-se o “lançador” e prateleiras em madeira com utensílios de cozinha, alindadas com uns debruns em jornal aos biquinhos, artisticamente feitos pela minha mãe, para tapar a madeira escurecida pelo fumo da lareira. Do lado esquerdo dos degraus situava-se uma pequena mesa e, logo a seguir, entre essa mesa e as prateleiras, uma porta ligava a um quarto separado da cozinha por uma divisória em madeira. Para o lado direito existia uma porta que comunicava com a loja dos animais. A porta principal da entrada tinha a particularidade de ter um pequeno postigo para entrada da luz do dia quando aberto, e por onde, curiosamente, os vizinhos tinham o primeiro contacto com a minha família quando ali se dirigiam. – Ó Carrapaaaato...! Era frequente ser mimado com esta expressão de um ancião da aldeia, o senhor Joaquim Saraiva, de andar lento pelo peso dos anos, de voz arrastada, que metia a cabeça através desse postigo, quando eu, provavelmente em “traje de menores”, quiçá de bibe, vestes comuns a rapazes e raparigas daquela 12
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idade, me esparramava cá em baixo ali pelo soalho, principalmente no verão, e, também, pelo facto de eu ter ascendência, por parte da minha mãe, da aldeia de Carrapatosa, do concelho de Carrazeda de Ansiães.
Esboço da casa onde nasci (lado direito), junto à casa do senhor Basílio Vilariça (lado esquerdo), em cujas escadas eu me recriava por ali ao sol, em criança.
A maior parte das casas da pequena aldeia, de construção em pedra sobre pedra, tão juntas que estavam, tinham pelo menos uma parede-meia com outra casa, através da qual, sem qualquer revestimento de isolamento, os moradores se comunicavam sem irem à rua, ou por onde se ouvia diariamente o quotidiano dos vizinhos: as conversas do serão em família, os cantos, outras vezes os ralhos, etc. Tenho bem presente nas primeiras memórias que registei que, em determinada altura, ouvia repetidamente a tosse convulsa e os gemidos definhados do nosso vizinho, o senhor António Mariano. Pouco tempo resistiu. Foi a primeira vez que, como criança, tive o 13
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primeiro contacto com a morte ao, no dia seguinte, ter acompanhado a minha mãe lá a casa no ritual de velório. Os pormenores em que eu mais reparei foi nos sapatos do defunto, muito brilhantes, que eu invejei e isso confidenciei à minha mãe – eram uns sapatos de fabrico aligeirado, talvez de cartão, vim a saber mais tarde, que as famílias de poucos recursos económicos adquiriam para aquele efeito, que era o caso, designados por “moiras”. A cobiça daqueles sapatos foi sempre motivo de momentos hilariantes ao longo da vida entre família quando aquele episódio era lembrado. Convivia também naqueles meus primeiros anos com os nossos vizinhos mais próximos: o senhor Basílio Vilariça e esposa Maria Luísa, o senhor João Vilariça e esposa Maria Isabel, e tinha uma relação especial com a senhora Maria da Luz, esposa do senhor António Vilariça, que achava graça às primeiras palavras e habilidades do pequeno Manuel e tinha a paciência e o carinho de o apaparicar, aliás, o carinho que também dispensava aos meus irmãos. Algumas vezes, em que os meus pais tinham de se ausentar, éramos confiados à sua guarda e, assim, sob a sua vigilância, em dias solarengos, nos íamos roçando ali pelas escadas em pedra que davam acesso àquelas três residências. – N.ª S.ª da Conceição nos conceda um milagre, fazendo com que o menino comece a andar. O manifesto desejo da senhora Maria da Luz, no dia 8 de Dezembro, eventualmente em 1952, pelo facto de eu ainda não andar. 14
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E, segundo a minha mãe, com milagre ou não, comecei mesmo a dar os primeiros passos nesse momento sob a atenção dela, estendendo-me os braços, perante o meu andar errante, não fosse eu cair. Este pequeno episódio ilustra bem a proximidade afectiva que ela tinha connosco. Em frente à nossa casa, do outro lado da rua, morava o meu tio Augusto que morreu muito novo, com trinta e cinco anos de idade, por doença cardíaca, deixando órfãos os meus primos João e o José Fidalgo. Faleceu pouco depois do Mariano. A porta da casa dele tinha uma soleira de pedra com cerca de meio metro de altura sem qualquer degrau, e recordo-me de ele, já doente e encontrando-se por ali ao sol, com um capote pelas costas, ao entrar para casa, transpor aquela soleira de um só lanço, com uma “cancha”, sem lhe tocar. Pormenores de que nunca me esqueci! Naquele meu pequeno mundo de então, naquela humilde casa, fui-me habituando a descobrir as lides do dia-a-dia por parte dos meus pais e, particularmente, as tarefas associadas ao pastoreio de animais, visto que o agregado familiar tinha como principal fonte de subsistência um rebanho de cabras. Via a minha mãe frequentemente a espremer o leite coalhado sobre a “froncela”, nuns aros metálicos e perfurados em todo o seu perímetro, no fabrico do queijo, cujo soro comi tantas vezes, com a malga entre as pernas, sentado na soleira da porta, ao sol, no cimo dos tais degraus de madeira. Presenciava também a azáfama quotidiana, de, por exemplo, cozinhar e providenciar em levar o comer ao meu pai ou ao pastor, que, principalmente no tempo mais quente, a partir da Primavera, dor15
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miam nos campos com os animais para estes fertilizarem os terrenos com os excrementos. Como retrato desta actividade familiar ligada à pastorícia, publiquei recentemente o seguinte texto num blogue dos ex-combatentes da Guiné, “Luís Graça e Camaradas da Guiné”, num intercâmbio de vivências entre nós, os ex-combatentes, oriundos de todas as regiões do país, dando a conhecer os costumes e tradições tão diversas inerentes a cada terra, que considero oportuno aqui inserir como um dos contos deste livro, que se ajusta ao que acabei de escrever:
O panelo de barro preto... “Há cerca de cinquenta anos, os habitantes da minha pequena aldeia de Folgares, Freixiel, Vila Flor, como a maior parte das aldeias do nordeste transmontano, tinham na terra que cultivavam o meio principal da sua subsistência, que conciliavam com a pastorícia de rebanhos de cabras e ovelhas, complementando, assim, a sua fonte de rendimento. Além do leite, do queijo e da carne que comercializavam, e que também faziam parte da sua dieta alimentar, serviam-se destes animais para fertilizar as suas terras com os excrementos e a urina, na ausência de fertilizantes químicos que há hoje, tornando as suas pequenas leiras mais produtivas. Assim, para o efeito, desde o princípio da Primavera até ao final do Outono, o tempo mais quente, estes rebanhos de animais pernoitavam nas terras, confinados ao espaço limitado de um bardo, também 16
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conhecido por curral, que, todos os dias, ia sendo mudado até ser estrumada a parcela de terreno em causa. O bardo, para quem não sabe, era uma cerca formada por várias cancelas de madeira, ligadas umas às outras, formando uma cerca nas mais variadas formas geométricas, – quadrado, rectângulo, círculo, em labirinto, conforme a configuração do terreno que se pretendia ocupar – que se fixavam, com uma ligeira inclinação para fora, espetadas no solo e suportadas do lado exterior por uns paus com uma bifurcação a que se chamavam forcados. Claro que era indissociável do bardo a cabana onde pernoitava o pastor, que consistia num quadrado de madeira revestido com camadas de colmo de palha centeia, colocado de pé em posição ligeiramente oblíqua, para proporcionar o abrigo do lado do menor ângulo, amparado por dois forcados. Sob a cabana era aberta uma pequena cova onde era depositada alguma palha que servia de colchão ao pastor. Uma verdadeira suite de luxo, atendendo a que, na noite escura, dali se tinha o privilégio de admirar a beleza da abóbada celeste com as suas constelações de estrelas: a Ursa Maior, a Ursa Menor, a via Láctea, também conhecida por Estrada de S. Tiago, a estrela da manhã, além, também, da beleza das noites de luar. É a experiência que fala, visto que dormi algumas vezes com o meu pai nestas condições de campismo, cujos sons, além das imagens já referidas, ainda tenho bem presentes na memória: o ruminar das cabras, os balidos dos cabritos, o som das marradas das cabras e dos bodes nas suas lutas, o latir dos cães de guarda, etc. À noite, depois de todos os animais acomodados no bardo, o pastor, com grande mestria, orientado pelo sentido do tacto, de cócoras, com o cântaro entre as pernas, mungia as cabras de uma a uma, de cujos 17
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mamilos, pressionados por mãos hábeis, jorravam os jactos de leite que, num instante, atestavam a vasilha. Como logística alimentar, todos os dias, ao anoitecer, levava-se ao campo, além dos cântaros destinados ao leite, a ceia do pastor na chamada “lata dos pastores”. Era um recipiente cilíndrico em lata, dividido em duas partes: a superior, um pouco mais pequena, destinada ao prato principal, e a inferior, a parte maior, levava o caldo não só destinado ao pastor, como para os cães de guarda do rebanho. Depois uma asa de arame, por onde se pegava, completava o conjunto. Neste contexto de então, o meu pai também tinha um rebanho de cabras, cuja guarda, enquanto ele se dedicava também ao amanho da terra, estava a cargo de um nosso pastor, o senhor Américo Catarino de uma aldeia vizinha, de Pereiros de Ansiães. Era um homem com setenta e tal anos de idade, alto, magro, com o saber próprio da sua idade, com sentido de humor, de piada fácil. Era um contador de histórias. Algumas delas, preenchem ainda o meu imaginário. Era meu contemporâneo na aldeia, naqueles anos, o meu amigo Rito, de seu nome completo, Francisco Pinto, aproximadamente da minha idade, seis ou sete anos. Talvez ele fosse um ano ou dois mais velho do que eu. O Rito era conhecido por este nome, devido a ser filho de uma senhora da aldeia do Vieiro, também pertencente à freguesia de Freixiel, de nome Rita, e de pai incógnito. Zorro, portanto. Era assim que se chamavam lá na terra os filhos cujos pais eram desconhecidos. Dadas as dificuldades da mãe do Rito, foi adoptado, ainda que, na época, informalmente, por um casal lá da terra, o senhor João Mariano e a senhora Olívia. 18
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O Rito caracterizava-se pela sua figura franzina, pouco nutrido, e revelava algumas dificuldades cognitivas, motivo porque, embora tenha frequentado a escola, nem a primeira classe chegou a concluir. Porém era travesso incorrigível, principalmente quando os progenitores não estavam por perto, e tinha o condão de cantar muito bem. Era, incondicionalmente, um dos meus grandes amigos de infância. Com toda esta minha exposição da vida do campo lá da aldeia, quis proporcionar aos leitores, como se de uma receita de culinária se tratasse, os “ingredientes” necessários para “confeccionar” esta história do célebre “panelo de barro preto”: Os progenitores do meu amigo Rito tinham uma cabra que, por uns dias, foi integrada no rebanho do meu pai para estar em contacto com os bodes reinantes da “cabrada”, com o objectivo de ela vir a procriar. Ao cair da noite de um dia de verão, a mim e ao meu irmão Fernando, este mais velho do que eu cinco anos, foi-nos dada a tarefa de levarmos a ceia ao pastor, que pernoitava, portanto, no campo com as cabras, e as vasilhas para o leite. Tão novinhos que éramos, ambos alternávamos o transporte da “lata do pastor”, colocando a boina na mão, para a asa de arame da lata não nos magoar. Para meu contentamento, acompanhou-nos nesse dia o meu amigo Rito que levava um panelo de barro preto destinado ao leite da cabra dos seus pais adoptivos. Tínhamos saído da aldeia e caminhávamos já na poeirenta estrada térrea, entre pinhais, que liga a minha pequena aldeia a Carrazeda de Ansiães, que nos levaria até cerca de dois quilómetros onde se situava a
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parcela de terreno, designada por Terreiro, onde pernoitavam as cabras e o pastor. O Rito, fazendo jus à sua irreverência, iniciava o chorrilho de diabruras que eu já bem conhecia, correndo à nossa frente, arrastando os pés descalços na estrada, levantando uma autêntica nuvem de poeira que nos sufocava. Corria de um lado para o outro a esconder-se na noite entre os pinheiros que ladeavam a estrada para, ao aproximarmo-nos, nos tentar assustar. A dada altura começou a cantar e, como acompanhamento à sua melodiosa voz, agitava o panelo de barro preto com algumas pedras que meteu dentro. – Dlão…, dlão…, dlão…, dlão... Produzia assim o panelo uma bonita entoação sonora, ampliada pelo eco que se fazia ouvir pelo interior do pinhal que ladeava a estrada, de fazer inveja à velha sineta da capelinha de S. Luís lá da aldeia, quando se rebimbava no alto do campanário a anunciar a hora da homilia, ou então, naquele tempo, a hora de irmos para a escola. – Rito, tu vais partir o panelo. Alertámos nós mais do que uma vez. – Dlão…, dlão…, dlão…, dlão... Continuava ele ignorando os avisos. Depois de tanto badalar o panelo, a dada altura, e estranhamente, o Rito aquietou-se. Entretanto chegávamos ao Terreiro. Embora fosse já noite cerrada, as cabras e o pastor ainda não tinham chegado ao bardo e nós os três, depois de colocarmos a lata com a ceia e as vasilhas do leite na cabana, incluindo o panelo, que o Rito fez questão de o deixar muito direitinho, regressámos a casa. 20
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Depois da ceia, chegou a hora do pastor, o senhor Américo Catarino, ajudado pelo meu pai, que entretanto foi ter com ele, proceder à ordenha dos animais. Às escuras, como era habitual, o pastor, de cócoras, propôs-se a ordenhar a “Mariana” que era o nome que ele dava àquela cabra, por pertencer ao senhor João Mariano. – Ó Antóoooooonio…! Homeeeessa…! Exclamava ele incrédulo momentos depois para o meu pai com a sua voz arrastada, com o sentido de humor que o caracterizava, levantando-se lá no meio das cabras. E prosseguiu: – Eu devo ter estado a ordenhar o bode porque o panelo ainda não tem uma gota de leite… – Ó senhor Américo, não me diga que não consegue distinguir uma cabra do bode. Gracejava o meu pai com o pastor. – Não é isso Antóoonio…, é que o panelo não tem cuuu…! Homeeeessa…! Foi assim o final deste célebre panelo de barro preto, indissociável da memória que guardo do meu amigo Rito, cujos cacos ainda hoje devem repousar no chão do Terreiro, que poderão constituir, muitos anos depois, um importante achado arqueológico. Ao longo de muitos anos, a “sina” deste panelo de barro preto proporcionou bons momentos de hilariante boa disposição lá em casa a toda a família. Mais tarde o Rito, já homem, deixou os pais adoptivos e a aldeia e foi para uma outra aldeia do concelho de Mirandela, para Barcel, que se situa junto à margem direita do rio Tua.
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Um dia, e esta é a parte triste desta história, o Rito faleceu em circunstâncias muito estranhas, ao ter sido encontrado o seu cadáver a boiar nas águas do rio. Quis com esta história prestar a minha homenagem à sua memória, para ele, esteja onde estiver, sentir que o seu amigo “Manel” não se esqueceu dele, e, ao mesmo tempo, também como intervenientes directos neste episódio, relembrar o meu pai e o nosso pastor, o senhor Américo Catarino, também já falecidos. Ao longo deste texto também quis deixar implícito, mesmo para o leitor mais distraído, que as crianças daquela época, desde muito pequeninas, eram chamadas a participar activamente na economia familiar, em tarefas compatíveis com a sua capacidade física. Dizia-se na altura: “o trabalho das crianças é pouco, mas quem o rejeita é louco”. Eu, como tantas outras crianças da época, contribuí sempre com a minha parte sem que isso constituísse para mim, particularmente, qualquer trauma ou atrofiamento físico e cognitivo, muito pelo contrário. E a prova disso é que as mãos que se protegeram com a boina da asa de arame da “lata do pastor” são as mesmas que escreveram para vós este texto. Quiçá ele venha a ser excerto de um próximo livro, de forma a perpetuar a memória de todos estes intervenientes que me são caros.” O desejo concretizou-se hoje: este texto é, de facto, parte integrante deste livro. Não podia deixar de aqui fazer referência à senhora Olívia Felgueiras, também já falecida, esposa deste nosso pastor, o senhor Américo Catarino. Sendo este, como disse, da vizinha aldeia de Pereiros de Ansiães, a esposa, vindo a pé daquela terra, 22
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normalmente ao domingo, periodicamente vinha ao seu encontro no seu local de trabalho, a nossa casa. Ela usava uma blusa, provavelmente a única que tinha, que, com tantos remendos que tinha, não era possível determinar-se qual dos retalhos era da peça de tecido de origem da sua confecção. Porém uma certeza era evidente: estava sempre impecavelmente limpa. Foi um privilégio conhecer, conviver e ser mimado por gente simples e humilde como esta, indissociável destas minhas memórias! Destaco agora alguns dos comentários de companheiros de luta, e não só, como reacção ao conteúdo do texto: “Boa malha! “Ao Manuel Sousa remeto parabéns pela magnífica narrativa dos tempos de antanho, quando meninos nos faziam homens. Eu tive a sorte de não ter vergado a mola como ele, mas tive quem me contasse muitas estórias da vida provinciana, que me prendiam o interesse. Ao Carlos quero felicitar o olhar arguto e o aproveitamento desta soberana oportunidade. O Blogue tem alguns confrades que mostram à sociedade as reminiscências do Portugal feudal durante a nossa meninice, por vezes argamassado de disciplina pós-inquisitorial. Abraços fraternos JD” “Caro camarigo Uma estória verdadeira cheia de humor e realidades, eu sou do Sul Castro Verde, mas os hábitos usos e costumes são muito parecidos com a tua narrativa. 23
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Há uma pequena diferença no bardo no Sul na zona onde eu morava o pastor usava para curral uma rede fixa nuns paus a que chamavam de tenchões e a situação era a mesma logo que o terreno estava estrumado, mudavam a rede. Um abraço. Colaço”.
“Caro Manuel Onde é que eu já ouvi isto? Sempre muito bem escrito e descrito, como é seu apanágio. Gostei muito! Abraço fraterno. Felismina mealha”
“Caro Manuel Sousa: O texto é muito interessante e bem ilustrativo de uma das facetas da vida no campo, há cinquenta anos. É importante que as pessoas da cidade saibam como era dura a vida, mesmo para as crianças. Hoje está na moda a interdição do trabalho às crianças mas o trabalho desde que proporcional à sua capacidade física não lhes faz mal e ensina-as a apreciar o valor das coisas. Esta história tem um grande interesse e vem na senda das que o Francisco de Mogadouro nos tem contado. Força Sousa. Um abração Carvalho de Mampatá”
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“Camarada Manel: Simplesmente, gostei muito. Há poesia e humanismo na tua bela narrativa. Parabéns e um abraço do João Sacôto (Ex-Alf. Mil. CC 617)” “Antº Rosinha disse... Agora há muito «inocente» que estudou até aos trintas e quer poeticamente retomar os rebanhos e as hortas. Mas é bom que se tente, tanto na ingrícola agropecuária como na pesca, mas se um em cada 10.000 a vida deles chegar a netos já não será mau. É que naquela vida onde se apanha sol não é na praia, é na eira. E chova ou faça sol, temos que apanhar o nabal”. “Esmeralda disse... Uma delícia! Tão bem contado! Tão bem redigido! Parabéns! OBRIGADA! “ No final dos comentários, eu rematei: “Manuel Sousa disse... Não basta a virtude e a sensibilidade de quem escreve histórias destas, genuínas, verdadeiras, do tempo da nossa infância, ou outras. Essas histórias só fazem sentido também perante a sensibilidade e a argúcia de quem as lê. Essa perspicácia está bem presente nos comentários dos meus “camarigos” (camaradas e amigos) ex-combatentes, da minha amiga Felismina Mealha e da minha amiga e conterrânea Esmeralda. Um abraço para todos”. 25
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O Rito e a sua bicicleta... Antes de prosseguir, e acabando de escrever sobre o meu amigo Rito, vou-me deter mais um pouco, descrevendo ainda mais uma das suas muitas peripécias em que ele se via envolvido. Não sabendo bem onde ele a foi “desencantar”, um dia, já com cerca de dezasseis anos, apareceu lá na aldeia com uma bicicleta muito bonita, com que todos ficámos fascinados, visto que lá na terra, naqueles anos, não existiam “luxos” daqueles. Ora tendo o Rito aquela maravilha, todos nós, como amigos, tínhamos a possibilidade de dar uma voltinha, ainda que fosse com ela à mão, visto que ainda não tínhamos aprendido a equilibrar-nos naquela “geringonça”. Contudo, pouco a pouco, lá nos íamos aventurando de, nas descidas, nos sentarmos sobre o selim e, zigue-zague para aqui, zigue-zague para ali, lá íamos percorrendo pequenas distâncias, sem pedalar, em curtas corridas errantes, com algumas quedas pelo meio, que não passavam de uma ou outra esfoladela das mãos e ou dos joelhos, além das mossas que a bicicleta ia acumulando ao cair no chão de terra batida. Com todo este uso da “bicicleta do povo” e com todos os danos que ia sofrendo, não sendo feita a devida manutenção – onde é que o Rito tinha o dinheiro para isso – passado pouco tempo passou a andar sem pneus e sem travões, fazendo-se ouvir à distância o trepidar dos aros metálicos das rodas em atrito com as pedras do chão. Um dia, o Rito, juntamente com o João “Regedor”, este um pouco mais novo do que ele, na estrada que passa junto à aldeia, ali próximo da escola, faziam uma pequena subida a pé 26
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para depois ambos montarem no velocípede e descerem em velocidade até ao fundo da descida. – Ó Natália, tu devias é casar com um gajo como eu, olha para isto... Dizia o Rito para impressionar a minha irmã Natália, orgulhoso da sua exímia condução, quando passava por ela no Carvalho, uma nossa propriedade que ladeia a estrada. – Terrem... tentem..., terrem..., tentem..., terrem..., tentem... Ía-se ouvindo o som metálico do atrito das rodas da bicicleta na brita compactada da estrada durante as várias vezes que o condutor e o “pendura” faziam aquela descida sem qualquer controle. Só parava no fundo, porque, como disse, não tinha travões. – Catrapumba... Ouviu-se a dada altura o estrondo da queda da bicicleta e do rebolar dos corpos no chão. O meu irmão Fernando, que também estava ali por perto, acorreu ao local, vendo o João “Regedor” já a levantar-se e a retirar-se imediatamente. – Ó João, magoaste-te? Perguntou-lhe ele, preocupado. – Não..., caraaaaaças... Respondeu o João, a afastar-se a passos largos, a coxear um pouco, ao mesmo tempo que “coçava” uma das nádegas. – Filho da puuuuta..! Praguejava o Rito contra o “pendura”, de roupa impregnada de pó, levantando-se muito a custo com algumas escoriações nas pernas e na testa. 27
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Quanto à bicicleta, essa, com a roda da frente em forma de oito, ficou completamente inactiva, fora de serviço, o que antes se adivinhava. Era mais uma das muitas “ternuras” do meu amigo Rito! Que Deus tem.
O assalto ao açúcar... Embora, nessa altura, a família não passasse por grandes provações em termos de alimentação, que era garantida com tudo o que a terra dava e com o rebanho das cabras da família, não dispúnhamos de grandes mimos, no que concerne a uma guloseima ou outra, com excepção de algumas vezes, poucas, por lá aparecerem uns rebuçados “catraios”. Por isso, um dia, já com cerca de cinco anos, aproveitando a ausência da minha mãe, decidi fazer um assalto ao pacote do açúcar que se encontrava numa das prateleiras do armário da louça. Nessa altura o açúcar, e a mercearia em geral, eram vendidos avulso em pacotes ou cartuchos de cartão. Para o efeito, sendo muito pequeno, subi para um banco e alcancei o “lançador”. A partir dali já tinha acesso ao açúcar. Solidário também com a minha irmã Isabel, esta com cerca de três anos, comecei a fazer a distribuição mais ou menos equitativa, proporcional à idade, na razão de dois para um: Mão cheia para mim, mão cheia para mim, mão cheia para ela, que estava cá em baixo, e assim, mão cheia após mão cheia, nos íamos deliciando. 28
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A dada altura, para nosso azar, a minha mãe chegou, e, ao assomar-se ao postigo da porta, deparou connosco em flagrante bem lambuzados de açúcar moreno. Bem, enquanto eu fiquei a contas com a minha mãe por ter subtraído aquela especiaria para governo da casa, a minha irmã Isabel, negando-se a ser solidária comigo como eu tinha sido com ela, ainda que fosse na mesma proporção como eu distribuía o açúcar, sorrateiramente, a lamber as mãos, saiu porta fora e foi para o fontanário. Só regressou já quando tudo estava mais calmo, sem vestígios do “crime” que, provavelmente, a fresca água da fonte lavou. Com toda esta carência local, principalmente de produtos transformados, como era o caso do açúcar, recordo-me de na paróquia, periodicamente, quando eu tinha aquela idade, cerca de cinco a seis anos, e já mais tarde, sendo eu mais crescido, serem recebidas umas ajudas, destinadas aos mais carenciados, que acabavam por ser distribuídas por todos os habitantes da aldeia, que, no fundo, com raras excepções, eram todos pobres. Na homilia dominical, o pároco acertava com os moradores a disponibilização de bestas de carga para, a partir da sede da freguesia, Freixiel, a cerca de cinco quilómetros, ser transportada diversa mercadoria, para ser distribuída equitativamente pelos moradores. Sacos de farinha de trigo, latas de queijo fundido, latas de leite em pó, latas de manteiga e até algum feijão, entre outros produtos, integravam o rol. Assistindo eu muitas vezes a esta distribuição no adro da capela, fixei o pormenor, de que nunca me esqueci, do facto de 29
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