Os Jogos de Azar

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OS JOGOS DE AZAR REGULAÇÃO E PROBLEMÁTICA SOCIAL António Alegria


FICHA TÉCNICA Edição: Edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) Título: Os Jogos de Azar – Regulação e Problemática Social Autor: António Alegria Capa: Patrícia Andrade Paginação: Nuno Remígio 1.ª Edição Fevereiro, 2014 Depósito legal: 365141/13 ISBN: 978-989-98577-4-2 © António Alegria PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt NOTA: Texto redigido de acordo com as regras estabelecidas pelo novo acordo ortográfico.


Nota do Autor Comecei por ser, no início dos meus estudos secundários, um candidato à então Faculdade de Ciências Económicas e Financeiras, porém, um incidente de percurso levou-me, já à beira da universidade, a mudar de rumo e ingressar no curso de Direito. Ainda assim, perdurou no meu espírito algum vazio daí derivado, um sentimento de algo por fazer, que assim iria permanecer não fosse, bem mais tarde, impulsos de amigos me fazerem regressar à escola onde, naturalmente, encontrei outras pessoas, novas ideias e um olhar diferente sobre o mundo e as coisas simples do quotidiano. Consegui, durante esse tempo oxigenar o corpo e a alma e assim garantir a sobriedade necessária ao regular exercício da minha profissão e, importante, conhecer gente boa, que pensa honestamente e de forma muito positiva e racional a realidade do país, despida das presunções funestas e da indigência que dramaticamente por aqui grassa os terreiros da decisão. O texto que segue mais não é do que uma réstia, com algumas atualizações oportunas, de um trabalho de tese de mestrado em Economia e Políticas Públicas que há anos realizei no ISCTE –

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Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Não se trata de um trabalho ambicioso onde a investigação se afirme como vertente dominante, mas uma sumula de informação e experiências exercitadas num quadro de atividade muito específico e pertinente, a partir da qual transcrevo algumas ideias, suscito questões, sugiro discretamente uma ou outra alternativa, nunca aprofundando qualquer delas, por desejar seja essa a missão de um qualquer leitor eventual. Dito isto e, Seguramente longe da verdade última das coisas, mas imbuído de um espírito de partilha que o tempo curou de apurar, deixo pois o escrito, acompanhado de algumas reflexões singelas resultantes de três longas décadas de trabalho dedicado, muita observação e outro tanto de aprendizagem, com gente desinteressada mas profundamente sabedora, o qual desejo possa ser contributo para quem, com humildade bastante e sentido útil e competente de fazer, pretenda informar ou decidir ou, de outro modo, nesses desígnios participar. António Alegria

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Índice Introdução Indicações de leitura

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Capítulo I – Jogos de azar em Portugal 1. Enquadramento histórico e normativo 2. A criação e concessão de zonas de jogo 3. A concessão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa 4. A natureza jurídica das concessões de jogo 5. O quadro interno e a perspetiva europeia de harmonização

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Capítulo II – A economia do jogo 1. A composição da oferta Casinos Bingos SCML 2. A quantificação da procura Casinos Bingos SCML

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3. O volume de jogo 4. A geração e distribuição de receitas Casinos Bingos SCML 5. Impactos no desenvolvimento económico e social 6. O emprego 7. A importância das receitas geradas 7.1 Afetação das receitas 7.2 O consumo de subistência e o consumo de jogo 7.3 O volume e receita de jogo per capita 7.4 O volume de jogo face ao PIB 7.5 Receitas dos jogos versus fundos estruturais 7.6 As receitas dos jogos face à dívida pública

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Capítulo III – A sociologia do jogo 1. A problemática social 2. Tipos de jogador 3. O acesso ao jogo 4. Universo populacional afetado 5. A marginalidade associada ao jogo 6. O jogo patológico

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Capítulo IV – As políticas de jogo 1. O jogo responsável 2. Sistema regulatório 3. As parcerias

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Índice

4. Despesa associada aos impactos negativos do jogo 4.1 Os serviços de saúde 4.2 O apoio social 4.3 Segurança e ordem pública Capítulo V – Considerações finais 1. O jogo enquanto atividade geradora de riqueza 2. A sua relevância enquanto atividade económica 3. Que regulação? 4. Existe uma patologia do jogo? 5. Constitui um problema de saúde pública? 6. Qual a sua dimensão 7. Relação custo-benefício 8. A perspetiva europeia 9. Que caminho 9.1 O índice demográfico 9.2 Os índices de empregabilidade e conforto 9.3 Tipologia dos licenciamentos e das obrigações contratuais 9.4 Os critérios de adjudicação, tributação e de afetação das receitas 9.5 A oferta ilícita de jogos de azar 9.6 Jogos de azar e modalidades afins 9.7 Tipo e enquadramento da fiscalização 9.8 A harmonização das políticas de jogo e de suporte social

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Introdução Apresentou sempre grande dificuldade formular uma definição de ‘jogos de azar’ que constitua conceito suficientemente abrangente e integrador, permitindo interpretá-los e posicioná-los entre a generalidade das atividades humanas. Em sentido amplo o jogo está presente num conjunto muito alargado de atividades, abrangendo múltiplas práticas ou processos de as exercer havendo, no limite, quem o qualifique como inerente à própria espécie humana. Usa dizer-se com alguma razão que ‘a vida é um jogo’. Em sentido restrito a expressão ‘jogos de azar’ tende a coincidir com a ideia de apostas a dinheiro em que o resultado não depende da perícia do apostador. Não existem dados precisos quanto à origem dos jogos de azar. Harris (1964) é um dos que admite que esta propensão para o risco tem a ver com a natureza humana. Existem referências a tribos e culturas dos antigos Egipto e Mesopotâmia, onde estas práticas eram já mencionadas. E é também conhecido que os romanos apostavam nas corridas de qua-

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drigas e nas lutas de gladiadores e terão sido igualmente pioneiros na criação de lotarias para subvencionar serviços públicos (Villa, R e Canal, A, 1998). Desde Cícero a Frederico O Grande a referência ao azar esteve sempre presente no comportamento dos homens. O primeiro afirmava “vitam regit fortuna, non sapientia”, procurando evidenciar a influência da sorte, por comparação com a sabedoria, na vida das pessoas e Frederico O Grande, na sua carta 77 a Voltaire, confessava que ‘quanto mais contempla a realidade mais uma pessoa se convence de que o azar reina em três quartos do universo’. Digamos que se perde no tempo a origem do termo e da prática, porém, associados desde sempre a um sentido humano que diferencia o bem do mal. Sérgio Vasques (1999) numa análise que qualificamos de purista, refere que ‘o jogo, tal como o álcool e outras práticas ou consumos, porque marcados pela paixão obsessiva e pela habituação viciante, foram desde há muito qualificados como corruptores do indivíduo, das suas obrigações e sentimentos, da sua família e relações sociais. Privam o indivíduo temporariamente da razão impedindo-o de distinguir entre o bem e o mal, de reprimir os seus impulsos, expondo-o ao risco da habituação e do vício’. Esta ideia de perversão está também presente em textos religiosos, ligada ao conceito de pecado, aí entendido como ‘a palavra, ato ou desejo contrários à eterna lei de Deus’, como refere o mesmo autor, citando Santo Agostinho. Aliás, os pensadores cristãos fazem uma transposição do conceito de azar para o de providência e, naturalmente, opõem-se com veemência a que a ação da providência seja mediatizada pela do azar.

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Introdução

Mas outros, como Huizinka (1943), citado por Duarte (2001), analisaram a relação entre o jogo e outras atividades como a cultura, a arte, a guerra ou o direito. De acordo com este autor ‘o jogo é uma ação ou ocupação voluntária que se realiza dentro de determinados limites de tempo e de espaço, de acordo com regras voluntariamente aceites, mas não absolutamente obrigatórias, ação essa que tem o seu fim em si mesma e que é acompanhada por uma sensação de tensão e de fruição e da consciência de ser algo distinto da vida vulgar’. Também Eigen e Winkler (1989), o fizeram após quanto à matemática, à psicologia ou à economia. A definição de Huizinka pode parecer vaga e em alguns aspetos suscitar uma ideia de imprecisão, mas releva detalhes importantes para a formação do conceito, como sejam, tratar-se de uma atividade voluntária, invulgar e envolver fruição ou prazer. A medida temporal e fáctica da voluntariedade, o sentimento de invulgaridade e o prazer gerado pelo jogo no indivíduo, são elementos que consideramos referenciais para o trabalho que, na perspetiva sociológica, aqui pretendemos desenvolver. Mas seja qual for a natureza da abordagem, motivos como a ambição da riqueza, a volúpia e a expetativa do ganho, estão também presentes e suscitam paixão e dependência. O jogo enquanto gerador de prazer e de danos, de fortuna e de ruína, do bem e também do mal, como referem os autores mais conservadores, é parte da realidade em que vivemos sobre que centrámos a análise e, por via da qual, pretendemos também avaliar se enquanto atividade económica geradora de receitas, consegue, através desses proventos, compensar o Estado e a sociedade pelos danos que provoca nos indivíduos e nas famílias, pelas despesas de reabilitação através dos serviços de saúde e de apoio social e pelos encargos com a sua regulação e fiscalização.

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Neste sentido e após um enquadramento histórico e normativo, procuraremos primeiro centrar a análise num quadro de abordagem económica e financeira, tomando como referência as receitas geradas num dado período de tempo pelas diversas vertentes da atividade e a sua afetação ao serviço público e, num segundo momento, avaliar a sua dimensão e abrangência quanto à população afetada e à sua tipologia e, dessa forma, apurar se e em que medida é possível estabelecer uma relação de custo-benefício suscetível de responder àquela questão.

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Indicações de Leitura Digamos que o presente escrito não constitui um fim em si mesmo mas antes um arrolamento de ideias e exercícios sobre uma mesma coisa, mero entreposto num processo de sugestão ao leitor interessado para que se embrenhe na problemática, para que a estude e aprofunde, dando dessa forma um contributo para a sensibilização de todos os que de alguma forma interferem, fazendo ou decidindo, em vista ao preenchimento das muitas lacunas a descoberto neste domínio. Trata-se pois e tão só, de um conjunto de informação, de alguns alertas e pistas, suportados em vários tipos de pressupostos visando in fine ajudar a conhecer a atividade de jogos e apostas de azar, o seu potencial de influência sobre a economia do país e, não menos importante, a problemática que envolve. Recorreu-se para tanto a dados contabilísticos consolidados e referentes a períodos compreendidos, consoante os casos, entre 2000 e 2011, embora se trate de fator despiciendo para o objetivo visado. O rigor dos números é obviamente importante, já a época a que respeitam é, neste caso, meramente instrumental.

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Assim, enquanto no primeiro capítulo procedemos a um breve enquadramento histórico e normativo da atividade, a análise evolui no segundo capítulo para a avaliação do seu peso enquanto fonte de recursos tratando, nomeadamente, do volume da oferta, seja em número de operadores, casinos e demais espaços de jogo, seja ainda em número e tipo de jogos e equipamentos instalados, do volume da procura, avaliando os montantes globais despendidos pela população para jogar e do volume das receitas geradas incidindo, em particular, sobre a sua afetação. O terceiro capítulo centra-se na perspectiva social do jogo visando fundamentalmente avaliar se existe de facto uma patologia do jogo ou se, diversamente, o problema não assume tal dimensão. Neste exercício desenvolvem-se algumas projeções de resultados quanto ao universo populacional afetado e graus possíveis de afetação e aos custos que lhe estão associados. O quarto capítulo trata das políticas de jogo procurando caraterizar a realidade interna e evidenciar diferenças relativamente a experiências exteriores, com particular enfase no espaço comunitário. Por último e em sede de considerações finais, procuramos traduzir ou descodificar a informação reunida, comentando os resultados obtidos e confrontando-os com os de outros estudos sobre a matéria. No mesmo sentido, refletimos sobre as consequências decorrentes das principais conclusões, dando maior enfase às que reputamos de maior sensibilidade, como: -A s consequências previsíveis das novas tendências do jogo, no plano material, no plano social e no plano político; -O enquadramento normativo do jogo em face dos novos tipos de oferta;

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Indicações de Leitura

-A s perspetivas de produção legislativa e regulação europeia em matéria de jogo; -A s formas de impedir ou limitar a penetração do jogo nas camadas mais vulneráveis da população; - A prevenção de níveis críticos do problema do jogo. E terminamos discorrendo sobre aspetos que reputamos pertinentes e de ponderar no estabelecimento eventual de uma política nacional para os jogos e apostas de azar.

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Capítulo I Os jogos de azar em Portugal 1. Enquadramento histórico e normativo O jogo vem tratado na jurisdição nacional no âmbito do direito civil a propósito das obrigações naturais. O Código Civil consagra esta figura como ‘a obrigação que se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível mas corresponde a um dever de justiça’. Estabelece assim duas regras, uma de que as obrigações naturais estão sujeitas ao regime das obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coativa da prestação e uma outra de que, não pode ser exigida a restituição do que for prestado espontaneamente em cumprimento de obrigação natural (Pinto, M et al, 1982). De acordo com o mesmo Código, ‘O jogo e a aposta não são contratos válidos nem constituem fontes de obrigações’ mas “quando lícitos, são fonte de obrigações naturais”. Este entendimento, porém, não é novo pois já o Código de Seabra tinha estabelecido que o jogo não era ‘permitido como meio

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de adquirir’ e ainda que as dívidas de jogo não podiam ser pedidas judicialmente, embora o jogador que pagasse o que perdesse não pudesse, por regra, pedir a devolução do valor pago. Este entendimento reportava clara influência do código civil francês, sendo que, também os códigos italiano, alemão, suíço e espanhol, integravam normas de cariz semelhante. Em Inglaterra, contrariando a Common Law, o Gaming Act de 1845 veio a introduzir o princípio da nulidade contratual em matéria de jogo ao estabelecer que todos os contratos ou acordos, fossem verbais ou por escrito, por meio de jogos ou apostas, passariam a ser nulos e de nenhum efeito. E também nas Ordenações a matéria foi objeto de desenvolvimento, sempre com sentido repressivo das práticas, havendo registos de que os reis Afonso IV, Fernando I, João I e João III, criaram leis reprimindo a tavolagem e a prática de jogo aos dados e referências no Livro das Leis e Posturas a uma lei de D. Dinis que, não proibindo a sua prática, determinava a condenação à morte de quem fizesse jogo falso ou nele metesse dados falsos ou chumbados. Existem também relatos de que as primeiras lotarias realizadas em Portugal ocorreram na segunda metade do século XVII. Segundo os mesmos, por Carta Régia de 4 de Maio de 1688, o rei Pedro II criou a que terá sido a primeira forma de lotaria (Pinheiro, 2006, p. 43). Em meados do séc. XVIII era comum a prática de jogos, de modo dominante carteados, nos meios afetos às cortes europeias e esse quadro de maior abertura terá contribuído para que, por Carta Régia de 18 de Novembro de 1783, a rainha Maria I atribuísse à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa uma concessão para a exploração da lotaria anual, sendo os lucros distribuídos pelo

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Hospital Real, pelos Expostos e pela Academia Real das Ciências (Deus e Lé, p. 14). Ainda assim, subsistia séria reserva quanto ao tratamento a dar ao jogo, então refletida no Código Penal de 1886 que mandava, no artigo 264°, que “Todo o jogador que se sustentar do jogo, fazendo dele a sua principal agência, será julgado e punido como vadio”. Mas a incongruência e inconsistência do sistema, reforçadas pela incapacidade dos governos para fazer cumprir o que neste domínio ia sendo produzido nas sucessivas levas legislativas, conduziram a que o Estado-legislador acabasse explicitamente por reconhecê-lo no preâmbulo ao Decreto n° 14 643, de 3 de Dezembro de 1927, em que se diz: ‘Não é necessário revolver toda a legislação portuguesa para se ficar firme na convicção de que foi sempre baldado o esforço no sentido de reprimir em Portugal o jogo de fortuna ou azar’. E deste modo, ‘Afigurou-se aos poderes constituídos a necessidade de regulamentar o jogo; como sendo o meio de reduzir ao mínimo os abusos que se estavam cometendo’. É sintomático o teor deste preâmbulo, mas também o escritor espanhol Quintano Ripollés afirmava, por sua vez e a propósito, que “no ódio secular que os poderes estabelecidos têm contra o azar há possivelmente um fundo de ressentimento, já que não podendo dominá-los e tendo que superar os seus caprichos trata de reduzir pelos meios ao seu alcance esses resultados que escapam à esfera das suas limitadas possibilidades”, devendo entender-se a referência a ‘ódio’ mais no sentido de ‘preconceito’ e a ‘azar’ como reportando aos ‘jogos de azar’. O dito Decreto n° 14 643 acabou assim por revogar os artigos 21


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264° a 269° do Código Penal e os artigos 1541° e 1542° do Código Civil, estabelecendo um regime de jogo lícito que ainda vigora e permitiu, designadamente, a manutenção do regime especial que suporta, sem recurso a concurso público, a concessão da exploração de apostas e lotarias pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

2. A criação e concessão de zonas de jogo De acordo com o novo quadro normativo o jogo passou assim a ser permitido mas apenas em locais expressamente estabelecidos para o efeito, os casinos localizados em áreas previamente referenciadas que o legislador designou de ‘zonas de jogo’. A exploração das ditas zonas de jogo é atribuída, mediante concurso público, por concessão do Estado a entidades privadas em regime de exclusividade. Como decorre do artigo 7° do DecretoLei n° 48 912, de 18 de Março de 1969: ‘A concessão de exploração de jogos de fortuna ou azar em cada uma das zonas de jogo efectuar-se-á em regime exclusivo, mediante concurso público, a empresas legalmente constituídas sob a forma de sociedades anónimas de responsabilidade limitada…’. Na concessão das zonas de jogo, o legislador curou assim, como refere Oliveira Ascensão em parecer produzido sobre a matéria, de distinguir quanto aos pressupostos, entre o elemento subjetivo que obriga a que os opositores em concurso reúnam a forma de sociedades anónimas como garante da necessária dimensão, solvabilidade e perdurabilidade temporal e o elemento objetivo que impõe zonas de jogo submetidas a concurso público ou zona destinada a concessão, se ao concurso não houver lugar. Originalmente foram criadas oito zonas de jogo, sendo duas per22


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manentes localizadas nos então chamados Estoris e na Madeira e seis temporárias, localizadas em Santa Luzia-Viana do Castelo, que veio a transitar para Póvoa de Varzim por o concurso haver ficado deserto, Espinho, Curia, Figueira da Foz, Sintra e Portimão-Praia da Rocha1. Mais recentemente, em 1969, a designada zona de jogo de Portimão-Praia da Rocha passou a zona de jogo do Algarve2 e foram ainda criadas as zonas de jogo de Tróia em 19803, de Porto Santo em 19854, de Vidago-Pedras Salgadas, cujo casino veio a ser construído em Chaves, também em 19855 e, finalmente, a zona de jogo dos Açores em 19956. O conceito mantém-se ainda na sua forma original embora com evoluções decorrentes de circunstâncias de ordem concursal como a mencionada e das alterações legislativas entretanto verificadas, a mais recente das quais deu origem à abertura de um novo casino em Lisboa, integrado na zona de jogo do Estoril, mediante aditamento ao contrato respetivo. Em resultado disso, encontram-se atualmente adjudicadas dez zonas de jogo a que correspondem onze casinos em exploração, apontando-se, embora com reservas derivadas da crise económica instalada, para a abertura de mais dois em S. Miguel e Porto Santo e de duas salas de máquinas em Terceira e Faial. A exploração de jogos de azar pelas entidades concessionárias é sujeita ao pagamento de contrapartidas e a uma tributação especial, ponderada de modo diverso das demais atividades económicas, por via das quais o Estado arrecada receitas que afeta a várias atividades de interesse público, com predominância do investimento, promoção e formação turísticos. 1 2 3 4 5 6

Decreto n° 14 643, de 3 de Dezembro de 1927, artigo 3° Decreto-Lei n° 48 912, de 18 de Março de 1969, artigo 3° Decreto-Lei n° 340/80, de 30 de Agosto, artigo 1° Decreto Legislativo Regional n° 12/85/M, de 24 de Maio Decreto-Lei n° 372/85, de 19 de Setembro Decreto-Lei n° 10/95, de 19 de Janeiro

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Os primeiros diplomas ordenadores da atividade curaram de associar à adjudicação das concessões a obrigação de construir os casinos objeto das mesmas, bem como, equipamentos hoteleiros, recintos desportivos, habitação social e outros meios ajustados às necessidades das regiões. Alguns destes equipamentos reverteram para o Estado ou para os municípios respetivos no termo dos contratos de concessão. A tutela da atividade foi originalmente entregue ao Ministério do Interior, sendo criado como órgão fiscalizador o Conselho de Administração dos Jogos, munido de competências de controlo das explorações de jogo. O regime estabelecido pelo Decreto n° 14 643 veio a ser alterado pelo Decreto n° 41 562, de 18 de Março de 1958 e pelo Decreto-Lei n° 48 912, de 18 de Março de 1969, que mantiveram a tendência fortemente centralizadora da atividade e lhe impuseram um rígido controlo acautelando a coleta da receita e a proteção social. Mais a alteração mais marcante ocorreu com o Decreto-Lei n° 295/74, de 29 de Junho, que fez transitar o Conselho de Inspeção de Jogos, sucedâneo do Conselho de Administração dos Jogos, e a tutela da exploração e prática dos jogos de azar do Ministério do Interior para o Ministério da Coordenação Económica, integrando-os na Secretaria de Estado do Comércio Externo e Turismo. Esta medida introduziu uma significativa mudança na forma de interpretar e administrar o jogo em Portugal, retirando algum peso às conotações negativas até aí dominantes e assim contribuindo para potenciar a capacidade desta atividade para aproveitar recursos, direcionando-os para áreas económicas fundamentais.

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3. A concessão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi fundada em 3 de Julho de 1498, no reinado de D. Manuel I, por iniciativa conjunta da rainha D. Leonor, viúva de D. João II e de Frei Miguel de Contreiras. Em sintonia com o pensamento ao tempo vigente na Europa Central e porventura em razão de adesão recorrente a práticas de jogo nos domínios da corte, a rainha D. Maria I instituiu, como antes referido, uma loteria anual atribuindo àquela organização a responsabilidade pela sua exploração e pela distribuição dos lucros gerados. A exploração dos jogos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa manteve-se até aos dias de hoje, apenas sendo interrompida, quanto à dita loteria anual, por motivo das invasões francesas. Entretanto e através da Carta de Lei de 30 de Junho de 1891, foi criada a loteria nacional portugueza e por Decreto de 28 de Abril de 1892 repartidas as respetivas responsabilidades, cabendo ao Estado a administração superior da lotaria, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a sua execução e a uma empresa concessionária, a Companhia Aliança de Lotarias, a sua venda e desenvolvimento. Por incumprimento do contrato foi rescindida, em 6 de Abril de 1893, a concessão da Companhia Aliança de Lotarias cabendo, a partir de então, à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa responder por todas aquelas obrigações em regime de exclusividade (Pinheiro, 2006). O Decreto n° 14 643, de 3 de Dezembro de 1927, que antes mencionámos como o primeiro normativo regulamentador e integrador da atividade de jogo em Portugal, reconheceu a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no exercício da exploração da lotaria nacional e manteve o respetivo regime especial.

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4. A natureza jurídica das concessões de jogo A atual lei do jogo, titulada pelo Decreto-Lei n° 422/89, de 2 de Dezembro, estabelece que o direito de explorar jogos de fortuna ou azar é reservado ao Estado e só pode ser exercido por entidades a quem, na observância de determinadas condições, for adjudicada uma concessão. Ao manter como princípio o regime de monopólio, o legislador deixa implícita a ideia de estarmos em presença de uma atividade que, pela sua natureza, apenas em condições determinadas e mediante outorga de um contrato de concessão, pode ser exercida por particulares mantendo-se, contudo, no domínio público. O debate académico sobre a distinção entre direito público e direito privado indica genericamente, quando assente em critérios materiais, que estamos no campo do direito privado quando os sujeitos da relação jurídica surjam em pé de igualdade e no campo do direito público quando as normas pressuponham à partida um sujeito dotado de poderes de autoridade. Assim e seguindo o pensamento de Oliveira Ascensão (1978), enquanto no direito privado vigora um princípio de liberdade, em que, de modo simplista, se poderá dizer que é permitido tudo quanto não for proibido, uma vez que todos os sujeitos se apresentam em igualdade de condições, no direito público vigora um princípio de competência, em que é permitido apenas o que a lei permitir e proibido o que ela determinar. Dito isto, os contratos de concessão das zonas de jogo surgem claramente como contratos de direito público. Embora, como qualquer tipo contratual, pressuponham o acordo das partes, os contratos de concessão de zonas de jogo não contemplam a igualdade entre os sujeitos quer na outorga quer na execução, uma vez

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que o Estado estabelece previamente as condições a que devem obedecer as entidades interessadas e reserva-se o direito de escolher entre os candidatos, podendo recusá-los a todos ou mesmo, há quem defenda, adjudicar sem concurso. O Estado reserva-se ainda um extenso leque de poderes especiais de superintendência relativamente à ação dos adjudicatários na execução dos contratos e durante a vigência destes, por via da intervenção do organismo regulador e fiscalizador da atividade. A figura da igualdade está pois arredada dos contratos de concessão das zonas de jogo pois que o Estado atua não como simples particular mas dotado de poderes de autoridade e, portanto, imerso num princípio de competência, só podendo agir com expresso suporte da lei, nos termos e até onde esta o permitir. Como decorre dos artigos 9° e 10° da mesma Lei do Jogo ‘O direito de explorar jogos de fortuna ou azar pode ser exercido por empresas constituídas sob a forma de sociedades anónimas a quem o Estado adjudicar a respectiva concessão … mediante contrato administrativo outorgado na sequência de concurso público’. Não é indiferente, no caso, a imposição de um tipo específico de sociedade comercial. Ao impor que as empresas opositoras em concurso para adjudicação da exploração das zonas de jogo revistam a forma de sociedades anónimas, foi visível a preocupação do legislador em subordiná-las a um regime determinado de funcionamento e organização interna e às consequentes regras de relacionamento institucional. A sensibilidade do jogo no contexto social, levou a que se associassem ao processo de controlo da atividade mecanismos mais exigentes de fiscalização da gestão empresarial, porventura garantidos através do tipo empresarial em questão. As regras orgânicas

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e de funcionamento legalmente impostas para as sociedades anónimas constituem pois um pressuposto não desprezível. ♣ ♣ ♣ A condição jurídica das empresas concessionárias apresenta alguma complexidade porquanto o conjunto de normas que enforma e regula o quadro operativo associado à exploração dos jogos de azar compreende disciplinas jurídicas tão diversas como o direito administrativo, o direito criminal, o direito civil, o direito comercial, o direito económico e o direito fiscal. Por ausência de princípios e métodos próprios e de especificidade do objeto não seria possível arrumar todas essas normas num ramo autónomo do direito mas, não fosse isso, e como também refere Oliveira Ascensão em parecer produzido sobre a matéria, poderíamos sem exagero falar de um ‘direito do jogo’. As empresas que dispõem de licenças para explorar jogos de azar apresentam-se assim na dupla condição jurídica de sociedades comerciais e de concessionárias, regendo a sua ação, por um lado, pelas regras da legislação comercial e pelos seus estatutos e, por outro, pela legislação e regulamentação aplicável à atividade de jogo, sendo estas aparentemente dominantes. Quer-se com isso significar que, sempre que da lei do jogo e do contrato de concessão não resulte regime especial, as empresas concessionárias regem-se e são tratadas como sociedades comerciais. Contudo, no âmbito das relações Estado-concessionária, quer os termos contratuais, quer a regulamentação específica, apenas podem alterar aquilo que, em respeito pelo interesse público, haja

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que o ser como garantia do bom curso das concessões, uma vez que, o designado ‘direito do jogo’ não poderia esgotar tudo o que respeita ao relacionamento entre as empresas e o Estado. E nessa medida são estabelecidas, nos contratos de concessão e na legislação que os suporta, prerrogativas que as diferenciam das demais sociedades comerciais, de que são caso alguns benefícios fiscais e o direito de requerer expropriações por utilidade pública. Diversamente, as relações entre a concessionária e os cidadãos e demais entes privados processam-se de forma diferente, uma vez que aquela ao praticar a generalidade de atos jurídicos necessários ao seu funcionamento, seja no âmbito laboral ou na aquisição de bens e serviços, se apresenta em igualdade de circunstâncias com os demais contraentes, despida pois das prorrogativas decorrentes dessa condição. Por sua vez, internamente, dentro do seu quadro operativo, dominam o direito privado e os estatutos, salvo quando algo diverso seja imposto pelos normativos diretores da atividade de jogo, como acontece com as alterações e transmissões de capital, com a contabilidade especial do jogo e com a contabilidade comercial.

5. O quadro interno e a perspetiva europeia de harmonização Como referido, não se verificaram, em termos conceptuais, alterações significativas no modelo operativo do jogo em Portugal desde que, nas duas vertentes de operação, foi autorizada a sua prática e exploração. As mudanças verificadas visaram mais ajustamentos práticos e de alinhamento com os modelos internacionais, do que reais mudanças de regime ou estratégia quanto ao papel do Estado na administração do jogo ou deste na economia do país.

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O Estado continua assim a deter e exercer o monopólio da atividade mediante concessão da exploração dos jogos sociais, lotarias e apostas mútuas desportivas à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, da exploração das zonas de jogo onde se localizam os casinos a empresas privadas que reúnam determinados pressupostos de constituição e objeto e da exploração de salas de jogo do bingo a entidades públicas, a entidades privadas com estatuto de utilidade pública e a entidades privadas que, não reunindo essa condição, tenham como objeto social a atividade turística. O monopólio estatal da exploração de jogos é ainda figura dominante no quadro europeu, apesar de se verificar desde há alguns anos uma significativa pressão sobre os órgãos de decisão da União Europeia por parte de operadores privados internacionais e mesmo de alguns Estados-Membros, em vista à sua liberalização. A Comissão Europeia e o Conselho Europeu têm-se manifestado reticentes quanto a esta perspetiva em razão da grande especificidade técnica, da pertinência social e do longo histórico dos EstadosMembros na regulação da atividade, que é centrada em realidades sociais e culturais diversificadas e suportada por motivos fortemente enraizados nas tradições locais, fatores que têm garantido, ao longo dos tempos, regimes equilibrados de administração do volume de jogo permitido e de aplicação das receitas respetivas. O Estado português confronta-se hoje, para além destes motivos, com o facto de haver celebrado com os concessionários das zonas de jogo contratos de concessão cuja longevidade se traduz numa forte limitação negocial. Com efeito, o último contrato de concessão outorgado é válido até 2032 e no início da década precedente foram acordadas prorrogações aos contratos então em vigor até 2020 e 2023, o que constitui um claro constrangimento à adoção de novas políticas para a atividade sob pena de poder implicar

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complexas negociações compensatórias. Argumentam os Estados-Membros defensores da abertura do mercado do jogo no quadro da União Europeia, que é desajustado manter regimes de exclusividade num contexto europeu de livre circulação de pessoas, bens e serviços. Sem sucesso procuraram inscrever esse interesse no âmbito da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, sobre serviços no mercado interno, tendo então sido considerado que as atividades relacionadas com os jogos a dinheiro têm uma natureza específica e, por isso, foram excluídas do seu âmbito. O grupo de Estados-Membros detentores de regimes de monopólio, em que Portugal se inscreve, suporta a sua posição em princípios de segurança e ordem pública materializados na prevenção da marginalidade e das práticas criminais associadas ao jogo e na proteção dos consumidores, nomeadamente, os mais vulneráveis por razões de dependência. Nesta perspetiva, vêm pugnando em todas as frentes por uma postura contrária à intervenção das instâncias comunitárias nesta matéria, arguindo que, não obstante detenha a competência legislativa mas não havendo a União Europeia produzido legislação enformadora da atividade de jogo, deverá prevalecer o que, quanto ao mesmo, decorre dos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, à luz do princípio da subsidiariedade. Neste contexto foi, entretanto e a propósito, constituído o Grupo de Trabalho sobre Estabelecimento e Serviços, no seguimento de um mandato, de 2 de Julho de 2008, do Comité de Representantes Permanentes. Este grupo iniciou os trabalhos sob a égide da presidência francesa, na segunda metade daquele ano, e no relatório de progresso apresentado ao Conselho em Dezembro de 2008, concluiu inter alia ser útil uma partilha de pontos de vista so-

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bre diferentes aspetos dos regimes jurídicos dos Estados-Membros neste domínio. Por sua vez, no relatório de progresso apresentado em 12 de Novembro de 2009, após conclusão dos trabalhos do mesmo grupo, a presidência sueca apresentou evoluções significativas centradas em três tópicos: - Problemas socioeconómicos do jogo; - Medidas de jogo responsável; - Medidas nacionais para pôr termo à promoção e incentivo de práticas ilícitas relacionadas com o jogo. Relativamente ao primeiro tópico, os trabalhos centraram-se fundamentalmente na avaliação dos custos associados à atividade em razão do jogo problemático ou patológico, realçando aspetos como: - Custos diretos e indiretos com cuidados de saúde e medicação; - Custos decorrentes de ausências temporárias do trabalho; - Custos derivados da reforma antecipada; - Custos decorrentes do desemprego, como a perda de produtividade e a perceção de pensões de sobrevivência; - Custos de esforço estatal especificamente dirigidos para o tratamento da patologia do jogo, nomeadamente, com a organização, o desenvolvimento e implementação de programas e projetos de apoio social e tratamento; - Custos decorrentes de práticas criminais associadas, nomeadamente, as provenientes dos danos gerados, da intervenção dos tribunais, das polícias e outros órgãos fisca-

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lizadores. O relatório conclui ainda, quanto ao segundo tópico, que a despeito dos resultados obtidos pela pesquisa quanto aos fatores biológicos, sociais e psico-sociais associados à problemática do jogo, outros fatores de risco são identificados como suscetíveis de permitir a adoção de medidas de prevenção, como são caso: - Facilidade de acesso ao jogo; - Associação ao consumo de álcool; - Reação a perdas ou a ganhos ocasionais; - Excitação e tensão; - Tipologia dos equipamentos e dos jogos; - Publicidade ao jogo; - Interação com outros jogadores; - Convicção de sorte e de controlo. E aponta para medidas de jogo responsável que os reguladores e as empresas operadoras de jogo devem promover em vista a prevenir o desenvolvimento do jogo problemático, sugerindo a imposição de medidas dissuasoras e de controlo como: - A fixação de idades limite para acesso às salas de jogo e mesmo a tipos determinados de jogos; - A obrigatoriedade de identificação para acesso às salas de jogo; - O registo prévio para acesso ao jogo online; - A identificação de uma conta bancária exclusiva para efeitos do jogo; - A fixação de limites para a prática do jogo e para os respe33


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tivos movimentos bancários; - A proibição do jogo a crédito e a monitorização das transações. A lei portuguesa assume, face ao que precede, algum pioneirismo, pois desde os primeiros diplomas que regulamentaram a atividade que o acesso à mesma, fosse para a praticar ou explorar, era sujeito a condições muito restritivas. Para além da imposição de que os sujeitos houvessem atingido idade maior, era também obrigatória a identificação prévia à entrada das salas de jogo, norma que foi sendo progressivamente abandonada, primeiro quanto às salas de máquinas dos casinos e às salas de bingo e depois, no novo quadro operativo, quanto às salas mistas às quais é facultado livre acesso sob condição única de detenção da maioridade. Da mesma forma, foram há muito adotados mecanismos de monitorização das transações realizadas para jogar e proibido o jogo a crédito, prática esta sancionada criminalmente como usura para o jogo. Como também antes salientámos, por manifesta ausência de lei específica, por não se enquadrarem no que determina a Lei do Jogo e ainda por colidirem com os interesses protegidos nos contratos de concessão, deram-se por proibidas a exploração e a prática de jogo através da internet. O atual quadro normativo estabelece o regime das concessões para a exploração de jogo e os casinos localizados nas zonas de jogo, as salas de bingo e os jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa como referências para a sua prática. Foi portanto por exclusão que a exploração e a prática do jogo através da internet surgiram qualificadas e sancionadas como ilícitos. Estas práticas proliferam, contudo, indiscriminadamente por todo o mundo, face à dificuldade da generalidade dos Estados para

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as regular e, acima de tudo, à manifesta incapacidade para as controlar. Trata-se de assunto em vivo debate no seio da comunidade internacional, não apenas em razão da problemática social, mas fundamentalmente do volume de receitas que envolve, na maioria dos casos livre de qualquer tributação. Têm surgido nos últimos anos iniciativas legislativas nos Estados Unidos e em alguns países europeus, nomeadamente, na Noruega, Itália, Eslovénia, Estónia e França visando, embora de modo diverso, a limitação, o controlo e, por essa via, a tributação da oferta de jogo através da internet. Nos Estados Unidos e Noruega, impondo o bloqueio dos sítios onde o jogo é colocado em oferta e a proibição de transações bancárias para o jogo. A Itália e Eslovénia também mediante bloqueio de sítios mas sem conflituar com as transações bancárias nos casos de operadores que não disponham de licença. A França instituiu, por sua vez, um modelo de licenciamento para os operadores que oferecem jogo através da internet e medidas sancionatórias para os que o façam sem a respetiva licença. Em Portugal e como referido, esta prática é qualificada como ilegal por aplicação do que dispõe a Lei do Jogo, mas a inexistência de regulamentação específica neste domínio vem constituindo fator facilitador da oferta e do acesso ao jogo oferecido através da internet. Não existe qualquer tipo de licenciamento ou registo prévio de operadores, não são identificadas as contas bancárias por onde correm as transações, não foram definidas as responsabilidades dos diversos reguladores, nomeadamente, os responsáveis pela banca, pelas comunicações, pela atribuição dos sites e pela exploração dos jogos e apostas de azar e, também por essa razão, não é possível enquadrar e estabelecer qualquer limitação à sua prática. Mas outros motivos têm contribuído para a desregulação do 35


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jogo neste domínio. No início da década precedente foi submetido ao Governo pela Inspeção-Geral de Jogos um projeto legislativo visando ordenar o que designava de ‘jogos interativos’. Contudo, a reação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que vinha trabalhando um projeto semelhante, conduziu à criação de um grupo de trabalho que analisou e produziu um relatório sobre a matéria dando particular enfase ao papel dos jogos sociais, mas do qual nenhuma legislação resultou até 2010. No entretanto, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa avançou e, por vias próprias, submeteu e viu aprovado o seu projeto de regulamentação para a venda de apostas online. Em Setembro de 2010, confrontado com a avalanche de oferta de jogos a dinheiro através da internet e sem que a legislação feita aprovar pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa houvesse dado algum contributo para o minorar, o governo em exercício constituiu e mandatou novo grupo de trabalho visando, uma vez mais, o estudo e preparação de legislação nesse domínio, tendo o relatório sido concluído e entregue em 13 de Dezembro e a proposta legislativa em Junho seguinte. Desta feita, é suposto que os concessionários de jogo, agradados embora com o conceito, reagiram negativamente ao quadro sancionatório proposto. Era notória a motivação do Governo de então em produzir um instrumento legislativo que lhe permitisse integrar na Lei do Orçamento do Estado a receita previsível. E assim ocorreu de facto, mesmo sem o processo estar concluído, porém, de modo desajustado, sem recurso a qualquer estudo económico e, em razão disso, a verba estimada ficou refém das conveniências do momento. Estados de desespero geram por norma este tipo de medidas, quase sempre sem fundamento lógico e sustentável. Não espantará, por isso, quando práticas como esta se vierem em breve a repetir, com consequências cada vez mais graves, dada a importância

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e oportunidade da receita e a já frágil credibilidade da atividade e dos órgãos nacionais face aos parceiros externos. No final de 2011, já com um novo Governo em exercício, foi criado um outro grupo de trabalho ao qual terá sido facultado um mês para apresentar novo projeto de diploma. Um mês afigurava-se manifestamente curto face ao volume e seriedade do trabalho a desenvolver, o que sugeria que, ou o diploma estava concluído bastando alterar-lhe um ou outro detalhe, ou não se pretendia diploma nenhum. O tempo entretanto decorrido sem que alguma coisa acontecesse nesse seguimento, comprova lastimavelmente a última das perspetivas. Mas não deixa, uma vez mais, de ser sintomático o discurso recente da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa contra esta iniciativa legislativa, no sentido de que a oferta online de jogos a dinheiro já se encontra regulamentada em Portugal. A da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa naturalmente, mas deixando de fora o grande universo da oferta que integra os jogos de casino, com particular dominância dos pokers, concorrentes de vulto na vertente online do negócio. Ainda assim e retomando, as preocupações formalizadas no relatório de progresso da Presidência sueca, de Novembro de 2009, encontram alguma consagração no ordenamento jurídico interno, muito em razão do que resta do pensamento dominante no século XX, contudo, a evolução tecnológica e a progressiva desmaterialização do jogo, associadas à ora mencionada ausência de regulamentação adequada, colocam definitivamente em causa as razões de princípio, com consequente exposição da população afetada e perdas, por enquanto não mensuráveis mas seguramente muito significativas, para o erário público.

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