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FICHA TÉCNICA edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: Os Velhos não Morrem na Primavera autor: Jorge Gonzalez capa: Patrícia Andrade paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, dezembro 2016 isbn: 978-989-8821-34-8 depósito legal: 416459/16 © Jorge Gonzalez
publicação e comercialização:
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À Alice, à Maria Inês e à Patrícia
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Esta passagem do estado natural ao estado civil produz no homem uma modificação bastante notável, ao substituir no seu comportamento o instinto pela justiça e ao dar às suas acções a moralidade que lhes faltava antes. É então, somente, que, com a voz do dever a suceder ao impulso físico e o direito a suceder ao apetite, o homem, que até então só se tinha visto a si próprio, se vê forçado a agir segundo outros princípios e a consultar a sua razão antes de escutar as suas inclinações.
JEAN - JACQUES ROUSSEAU ,
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O Contrato Social
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Paulino
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li, os vivos nunca tomaram o lugar dos mortos. Eles por ali ficavam. Quem estava não os rendia. Aqueles que nasciam não os depunham. Os vivos jamais fariam as vezes dos mortos. Um óbito não era realmente uma ausência e os mortos perseveravam, não se descingiam dos vivos, finavam-se mas não se iam verdadeiramente, adejavam por cá, os vivos perpetuavam-nos, desprendiam-nos dos corpos mortos e endossavam-nos à medula do chão, mas aqueles permaneciam como que a descoberto porque eram também os vivos que os mantinham à superfície, à tona da memória, à face da vida. Por muito fundo que os corpos mortos houvessem sido enterrados, eles ali estavam, epidérmicos, verticais, emersos, que ninguém os ideava doutra maneira, entes queridos com palavras por serem faladas, ditas pelos vivos, teimosamente enfatizadas, escrupulosamente escolhidas, que os mortos não têm tempo a perder. E os mortos, os corpos mortos, eram inumados no baldio barrento a Este da Vila pela força da máquina de escavação que parecia fundir-se com a terra, tal a cor e o propósito. Único, aliás, o cavouqueiro gigante de ferro dali não saía nunca, era um compromisso tido com os vivos que o não deixava arredar de ao pé dos mortos, dos corpos mortos, e da terra barrenta que nele se entranhara e o ia embuçando e incorporando na paisagem amarelada. O enorme barreiro prenhe de carne morta, amaciado pela textura e o revolver periódico do gigante de ferro, aquela terra adesiva que se pegava a tudo que mexia ora a tudo quanto estava
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definitivamente quieto, não era local de romaria muda ou comunhão tagarela. Os vivos apenas para ali transferiam os mortos, os corpos mortos, debaixo de um céu testemunha e ante um monstro argiloso, e ali não pontuavam nunca, como insectos a evitar a mostarda. A terra, essa era sôfrega, insaciada, fronteira visguenta da Vila, ermo de decomposição, chamada de Lado Sujo, e entrevia chegar os corpos mortos em sacos-cama com os mais diversos padrões, mais ou menos resistentes, impermeáveis ou não, com enchimento de penugem ou sintético, tipo sarcófago ou múmia, ou então mais espaçosos e rectangulares para todos serem tragados pela voracidade amarelenta até aos intestinos desse chão mazorreiro. A paisagem monocromática servia bem o único desígnio do local. Nada se compadecia, os cães vadios e os gatos pulguentos não andarilhavam naquela terra, as aves não se lobrigavam, nada no chão, nada no céu. Os mortos, a quem ninguém apelidava de tal, desunidos por metros cúbicos daquela terra amarelada, sobrepunham-se ou ladeavam-se, e também aos vivos, porquanto caminhavam a seu lado. A sua permanência era regida pela lei dos vivos, e não obedecia à putrescência dos corpos nem à inexorabilidade do seu tempo, que tudo extingue, este não era um tempo desses, aquele não era o seu tempo, esse era feito da benevolência dos vivos. A vida escoava para ambos, vivos e mortos, o tempo dos mortos feito tempo dos vivos, o tempo dos vivos aditado dos mortos. Hoje rumava a esse desacompanhado ermo, Paulino, condutor da carrinha, debaixo de um céu cinza carregado e acima de um chão de açafrão que desejou mais saibroso porque a roda dianteira do lado do pendura quisera enterrar-se primeiro do que o corpo morto que se finara no final daquela tarde chuvosa e começava a fazer-lhe crer que era ele a chafurdar no lamaçal da existência. Sem qualquer apetrecho para desenrasque se ficasse atascado, amaldiçoou o tempo, a carrinha, o lodaçal, o corpo morto, as vísceras do céu e da terra, todo o vinho emborcado
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como se o mundo acabasse amanhã e fosse o corpo que era ainda o dele o corpo morto a sepultar, porque os corpos mortos não bebem, ainda que o que deles se desprendeu tenha lugar à mesa e assento em qualquer betesga. E por último esconjurou o cabrão do facto de não se ter prevenido, pois tinha-o adivinhado. Engatou a marcha atrás, em vão, porque o veículo apenas balançava como se estivesse no topo duma plataforma que o puxava para o fundo. Esse local tudo submergia, nada vinha ao de cimo. Engatou de novo a primeira numa aceleradela ligeira e depois desenfreada que atestou a sentença – se não parasse era carrinha a ser enterrada juntamente com os corpos mortos. Só havia uma possibilidade, o dinossauro argiláceo teria de exumar ferro e borracha antes de enterrar carne morta. Abriu a porta, andou a cuidado alguns passos, apenas aquele que a zurra lhe permitia, mas não pôde evitar esparramar-se na terra macilenta e misturar-se com ela. A vida era tão escorregadia quanto isso porque até chegar ao ciclope babado e amarelento caiu outras duas vezes enquanto praguejava que mais valia ser enterrado por inteiro agora que estava tão enlameado. Nunca um corpo morto o mortificara tanto, nunca fora tão ardilosa, ou argilosa? tal tarefa. Para afundar um corpo morto não era necessário outro, vivo, em pré-inumação, o dele. Trepou a custo até à semeadora gigante, deu à ignição de pronto e um ronco algo prolongado soltou-se das vísceras e ouviu-se como um anúncio beato. Virou no sentido da carrinha e contornou-a até manobrar a máquina gigante de frente para as traseiras da carrinha. Baixou a pá dianteira e com a perícia que lhe advinha da prática, apesar da bebedeira que carregava, colocou-a ao de leve, tanto quanto um mega veículo permite, debaixo da traseira da carrinha, e de um só puxão libertou-a do destino que reservara apenas para o corpo morto. Desta vez, o cavouqueiro desenterrara, desatolara, e de seguida iria cumprir a função para que fora estipulado. Depois ladeou a carrinha, colocou-lhe a pá ao nível da porta traseira e fez o
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que sempre fizera, desceu do gigante amarelo, algo periclitante, arrastou o corpo morto do banco de trás até à pá e, a esforço, subiu novamente ao mamute barrento que carregava nos dentes de marfim aquele corpo morto em saco-cama axadrezado. Rumou uma centena de metros mais a Este e manobrou com a pá já mais elevada até à cova que já havia aberto aquando da última vez que naquele chão leitoado depositara alimento. Findo o despejo, aterrou até aplanar para logo abrir outro buraco que aguardaria ávido o seu recheio. Conduziu a retroescavadora, barrenta por fora e tanto quanto ele a enlameara por dentro, ao lugar onde hibernava até receber novo alimento no regaço. Cumprira mais uma vez a sua função. A chuva engrossou até se tornar aguaceiro e Paulino decidiu, a bem dele e da carrinha, sujeitar-se a ela para de si despegar a lama. No solo que se ia tornando ainda mais viscoso, Paulino tomou duche num estranho e amarelado poliban de um hectare, sem cortina, cabine de vidro temperado ou acrílica. Uma enxurrada que até parecia querer lavar também os corpos mortos tal a forma como penetrava na terra e fazia do buraco ainda agora aberto e destapado o ralo do mundo. Ensopado mas limpo, à excepção das botas que descalçou antes de colocar os pés dentro da carrinha para a conduzir de peúgas, resgatara quase por completo a sobriedade com aquela água fria que aparou no lombo como de uma árvore se tratasse, que ali árvore nenhuma se vislumbrava, nem arbusto existia, e se calhasse alguém passar ao largo haveria de julgar que um corpo morto e retesado ali aguardava pela profundidade quase horizontal enquanto permanecia semeado de pé. Paulino rumou a casa ensopado fazendo do banco do condutor um charco desapropriado. Se não tomasse outro banho quente na sua banheira convencional, adivinhava-se uma pneumonia, ele que era tão dado a constipações e achaques gripais. Todavia, a acontecer, seria pelo bem comum da firma. Se a torrente dos céus lavara
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a carrinha por fora, e até as jantes luziam e os pneus brilhavam porque a estrada estava cheia de lençóis de água, não seria ele a deter a responsabilidade de enlamear a carrinha por dentro, teria somente de lhe enxugar o banco. Fora-lhe confiada mas não era dele, e o asseio das coisas também é bem governá-las. Estacionou, e de peúgas grossas de lã atravessou o pequeno quintal rumo a paragens mais temperadas e com chuviscos mais quentes. A fome assolou-o como o temporal o havia atormentado. E não há desculpas nem adiamentos para se matar a fome e saciar chão de barro. Sem demoras, atacou as sobras do almoço e repôs alguma da embriaguez que interrompera no Lado Sujo. O dia já se finara e com ele o telefone adormecera. Hoje não mais seria solicitado. Na manhã seguinte, depois ter verificado que o tempo secara com o despontar da madrugada e era um Sol esplêndido que assomara com ela, ainda que a humidade permanecesse no ar, nas coisas vivas e nas coisas inanimadas, e após um pequeno-almoço retemperador, Paulino apresentou-se ao serviço na carrinha lustrada que desta vez não teve reparo da parte de quem lhe era cimeiro e até mereceu um discreto sublinhado, um “assim sim”, antes de ser elencada com a sapiência dos patrões a obrigação que lhe era destinada. Paulino era um bom ouvinte, pelo menos do seu chefe, que podia ele argumentar, onde podia ele ir contra se era trabalho que lhe destinavam e não opinião que lhe pediam? Assim, limitou-se a ouvir e aquiescer com regularidade através de um ligeiro aceno de cabeça ou um “com certeza” entrecortado. Rezava a lengalenga patronal: – Como sabes, Paulino, o empreendimento foi aprovado há mais de dois anos e não vejo que se tenha dado um passo no sentido da povoação ser provida dele. Claro que o tribunal atrasou tudo muito mais porque aquele cabrão, como tu sabes, contestou a legalidade do empreendimento me ter sido adjudi-
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cado e consequentemente a honorabilidade da minha pessoa; incompatibilidades e favores a puta que o pariu! Uma coisa tão premente! Como se não bastasse a aprovação que foi como uma luta de titãs! Há os que se agarram de tal maneira ao que está que para os convencer do que aí vem só enterrando-lho na cabeçorra. E ainda tinha de vir aquele cabrão contestar e adiar ainda mais esta porra. Paulino, porque sei que és, muitas das vezes, escrupuloso, nem sempre, é verdade, mas pelo menos nunca me falhaste, como os outros todos dessa corja que eu em má hora empreguei, sim, porque é pouco o trabalho que lhes dou e vejo-os a amealhar enquanto eu vou delapidando. Mas isso é outra história. Assim, Paulino, nomeio-te responsável, se hoje aqui estás é porque vais ser encarregado da obra. Há que deitar mão ao empreendimento e sei que tu vais pô-los na ordem para que a mandriagem não tome o lugar da pujança que terá de ser empregue diariamente. Os materiais hão-de chegar lá para o fim da semana, e o mais tardar em meados da próxima arrancas com as fundações. É bom que estejamos para começar já com o empreendimento, mas em má hora veio isto, e isto não é o empreendimento, Paulino, mas a fragilidade dos homens que decidiu atacar-me logo nesta altura. Depois dos sessenta esta merda não distingue ninguém! Ainda te faltam uns quantos, não é Paulino?, bem o sei, bem o sei, mas vai-te mentalizando que a saúde vai-se escondendo, vai fugindo… e quando menos esperares mijas aos pingos como um cão de caracóis a marcar os postes. Sei, Paulino, que posso contar contigo, e antes de me ausentar vamos reunir com os outros e dar-lhes a conhecer que quem manda és tu e só tu enquanto eu estiver ausente. Serão, ao que parece, algumas semanas para os tratamentos queimarem esta porra, oxalá não me assem é todo, portanto, quando for o tempo de regressar conto que a coisa já vá avançada e confio até, Paulino, que vou abrir a boca de espanto quando vir quão adiantado haverá de ir o empreendimento. Agora vai, Paulino,
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que há muito que fazer, e começa a habituar-te a pôr os olhos nos homens, porque sei que já lhes dás o exemplo. Paulino, já revigorado pelo regime matinal, saiu daquele gabinete duplamente robustecido e tão altivo quanto um qualquer gigantone, sem no entanto se lhe assemelhar no portento e altura convincente. Juntou-se aos demais depois de um bom-dia dito como se fosse o sucedâneo do chefe, mas sem a somática desse, e atirando de forma bem mais displicente do que os outros, coisa nada comum em Paulino, a ferramenta de um dia de trabalho para as traseiras da carrinha de obras cuja não via pano que a limpasse por dentro e água que a lavasse por fora há uma eternidade, não fosse o aguaceiro da noite anterior que lhe dera uma lavagem sem ajuda de uma boa esfrega, e por isso a terra mais incrustada, o cimento há muito seco e o alcatrão esguichado nas laterais não lhe conferiam o asseio daqueloutra que ali trouxera Paulino. O volante era sempre por conta dele, a menos que algum outro afazer, quase sempre transportar os corpos mortos, o impedisse de carregar os vivos. Depois de percorridos alguns quilómetros passaram ao lado do barreiro com a indiferença de sempre, exceptuando Paulino que remoeu algum vernáculo enquanto se referia ao final da tarde anterior em que empesgado daquele Knorr amolecido ali aparara toda a água dos céus, mas não há nada nem ninguém que não tenha de ser esfregado por fora bem como escovado por dentro. A risota foi breve, porque ao plantarem nas cabeças o que ao Paulino saía da boca logo perceberam a descompostura indirecta que aludia à imundície da carrinha na qual se deslocavam, e o silêncio só não foi total em virtude do ruído do motor e do roçar incomodado dos rabos nos estofos de pele sintética procurando melhor ergonomia. Todavia, não puderam deixar de atentar no reparo, uma estreia categórica, no entender deles, Paulino nunca fora emproado, ainda que o queixo
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levantado numa diagonal dirigida aos olhos dos que facilmente o suplantavam na altura, pudesse ser visto dessa forma. Eles conheciam-no e sabiam que há muitas formas de endireitar a coluna, há muitas maneiras de se fazer um pouco maior, e achavam que Paulino pretendia apenas isso, não ser esquecido lá no rés da vida. Mas agora era algo mais do que a sua estatura rasa a querer igualar-se aos de comprimento regular, Paulino aparentava, com as poucas palavras que dissera naquele aguçado remoque, encavalitar-se neles todos e daí ditar o passo. Trocaram olhares simultaneamente desambiguados, mas não houve ninguém que encarasse Paulino e lhe desse a entender quão amolados estavam por aquela reprimenda sair de alguém que eles julgavam como deles. Ainda se fosse o patrão, anuiriam, mas a carrinha continuaria sebenta, com Paulino, apenas calaram sem no entanto concordar, e os rabos lá iam roçando a pele sintética tornando-a ainda mais puída. O testemunho fora passado do chefe para Paulino, feito, ainda agora, encarregado, por força de um banho celeste num final de tarde que havia sido um pesadelo mas que lhe nivelara o caminho para o pôr maior do que os outros.
O cimento e a areia haviam finalmente chegado, não sem antes Paulino proceder às diligências para que o expectável e verificado atraso de duas semanas fosse o derradeiro prazo antes de os mesmos serem encomendados a outra companhia. Diligências essas que não foram além da ameaça velada, por telefone, de mudar de fornecedor ou então aguardarem o mesmo tempo pelo carcanhol quanto o tempo de espera da entrega dos materiais, ou mais ainda. A empresa alegara então escassez
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de inertes, referindo-se apenas à areia, e ao aperto do regime de bens em circulação que a Autoridade Tributária entendera por bem e em má hora complicar. Paulino contrapôs, enquanto atestava o bocal do telefone de baba, que inertes era coisa que não lhes encomendara e que apertados já há muito estavam os prazos de conclusão do empreendimento que nem sequer havia sido ainda encetado. E se por inertes queriam dizer cimento e areia, pois que lhe chamassem isso mesmo em vez de lhe atirarem areia para os olhos porque onde ele a queria era a dois quilómetros dali e eles sabiam muito bem onde era, naquele ermo da fronteira Oeste da vila, e como era o único que por ali havia nada tinha de enganar. Os da companhia, porque o empregado passou a extensão ao superior, o chefe, replicaram, e este último respondeu que se convencionara chamar inertes às areias, o cimento continuava cimento, o que agora lhe misturavam é que tinha aquela designação. E Paulino, que detinha uma cabeça prenhe de manigâncias mas não era dotado de grande verve, trocou o “convencionara-se” por convencera-se e ali respondeu que a ele ninguém o convencia de nada, areia era areia e que cimento era cimento, ainda que lhe misturassem “aquela merda inerta ou incerta” que só esperava mantivesse os muros de pé e direitos como até à data sempre fora feito. E o patrão fornecedor asseverou-lhe que melhor areia que aquela que lhe ia providenciar não se arranjava, era única, e por isso demorara mais do que o esperado. É que a maquinaria necessária para a extrair a profundidade exacta por vezes empancava e fazia-os dilatar os prazos. Mas que não se preocupasse porque o técnico já domara o engenho e areia em dois dias lá chegaria. E de facto chegara, não houve mais delongas. Paulino rubricara a papelada com uma satisfação e uma altivez que só podia advir-lhe da cadeira de encosto levantada até ao ponto de bater com as pernas debaixo do tampo da secretária, como se tivesse um metro mais do que a sua efectiva altura. Encontrara, no
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fim de algum treino, uma assinatura condizente com seu novo estatuto, mais circular e ao mesmo tempo entremeada de uma verticalidade ríspida, o que aludia à excelência e à responsabilidade. Na cadeira de encosto do patrão, que já se ausentara há duas semanas para dar início à quimioterapia e tentar derrotar aquela maleita persecutória do género masculino, Paulino sentia-se um verdadeiro Deus ex machina. Não que o confabulasse, Paulino não conhecia a expressão latina nem tão pouco ao que ela se presta, mas se este condutor do prodígio argiláceo tivesse lugar numa das tragédias de Eurípedes sê-lo-ia de facto porque chegara ali depois de ter inumado outro corpo morto, e se não foi ali metaforicamente depositado por uma qualquer espécie de guindaste, havia literalmente vindo de uma retroescavadora para esta encenação de como ser patrão e dera andamento a um empreendimento que tinha esbarrado antes nas malhas da justiça e agora na indolência dos homens. Uma vez que Paulino não era habitué de trabalhos de secretária e responsabilidades de patrão, ainda que bem depressa lhe tomasse o gosto, reivindicou para si um copo comemorativo da sua primeira e verdadeira assumpção a chefe, uma vez que fora ele que recebera as carradas de cimento e areia e não se reprimia de insistir na importância cabal dos seus telefonemas para despacho da encomenda bem como da excelência do seu recebimento. Do alto da cadeira patronal convocou os restantes homens que por ali adejavam disfarçando a inércia com o andar de cá para lá ora tirando um pedra ou pondo outra nos acumulados das sobras e fez-lhes ver do desvelo que deviam empregar no início dos trabalhos. O patrão confiara-lhe cegamente a tarefa e oxalá viesse cego se os homens não se entregassem de corpo e alma à sua execução. Quanto a ele tinha de ir desbloquear uma situação que ainda agora lhe fora comunicada e que requeria a sua ausência por tempo indeterminado do empreendimento.
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Que levassem a carrinha e fossem ter com os outros três que estavam junto da areia e do cimento a fazer de sentinela porque ainda não deviam ter mexido uma palha. Não tardaria muito, cria, juntar-se-lhes-ia e haveriam de ser o orgulho da comunidade e acima de tudo do patrão adoentado. Paulino fechou o gabinete à chave e desceu os três degraus metálicos que o separavam do chão saibroso, caminhou alguns passos, necessariamente curtos, não mais do que quinze passinhos, enquanto o patrão para calcorrear a mesma distância daria sete ou oito, e sentou-se ao volante da carrinha que o iria transportar só a ele e sem nenhum outro corpo morto. Seria uma grande chatice se fosse novamente solicitado para esse serviço. Agora que estava no veículo a tal reservado esperava não ter aberto as portas do destino mais apressadamente, e por isso fechou-as o mais depressa que conseguiu. Não foram raras as vezes nas quais Paulino desejava matar a sede e era o destino que matava alguém fazendo-o adiar o segundo ou terceiro copo ou então não beber sequer um trago do primeiro. Engatou a primeira e arredou o pensamento dos finados, a sede dos vivos é maior que essa inevitabilidade, a de Paulino era-o mais ainda. Conduzia com uma satisfação como nunca sentira, dera resolução ao assunto, verdadeiramente à primeira questão depois de ter sido informalmente indigitado como patrão. Transportava-se com o delicioso peso de toda aquela responsabilidade e considerava ter definitivamente nascido para liderar. Também por isso e pelo facto de nada morto o acompanhar no banco de trás, conduzia de forma menos solene mas muito mais pomposa. Não atentara nunca até ali quão saboroso era olhar de posição cimeira os poucos veículos com os quais se cruzava ou ultrapassava. Ele que sempre olhara tudo e todos de baixo para cima, a sua vida era como um plano contrapicado, reparava agora que daquele assento ao volante também podia enxergar de cima para baixo. Estranho era nunca ter dado conta de tal,
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efectivamente a sua baixa estatura nunca o havia preocupado sobremaneira até aí, provocara-lhe, todavia, alguns transtornos, mas Paulino sempre os contornara hábil e engenhosamente. Agora, a sua condição de chefe recém-empossado e a consequente estatura moral que lhe estava conferida levara-o a dar súbita importância ao tamanho. Decidiu, desta feita, atalhar para a sapataria Nova Onda, na qual sempre se calçara e onde nunca fora além de sapatos e botas rasas, apesar de simpaticamente lhe terem sempre aconselhado calçado de tacão. E agora, com efeito, Paulino achava que devia ter dado ouvidos a quem era entendido no assunto. Quando disse ao que vinha foi com regozijo que o dono, antigo sapateiro ascendido a proprietário de sapataria, exclamou “Eu não lhe dizia?”. Se por um lado Paulino devesse estar grato a quem lhe recomendara calçado que o alçasse muito antes de ele alguma vez ter dado conta da necessidade disso, o mesmo era dizer que atestaram a sua baixa estatura também antes de Paulino jamais se ter apoquentado com tal! E foi num misto de contentamento e desconfiança que dali saiu com um par de botas pretas número trinta e sete de tacão assinalavelmente alto. Ao regressar à posição de condução verificou com agrado que poderia subir um pouco mais o banco uma vez que a distância dos tacões aos pedais mecânicos assim o permitia. Não hesitou por um instante, depois de verificar que não era complicado embraiar, travar ou acelerar com os calcanhares alteados quase dez centímetros. E lá se dirigiu ao café que lhe conhecia uma determinada postura sempre um pouco belicosa mas nada sobranceira, como agora o demonstrava no modo como se encontrava calçado e pela figura de que fora empossado. Subiu com o automatismo e a habilidade de sempre ao banco que o deixava a mais de um metro e meio do chão e pediu um copo de vinho branco, surpreendentemente sem nada oferecer
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aos restantes clientes de ocasião, mas não desejava da garrafa aberta, preferia antes uma garrafa nova que o vinho assim era mais bem provado. E não desejava um copo raso, mas um de pé alto e servido pouco acima de meio. Quem o servia fazia-o há anos, e se sempre lhe dera o que pedira não era agora que ia começar a emperrar a vontade do freguês. – Um copo distinto de pé alto para o nosso distinto Paulino! – Mas com branco, Laurindo, com vinho branco… A disfuncionalidade léxica de Paulino não compreendeu o elogio que vinha do lado de dentro do balcão e Laurindo logo o descortinou, limitando-se a servir-lhe da garrafa recém-encetada uma fresquíssima e madura pomada branca que Paulino engoliu de uma vez só e de pronto indicou que desejava mais. Mais uma vez, Paulino não ofereceu nada aos restantes convivas que também se prontificaram a provar dessa nova garrafa, o que Paulino não viu com bons olhos porque além do copo de pé alto, das botas de tacão subido e da sua elevada condição de chefe, era a garrafa que o separava dos demais. Quando acabou de servir os outros dois clientes da outra garrafa sobrava apenas menos de meio copo que Laurindo, como oferta, decidiu verter no copo de pé alto de Paulino apesar deste não o ter solicitado, e este, quando em tal atentou, colocou a mão por cima do copo tapando-o ao vinho dos comuns. Laurindo acabou por verter o restante vinho por duas metades nos copos dos outros dois enquanto Paulino pediu nova garrafa um pouco mais fresca. Laurindo estava deveras surpreendido com tal desiderato vindo de quem era, mas não hesitou e abriu nova garrafa, ao mesmo tempo que os outros dois asseguraram que preferiam o vinho da garrafa fechada, que era melhor do que a que fora há pouco desrolhada. E Paulino lá continuou a beber da garrafa só a ele destinada. Entretanto, pediu uma sandes de presunto, preferencialmente da parte mais seca e com pão do dia.
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Essa sua nova aptidão de comando, atribuía-lhe uma confiança extra nele próprio e um enganoso convencimento de que um patrão não se embebeda como os demais, o peso da responsabilidade confere-lhe capacidade extra para resistir aos efeitos do vinho, deposita-lhe uma sobriedade particular vedada aos restantes que são apenas empregados. Assim que terminou a segunda garrafa adveio-lhe uma súbita vontade de exercer a chefia sobre os homens seus subordinados que por esta hora ainda nada deviam ter feito. Fosse do efeito pernicioso do vinho, da sua reforçada autoconfiança ou da altura que julgava ter obtido, Paulino calculou mal a distância que o separava do chão, desmontou mal do assento e deu uma aparatosa queda que deixou tanto mudos quanto quietos todos os que por ali estavam. Só Laurindo, alguns segundos depois, deu uma ajudinha a quem ainda não se habituara aos desmesurados tacões e via dificultada em muito a simples tarefa de se pôr de pé. Paulino pagou a conta já na vertical. Saiu do estabelecimento, entrou na carrinha, pegou no volante, deu à ignição e só depois pode soltar um berro que as dores nas costas provocavam. A presunção e o envaidecimento não lhe permitiram que o fizesse aquando do violento embate no chão perante todos os outros, e agora que se encontrava só e as costas tinham “arrefecido” não pôde sustê-lo. Guiou rumo a casa. A breve comemoração dera lugar a súbita baixa não declarada.
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quele lugar, a dormência das pernas e a modorra das poucas ou nenhumas coisas abrandavam a existência como se esta fosse vivida em câmara lenta. Os estalidos da casa de madeira que o albergava desde há muito haviam abrandado com a longevidade da casa e dele próprio, quais palpitações ao ritmo dos dias vagarosos e das noites demoradas. As nuvens, sempre que as havia, estacionavam naquele seu céu de um azul desbotado e teimavam em permanecer. A pouca vegetação desordenada e selvagem obedecia à acuidade, ou falta dela, dos olhos de quem a observava; e assim as gramíneas podiam florir quando menos se esperasse e quando não deveriam de todo. Sentava-se no cadeirão de baloiço no sobrado do varandim, qual entidade sobrecomum não rendida à pressa dos demais, e firmava os instantes, ia ruminando os dias e a noites, balançando as horas e os minutos, os equinócios e os solstícios. Os dias expandia-os quase tanto quanto quisesse, e as noites podiam ser bem mais demoradas; abreviar um, só se quisesse ampliar o outro. No auge do Inverno quando os dias ficavam mais diminutos ele disseminava-lhes permanência. Assim, os dias e a noites obedeciam a uma outra ordem, talvez não tão natural, mas igualmente legítima. Não que o Sol não se pusesse, não que a noite não caísse como para os demais, mas esse intervalar chegava sem o frémito implacável dessa engrenagem. Cavar o tempo não é algo que se conheça a breve trecho, aprender como fundear as horas é demorado, ancorar o tempo é saber anular-
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-se, deixar que o sangue corra nas veias mais devagar, com um imperceptível latejar. Com alguma audácia podia até inverter a ordem das Estações, impor-lhe uma irregularidade que não confundiria os bichos, as andorinhas regressariam sempre na Primavera, ainda que castanhas e avermelhadas fossem as folhas que lhe povoavam o céu inferior, aquele que está aferrado abaixo das copas das árvores. Do Inverno já conseguira fazer Verão. Mas agora aquela era uma Estação irrazoável porque as andorinhas debandavam quando eram as primeiras flores que pareciam querer brotar, as giestas estavam tão amarelas quanto o devem parecer na Primavera, as cores eram primaveris, sem o cromático de Outono, os cheiros eram de chegada. Parecia tudo tão cheio de vida que até o balouçar da velha cadeira progredira a sua cadência. Mas o adejar das aves não era o desses dias, o seu esvoaçar era como uma ânsia de partida, ainda que o metrónomo o embalasse declarando-lhe que tudo devia ser juvenil. – Dorinda, que coisa estranha, as andorinhas parecem querer partir quando ainda há tão pouco chegaram. Vê, Dorinda, que corrupio, vê-se que estão de malas aviadas. Dorinda…? – Sim, Estevão...? – As andorinhas, as andorinhas vão-se embora. – Terá sido a tempestade de ontem a baralhá-las? – Não há tempestade que desnorteie os pássaros! Rumam a melhores paragens, com toda a certeza, contudo não deixa de ser estranho, tão antes do tempo… Até porque os gritos são de partida, parece até que se despedem… será que os pássaros se despedem, Dorinda? – Talvez, Estevão, talvez… se partem também hão-de despedir-se. Mas talvez não estejam a partir, talvez estejam apenas alvoraçadas, a tempestade foi tão forte. – Já te disse que não há tempestade que assuste os pássaros, nem mesmo as andorinhas. – Vem para dentro, começa a arrefecer …
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– É a Primavera que chega, Dorinda, e tu queres-me dentro de casa! Não há nada melhor do que a Primavera! Quer dizer que nós os velhos vencemos mais um Inverno e não é a Primavera que nos haverá de levar. Não, a Primavera ferra-nos à vida; de agora em diante podemos ficar descansados. Os velhos não morrem na Primavera. – Mas por que razão insistes em chamar-nos velhos? Não estamos assim tão mal! Claro que a nossa Primavera já se foi há muito, como parece que também o foi para as andorinhas, mas não me compraz nada ouvir-te chamar-nos velhos, como se fossemos uns tontinhos, uns coitadinhos dependentes. Não, isso é que não. Cada coisa a seu tempo. E se calhar quando lá chegarmos nem nos damos conta, se calhar é melhor, desde que não se perca a dignidade. Agora velhos, não! Ainda estamos capazes de muita coisa. Até dançavas comigo se eu to pedisse, ou continuas demasiado obstinado? Talvez seja isso, a tua recusa perpétua em dançar sempre fez de ti mais velho do que realmente eras, do que realmente és, porque não o és de todo. – Não gostar de dançar não faz de ninguém velho, Dorinda, mas essas danças de salão que tu tanto apreciavas e pelos vistos ainda aprecias é que me parece que são para velhos que o ainda não são. Não se pode chamar recusa a uma coisa que não se gosta, que verdadeiramente se detesta; não, recusa é muito forte. Mas as andorinhas, as andorinhas, Dorinda, as andorinhas, se quiseres, dançam por nós, dançam por ti, basta olhá-las, e esta é uma dança de despedida, é a Valsa do Adeus. Vê como dançam, com esta graciosidade seria até um embaraço para tais criaturas ver este velho arrastar as pernas. Ei-las que dançam porque detêm nelas o teu nome, Dorinda, dançam de ti. Dorinda e andorinha, nomes tão próximos. E no entanto nunca te ausentaste, nunca alvoraste do Inverno, nem sequer uma migração sentimental, uma debandada amorosa, uma dança de adeus, não é Dorinda?
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– Claro que não, Estevão … – Carregaste contigo a Primavera quando me chegaste e acaloraste os meus Invernos. – Ai, Estevão, acho mesmo que é melhor vires para dentro… – As andorinhas guardam dentro delas o teu nome, Dorinda, mas não o mesmo golpe de asa. As andorinhas nunca te levaram com elas, nunca cruzaste o mar, Dorinda, e tu que sempre quiseste viajar. Por que fomos sempre adiando a viagem? Nunca voámos como as andorinhas para sítios menos agrestes e mares azuis safira, Dorinda, lugares quentes e aprazíveis. Mas tu nunca abalaste do Inverno e ele nunca te apanhou, como a mim que me faz doer tanto as costas. Por isso te digo, Dorinda, é Primavera, não me doem as costas. Estranho é que não saibas explicar-mo, Dorinda, a partida abrupta e precoce delas. – Estevão, não fez mal nenhum sonhar. Mas as andorinhas vão e voltam por nós os dois. E se me têm em seu nome talvez algum dia me tenham levado com elas… para outras Primaveras… talvez, Estevão, só não deste pela minha ausência. – Pena que partam agora, Dorinda. Ou talvez não. Se calhar querem levar-te outra vez, para dançares, para veres o que nunca vimos, para que não dances com este velho… e se não me doem as costas, então é Primavera, Dorinda. E as andorinhas não partem na Primavera, querem apenas devolver-te o sonho. São aves generosas, regressam sempre e trar-te-ão de novo. – Aves generosas, as andorinhas? Engraçado como nunca havia pensado nisso. Talvez o sejam, ficam gratas aos buracos das ruínas e aos donos dos beirais, mas, Estevão, lá que têm uma estranha forma de o demonstrar… – Não há vida nenhuma sem borrada, Dorinda. As andorinhas sabem-no muito bem e fazem com que não o esqueçamos. E nós somos quem devíamos estar-lhes gratos por não nos deixarem esquecê-lo. Tu não achas que aquele empreendimento é uma, não gosto nada de repeti-lo, mas tu não achas que aquilo é
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uma verdadeira borrada, Dorinda? Um verdadeiro… quem sabe se também não será por ele que as andorinhas partem, zangadas! Nesses muros fechados não há beirais nem buracos de ruinas. E onde já se viram tantas moradas sem telhado? Não há lares assim, Dorinda! Imagina o que era agora levarem-nos o telhado, murarem-nos a casa! Detesto cimento, Dorinda, odeio pedras, rombas ou lapidadas. Mas a madeira, Dorinda, não há cheiro como este, o cheiro das árvores fica sempre, apesar de estarem mortas ainda por cá estão, ainda exalam o cheiro, parte delas continua de pé e nelas conservam vida, fizeram-no com os pássaros e fazem-no agora connosco. Se tivesse de mudar para uma dessas casas de cimento, juro-te, Dorinda, que preferia o baldio. Quantos cheiros lá faltarão nessas casas de betão? Lembras-te quando a nossa filha nos quis a morar com ela? Pensava ela que alguma vez aceitássemos? Não acredito, Dorinda, estava apenas a ser generosa. Não cresceu o suficiente numa casa de madeira, nesta casa, fez-se mulher já no cimento e estou em crer que se tornou mais difícil depois disso. Se por cá ficasse mais uns anos, junto da madeira, talvez não se tornasse tão amarga, tão distante. – Mas também nunca lhe facilitaste a vida, Estevão, e ela gostava da madeira mas eras tu o betão. Não foi da madeira que ela fugiu, Estevão, foi de ti e da tua dureza, da tua argamassa. E não penses que estou a acusar-te. Vocês nunca se compreenderam lá muito bem, entre vós dois o ar sempre foi de cimento, nunca amadeiraram, nunca aplanaram os feitios. Ela não o esqueceu, tu não o esqueces, mas agora perdoaram-se e já é mais fácil e agradável estarmos juntos, pena que sejam poucas as vezes. – Mas tu vias-nos morar com ela, Dorinda, e com aquele presunçoso do marido? – Não é presunçoso, Estevão, é um rapaz de convicções como tu sempre foste. E pelo facto de nunca estarem de acordo
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não invalida que tenham razão os dois. Porque é quase sempre o que vos acontece. A tua filha e eu sabemo-lo. Mas lá que são os dois cada um uma parede, são! – Ela deixa-se influenciar demasiado por ele e geralmente toma o seu partido. Custa-me que nunca se tenha deixado influenciar por mim. – Muito mais do que julgas. A tua inflexibilidade moldou-a tanto quanto eu nunca quis que tal acontecesse. O vosso coração é grande, Estevão, diria até maior do que todos os outros, mas não se mostra quando queremos. Como as ossadas de um grande dinossauro, sabemo-las gigantes e tanto podemos tropeçar nelas como escavar fundo e nunca as encontrarmos. Sabes, Estevão, acho que errei a profissão. Se calhar devia ter sido paleontóloga. – À tua maneira sempre o foste, sempre tiraste o melhor de mim, Dorinda. – Nem sempre, Estevão, nem sempre. Talvez me tenham faltado alguns seminários. Sempre tirei de ti e das pessoas o melhor mas não te esqueças que também recebia, anos a fio, o pior. Recolher o sangue pode ser de facto receber o melhor que as pessoas têm para dar, mas não te esqueças que num laboratório de análises há colectores de outros…fluidos. – As pessoas entregam-te, entregavam-te, o que lhes sai do corpo, mas com a alma na outra mão. – Era a fiel depositária. Mas até nisto a tua filha herdou os teus genes, detesta agulhas e empalidece quase tanto quanto tu quando lhe recolhia sangue. E obviamente escolheu a tua profissão, nada que eu não esperasse. – Ela quis provar-me que podia fazer melhor do que eu, Dorinda. Nunca lhe vi paixão no que fazia, nunca lhe vi arrebatamento, apenas afinco, uma obstinação desmesurada… um perpétuo desafio consigo própria, desafio esse que era superar o pai. Sempre a disputa, Dorinda, sempre a disputa…
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– Tu também fizeste sempre o teu melhor, Estevão, e nunca te vi competir com ninguém. Não devias ver na entrega da tua filha algo mais do que devoção à escrita. – Para ti é fácil dizê-lo. Se a tua filha trabalhasse num laboratório de análises, Dorinda, e em vez de seres tu também a fazê-lo fosse eu que o fizesse, ela deixaria as pessoas sem ponta de sangue, sugar-lhes-ia até a alma. Não que o fizesse por mal, mas para que as recolhas permitissem análises mais concludentes que as do pai, nem que para isso lhes “chupasse” toda a hemoglobina. – Estevão, fazes da tua filha aquilo que ela não é, continuas a remoer após estes anos todos. Talvez devesses antes pensar em como se tornou uma mulher dedicada na profissão e extremosa no casamento e só não é mãe ainda porque a genética a tem traído. Claro que ainda está muito a tempo, mas devias ser mais solidário com ela e olhar menos para trás porque o caminho que ela tem de trilhar é em frente. Ela quer tanto ser mãe quanto tu quiseste ser pai, ainda que muitas das vezes não soubesses sê-lo, Estevão! Quando ela nos der uma neta, porque vai acontecer, sei-o tão bem que parece que me vejo embalá-la, vais dar-lhe tudo quanto às vezes não deste à tua filha. Vais pegar nela como se fosse a tua filha, vais dizer-lhe tantas coisas como se ela fosse a tua filha e só depois verás que é tua neta. Sei-o, Estevão, e tu vais percebê-lo também. – Sabes, Dorinda, tenho a nossa filha tão presente na minha cabeça e às vezes apetece-me tanto abraçá-la que não consigo idealizar uma neta, uma coisa tão minúscula, ao pé de nós três que não somos nada pequenos, diga-se. – Espera até teres essa coisinha nos braços e verás como há sempre lugar para mais um, para mais um sentimento, parecido talvez, e, no entanto, diferente. – Por que não lhes telefonas, Dorinda, e os convidas para almoçar no próximo domingo?
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