Prece de um Combatente | Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial

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PRECE DE UM COMBATENTE Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial

Jumbembém (Farim - Guiné) 1972 - 1974

Manuel Luis Rodrigues Sousa



PRECE DE UM COMBATENTE Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial


FICHA TÉCNICA Edição: Manuel Luís Rodrigues Sousa Título: Prece de um Combatente —Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial Autor: Manuel Luís Rodrigues Sousa Paginação: Sítio do Livro Capa: Marco Martins 1.ª EDIÇÃO LISBOA, Julho 2012 Impressão e Acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-20-3068-5 Depósito Legal: 343300/12 © MANUEL LUÍS RODRIGUES SOUSA Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt




Breve autobiografia do autor

Lá no Alto Douro, nas suas arribas, sobranceira à estação de caminho de ferro de Alegria, a primeira a montante da estação do Tua, situa-se a pequena aldeia de Carrapatosa, freguesia de Linhares, concelho de Carrazeda de Ansiães, onde vive a família RODRIGUES. A cerca de vinte quilómetros, no interior profundo do nordeste transmontano, existe a também pequena aldeia de Folgares, freguesia de Freixiel, concelho de Vila Flor, ambas no distrito de Bragança, de onde é natural a família SOUSA. Do cruzamento destas duas famílias, em 1945, através do casamento da minha mãe, Maria dos Remédios Rodrigues, da Carrapatosa, com meu pai, Francisco António Sousa, dos Folgares, gerou-se o núcleo familiar de que faço parte. Eu sou o quarto de oito filhos concebidos neste en7


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lace, o Manuel Luís, nascido no ano de 1951, com os nomes de família, que lá está, RODRIGUES SOUSA. Claro que a minha família, a materna, estava separada por toda aquela distância. O caminho, longo, portanto, estendia-se por uma zona planáltica, por estrada térrea, entre os Folgares e Carrazeda de Ansiães, num percurso de cerca de dez quilómetros, que marcava aproximadamente metade da distância. A partir desta localidade era um caminho vicinal, plano também ao longo dos termos de Luzelos e Arnal, cruzando pinhais e alguns terrenos agrícolas. Terminada a planície, iniciava-se então um troço do percurso mais sinuoso, entre pinheiros e carvalhos, denominado por “Monte Calvo” ou “Caminho dos Padres”, até se alcançar a ribeira da Arcada, no fundo de um vale, já na periferia da freguesia de Linhares, a cerca de um quilómetro a montante desta aldeia, cuja travessia era feita através de uma pequena e tosca ponte de pedra. Subia depois até ao “alto da Azinheira”, para voltar a descer ao longo de dois ou três quilómetros por veredas estreitas, entre paredes, silvados e alguns terrenos agrícolas, da Piquêta, das Chãs e das Varges, era o nome das propriedades rurais adjacentes ao caminho naquela zona, até se chegar então à Carrapatosa, vendo-se dali o curso do Douro lá ao fundo. Na época ainda não existia estrada. Hoje passa ali uma via em asfalto junto à aldeia, construída em 1970, que liga Carrazeda de Ansiães a S.


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João da Pesqueira, transpondo o rio Douro na barragem da Valeira. Em média, nos anos sessenta, no tempo em que o uso de automóvel era uma miragem, este percurso levava cerca de quatro horas a ser percorrido a pé. Contudo havia uma maneira extraordinária de encurtar o tempo de viagem para cerca de três horas, que adiante explicarei. Periodicamente a família encontrava-se em visitas mútuas, ora nos Folgares, onde viviam os meus pais, eu e todos os meus irmãos, ora na Carrapatosa, onde vivia a minha avó, o tio Armindo e esposa, a tia Aninhas, além dos meus primos, filhos deste casal que vivia com a minha avó, a Natália, o Alexandre, o Fernando e o Ricardo. Fazia ainda parte deste núcleo de familiares o meu primo Chico. Um primo especial que, por isso, adiante apresentarei aos leitores numa fugaz resenha de traços da sua personalidade. A minha avó, de seu nome Ana Isabel, era ali conhecida por “ti Ana do Armindo”, por o pai dela, o meu bisavô, que ainda conheci, se chamar Armindo e ser também o nome de um filho, o meu tio Armindo, a que atrás já fiz referência. Viviam ali também o tio Manuel (o meu padrinho) e o tio Fernando e os filhos, outros meus primos, que, absorvidos pelo seu trabalho de funcionários do Caminho de Ferro, raramente, mesmo poucas vezes, se deslocaram

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a visitar-nos aos Folgares, porém também nos mimavam quando os visitávamos na Carrapatosa. Qualquer festa que houvesse numa ou na outra localidade, nem era festa se não estivéssemos todos juntos. Eram mágicos os momentos em que se recebiam nos Folgares a minha avó, tio Armindo, tia Aninhas e os meus primos ou quando, ao invés, éramos nós a visitá-los na Carrapatosa. Claro que toda esta afinidade afectiva gerava um movimento pendular de viagens da família entre as duas localidades, calcorreando para um e para o outro lado aquele longo caminho. De dia ou de noite, com sol radioso ou com de chuva, com frio ou com calor, com vento ou neve. Enfim, nada impedia estes maravilhosos encontros de família. Mesmo sendo o caminho longo, era um prazer calcorreá-lo. Durante estas viagens, desde a minha infância e adolescência até ao cumprimento do serviço militar, o ponto de partida deste trabalho, aquele caminho foi palco das mais variadas histórias que dariam matéria suficiente para lhes destinar todo este livro. Vou destacar só uma delas que, pelos seus contornos, num misto de inocência, algum drama e uma outra componente que caberá aos leitores atentos descobrirem, faço questão de aqui a registar, por ter um lugar importante no meu imaginário.


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Assim ela perdurará no tempo e constituirá uma homenagem à minha avó, falecida em 1980, que também era minha madrinha, aliás, ela era madrinha de quase todos os netos. Um dia, nos anos sessenta, tinha eu cerca de onze anos de idade, por volta do mês de Maio, depois de recebermos uma das suas visitas nos Folgares, eu e a minha mãe fizemos-lhe companhia na viagem de regresso à Carrapatosa, creio que, como era hábito, para a ajudar nas lides do amanho das terras. Nessa viagem era utilizado o transporte de apoio na época: — A minha avó montava a sua inseparável burrinha, porque a sua idade, cerca de setenta anos, já não lhe permitia fazer todo o percurso a pé; — A tia Aninhas, a esposa do tio Armindo, montava uma outra burrinha que era de um irmão dela, o António “Barracas”; — Eu a minha mãe alternávamos a montada que nos proporcionava um dos nossos jumentos, o burro russo, a que chamávamos “burro da Culmantina”— era assim que se chamava por o termos comprado na aldeia vizinha de Zêdes a uma senhora de seu nome Clementina. O animal que, pela sua idade avançada, já pouco dado a grandes “correrias”, nos garantia que caminharia pacificamente juntamente com o sexo oposto, as duas burras, ao contrário do “burrico”, um outro jumento que tínhamos, pouco corpulento, porém muito activo, que nos causaria uma carga de trabalhos se integrasse a “caravana”.

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Um asno de “bô sangue” que mais à frente irá entrar em cena. O tio Armindo, como caçador que era, fazia também a viagem de regresso, mas através dos campos e montes adjacentes ao caminho, na expectativa de apanhar uma peça de caça, uma perdiz ou um coelho, para o jantar após a chegada. A caminhada, ao ritmo normal, já ia a mais de meio. Seguíamos já no referido caminho de servidão agrícola, depois de termos passado por Carrazeda de Ansiães, no termo de Luzelos. Chegou a altura de eu descer do “burro da Culmantina”, por já me doerem as pernas de ir a cavalo, e dar lugar na montada à minha mãe, que até ali seguiu a pé. Depois de termos passado por uma parcela de pinhal, entrámos numa grande seara de trigo, de longas espigas a apontarem para o chão, tombadas pelo peso dos grãos, naquela fase em que o verde se esbatia em transição para a cor loira com que seria ceifada. A sua pujante crescença, com cerca de dois metros de altura, envolvia o caminho formando uma longa vereda estreita por onde íamos passando. A minha avó ia à frente a cavalo na sua burrinha, sentada de lado, levando consigo a netinha, a minha prima Natália, com cerca de cinco anos de idade. Um pouco atrás seguia a montada da tia Aninhas e mais atrás também a montada da minha mãe. Seguindo eu ao lado a pé, comecei a brincar com a minha prima Natália, empoleirada em cima da burra ao pé


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da avó, em que ela se ia rindo quando eu avançava alguns metros para a frente, escondia-me na seara e quando a burra se aproximava eu saía repentinamente do esconderijo para o caminho. Repeti a cena algumas vezes e a Natália, como criança, ria-se cada vez mais. Para que a surpresa fosse maior, pensei eu, aproveitando uma dobra da vereda formada pela seara ao longo do caminho, corri para a frente uns bons cem metros, escondi-me novamente entre o trigo e aguardei pacientemente a chegada da “caravana”. — Agora é que a Natália se vai rir. Pensei eu novamente. A burrinha da frente, a da minha avó, por deixar de me ver durante um período maior, deve-se ter esquecido de que eu voltava a estar escondido. O leitor já deve estar a antever o final do “filme”. Quando saí bruscamente para o caminho, a burra voou literalmente para a direita, correndo em debandada para o interior da seara a roncar — a zurrar — de assustada, perante semelhante fantasma que deve ter visto em mim, enquanto a minha avó e a Natália, surpreendidas com esta reacção inesperada da jumenta, depois de darem umas cambalhotas no ar com os saiotes pela cabeça, se estatelaram desamparadas no chão. Se o proprietário da burrinha que a tia Aninhas montava, o referido António “Barracas”, presenciasse este episódio seria imediata uma das suas habituais expressões: — Aí está a barraca armada.

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Daí a sua alcunha de “Barracas”. Perante este cenário fiquei atónito e em pânico como responsável por tão aparatoso acidente, de consequências imprevisíveis, enquanto a tia Aninhas e a minha mãe, preocupadas, rapidamente se apearam das montadas para as socorrerem. A Natália levantou-se muito ligeira, sem chorar, e, de dedo na boca, ficou ali amuada a olhar a avó, que, de articulações já mais emperradas, próprio da sua idade, se ia levantando lentamente ajudada pela minha tia e pela minha mãe, soltando um queixume ou outro: — Ai minhas costas, ai minha perna, ai meu braço. Não me livrei duma pequena reprimenda verbal da minha mãe, e a minha avó, depois de se levantar, estava tão indignada com a maldade que lhe fiz, involuntariamente, é certo, que, a coxear um pouco, se ia a dirigir para mim e, pelo seu semblante encolerizado, vi que se preparava para me dar um puxão de orelhas, em contraste com a ternura com que sempre me tratava. Mas eu tinha o pé leve e não estive à espera. Pus-me imediatamente à distância. A burra fugiu para o lado direito do caminho e eu corri para o lado esquerdo, amarfanhando mais um pedaço de seara. Entretanto tudo se acalmou, felizmente nada de grave aconteceu — valeu a “almofada” formada pelas hastes do trigo tombadas no chão que amorteceu a queda. Foi recuperada a burra no interior da seara, já refeita do susto que lhe causei, entretanto a saborear as suculen-


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tas espigas de trigo, ainda com os alforges desordenados, a arrastar pelo chão, em consequência da sua debandada. — os alforges eram umas bolsas de pano ligadas entre si, suspensas uma para cada lado sobre a albarda do animal, destinadas ao acondicionamento e transporte de bagage. Era ali que a minha avó transportava os miminhos com que nos deliciava nestas visitas. Retomámos novamente a viagem, pela mesma ordem em que seguíamos aquando da súbita interrupção, ficando ali uma grande mancha da seara amarrotada, lembrando o fenómeno dos agroglifos, contudo de simetria menos perfeita, a que o proprietário da seara, à posterior, não deve ter achado graça. A partir dali, a minha tia e a minha mãe olhavam para mim e mal podiam conter o riso pelo espectacular aparato que tinham presenciado, felizmente sem consequências de maior, para não afrontarem a minha avó que seguia na burra à frente com ar muito sério, ainda ressentida da descida acrobática que tinha acabado de fazer. Eu, o causador do acidente, não encontrava graça nenhuma. A cerca de dois quilómetros, ao entrarmos na parte mais sinuosa do percurso, ao penetrarmos no “Monte Calvo”, parámos à sombra de frondosos carvalhos a descansar das emoções fortes vividas e aproveitámos para refrescar a boca com suculentas cerejas que levávamos. Ali sentados sobre umas pedras, a minha mãe e a tia Aninhas não se conseguiram controlar e riram, riram abertamente por tudo o que se tinha passado.

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A minha avó, coitadinha, — esteja lá onde estiver, deve estar a sorrir por eu me dispor a escrever esta história — ainda muito séria começou por reprovar a postura hilariante da minha mãe e da minha tia, acabando por esboçar um leve sorriso e rapidamente se deixar contagiar pela risada. Eu, por razões óbvias, fui o único que não riu. A viagem prosseguiu e chegámos à Carrapatosa com muito mais tempo de viagem do que estava previsto. Por razões óbvias também. Esta terna história ocupa um lugar especial nas minhas memórias, que, sempre que me lembro dela, me faz reviver esse passado já distante da minha infância e me trás à mente as feições do sereno e terno rosto da minha avó. Quando actualmente visito os familiares da Carrapatosa, é inevitável recordar este episódio. A tia Aninhas, hoje já com idade aproximada à que tinha a minha avó na altura, ao visitá-la, a primeira coisa que faz é tentar imitar o zurrar da burra que há cinquenta anos atrás, assustada, desenfreadamente se lançou pelos trigais de Luzelos, atirando por terra a “carga” que transportava.

Fiz acima referência que o tempo levado a percorrer aquele caminho poderia ser reduzido substancialmente de uma forma extraordinária.


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Para melhor dar essa explicação, vou descrever muito sinteticamente um outro episódio também interligado com todos estes contactos de família. Aproximadamente na mesma época dos anos sessenta, como era habitual ao domingo, depois de preparado um pequeno farnel, o meu pai deu-nos ordens, a mim, na altura com cerca de doze anos de idade, e ao meu irmão Zé, com aproximadamente sete anos, para irmos para a Cabreira — era o nome de uma das nossas propriedades — apascentar os dois jumentos, o conhecido “burro da Culmantina” e o “burrico”, o outro asno a que atrás fiz referência, prometendo que a partir de agora entraria em cena. Como a minha avó se encontrava junto de nós por uns dias, numa das habituais visitas, o meu pai ordenou-nos também que a burrinha dela, a protagonista do episódio anterior, também iria junta para o pasto. — Tende cuidado “não deixeis botar o burro à burra”. Recomendou o meu pai. Postos a caminho, os trabalhos que eu passei ao longo de todo o percurso sinuoso até chegarmos à Cabreira, cerca de três quilómetros, para suster o ímpeto lascivo do “burrico” que, com toda a sua força, continuamente investia para a burra! Cheguei lá cansado! Durante o dia mantivemos o “burrico” no pasto preso com uma corda, um pouco distante de onde se encontravam a burra e o russo, soltos, em coabitação pacífica, dada a avançada idade deste, período em que não baixou as

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mandíbulas ao pasto, zurrando frequentemente com o sentido no outro “pasto”, na burra. Ao fim da tarde, chegada a hora do regresso, ao reunirmos novamente os animais para nos fazermos ao caminho, a burra aproximou-se um pouco mais do “burrico” que eu tinha preso com a corda, e, como a provocá-lo, começou a matracar as queixadas com o cio. O burrico não aguentou tal provocação, irrompeu desesperado para a burra e, com o esticão que deu à corda com que eu o detinha, perdi-lhe o controle ao escorregar e cair. Foi fatal. O burrico deitou-se à burra! Qual Cupido lancinante e certeiro como o “burrico” ávido, sôfrego, sedento, penetrava a burra. Se dúvidas tinha sobre a forma como os asnos se reproduziam, perante este quadro, estavam dissipadas. Era a mãe natureza em todo o seu esplendor a proporcionar-nos uma lição de sexualidade, de forma explícita, clara, sem rodeios, numa época em que era tabu abordar o tema perante os adolescentes. Não mais interferi. Estava cansado de segurar no burro! — Já que começou, que acabe quando se cansar. Disse eu para o meu irmão, dando-lhe toda a liberdade. O asno repetiu, repetiu, repetiu. Ao longo do percurso de regresso, mais uma e outra vez.


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O “burrico” revelava-se um vulcão de inesgotável energia! Na fase final, próximos de casa, já o “burrico” caminhava lado a lado com a burra, como se de um outro burro se tratasse, muito murcho, de orelhas meias tombadas, quase a cambalear de fraqueza, contrastando com a sua habitual vivacidade. — pudera, depois daquele fim de tarde de relações intensas e de não se ter alimentado…! Ao chegar a casa recolhemos os animais às respectivas lojas — estábulos. À noite o meu pai, como era habitual, foi-lhes dar de comer e estranhou o facto de o “burrico” se encontrar deitado, o que não era normal. — O que é que andastes a fazer com o burro? Ele está muito triste! Perguntou-nos ele, a mim e ao meu irmão. — Deve ter sido por ele durante todo o dia não ter pastado, com o sentido na burra. Atalhei logo eu, não fosse o meu irmão dizer a verdade, esquivando-me a dizer-lhe o que se tinha passado. Decorrido um ano, o tempo de gestação dos asnos, como resultado desta aventura do “burrico”, a burrinha deu à luz um outro “burrico”, para admiração da minha avó e dos meus tios, porque desconheciam como ela o tinha concebido. Como o recém-nascido era a “cara” do burrico — não foi preciso recorrer ao teste do ADN — facilmente concluíram de quem era a responsabilidade paternal.

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Na aldeia da Carrapatosa os seus moradores preferiam as burras aos burros, como força de trabalho nas suas lides diárias. O objectivo desta descriminação era terem sempre a possibilidade de substituir a montada de uma forma natural e económica, já que as burras procriavam. — Com a colaboração de um burro, claro. Com todo este “pasto” por lá, o “burrico”, quando era o eleito para fazer aquela viagem, saltava frequentemente a cerca e, ladino como era, dava largas às suas aventuras como a que teve com a burrinha da minha avó, que também a lá encontrava, e, por isso, à falta de concorrência, visto que na aldeia, como disse, não havia burros, foi o responsável por grande parte da natalidade local da espécie. Assim, aqui vai a explicação de como aquele caminho era percorrido mais rápido. Determinada a “rota”, cujo azimute apontava a direcção da Carrapatosa, o “burrico”, quando escolhido para fazer a viagem, troteava todo o caminho e não era preciso orientá-lo, quer na zona plana do percurso, quer nas veredas sinuosas e labirínticas do “Monte Calvo”. Caminhava como que em piloto automático, sem se desviar do rumo, e chegávamos ao destino com cerca de uma hora de avanço, em relação às quatro horas de marcha normal. Era o “serviço expresso” Folgares — Carrapatosa.


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Porém, o ritmo da viagem retardava um pouco no percurso a partir do “alto da Azinheira”, já nas proximidades da Carrapatosa. Porque não havia estrada, aquele caminho era muito movimentado pela passagem de pessoas e animais de carga, que, a partir da Carrapatosa e de Campelos, transportavam os seus produtos, azeite, vinho, mel e cortiça, até á freguesia de Linhares. Ora o “burrico”, ao cruzar-se com os outros animais, entre eles algumas burras, não deixava de ensaiar as suas habituais investidas, roçando com os alforges por paredes e silvados com as suas correrias de tentativas de “ataque”. À chegada à aldeia zurrava alto e bom som, a avisar a comunidade feminina da espécie que estava a chegar. O aviso servia também, no tempo em que não havia telemóveis para indicar a hora da chegada, para alertar os nossos familiares, e as próprias pessoas daquela pequena comunidade, conhecedoras já da “voz” do asno. — Olha, lá vêm os dos Folgares. Diziam eles. Chegada a hora do regresso, o jumento caminhava triste e vagaroso e os tempos de viagem voltavam às normais quatro horas. Era o “serviço de carreira normal” Carrapatosa— Folgares.

O meu primo Chico!

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Recordam-se os leitores de, atrás, eu ter prometido apresentá-lo neste espaço? O Chico, oito anos mais velho do que eu, era filho de uma minha tia-avó, irmã da minha avó, de seu nome Dolorosa, e do tio Zé “Salva-Vidas”, moradores também na Carrapatosa, que ambos faleceram antes de eu os conhecer. Com a morte destes meus tios, tios direitos da minha mãe, ficaram órfãos cinco filhos do casal, entre eles, o mais novo, este meu primo Chico, de seu nome completo Francisco Augusto dos Santos, que, por isso, desde tenra idade, teve como progenitora a minha avó, tia dele, portanto. Assim, ele fazia parte da família que visitávamos na Carrapatosa e para ele era uma alegria conviver connosco, aliás, esse sentimento afectivo era recíproco. O Chico, com treze ou catorze anos de idade, era um rapaz pouco encorpado em relação à sua idade, porém muito rijo, irreverente e travesso incorrigível. Ai daqueles da nossa idade, ou até mais velhos, aquando da nossa estadia na Carrapatosa, que ousasse implicar connosco, comigo e com o meu irmão Fernando, este mais velho do que eu cinco anos. Aguerrido como era, e fazendo jus à sua irreverência, não hesitava em envolver-se numa escaramuça, mesmo que a maior força de “combate” pendesse mais para o lado contrário, sempre pronto a defender-nos. Não raras vezes o meu irmão Fernando, desde muito novo, com cerca de onze anos de idade, fez aquele percurso


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sozinho entre os Folgares e a Carrapatosa, que o leitor já conhece. No regresso aos Folgares a minha avó não o deixava ir sozinho. Incumbia o Chico, com mais três anos do que o Fernando, a seu contento, de o acompanhar até aos Folgares, regressando depois ele sozinho à Carrapatosa. As peripécias de que o Chico foi protagonista ao longo daquelas caminhadas! Dariam matéria para lhes dedicar um livro. O Tempo normal do percurso era, em média, como já referi, cerca de quatro horas. Naquelas ocasiões, com a paragem para comerem o farnel, alguns períodos em que se deitavam à sombra dos frondosos carvalhos do “Monte Calvo” para descansarem e com as tropelias em que se entretinham, a caminhada prolongava-se por todo o dia até ao cair da noite. Para ilustrar a irreverência e as diabruras do meu primo Chico, eis uma breve e deliciosa história das muitas que podia contar a seu respeito: Existia uma cerejeira numa propriedade da “ti Maria Pombaleja” nos arredores da Carrapatosa, na Soisa, era assim que se chamava aquela leira, que confrontava com uma das propriedades da minha avó. Aí pelo mês de Maio, na época das cerejas, é chegada à região uma ave migratória, de tamanho aproximado ao de um melro, de plumagem amare-

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la e preta, designada na ornitologia por papa-figos, eivão ou amarelante, conhecida popularmente a nível local por “marantéu”. Esta ave nidifica precisamente no tempo das cerejas, cujo ninho constrói nas proximidades destas árvores de fruto ou, para cúmulo, nas próprias cerejeiras, de modo a ter por perto as apetitosas cerejas com que alimenta as suas crias. O ninho assemelha-se a uma cesta habilidosamente tecido e solidamente fixado entre a bifurcação de dois ramos. Nos anos sessenta, a “ti Maria Pombaleja”, uma mulher de idade avançada, não obstante ter grandes dificuldades de visão, ciosa das suas cerejas, decidiu postar-se durante o dia junto ao tronco da referida cerejeira para afugentar os “marantéus” que teimavam em convergir para a árvore à procura dos doces frutos. Como tinha dificuldade em ver, valia-se do seu sentido auditivo. — Xô marantéu…xô marantéu… Exclamava ela ao mesmo tempo que batia com um pau numa lata, à mais leve brisa que agitasse a ramagem da cerejeira ou ao mínimo ruído do esvoaçar dos “marantéus”, ou de outras aves, no interior da copa da árvore. O meu primo Chico, a trabalhar na propriedade da minha avó ali ao lado, também sedento das apetitosas cerejas da “ti Maria Pombaleja”, e como


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esta não abandonava o local, astuto, como era seu timbre, depressa pôs em prática uma estratégia de modo a reverter a situação a seu favor. Sabendo ele da dificuldade de visão da anciã, foi-se aproximando sorrateiramente da cerejeira e sem ela se aperceber conseguiu trepar até ao interior da copa da árvore, através de um ramo que quase tocava o chão, no lado oposto àquele em que ela se encontrava. Uma vez lá em cima, tranquilamente saltava de ramo em ramo a saborear os vermelhos e apetitosos frutos, enquanto cá em baixo a velhinha, ouvindo a sua movimentação em cima da árvore, desesperadamente batia com o pau na lata e bradava: — Xô marantéu…Xô marantéu… Depois de saciado, o “marantéu” do Chico, tal como fez a aproximação à cerejeira de forma discreta, assim abandonou tranquilamente a árvore através do mesmo ramo por onde a trepou, ficando ali a velhinha fiel ao seu posto de vigília, impedindo que aqueles pássaros furtivos se aproximassem da cerejeira: — Xô marantéu…, Xô marantéu…, xô marantéu…

Eram notáveis a astúcia e o engenho deste meu primo Chico, neste como em tantos outros casos.

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Recentemente, em Fevereiro de 2012, estabeleci contacto telefónico com ele, que me respondeu a partir de Sampaio, no concelho de Mogadouro, onde reside. Notei que ele, hoje com 69 anos de idade, evidencia algumas falhas de memória, interrompendo frequentemente o diálogo e revelando alguma dificuldade em reatá-lo, esquecendo-se do que estava a falar. Temo que seja consequência dessa maldita enfermidade que grassa por aí de nome alemão que lhe está a provocar aquelas perdas momentâneas de memória. Contudo, quando lhe disse que tinha acabado de escrever neste livro uma das suas muitas histórias, que lhe referenciei por “xô marantéu”, tive a agradável sensação de o ouvir rir à gargalhada, ainda com o ar de “malandreco” que o caracterizava.

Com este apontamento da minha autobiografia inerente à minha infância e adolescência, fica assim feita a minha apresentação, em cujo texto ficou bem patente a matriz da minha origem social. Sou oriundo de gente humilde do campo, do interior profundo do nordeste transmontano, cuja história é indissociável do meio rústico que a envolvia, incluindo os próprios animais que, propositadamente, para ilustrar isso mesmo, aqui foram desfilando como “actores”. A minha autobiografia até aos dias de hoje, continuará a ser contada, no fundo, à medida que se for desenvolvendo toda a resenha histórica a que lhe é destinado este meu


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livro, sob o título “PRECE DE UM COMBATENTE — Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial”, que tem como foco principal, como o próprio título sugere, a vivência que tive, nos anos setenta do século passado, como combatente na guerra colonial.

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PRECE DE UM COMBATENTE

Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial



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Preâmbulo

Muito se tem escrito e falado de forma mais ou menos eloquente, nas vertentes política, militar e social, sobre a guerra do Ultramar, que opôs os movimentos de libertação das então províncias ultramarinas, Guiné, Angola e Moçambique, ao regime colonial português. Normalmente, salvo raras excepções, por ex-combatentes que integravam a classe de oficiais e sargentos das Forças Armadas Portuguesas, particularmente do Exército a que eu pertencia. Por um lado, na minha perspectiva, dada a informação privilegiada de que dispunham por inerência das funções de comando que desempenhavam, por outro, pela sua formação académica, que, por mínima que fosse na época, lhes dá mais alguma bagagem em relação à classe das praças, de formação mais humilde, como no meu caso, para versarem sobre o assunto. 33


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É claro que todas as categorias, de oficiais, sargentos e praças, no seu conjunto, cada uma delas, na sua esfera de acção, deram o seu contributo, o melhor que souberam e puderam, na defesa da Pátria. Sim, na defesa da Pátria! Era este o sentimento nacional no contexto ideológico de então, independentemente de, avaliando a esta distância no tempo, ser ou não a política correcta do Estado Português em manter o seu domínio colonial. Sem querer aqui esgrimir argumentos sobre qual das classes foi mais ou menos sacrificada, — não foi esse o objectivo a que me propus ao escrever este livro — é uma constatação, é mesmo consensual, que o maior esforço físico e psicológico durante a guerra do Ultramar, particularmente da Guiné que conheci, onde fui combatente, recaiu sobre a classe das praças (cabos e soldados): — A desgastante tarefa, física e psicológica, de proceder à picagem das picadas para a detecção de minas, para segurança da circulação das viaturas, com a consequente exposição ao perigo, não só das minas como de emboscadas que podiam eclodir a todo o momento do interior da mata; — A condução das viaturas em eminente perigo nessas mesmas picadas; — A progressão, sempre à frente, irrompendo pelo capim, no interior da mata, ora sob o sol escaldante, ora debaixo de chuva intensa, em patrulhamentos e operações; — O árduo trabalho, sobe o calor abrasador, da construção e manutenção das instalações e infra-estruturas do


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aquartelamento, de valas, de abrigos, das tabancas para as populações; — Ir buscar lenha, cozer o pão e cozinhar; — Manter a vigilância nocturna nos postos de sentinela, por todo o perímetro do quartel, etc. Se me é permitida esta imagem, comparando a um enxame todo o contingente da 2.ª Companhia de Caçadores, instalada no sub-sector de Jumbembém, pertencente ao Batalhão de Caçadores 4512, sedeado no sector de Farim, eu era, entre muitos, uma simples “abelha obreira”. Foi nesta perspectiva privilegiada de um simples soldado, que se situava na base da pirâmide de toda a cadeia hierárquica, sempre muito próximo da realidade no terreno durante a minha comissão na guerra da Guiné, que me decidi reproduzir por escrito e algumas imagens, o mais fiel possível, os “flaches” que os meus olhos registaram e a minha memória guardou. São essas imagens não só os episódios de guerra vividos, como, também, os vários aspectos que observei mais abrangentes da vida em Jumbembém: A fauna, a flora, o clima — as chuvas, as secas, as tempestades — os costumes e tradições da população, as nossas relações com aquele povo, especialmente com as nossas lavadeiras e as crianças, os bons momentos, apesar de tudo, passados entre companheiros de armas, etc. Tentei retratar Jumbembém de modo a dar uma imagem clara do que era naquela época esta localidade e, por analogia, o que era também qualquer outra daquele território.

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Tal como lá na guerra colonial, que em situações de pânico e ansiedade ora se fugia para trás, ora para a frente, com estes meus relatos, reconheço, no meu subconsciente, tentei fugir para a frente, relembrando e contando momentos difíceis, como terapia ao que os psicólogos chamam de stress pós traumático de guerra. A inquietude psicológica de que sofre a maior parte dos ex-combatentes que ficam perturbados só em ouvir falar desses momentos difíceis em que se viram envolvidos, associada, em muitos casos, a mazelas físicas sofridas em combate. Os meus relatos, que poderão dar o seu modesto contributo para a história da guerra colonial, serão uma gota de água no oceano de milhares delas, de maior ou menor dramatismo, também de soldados como eu, que jamais serão contadas. Para o efeito reuni toda a “prata da casa”, que é como dizer sem intervenção de terceiros, por minha conta e risco, e entrei nesta aventura literária, se é que é digna desse nome, escrevendo os textos e reunindo algumas fotografias de campanha para ilustração, umas do meu álbum e uma ou outra de camaradas ex-combatentes, começando a dar forma a este livro, com o título “PRECE DE UM COMBATENTE – Nos Trilhos e Trincheiras da Guerra Colonial”. Este título advém de uma das histórias narradas que envolve a mítica figura das nossas madrinhas de guerra, como forma de as homenagear, e a vivência, em geral, de todo aquele conflito armado.


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Toda a resenha histórica compreende o espaço no tempo entre o momento em que saí da minha pequena aldeia de Folgares, freguesia de Freixiel, concelho de Vila Flor, Distrito de Bragança, com passagem pelo RI 13 em Vila Real, na recruta, RI 2 em Abrantes, na especialidade, RI 15 em Tomar, centro de mobilização, e o tempo de comissão na Guiné, transversal a todo um batalhão, uma companhia e um pelotão, até ao regresso a casa. Descreve também a dolorosa partida, o corte abrupto da vida entre familiares e amigos, e as emoções a ela associadas do jovem simples do campo que eu era, bem como a não menos emotiva chegada, que retratam também, por semelhança, a saga de tantos outros jovens da época como eu. No final faz referência ao nosso reencontro, muitos anos depois, nos convívios de ex-combatentes, oficiais, sargentos e praças, cuja amizade, vincada por uma espécie de pacto de sangue, suor e lágrimas durante a campanha, ainda perdura no tempo cerca de quarenta anos depois. O Autor Manuel Sousa

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Vocabulário utilizado pelos militares e nativos da Guiné

Mangueira: Árvore que produz a manga. Esta árvore de fruto, frondosa, existia junto a concentrações populacionais na Guiné ou em locais que tinham sido habitados antes da guerra, abandonados pelas populações, perante a insegurança do conflito. Manga: Fruta da mangueira ou advérbio de quantidade “muito/a”. Poilão: Árvore típica da Guiné. Bolanha: Terreno alagadiço na época das chuvas, sem vegetação, utilizado na plantação de arroz, ou onde cresce abundante forragem procurada por ruminantes e não só. Porém, muito seco durante a época da seca. Bajuda: Rapariga nova. Mulher grande: Mulher casada. Tabanca: Aldeia. 39


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Chefe de tabanca: Idoso respeitável, patriarca da tabanca, a que todos obedecem. Gosse – gosse: Fugir, andar depressa. Ronco: Um cordão ou vários cordões que dão sorte segundo a crença dos africanos da Guiné, equivalente a um talismã, um amuleto ou a maneira de amplificar uma acção. Por exemplo, desbaratar uma base inimiga (manga de ronco). Piriquito: Ave que faz parte da fauna da Guiné, cujo nome era atribuído aos militares recém chegados àquela província ultramarina. Picada: Estradas em terra batida de acesso às localidades da Guiné, inclusive aos destacamentos militares dispersos pelo interior do território. Baga-baga: Monte de terra batida espetado no solo, construído por formigueiros (ninhos de térmitas). Bianda: Arroz. Mancarra: Amendoim. Está na mala: A comissão está cumprida. É só saúde: algo de bom — uma bajuda bonita, regressar à Metrópole, etc. “Patacão”: Dinheiro.


Capítulo I

A IDA PARA A TROPA — O ASSENTAR PRAÇA Completados os vinte e um anos de idade, chegou o momento do mancebo Manuel Luís Rodrigues Sousa prestar o serviço militar obrigatório. Previamente convocado para o efeito, depois de levantada a respectiva guia de transporte na secretaria da Câmara Municipal de Vila Flor, para utilização dos Caminhos de Ferro Portugueses, em 31 de Julho de 1972 iniciei a viagem, para mim uma aventura em direcção ao horizonte desconhecido, cujo limite era a cidade de Vila Real. O abrupto corte do “cordão umbilical” que me ligava a todos os meus entes queridos e a toda a comunidade da minha pequena aldeia de Folgares, freguesia de Freixiel, concelho de Vila Flor, Distrito de Bragança, no nordeste transmontano. 41


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Ali cresci e trabalhei até então no trabalho duro do campo, de sol a sol, melhor dizendo, de noite a noite, sem conhecer férias, fins-de-semana ou coisas parecidas, dificuldades que me prepararam, de certa forma, para as contingências que o futuro próximo me reservava. Porém, mesmo assim, ali era feliz. Nesse dia, a primeira vez que saía de casa, como passarinho de voo errante ao sair do ninho, os meus pais quiseram acompanhar “o meu Manuel”, o quarto de oito filhos, o segundo de quatro rapazes a cumprir o serviço militar, até ao transporte mais próximo que me levaria a Vila Real. Para o efeito, arrearam a velha e corpulenta mula, a força motriz lá de casa para o amanho das terras e o único meio de transporte disponível na época para as deslocações, como neste caso — passados cerca de dez anos, já não eram o “burrico” e o “russo”, lembram-se deles? Sobre a albarda foi colocada a minha nova mala, previamente comprada para transportar o meu humilde espólio, que incluía um pequeno farnel, e iniciámos a caminhada que nos levaria a percorrer a distância de nove quilómetros, que separa a minha aldeia de Carrazeda de Ansiães. A mula seguia à frente, a passos largos e desengonçados, debicando com as mandíbulas aqui e ali, na margem da estrada, uma arçã ou forragem mais apetitosa, e eu e os meus pais atrás, em marcha ligeira para a acompanharmos. Ao longo de todo o planalto do percurso, entre giestais e pinhais, olhava ao meu redor como a despedir-me de


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cada giesta, de cada pinheiro, que ladeavam a estrada, que eu já conhecia de um por um, de tantas vezes ali ter passado, incluindo as caminhadas entre Folgares e Carrapatosa e vice versa, lembram-se também? Caminhava apreensivo sobre tudo o que me esperava a partir dali e sentia já a nostalgia de tudo o que deixava para trás: O quotidiano trabalho do dia a dia, os serões em família, (ainda sem televisão) os amigos, os bailaricos de rua, a música do conjunto de Maria Albertina que idolatrava, que deu brado em meios populares na época, as namoradas, as festas e romarias das aldeias circunvizinhas, etc. Despertei desta retrospectiva de lembranças que me assaltaram a mente com a aproximação da camioneta em Carrazeda de Ansiães, em cuja paragem fiz a transferência da mala do dorso da mula para o porta-bagagem. Seguiu-se a dramática despedida entre mim e os meus pais, entre lágrimas, e ali os deixei, juntamente com a velha mula, na esperança de um dia ali os reencontrar. Seguiu então o “meu Manuel” entregue a si próprio, em exploração do desconhecido. Viajei na camioneta até ao Tua, ali tomei o comboio da linha do Douro até à Régua, onde fiz o transbordo para o comboio da linha do Corgo, rumo a Vila Real. Ali cheguei a meio da tarde, de camisa enfarruscada pela fumaça da locomotiva a carvão que entrava pelas janelas das carruagens, que, ao longo do percurso, em marcha lenta, se moldavam ao serpenteado da linha contornando a quebrada dos montes.

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Para retratar as dificuldades das gerações mais novas de hoje, em 2011, em plena crise económica e financeira de toda a Europa, e em particular de Portugal – aqui fica esta referência para a posteridade – é frequente recorrer-se à imagem muito badalada pela comunicação social de “geração à rasca”. Eu e os meus contemporâneos dos anos sessenta e setenta, com todas as dificuldades conhecidas da época, inclusive a obrigatoriedade do cumprimento do serviço militar, com o consequente calvário da guerra colonial, não se compadecendo com a interrupção do trabalho ou dos estudos, também pertencíamos, e de que maneira, a uma geração não menos “à rasca”. Contudo, havia um vocábulo que toda a gente conhecia e o punha em prática e que era o antídoto para este mal: “o desenrasca”. Então na tropa este conceito era um lema.

A RECRUTA EM VILA REAL A distribuição do fardamento Depois da viagem já relatada, nesse mesmo dia, 31 de Julho de 1972, apresentei-me no RI 13 em Vila Real, para frequentar a recruta. Depois de me ser atribuído o número mecanográfico (09030772) e de ser indicada a 5.ª caserna como os meus


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futuros aposentos, impunha-se a atribuição de todo o fardamento. O átrio de acesso à caserna era comum à arrecadação, a cuja porta me dirigi numa extensa fila e, chegada a minha vez, estenderam no chão um dos cobertores que me distribuíram, para onde foram atirando com todas as peças de fardamento e calçado sem qualquer critério em relação ao número dos tamanhos.

Quartel (RI 13) em Vila Real (Foto do ex-furriel Carlos Silva)

Uma vez a dotação completa, juntei as quatro pontas do cobertor, cuja trouxa coloquei às costas, que era maior do que eu, e dirigi-me para a caserna sem saber bem o que fazer com tudo aquilo.

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Fardei-me imediatamente, como nos foi ordenado, notando que as calças eram um pouco justas. Depois de fardado foi-me dada a tarefa de varrer a caserna, juntamente com outros colegas. A caserna era muito grande com um corredor lateral, que dava acesso a vários compartimentos das camaratas. Ao baixar-me para varrer sob uma das camas, as calças descoseram-se entre pernas, numa extensão de cerca de 20 cm.

O “desenrasca” Recorri então ao meu “kit de sobrevivência”, ao carrinho de linhas e uma agulha que a minha mãe me tinha metido na mala e sentei-me numa cama a coser as calças. Confesso que não me estava a sair nada bem na minha aventura de iniciação ao corte e costura, porque lá em casa isto era tarefa da mãe e das irmãs. Felizmente alguém lá ao fundo da caserna bradou: — Quem quer trocar umas calças. — Troco eu. Respondi logo, tirando imediatamente a agulha e a linha das calças. Concretizou-se rapidamente a troca e, prevendo já no que aquilo iria dar, vesti-me num ápice e regressei à tarefa da limpeza. Volvidos alguns instantes, vem disparado corredor abaixo o tal militar com as calças na mão a vociferar, per-


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guntando compartimento em compartimento quem lhe tinha acabado de trocar as calças, visto que não me conseguiu conhecer no meio de tanta farda verde. Percorreu todos os compartimentos, mas como ninguém lhe respondeu, inclusivamente eu, o “criminoso”, indignado com a situação, berrou a plenos pulmões pelo corredor da caserna. “Quem foi o filho da puta que me trocou as calças”.

Foi nesta camarata que teve lugar a célebre troca das calças, as que uso nesta foto.

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Quase de certeza que o militar a quem eu impingi as calças descosidas também é um dos ex-combatentes. À pergunta que ele fez na altura estou-lhe a responder agora, 38 anos depois, embora não me identifique pelo “nome” que me chamou. Seria interessante agora o contacto entre ambos para revivermos esse passado em que a tropa mandava desenrascar.

“Roubaram-me” a mala Uma vez iniciada a recruta em Vila Real, à medida que os dias iam decorrendo, fui-me integrando na rotina do dia a dia. À parte alguma dificuldade dos primeiros dias em me adaptar à nova realidade, o rigor e a disciplina exigida na instrução em nada era tão difícil como o trabalho árduo do campo que deixara: Levantava-me ao toque de alvorada, já o sol entrava pelas janelas da caserna, quando a essa hora lá na aldeia, desde o romper da aurora, já estava a trabalhar; Fazer ginástica, correr, saltar a vala, a paliçada, o muro, percorrer, portanto, a pista de obstáculos, em nada se comparava com o esforço do trabalho das lides da terra da minha pequena aldeia; Passar a ter fins-de-semana, mesmo sem ir a casa, porque o dinheiro não era muito, era uma regalia que eu não conhecia.


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Enfim, rapidamente, como acima referi, me adaptei à nova realidade, integrado já num grupo restrito de amigos. — Eu de Folgares, o João Manuel de Freixiel, o Raúl de Vieiro, os três da freguesia de Freixiel, concelho de Vila Flor, o Blizário e o Manuel “Guerrinhas” de Campelos, concelho de Carrazeda de Ansiães. Os meus aposentos eram na 5.ª caserna, situada entre a 4.ª e a 6.ª, ao lado da parada, gémeas umas das outras. Eram exactamente iguais. Eu estava instalado no segundo compartimento, ao lado esquerdo do corredor, em relação à entrada, e partilhava o armário de chapa com outro militar. Sobre as coisas do armário estava descansado, visto estar fechado a cadeado. Quanto ás que estavam na mala, que coloquei sobre o mesmo armário, não estava muito tranquilo, porque, embora também fechada à chave, estava mais vulnerável aos amigos do alheio que na tropa existiam, principalmente no inicio enquanto ninguém conhecia ninguém. Preocupado, quando entrava na caserna, ao regressar da instrução, tinha o cuidado de olhar imediatamente para a mala, para me inteirar de que estava intacta. Um dia entrei na caserna e reparei que a mala tinha desaparecido. Não estava sobre o armário. Fiquei em estado de tensão com a preocupação e reparei que na caserna entraram militares que não era habitual vê-los por ali. Deduzi logo que, provavelmente, tinha sido algum deles a furtar-me a mala.

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Corri imediatamente para fora para me dirigir para a secretaria a comunicar o facto e fazer referência aos militares suspeitos. Quando cheguei à rua, apercebi-me de que estava na caserna errada. Estava na 6.ª caserna. Ufa! Que alívio! Fiquei então mais tranquilo com o mistério desvendado e cheguei à conclusão que o único intruso na 6.ª caserna era eu.

O efeito das chamadas injecções de cavalo Já em avançado período da recruta, um dia, ao final da manhã, antes do almoço, dando-se cumprimento ao normal calendário sanitário estabelecido pela Unidade, a minha companhia foi encaminhada para a porta da enfermaria, a fim de todos os militares serem submetidos à respectiva vacinação. Formou-se uma longa fila, em que todos os recrutas, em tronco nu, tinham de passar por três militares que constituíam a equipa de vacinação, dispostos ao longo do relvado, junto à enfermaria, com espaços entre si de cerca de meia dúzia de metros. O primeiro, com uma bacia de agulhas na mão, ia espetando uma a uma em cada militar, nas costas, entre as omoplatas, o segundo, com uma enorme seringa, injecta-


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va a dose estabelecida em cada um, e o terceiro retirava a agulha e desinfectava com álcool. Pelo impacto psicológico causado por toda esta operação, por um lado o militar de trás ver espetar a agulha no da frente, por outro ver-se à frente cerca de uma dezena de militares com as agulhas espetadas nas costas a dirigirem-se para o militar da seringa, e o mesmo choque visual a partir deste até ao que retirava as agulhas, alguns deles caiam como tordos ao chão, desmaiados. Havia então outra equipa para a respectiva reanimação. Já na formatura para o almoço, em plena parada, aí, talvez, pelo efeito da vacina, continuavam a cair. Posteriormente, no refeitório, o almoço foi interrompido para muitos que também não aguentavam os efeitos da tal injecção de cavalo. Eu consegui resistir. Um dia que não deu tréguas à equipa de enfermagem.

A tranquilidade dos fins-de-semana Decorria a recruta a bom ritmo e era notória a ansiedade por parte de todos os recrutas, ao aproximar-se a sexta-feira, em obter o almejado passe assinado pelas chefias militares que lhes permitia deslocarem-se a casa para gozarem o fim de semana na companhia dos familiares e das namoradas. Além disso, tinham a oportunidade dos familiares lhes lavarem a roupa para utilizarem no decorrer da semana seguinte.

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Da minha parte, como o dinheiro não era muito, não me preocupava em obter o referido passe, ficando ali pelo quartel. Eram dias de descanso absoluto com o quartel em silêncio, fora do bulício normal da instrução durante a semana, aproveitando para me levantar mais tarde para repor energias dispendidas decorrentes do esforço físico do treino militar. Tinha a sorte de ter uma tia-avó, a tia Joaquina, a morar na Rua da Guia, próximo da Rua dos Ferreiros, em Vila Real, que visitava várias vezes nesses fins de semana que, nessas alturas, me mimava com os seus cozinhados e, fundamentalmente, ternamente, — Deus lhe pague por isso — com a ajuda da prima Judite, me lavava a roupa para usar na instrução da semana seguinte. Como ficava no quartel, também, algumas vezes, era “engatado” pelo sargento de dia para fazer faxina ao refeitório, juntamente com outros recrutas nas mesmas condições. Porém, como os efectivos nesses dias eram reduzidos, o trabalho não era muito e a comida, normalmente melhorada ao fim de semana, também não faltava. Durante os dois meses da recruta, apenas fui a casa em dois momentos especiais. O casamento do meu irmão Fernando e o dia de festa de Agosto lá da terra. Ironicamente, na sexta-feira em que estava tão motivado em partir de fim-de-semana, para o casamento do meu


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irmão, a mim e a muitos outros militares, como castigo, foi-nos anulado o passaporte. Nesse dia no refeitório, à hora do almoço, vários recrutas de um sector da sala, onde eu me encontrava mas que nada tinha a ver com o assunto, numa atitude própria da irreverência da juventude, dissimuladamente, dada a atenção do oficial de dia ali presente, arremessavam entre si bolas de miolo de pão. O mesmo oficial de dia ao tentar indagar sobre os autores dos “disparos”, e como ninguém denunciou ninguém — também era um lema na tropa – decidiu cortar o fim-de-semana a todos os militares daquela parte do refeitório. Para que o meu irmão Fernando não perdesse um dos principais convidados da boda, valeu-me a “cunha” que meti a um furriel ou cabo miliciano que fazia parte dos graduados da instrução, natural de Linhares, Carrazeda de Ansiães, próximo da minha terra. — Creio que de apelido Alegre. Compadecido pela minha situação que sumariamente lhe expliquei, intercedeu por mim fazendo com que à hora da chamada, ao fim da tarde, o passe me tivesse sido entregue, para meu alívio, ao contrário de todos os outros. O “desenrasca” puro e simples, mais uma vez! A recruta culminou com o compromisso do juramento de bandeira, que marcou o fim daquele período de instrução básica, dia especial em que tive a alegria de receber a visita da minha avó — irmã da tia Joaquina — e da minha prima Natália, que se deliciaram em ver o “meu Manuel”, de queixo levantado, de peito saliente, de espingarda em

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ombro-arma, marchando com garbo perante a tribuna das altas patentes militares. Lembram-se da minha avó e da minha prima Natália? Nesta altura já a minha avó tinha cerca de oitenta anos e a Natália era já mulher, com aproximadamente quinze anos de idade.

A ESPECIALIDADE EM ABRANTES A “aventura” da segunda refeição Terminada a recruta no R.I. 13 em Vila Real, em finais de Setembro de 1972, fui transferido para o R.I.2 em Abrantes, a fim de, como se dizia, tirar a especialidade. No meu caso a de atirador.


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Foto do edifício do Comando do RI 2, em Abrantes do ex-furriel Carlos Silva

Dado o elevado número de militares ali concentrados, em instrução e a própria guarnição do quartel, o refeitório não comportava as refeições em simultâneo de todo o contingente, pelo que eram distribuídas por duas mesas. Certo dia, depois de ter tomado a refeição do almoço da primeira mesa, que não foi suficiente para saciar a voracidade provocada pelo esforço da instrução, um militar que integrava o meu círculo restrito de amigos sugeriu ao grupo para entrarmos na segunda mesa para repetirmos a refeição. Entrámos então, um grupo de quatro ou cinco, dispersos na fila que aguardava a entrada no refeitório, mas todos próximo uns dos outros.

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O companheiro da sugestão era o primeiro dos “repetentes” e era uma das caras que não passava despercebida em lado nenhum, dada a sua irreverência, a que vulgarmente se chamava de “reguila”. À porta do refeitório encontrava-se um aspirante ou um aferes, o oficial de dia, que controlava as entradas no refeitório, permitindo apenas a entrada de cada vez do número de militares para completar cada mesa. Chegada a vez do primeiro “repetente” passar no “filtro”, reconhecido pelo oficial como intruso, ali mesmo, na nossa frente, foi esbofeteado e pontapeado e posto imediatamente na rua. No meio da confusão, aos restantes só restava fugir para a frente. Entrámos normalmente, com cara de sonsos, sem que ninguém nos tivesse reconhecido. Confesso que pouco comi na segunda refeição, depois do calafrio por que passei. Saliento a lealdade do camarada esbofeteado que não denunciou os restantes “repetentes”. Recrimino a atitude do oficial em causa. Não obstante a nossa atitude ter sido um acto reprovável, revelando até falta de ética, mas que com vinte anos não se tinha muito a noção disso, o mesmo oficial não deveria ter tido o despudor de desfeitear o militar daquela maneira. A aplicação de uns reforços ou de umas faxinas resolveria a situação e seria mais digno para ambas as partes. Atenua-se, contudo, a sua atitude, também pela sua juventude, da nossa idade, também imaturo.


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O convite da polícia A meio da especialidade em Abrantes, aí pelo mês de Outubro de 1972, dirigiu-se à Unidade um grupo de efectivos da Polícia de Segurança Pública, que incluía alguns oficiais. Numa época em que a vida na Polícia de Segurança Pública e na Guarda Nacional Republicana era pouco atractiva, por ser mal remunerada, entre outras causas, na vigência do Estado Novo, havia dificuldade em recrutar efectivos para aquelas polícias. Então aquela visita tinha por objectivo sensibilizar e convidar os instruendos da especialidade militar em curso de que eu fazia parte, em protocolo estabelecido entre a polícia e o Exército, a ingressarem naquela instituição policial. Como incentivo ao alistamento, era garantida a carreira na polícia ou, caso não pretendêssemos continuar naquelas funções, no fim do período correspondente ao serviço militar obrigatório passaríamos, igualmente, à disponibilidade. Fomos, de certo modo, aconselhados pelos próprios oficiais do Exército, comandantes de pelotão, a não aceitar o convite, visto que esses efectivos da polícia recrutados se destinavam também às províncias ultramarinos, onde, segundo eles vaticinavam, iríamos exercer aquelas funções em locais isolados do interior daqueles territórios. Influenciado ou não por este aviso não aceitei o convite, decidindo cumprir o meu serviço militar obrigatório,

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desfazer-me da farda e voltar à vida do campo na minha terra natal. Contudo, alguns militares aceitaram o convite. Sobre esta minha decisão, adiante, oportunamente, voltarei a este assunto.

O meu receptor de rádio Se no decorrer da recruta anteriormente em Vila Real raramente ia a casa de fim-de-semana, em Abrantes, pela distância e, também, a falta de dinheiro, estava completamente fora de hipótese viajar rumo ao norte visitar a família. Tal como em Vila Real, gozava da tranquilidade daqueles dias, retemperando forças para a instrução da próxima semana, embora uma vez ou outra, também como em Vila Real, tivesse sido escalado para faxina ao refeitório, dada a escassez de pessoal naqueles dias. Porém, o trabalho não era muito. Para me ajudar a passar o tempo nesses dias, comprei na cantina da unidade um pequeno receptor de rádio que me custou os olhos da cara. Custou-me exactamente o único dinheiro que tinha no bolso, 370$00, e para isso ser possível tive de regatear o preço com o militar ali em serviço. Passou a ser o meu companheiro naqueles dias, principalmente naquelas tardes solarengas de Outubro de 1972, ao sábado, durante a minha tarefa de lavar a roupa no lava-


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douro do quartel, já que, como disse, não ia a casa e ali não tinha outra tia Joaquina que ma lavasse como em Vila Real. Ia ouvindo em fundo a programação da Emissora Nacional e do Rádio Clube português, incluindo o célebre programa dos “Parodiantes de Lisboa” e alguns relatos de futebol, enquanto lavava, estendia e esperava toda a tarde que a roupa secasse, porque, na tropa, a vigilância sobre a “barrela” tinha de ser contínua, para não correr o risco de ficar sem a farda. O pequeno receptor de rádio foi o meu companheiro durante o cumprimento do serviço militar, e por muitos mais anos depois, que, adiante, mais algumas vezes irá “entrar em cena”.

A MOBILIZAÇÃO PARA O ULTRAMAR Próximo de finais de Novembro, em Abrantes, no final da especialidade, respondendo à chamada em formatura, foi-me comunicado que estava mobilizado para partir em campanha para a Guiné. Para formar batalhão, num dos dias imediatos, viajei para o RI 15 em Tomar, integrado num contingente com o mesmo destino de mobilização.

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Foto do RI 15 em Tomar do ex-furriel Carlos Silva.

Ali foi organizado o BCaç 4512, com a distribuição de todos os militares pelas respectivas companhias, Companhia de Comando e Serviços, 1.ª, 2.ª e 3.ª companhias, e estas, por sua vez, subdivididas em pelotões. Passei a pertencer ao 3.º pelotão da 2.ª CCaç, cujo destino então definido era o subsector de Jumbembém, pertencente ao sector de Farim na Guiné. Dois ou três dias depois, após a formação do Batalhão e a consequente distribuição do fardamento de campanha, o conhecido camuflado, foi todo o contingente mandado para casa gozar os dez dias da mobilização a que tinha direito. Os únicos dias que fui a casa, já que, pela distância, e pelas circunstâncias referidas da recruta em Vila Real, todos


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os fins-de-semana foram passados no quartel, no decorrer dos dois meses da especialidade em Abrantes, aliás, como já atrás referi.

A despedida, rumo à Guiné Terminado este período, no dia 3 de Dezembro desse ano de 1972, depois da emocionante despedida dos entes queridos, principalmente pais e irmãos, entre lágrimas e soluços, não fosse a minha partida uma provável ida sem regresso, como já a tantos tinha acontecido, iniciei a minha viagem com destino a Tomar. Desta vez não foi via Carrazeda de Ansiães, nem tive o apoio da velha mula no transporte da mala. Porque a guia de transporte só me permitia utilizar o comboio, e como o dinheiro não abundava para pagar a camioneta desde Carrazeda de Ansiães até ao Tua, como tinha feito na primeira viagem, desta vez tinha de descer ao vale do Tua, com destino à estação de Codeçais, através de um caminho íngreme e tortuoso, num percurso de cerca de oito quilómetros, passando pelas aldeias de Pereiros e Codeçais. Transportava eu a mala e um meu irmão mais novo, o Zé, que me acompanhou até à estação, transportava um saco que continha, entre outras coisas, o fardamento camuflado que tinha trazido para a minha mãe o ajustar no tamanho.

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O meu pai fez questão de me acompanhar até à saída da aldeia, até ao Barreiro, já com a aldeia de Pereiros à vista, lá ao fundo. Até ali acompanhou-me calado, de semblante triste, sem derramar uma lágrima. Aliás, era um homem de poucas choradeiras. Chegada a hora da separação, subitamente, irrompeu destroçado em alto choro, envolvendo-me num longo e apertado abraço. As emoções e as lágrimas misturaram-se por alguns instantes, após o que nos desenlaçámos e, de lágrima no canto do olho, juntamente com o meu irmão, lá segui rumo à estação. Era a reacção de um pai — como hoje o compreendo! — que via partir um filho, a sua companhia habitual no trabalho desde tenra idade, com fortes probabilidades de o não voltar e ver. Palmilhados uns bons cinco quilómetros por caminhos sinuosos, depois de termos passado pela aldeia de Pereiros de Ansiães, em direcção à estação de Codeçais, ao chegarmos à aldeia com o mesmo nome situada nas arribas do Tua, a cerca de dois quilómetros da referida estação, encontrámo-nos casualmente com um casal ali residente, a D. Teresinha e o senhor Tuálpio. Ela era professora na minha pequena aldeia já durante alguns anos, de cuja convivência este casal se tornou amigo da minha família. À boa maneira transmontana, já não nos deixaram continuar a viagem sem passarmos lá por casa.


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Naquela manhã fria de Dezembro, o lume crepitava na lareira e, num ápice, sem perguntarem se queríamos ou não comer, colocaram um pedaço de entrecosto do porco sobre as brasas que, momentos depois, com um cheirinho de crescer água na boca, nos foi gentilmente servido, acompanhado do bom vinho lá de casa. Já com o estômago aconchegado e com o corpo bem aquecido pelo braseiro da lareira, reiniciámos rapidamente o percurso, já que o transporte não esperava. À aproximação do comboio, na estação de Codeçais, foi a vez de me despedir do meu irmão Zé, que, como referi, me acompanhou até ali a ajudar-me a transportar a bagagem.

Estação de Codeçais na linha do Tua, hoje votada ao abandono, palco de emoções da minha partida. (Foto de Manuel Joaquim).

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Entrei na carruagem entre a fumaça da locomotiva e parti então de alma destroçada após todo este turbilhão de emoções fortes, consciente de que o meu regresso seria uma incerteza. Havia fortes possibilidades de não voltar a abraçar todos os entes queridos que choraram a minha partida, de quem me acabara de despedir. Viajei assim melancólico, em silêncio, entregue a estes pensamentos, recostado a uma das janelas da carruagem, embalado pelo balançar e pelo ruído do atrito do comboio na sinuosa linha, almejando seguir um dia o sentido das escarpas do vale do Tua e do Douro que passavam ligeiras diante do meu olhar distante, por entre a cortina de fumo deixada pela negra máquina a vapor. À passagem pelo Porto, e durante a espera de ligação do comboio rumo ao sul, até Tomar, na zona de Campanhã, era já sentido o ambiente de Natal pela iluminação das ruas e pela emissão sonora de músicas alusivas àquela época. Bem sabia que esta festa da família que o ambiente anunciava, para mim, era apenas uma miragem. Nesse dia já me encontraria em local de latitude mais baixa, sob o calor abrasador das proximidades do Equador.

O levantamento da moral Chegado novamente a Tomar, durante três dias foram ultimados os preparativos da partida rumo à Guiné, perío-


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do em que nos foi distribuída a insígnia do Batalhão 4512 a que passámos a pertencer, apelidado de “Os Setas”.

Crachá do Batalhão 4512

O futuro que nos esperava justificava esta iniciativa do comando militar de nos encorajar, cujo estímulo está bem patente nas palavras gravadas no próprio crachá, “FIRMES, CONSTANTES”, e na designação de “OS SETAS”, como epíteto da Unidade. Os militares, por seu turno, correspondendo a esta acção encorajadora, comungavam do espírito de missão em defender a Pátria, bem sabendo que esse patriotismo lhes poderia custar o sacrifício da própria vida. Esse nobre sentimento é notório neste simples poema escrito na época por um dos enfermeiros da minha companhia, o António Bastos.

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Poema ao Batalhão 4512 do ex-enfermeiro António Bastos.

Contribuía também para a elevação da ética militar, o sentimento de todos os sectores da sociedade em geral da época, com destaque, entre vários, para o meio artístico musical, que editou vários registos fonográficos cujas letras exaltavam, sublimavam, a missão do soldado português, como, por exemplo, entre muitos outros:


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“Mãe”: Conjunto de Oliveira Muge; “Adeus Guiné”: Conjunto típico Armindo Campos; “O Soldado na trincheira”: Fernando Farinha; “Soldado que vais para a guerra”: Maria da Nazaré; “Na hora da despedida”: Ada de Castro; “Marcha do soldado português”: João Maria Tudela; “Despedida”: Conjunto de Maria Albertina; “Avé Maria do soldado”: Conjunto de Maria Albertina; “Fado do Zé-ninguém”: Max; “Onde o sol castiga mais”: Paco Bandeira.

Sendo certo que, também, alguns deles, evidenciavam a saudade e a melancolia associadas à separação dos militares ao convívio dos seus entes queridos ao longo de toda a comissão em campanha.

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