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FICHA TÉCNICA edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: Os Roceiros na Cidade autor: Agostinho Viegas revisão: Mafalda Falcão paginação: Alda Teixeira capa: Patrícia Andrade

1.ª Edição Lisboa, Abril 2015 isbn: 978-989-8678-80-5 depósito legal: 379899/14 © Agostinho Viegas

publicação e comercialização:

Rua da Assunção n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 | 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt

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A vida de um estudante da roça na cidade de S. Tomé era como a do idolatrado “Rambo” nas matas do Afeganistão. Nós procurávamos o saber tal como ele procurava libertar os seus. Somos identificados com o lugar onde nascemos e se tivéssemos de escolher, certamente haveria muitos lugares desabitados no mundo…

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AGRADECIMENTOS

Devo uma palavra de apreço aos meus condiscípulos que comigo conviveram estes quotidianos, cujos constantes incentivos nunca faltaram para que levasse estes factos ao memorial imperecível, por vezes com prejuízo nas suas placidezes e até de privações nas suas agendas pessoais. Foi, no entanto, portentoso que a boa vontade tenha sempre imperado. Um colossal carinho ao meu pai que embora já falecido volta a vida neste livro. Valorizo os seus esforços para uma educação mais aberta naqueles tempos tão difíceis. Parece-me que estas coisas não se agradecem, mas eu faço questão de enviar do fundo do coração um olhar de ternura para o céu que, mais do que uma sombra, também foi a minha alma viva nestes percursos, e não seria justo que O esquecesse. E por último, um agradecimento especial à minha esposa Marilene Lourenço Dias da Silva e a minha mãe Maria Pedro Dias de Andrade. Muito obrigado.

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1. O Belém do nosso tempo Atraído pelo amigo Nazaré, que era Comissário Político do Distrito de Caué, o Géné foi convidado para passear na cidade dos Angolares, onde conheceu a Sedalina; enamorou-a e trouxe-a para Belém, a duas centenas de metros, do então famoso “carroceiro de Belém”, perto da cidade da Trindade, onde viveram maritalmente durante quase uma década e da qual resultaram seis filhos. Era a sua terceira tentativa de fugir do solteirismo. Belém era uma vila pacata da cidade da Trindade, com cerca de 30 famílias, sem luz elétrica mas com exuberante vegetação, onde corriam os rios como o Mamblêmblê, a Água Nguno, a Água Seca, e outros. Aves endémicas como a séssia1, a rola2, o tordo3 e frutas tropicais raras, enfim; conseguia-se ali uma vida de campo, amparada e saudável. Era na Igreja da cidade da Trindade onde saciávamos as nossas almas naquelas missas semanais, e onde me vejo como hoje, vestido de branco, entrando por aquele pórtico adentro

Séssia – nome científico: Treronsanctithomae. Rola – nome científico: Columba malherbii. 3 Tordo – nome cientifíco: Turdus. 1 2

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para receber o sacramento do batismo nas mãos de um clérigo português de nome Tomé; estávamos já em 1973. A boda foi realizada no nosso quintal, com presença de inúmeros engravatados. Recordo que, no meio de tantos convidados, sentia-me um pouco desolado, mas a festa ganhava a sua dinâmica habitual. Um grupo musical improvisado fazia playback de músicas populares da região, aquelas que mais andavam no ar vinda dos rios, entoadas pelas lavadeiras, dos quintais entoadas pelas domésticas e até dos campos agrícolas entoados pelos vinhateiros ou agricultores, e o público não ficava impávido: era uma conjugação de vozes que alegrava todos e até as plantas dançavam, ajudadas pelo vento, perante um daqueles dias em que o sol nos mostrava a terra prometida. As enormes panelas eram como as carruagens de um comboio estacionado sobre carris, suportadas por enormes basaltos numa altura de cerca de 40cm, onde as lenhas vindas da roça Monte Café especialmente para o efeito jaziam, produzindo uma chama que queimava arduamente as bases das panelas e afugentava os líquidos contidos nelas, consumando assim o nosso almoço. Entre os presentes, era notável a satisfação na comunhão do evento: alguns dançavam, outros mexiam a cabeça e os pés, mas, em cada vazio, pairava o som do tchin-tchin-tchôlo4, que também marcava a presença mais interventiva entre muitos pássaros que nos rodeavam. Dentro de um embrulho de palhas secas, preso num ramo de cacaueiro a cerca de 4 metros do solo, ele transmitia sinais de incómodo com a presença dos convidados. A um

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Tchin-tchin-tchôlo – uma ave endémica de S. Tomé.

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dado momento ele deu um pulo do ninho e pousou no corrimão da varanda, olhando-nos lá em baixo como se estivesse a questionar algo. A curiosidade parou a música e todos, de caras levantadas, procuravam descodificar a mensagem deste lindo passarinho amarelo. Naquele instante, o pai interveio dizendo: – Caros convidados, nada de espanto. Ele tem cá um ninho e está tentando nos pedir para não mexermos com os seus filhinhos. Por favor, afastem-se do pé daquele cacaueiro para ele se ir embora. Ele ainda falava, fazendo gestos com as mãos, quando o pássaro passou entre elas, indo de asas firmes direitinho para o seu ninho. A música retomou o seu lugar e voltou a dar vida ao ambiente. O tempo passava mas as nuvens do céu eram como um lindo quadro de um bom pintor, enquanto o meu estômago pedia algo, cada vez com mais urgência. Mas sabia que era desacato à nossa tradição se alguma criança mexesse nos lindos bolos, doces, carnes assadas ou outros artigos alimentares expostos na mesa, no meio do quintal. A fragrância da feijoada me atormentava, pois nem a vizinha do lado que usava temperos exclusivos se atrevia em competir com a minha mãe. Ela tinha os seus próprios segredos e naquele dia caprichou para agradar os convidados. Os pratos não paravam na minha estação, e olhava-os como se o motorista esquecesse de que esta também era uma estação oficial e seguia-os com os olhos de um lado para o outro e sucessivamente. Concluí que… esqueceram-se mesmo de mim. Foi então que vacilei e infringi a regra... senti pingos de fluido banhando estes grandes queixos a baixo, arejando a minha grande vontade de fazer o que sabia que era proibido. Uma vizinha atenta fitou-me firme-

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mente do outro lado da multidão, calculou os meus sentimentos e sorrateiramente foi-se aproximando. Subiu as cinco escadas e mudamente entregou-me um prato com a feijoada que evaporava e expandia aquele aroma único; era a feijoada, um pouco de arroz ao lado e uma colher. O eclipse solar desaparecera e sem tempos para lhe agradecer meti uma colher na boca, de seguida outra e mais outra sem parar. Ora, a minha mãe não adormece quanto está trabalhando. Enquanto o meu pai distribuía as bebidas, ela servia as refeições e procurava oferecer os convidados a melhor disposição possível. Sempre que podia, lançava aquele seu radar à multidão, tentando detetar os convidados insatisfeitos. Quando era o caso, aproximava-se deles e procurava solucionar as suas inquietações. Foi numa dessas fiscalizações que fui apanhado. Ela aproximou-se calmamente e sem que os outros se apercebessem, repreendeu-me com aquele olhar carregado de um enorme não, que enlameava aquela linda face tornando-a medonha; acrescentando, disse baixinho, numa voz aguda: – Não quero ver lágrimas nos teus olhos… assim estás a envergonhar-nos perante os convidados. Já disse, fica quieto, há muita comida; deixa-me servir os convidados e já comemos. A incredulidade era muita, mas a submissão às ordens dela era mais verdadeira e, passados alguns minutos, quando tive a certeza de que ninguém estava zombando de mim, procurei normalizar, dando passo ante passo para mudar de lugar disfarçando como se nada tivesse acontecido… fiquei pasmo, amordaçado, contrariado e quieto, aguardando uma segunda hipótese que sabia que iria acontecer a qualquer momento; só precisava de tempo que não quis aguardar, e quando o mesmo chegou,

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entreguei razão a minha mãe, depois de escutar estas palavras dela: – Meu filho, temos de dar mais atenção a todos aqueles que tiveram o bom senso de comparecer num dos atos tão importantes da tua vida… ficamos maravilhados com as suas satisfações. Espero que me entendas. Nesta altura, consumiam-se mais as bebidas e as danças erguiam, pós que mal se viam os pés, bem como aqueles poucos sapatos… e, finalmente, aquelas palavrinhas da minha mãe acordaram-me para a atividade… só sei que já não tinha mais estômago para tanta comida nem mais braços e pernas para tanta brincadeira. No fim, fiquei feliz com a festa e fui-me entristecendo com as despedidas dos convidados. E assim se iam as convivências entre os moradores de Belém, com muita alegria, amizade, trabalho, compartilhando a súbita chuva que nos regava e que nem respeitava a presença do sol ardente. Pessoalmente, adorava as imposições destas duas forças naturais, pois é inimaginável brincar num meio onde elas estão se disputando. No outro dia, estávamos na véspera do Natal 1973, cumprindo a tradição. Juntamo-nos, cerca de sete colegas, para construirmos um presépio, pois dizia-se na região que o melhor seria premiado, embora não soubéssemos como. O Ivo foi buscar andalas, musgos e fetos. Encarregaram-me de arranjar argilas que tivessem plasticidade suficiente para fazermos as ovelhas, os burros, José, Maria, o menino Jesus, os reis magos e os outros intervenientes. Quando eram 14:00 horas em ponto, já se via o

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resultado do nosso esforço, mas achávamos sempre que carecia de mais ornamentação. A nossa construção, com formato imaginário da Igreja Católica Romana, tinha cerca de 1,50m de altura e 1,10m de largura, assegurada e cobertas pelas andalas das palmeiras e por folhas daquela planta vascular que se reproduzem por esporos, o feto. Os dois lados da estrada que davam para a gruta eram apetrechados pela alvenaria de basalto, coberto pelo musgo verde. Depois de duas ou três curvas, no cume da elevação estava a gruta como se fosse uma igreja aberta, contendo José e Maria, que estavam ajoelhados perante o menino deitado numa manjedoura; em volta, algumas ripinhas asseguravam a cerca das ovelhas, bois e vacas. Em cima de onde estava o menino havia uma estrela, bem visível a distância, feita de cartolina de cor amarela, presa ao teto por uma linha fina de cor branca. A maioria dos transeuntes que passavam por ali aclamavam o nosso presépio, alguns diziam que este era o mais formoso que alguma vez tinham visto. Brincávamos ao lado, saltando, cantando e bailando, aguardando o final do dia sem nenhum compromisso. O sol já se arredava quando um carro estranho que não se via nas redondezas estacionou no passeio a 10 metros passados do nosso presépio, chamando a nossa atenção. Estávamos curiosos em saber quem sairia de lá, que certamente vinha procurar informações sobre a zona, por exemplo onde ficaria a cascata de São Nicolau. Mas estávamos enganados. Saíram três homens brancos vestidos de fardas das chefias militares portuguesas, de cor branca, de meia altura, usando chapéus e óculos escuros. Aproximaram-se e, o que estava no meio, tomou a palavra e disse:

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– Sou o representante do Governador da Província de S. Tomé e Príncipe, e em nome do estado Português venho congratular-vos por terem contribuído para assegurar a nossa cultura e a nossa tradição com este vosso gesto. Muito obrigado. Dito isto, um dos seus homens abriu uma embalagem que trazia na mão direita, e tirou de lá, ricos doces de caramelo, que foi entusiasticamente distribuído a todos nós. Com a movimentação, já ultrapassávamos dos quinze elementos. Era importante sentir que estávamos perante alguém que defendia os valores em que o seu grupo social acreditava e que constituía um dos seus padrões sociais, que por sua vez se conglomeram nos atos culturais de um povo. Mas o eco da nossa alegria contrastava sisudamente com o medo dos adultos, e até de alguns jovens, que se apressaram em esconder por detrás daquelas bananeiras, às quais só se reconhecia o dono quando a banana estava pronta para ser cozinhada. O carro despediu-se, no meio de ambiente de grande festa infantil e de explosão de alegria. Passados alguns minutos, começou a aparecer um adulto, depois outro e mais outros, incluindo o meu pai. Eles desconfiavam que se tratava dos homens da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Naqueles tempos, a instabilidade política governava os destinos da República Portuguesa e províncias ultramarinas como S. Tomé e Príncipe que ressentiam o possível corolário. Muita gente era presa sem justificação aparente, pois o “Estado Novo” temia a sua possível queda. Saíram dos esconderijos todos apavorados; um deles foi até à curva para certificar a ida daquele carro estranho, um outro estava muito preocupado com a oferta que aqueles

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homens nos tinham deixado. Entre eles falavam como se estivéssemos numa guerra, que a qualquer altura poderíamos ter a necessidade de fugir das atrocidades da PIDE, e que se fossemos apanhados nunca mais seriamos vistos. Era tenebrosa a imagem que recebemos dos homens que ao pouco até festejavam connosco. Apressei-me em perguntar-lhe por que se haviam escondido deles, quem eram aqueles homens, e por que é que eles se vestiam assim. E o meu pai respondeu-me: – Meu filho, tu não entendes isto. Nós os negros nascemos aqui, somos nativos, esta é a nossa pátria, e estes brancos vieram de Portugal e colonizaram-nos… Alguns povos estão a expulsá-los e a assumirem os seus próprios destinos. Eles temem que nós poderemos ser os próximos… tu não entendes isto, talvez um dia quando fores mais velho! Pegando num dos pequenos embrulhos que o senhor nos tinha dado, voltei a questioná-lo: – O que é isto, pai? Será que o podemos comer? Ele pegou num, farejou seriamente e respondeu: – É um doce de caramelo, podes comer. Ao saborear a sua doçura, pensei na possibilidade de condimentá-los lá em casa. Na boca faziam-me sonhar com as ricas açucrinhas da mãe, que a ausência do coco as tinha levado consigo já há algum tempo. Nem no mercado da cidade da Trindade encontrava-se o coco. Na verdade estes caramelos eram bons, abundantemente. Mas para isto, o pai tinha que saber fazê-los. Voltei a importunar-lhe no meio da discussão política que os adultos faziam ali: – De que é feito o caramelo? O pai consegue fazê-lo, em casa?

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Ele respondeu: – Sim. Tradicionalmente o caramelo não é difícil de se fazer, com 500gr de açúcar, um pouco de canela, água; leva-se ao lume num tacho até atingir o ponto de caramelo; este ponto é notado quando a solução apresenta a cor dourada com tendência a queimar. Mas o que tens aqui é feito na fábrica, certamente em Portugal, e não sei fazê-lo. Depois falamos disto. Dito isto, voltou ao debate. Como o sol se despedia, fomo-nos recolhendo, pois tínhamos de ir à escola na manhã seguinte, bem cedo.

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2. A escola do mato Num pequeno recinto improvisado, como uma sala de aula rudimental, alguns professores reformados, ou alguém dotado de certo conhecimento, recebiam crianças que frequentavam a escola do Estado ou alguém que preparava para participar em concurso público, para dar-lhes explicações achadas úteis para o seu percurso, em troca de pequenos estímulos que poderiam ser monetários ou de outra natureza. Aqueles que por ali passavam eram muito mais seguros nas respostas ao professor do que os que simplesmente cumpriam as suas obrigações na escola primária da Capela. Eles não só sabiam fazer as contas de dividir de mais de uma casa, e a respetiva prova dos nove, como também conheciam as matérias sobre a raiz, caule, folhas e frutos de uma planta. Aqueles mais inteligentes até falavam nos corredores, durante o recreio, como se estivessem cantando nas brincadeiras de que a raiz era a parte subterrânea das plantas, responsável pela sua fixação ao solo e pela absorção de água e sais minerais; outros falavam de caule como sendo o eixo principal das plantas, responsável pelo transporte de substâncias de nome seivas nas plantas, e de que havia duas seivas: a bruta, que ia da raiz às folhas, e a elaborada, que

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vinha das folhas, referindo o notável papel das folhas na realização da fotossíntese e da sua impreterível importância para a vida na terra. Eles cultivavam um saber diferente que até proporcionava ciúmes aos colegas. Eram excelentes até no comportamento. Recordo-me como hoje de uma correção de trabalho de casa, que foi apresentado por um destes colegas; o professor duvidou e pediu-nos tempo para confirmar o método utilizado por ele, que foi feito na aula seguinte. Vendo isto, fui falar com o meu pai para que me colocasse num destes centros de aprendizagens, no mais próximo de nossa casa. Ele aceitou e disse que também estava a pensar no assunto. Saíamos da escola diretamente para a casa do Francisco, que era um professor já reformado. Ele dividia as suas lições em três áreas: as ciências, a matemática e o português. Explicava uma em cada dia e todas as sextas-feiras eram dias de provas orais. Quem não soubesse responder uma pergunta, levaria uma palmatória de cada um dos colegas presentes. No dia da matemática, ele nos pediu que estudássemos com precisão todas as tabuadas. Fomos cantando em coro naquele quarto de vanplêga, entoando as “de vezes” desde dois vezes um até nove vezes dez. No dia de português, ele nos pediu que dominássemos a leitura em voz alta como se estivéssemos a fazer um discurso, e que fossemos capazes de explicar o que queria dizer o texto lido, pelas nossas próprias palavras. No dia das ciências, distribuiu algumas fotocópias com apontamentos de astronomia, do corpo humano, das plantas e de questões climáticas, e mandou-nos estudar seriamente estes con-

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teúdos, referenciando os movimentos de rotação e de translação da terra. Naquela quinta-feira, ele também fez um teste sobre o modelo das provas orais, que seria exibido no dia seguinte. Geralmente poucos alunos apareciam. Alguns pais viam-se forçados a levar os seus filhos na mão para não fugirem. No dia seguinte, conforme o combinado, assim que acabaram as aulas, fui aproximando o recinto marcado, com o coração se rufando e as pernas cada vez mais pesadas e adormecidas. Tínhamos as fichas com todas as perguntas e respostas possíveis; o professor fazia a pergunta e quem errasse na resposta levaria as palmatórias conforme o critério estabelecido; ele dizia repetidas vezes: – Não se esqueçam que somente os que não estudam é que são penalizados aqui. Aquele ambiente era hostil para os colegas pouco estudiosos ou tímidos. Eles desciam aqueles três degraus da escada de madeira suspirando o ar triste de tanto apanhar. Alguns tremiam agarrados a cadeiras como se de um terramoto tratasse. Outros choravam tanto que os ranhos se misturavam com as lágrimas, embebendo a camisola ou camisa de peito abaixo. Na primeira prova, recebi três palmatórias e dei cinco, fiquei a perder na tabuada de nove, na ordenação dos planetas do nosso sistema solar e no nome do gás que expiramos e que também as plantas absolvem durante o processo da fotossíntese. No fim, saí com vontade de me aplicar melhor para que não voltasse a falhar, mas com a mão de chumbo. Mesmo em frente do quintal, encontrei o Dany; ele frequentou esta escola do mato antes de continuar os seus estudos na

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cidade de S. Tomé. Foi aqui que ele superou a timidez e ganhou a autoconfiança na sua vida estudantil. Procurando afugentar o meu ar abatido, disse-me: – Quantas palmatórias levaste? Nem a boca abri, pois estava tão revoltado com a má participação orquestrada naquela primeira prova, que quase eclodia. Mas ele insistiu, como se tivesse a certeza de que iria ceder: – Eu também estudei aqui. No primeiro dia de prova até perdi as contas das palmatórias que levei, mas depois fui um dos melhores, tu deves procurar ser mais aberto e mais preciso, vais superar isto. Diz lá, quantas é que levaste? – Três – respondi eu. – Esta num bom caminho. Tu vais ser um bom aluno. É preciso atenção. O que leva as pessoas a se perderem é o medo. Este jovem sempre bem-disposto, com uma imagem de grande masculinidade inerente, era um trepador brilhante. Ele só vinha à roça nos fins de semanas visitar a família e em busca de mantimentos para contribuir na casa onde vivia na cidade. Sempre que chegava, notava-se o alto dos seus ombros, o seu corpo robusto enfraquecia com o tempo e as suas orelhas ficavam mais altas, parecendo que era o único órgão que estava a crescer naquela cabeça. Ele reclamava dos seus primos, que o acolheram na cidade de S. Tomé, dizendo que eles não eram familiares, que comiam na sua ausência, e que passava muita fome, que tinha de usar a mesma roupa durante vários dias porque não havia rios limpos como aqui, que até os da cidade tinham receio de meter lá os pés, pois a água escorria naqueles amplos leitos quase sempre turva. Reparou também que a cidade capital não tinha árvore

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de frutos como manga, cajamanga, safuzeiro e outras que temos aqui, que podes encontrar no mercado, e que cada indivíduo cuidava dos seus conhecidos e nada de confraternização. Dizia que no liceu nacional só havia carroceiros enfileirados à beira da estrada, como aquele do cruzamento de Belém, cujo fruto mal dava para matar a fome pois a procura era muito alta. Achava isto tão estranho que preferia fazer-me de surdo, pois sonhava num dia vir a ser um alto dialogante, e para isso tinha que estudar na capital e não encontrava a resposta de como enfrentar tamanhas dificuldades. Na aula seguinte, por causa dos exames que se avizinhavam, o professor apareceu mais cedo sem a habitual vara na mão e com um ar muito mais alegre. O Zeferino, que se preparara para lhe apedrejar usando o seu nervo falso para faltar a explicação, mudou de opinião ao vê-lo sorrindo com o Plácido, e deixou cair aquele basalto afiado que nem cabia naquela pálida mão. Ao entrar, começou a parafrasear que hoje iria falar sobre a importância da concentração no nosso quotidiano: – Quero que em quaisquer atos que venham a praticar, “bons, claro”, procurem sempre eliminar a distração e focar toda a atenção exclusivamente na tarefa que estão a fazer. Nenhuma tarefa feita a pensar num outro assunto sairá perfeita, e os meus alunos têm a obrigação de serem bons; para que isto aconteça, precisam de ser perfeitos. Ao lerem qualquer texto ou a participarem nas cerimónias, procurem ser capazes de resumir por outras palavras o que leram ou ouviram. O Zeferino, que vinha para se confundir com o professor, ficou sensibilizado com a explanação e pediu para falar:

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– Eu, quando estou nas provas, passo todo o tempo tremendo como se estivesse lutando comigo mesmo. Como posso superar isto? – É muito simples. Nas provas ou em qualquer tarefa, procurem conhecer os objetivos antes de as iniciarem, e assegurem-se de que o método que estão a aplicar vos facilitará melhor a vida. É certo de que se souberem o que o professor está exigindo, estarão mais à vontade na busca de solução. Depois o professor mandou-nos colocar sobre a mesa os apontamentos de ciências. – Alguém sabe quantos ossos temos? O barrulho do folhear dos papéis invadiu a sala de uma ponta a outra, e ninguém chiava até que ele voltou a usar da palavra: – Nascemos com 207 ossos; um vai desaparecer durante o crescimento e chegamos à vida adulta com 206 ossos. Este conteúdo está na página 5 da cópia que vos dei. E não se esqueçam de dar atenção à importância do esqueleto humano na proteção dos órgãos vitais, no suporte dos músculos e no nosso movimento. Por esta altura, deveriam também saber que o corpo humano tem cerca de 650 músculos e de que precisamos de usar cerca de 200 para andarmos. Naquele instante pensei em perguntar-lhe se sabia sobre as cãibras, e muito timidamente a palavra saiu da minha boca. Ele confiscou-a e não tardou em responder: – A cãibra é uma contração repentina e involuntária do músculo. Mas na página dez vocês precisam de dar atenção aos sistemas dos órgãos humanos. Devem procurar conhecê-los e as suas respectivas funções: o sistema digestivo absorve os nutrientes e excreta o excesso, o sistema respiratório elimina o CO2 e absorve

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de O2, o sistema circulatório transporta materiais necessários para as células e retira dela os excessos, o sistema reprodutor é a perpetuação do género, e entre outros… Precisam de estudar a sério, não se esqueçam que na sexta-feira temos de novo a batucada. Era notável o entristecimento facial dos colegas, por causa do dia da prova oral com que o professor fechou a sua oração. Mas na verdade, nunca mais levei palmatórias naquela escola; lamentava e ficava amedrontado quando tinha que bater nas mãos dos que permitiam o crescer da ignorância no valioso lugar do saber. O tipo de convívio ali vivido enaltece o espírito de fome pelo saber na sua pluralidade e de grande autoconfiança, acordando-nos para competições sérias nos resultados escolares e até no nosso quotidiano.

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3. Outros ventos da descolonização Enquanto crescíamos, a vontade dos adultos pela mudança política também crescia connosco. Nas ruas só se ouviam entoações do refrão: “Onett esta com o povo” e algum tempo depois, o slogan: “camarada Costa êêê, viva camarada Costa ê, presidente non ê”, que desvairava a população. A sociedade movia como um formigueiro: ninguém duvidava que tínhamos um futuro promissor e refulgente pela frente. Até hoje, poucos compreenderam a razão da substituição do nome do lendário Onett pelo de Pinto da Costa. Creio que esta tenha sido a primeira manifestação de força do Movimento de Libertação, que desnorteadamente liderava uma luta com pouco fundamento. Como sempre, o público segue o ditado das modas como o rio segue o seu leito para o mar, desprezando os efeitos secundários que muitas vezes lhe leva a cair em cascatas. E assim esta nossa gente, com algumas deficiências, foi substituindo a gestão portuguesa, criando um modelo de Governação confuso, com pilares económicos assentos no cacau, café e copra. Havia uma mobilização séria para fazer avançar o país, mas no fundo faltava resposta a esta pergunta: “como posso te seguir se não sabes por onde queres ir?”

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Ainda faltavam alguns minutos para as 08:00 horas quando o som da bota do tipo Magnum Stealth do José fez-se ouvir, invadindo o átrio da entrada num estilo medonho. Este português branco era colecionador de botas militares e falava delas em conformidade com a função que cada uma poderia desempenhar. Na tarde de uma quinta-feira dirigiu-se a mim e ao Ivo (o meu amigo e colega da turma) para que pedíssemos o consentimento dos nossos pais para irmos a caça no domingo de manha com ele e a família. Como gozava de certa reputação, o convite foi aceite. O sol se apresentou e nós lá estávamos à frente da escola, vestidos a rigor para a mata, que incluía uma proteção das pernas e dos braços por causa dos mosquitos. Aguardávamos o José, bem como a família que desconhecíamos. Ele apareceu, vestido como se fosse um militar, acompanhado pela sua esposa e o seu cão que se chamava Buki. Ora, o Buki, que tinha por hábito ser sempre bem-sucedido na deteção dos javalis e das raposas na mata, bebia leite no biberão de meia em meia hora como se fosse um bebé humano. Ao vermos-lhe de biberão na boca, ficámos completamente pasmados. Todos os cães, lá do carroceiro de Belém, sobreviviam com restos alimentícios, principalmente ossos que saíam da mesa de jantar, e nada mais. Mas este até tinha direito a leite, e o mais extraordinário é que era de meia em meia hora. Já estávamos a caminho, a cerca de 100 metros, quando ouvimos a empregada negra de avental de cozinha vestido, correndo com as vestes deste cão nas mãos, e perguntando ao José se as tinha esquecido. Ele agradeceu, envergou-o e continuamos a caminhada. Com um olfato que atravessava o betão armado à distância, aquele cão era o nosso guia e oferecia uma confiança recíproca

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ao seu dono bem como a sua esposa. Fiquei pensando e não encontrava resposta para a seguinte pergunta: como poderia ele perseguir javalis ou raposas se dependia tanto do seu biberão? Sorri por dentro, contendo esta triunfante gargalhada. Mas estava completamente enganado. Aconteceu que o Buki fazia sucessivamente um rastreio, distanciando-se de nós cerca de 150 a 300 metros, lançava três ou quatros berros e voltava muito atento, com salivas caindo como se estivesse no meio da chuva. Numa destas saídas, ele já não parava de ladrar quando o José, de arma ao punho, disse: – Fiquem aqui que vou lá ver o que está acontecendo. Havia um vale, a cerca de 300 metros, e dava para ver o Buki tentando encurralar um porco de mato. De repente, soou um barulho enorme e ainda vimos o porco a cair para o lado. Passados alguns minutos, lá estava o José com a arma bem posicionada e pronto para fazer um segundo tiro, caso fosse necessário. Depois de verificar que o animal estava morto, pegou numa perna e puxou-lhe, indo conforme o declive que o relevo da mata lhe favorecia, aproximando a nossa posição. Não tardou, e vimos-lhe sacudindo os cabelos para fora dos olhos para poder enxergar melhor, arrastando um grande porco preto. Ao chegar, disse: – Vamos fazer o almoço aqui. – Só com a carne? – Perguntou-lhe a sua esposa. – Não, vou arrancar algumas matabalas brancas e assamos. – E os temperos? – Retorquiu a senhora. – Tenho-os aqui. Rachou aquela carne suína longitudinalmente, tirou as tripas, cortou um quarto, lavou-o num riacho que corria no vale,

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