BELINO COSTA COLEÇÃO “NOTÍCIAS DE BUSTOS”
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“Troviscal Republicano, Banda Excomungada, Clero Interdito (1922-1939) ”, de Silas Granjo. Publicação Sítio do Livro. Lisboa, 2010. ISBN: 978-989-20-2033-4 www.sitiodolivro.pt
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“Périplo de África no Paquete Vera Cruz” (Diário de Viagem-1956), de Vitorino Reis Pedreiras. Publicação Bubok Publishing S.L. Lisboa, 2013. ISBN: 978-84-686-3107-3. www.bubok.pt “Terra adotada: relato de um emigrante", de António Francisco dos Reis. Publicação Sítio do Livro. Lisboa, 2016. ISBN: 978-989-8741-64-0 www.sitiodolivro.pt
Começamos por ser a intercessão de dois pontos: tempo e lugar. Dois pontos que nos moldam, antes mesmo de termos consciência de nós. Em “Crónicas da Terra”, Belino Costa regressa a esses pontos de partida, num reencontro com o passado que é mais do que uma autobiografia ou um memorial. É uma homenagem a uma geração de homens e mulheres, e ao seu modo de vida. Por isso confessa: “Os meus heróis foram os meus familiares e vizinhos. Tinham diferentes nomes e uma única condição. Eram lavradores.”
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CRÓNICAS DA TERRA
CRÓNICAS DA TERRA
“Proclamação da República, de Lisboa a Oliveira do Bairro” de Belino Costa e Carlos Braga. Publicação Sítio do Livro. Lisboa, 2010. ISBN: 978-989-20-2069-3 www.sitiodolivro.pt M
BELINO COSTA
Belino Costa nasceu em Bustos, Oliveira do Bairro, em 21 de Maio de 1956. Desde muito jovem se interessou pela escrita iniciando a sua colaboração no Independência de Águeda, como cronista, aos 17 anos. Frequentou (1975-78) o curso de jornalismo da Escola Superior de Meios de Comunicação Social, em Lisboa, tendo feito estágio na redação do semanário O Jornal. Ali iniciou a carreira como jornalista trabalhando em publicações do grupo editorial como o Jornal da Educação e o semanário Se7e. Integrou também a equipa de colaboradores do Expresso, A Capital e Semanário. Sócio fundador da Rádio Província (Anadia) colaborou em várias estações de rádio nacionais como o Rádio Clube Português e Antena 1. A procura de novos desafios levou-o a abrir no Bairro Alto, em Lisboa, o bar Os Três Pastorinhos (1987) que se transformou num dos símbolos da "movida" lisboeta dos anos oitenta. Paralelamente realizou múltiplas viagens atravessando os Estados Unidos, percorrendo a costa do Pacífico, incluindo o Alasca, aventurando-se pela Ásia. A Aventura Desportiva, de Gustavo Pires (edição da Câmara Municipal de Oeiras, 1990) integrou-o na lista dos portugueses que então se distinguiam como “homens de aventura.” Em 2004, num "regresso às origens", iniciou a publicação do blogue Bustos do Passado e do Presente que, um ano depois, deu origem ao Notícias de Bustos (2005-16) onde desenvolveu um vasto trabalho como cronista e jornalista. Desde então que se dedica à investigação da História da região onde nasceu. Em 2010 iniciou a edição de livros dedicados a autores e temas locais sob o título, Coleção Notícias de Bustos. “Crónicas da Terra” é o quinto título que publica no âmbito desta coleção.
Crรณnicas da Terra
edição:
Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) Crónicas da Terra autor: B elino Costa título:
capa:
Ângela Espinha Paulo S. Resende
paginação:
1.ª edição Lisboa, outubro 2018 isbn:
978‑989-8867-36-0 442913/18
depósito legal:
© Belino Costa
publicação e comercialização
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Belino Costa
Crรณnicas da Terra
Para a Ana, Beatriz e Leonor
Índice Manifesto Breve
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Escola (muito) Primária
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Filho do Filho do Serafim Maria Peralta Não Gostava de Bruxas Pistola de Fulminantes Campos de Milho
A Banhos na Costa Nova Julieta
O Preso nº 26.884
As Grandes Fraternidades
17 37 47 55 59 67 79 89
Aveiro, Esperança e Medo
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O Bulício, o Tejo e a Sorte
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No Limiar de Outros Tempos
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Da Noite Para o Dia Desenraizamento
Construção da Paisagem Paisagem com Sinos
Alcunhas e Cabanais
As Árvores e os Frutos Regresso à Adega
Janela com Vista Para Sempre
Legendas das imagens
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137 147 159 165 175 181 187 195 199
“A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.” Erostratus, in Páginas de Estética e Teoria Literárias. Fernando Pessoa.
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Manifesto Breve Esta gente é feia, rude e diz muitos palavrões. Grita merda e caralho como quem diz bom dia ou simplesmente tropeça. Esta gente é bruta e suja. Tem dentes que nunca conheceram a cadeira de um dentista, e os rostos são ásperos, estão macerados pelo sol, pelo frio e pelo esforço. Trabalham de sol a sol e da vida não têm outro entendimento. Só o trabalho os justifica, só ele os representa. Semear, cuidar e colher são uma única condição e a maior razão de ser. Esta gente transporta, nas unhas e nos poros, terra escura. A mesma que lhes dá as batatas e o milho e as couves, que é o mesmo que dizer: o sustento. Os calos nos pés e nas mãos gretadas, a espinha torcida, as rugas na testa e no rosto, são marcas da constante batalha contra os elementos, tão naturais quanto a chuva, o vento e o frio ou o estrume com que alimentam os campos. Esta gente refila, pragueja e persiste. Por maior que seja o carrego ou a dureza do solo. Dobrados sobre a terra vivem,
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mas nunca se vergam. Podem queixar-se das cruzes, mas do trabalho não. Esta gente canta quando a faina aperta e o céu troveja. Transporta uma alegria que se sente e se partilha, mas não se explica. Experimenta-se. Quando as mulheres se juntam e ombro a ombro, em cadência certa, lançam a enxada contra o solo ressequido de uma vinha, há no gesto, há no esforço, há no ritmo, tal força, tal partilha, que todas se tornam uma só. Avançam volvendo a terra, transformando o esforço e o suor em alegria. Basta um copo de água para aplacar a sede, uma cuspidela nas mãos para sossegar o ardor, e logo os rostos se inundam com um sorriso de vitória. À noite, depois de um dia de trabalho, quando as carradas de milho se reúnem no pátio, todos os vizinhos se juntam porque sempre se acode a quem precisa. Umas lâmpadas trémulas iluminam a gente que escapela as grossas espigas, e há no ar uma energia, mistura de risos, piadas e palavrões, que o descamisar se transforma em festa mesmo que não surja um tocador de concertina. Mas o grande júbilo, o maior de todos, assinala o fim das vindimas. Quando nas vinhas já só se contam os bagos do rebusco, enfeitam-se as dornas e os carros dos bois. Entre cânticos regressam às adegas, sabendo que em breve se reunirão em volta de uma mesa, recebendo essa recompensa que dá pelo nome de adiafa. Bem podem ser apelidados de labregos porque palavra tão simples não os incomoda ou perturba. São gente da lavoura, partilham a sensibilidade dos cultivadores. É do trabalho que nasce a felicidade. Não que falem de tal coisa, pois ninguém aspira à felicidade, o que é isso?
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O importante é ter saúde, pois só assim se pode fazer frente à vida. Que é labuta. Cresci com esta gente. Os meus heróis foram os meus familiares e vizinhos. Tinham diferentes nomes e uma única condição. Eram lavradores.
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Filho do Filho do Serafim “De quem és tu filho, meu menino?” Naquele tempo não me era reconhecida identidade própria ou uma existência autónoma. Como ainda não era considerado uma pessoa, chamavam-me criança que o mesmo era dizer, aspirante a ser gente. Aos adultos pouco interessava o meu nome, essa irrelevância. “De quem és tu filho, meu menino?” A pergunta vinha lá do alto e o instinto aconselhava-me a responder sem mostrar arrelia, “sou filho do Manuel Costa”. A ver se assim se resolvia a questão e me deixavam em paz. Engano meu, na verdade tal resposta só ajudava a multiplicar as dúvidas e as irritantes perguntas. Fiquei assim a saber que Manuel Costa não era nome exclusivo. Havia outros, pelo que a minha explicação não permitia uma inequívoca identificação. Espantava-me aquilo. Era confuso imaginar diferentes pessoas com igual nome, vivendo perto umas das outras. Pobre carteiro!
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Vergado perante a complexidade do mundo adulto, fixei o olhar nos sapatos. Foi quando me inquietaram com nova interrogação, “quem é o pai do teu pai, o senhor teu avô?”. Como se eu não soubesse que o pai do meu pai era meu avô! Apesar de ser tomado por estúpido, para evitar mais aborrecimentos, respondi sem tirar os olhos do chão, “Serafim…” Não foi preciso acabar a frase porque, a avaliar pela reação, o único Serafim que havia lá na terra era o meu avô. Só assim se explica a convicção com que o meu interlocutor exclamou, “és filho do Manuel do Serafim!” No início com alguma indiferença e depois com algum entusiasmo, compreendi que a minha identidade se confundia com a do meu pai, da mesma forma que a dele se confundia com a do meu avô. A partir de então passei a responder tendo em conta o laço geracional, “sou o filho do Manuel do Serafim”. Tanto bastava para me assegurar um lugar à mesa de café, mas só no caso de sobrar alguma cadeira depois de todos os outros se terem sentado. O que constituiu um admirável progresso. Quando chegou o tempo de ir para a Escola e se começaram a interessar pelo meu nome, decidi manter a versão. Se me perguntavam, “como te chamas?”, respondia, “sou filho do Manuel do Serafim”. Dizia-o para poupar tempo e explicações. Assim não me via constrangido a ter que soletrar o meu nome. Eu dizia Belino e eles entendiam Avelino, Celino, Pelino, e mais uma catrefada de nomes acabados em Lino, coisa que acabou por se transformar em verdadeira arrelia. Foi para acabar com tal constrangimento que optei por assumir a definitiva condição de “Filho do Manuel do Serafim”, esse porto seguro. Por um lado simplificava e por outro percebia que isso
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me valorizava, fazia-me gente aos olhos dos “maiores”. Foi o que confirmei, sem margem para dúvidas, no dia em que de visita à Feira de Março, em Aveiro, me perdi. Rodavam os carrosséis sonoros e luminosos, borbulhava o óleo onde ganhavam forma as farturas, espalhando um cheiro doce pelo ar. Com canela. As cores, as músicas, os odores e a correria das gentes saltando de diversão em diversão, ou refasteladas nas barracas de comes e bebes, constituíam um espetáculo de imparável sedução. Perdi-me pois, de tão atento às novidades, de tão curioso. Por causa do rodopio de cheiros e sons, do saltitar dos cavalinhos nos carrosséis, me esqueci da mão familiar e avancei sem perceber que me afastava. Afinal, só queria aproveitar uma nesga para espreitar o que se escondia por detrás das paredes pintadas com bruxas e dráculas onde rolava o comboio fantasma. Caminhei chamado por uma voz convidando “o estimável público para uma viagem ao susto”. Pumba! Foi um choque frontal, o coração encolheu-se no peito quando dei por mim a olhar em redor sem descobrir qualquer rosto familiar. Nesse mesmo instante pararam os carrosséis, silencioso ficou o comboio fantasma, e tudo o que existe no universo se esvaiu num oceano de incredibilidade. Corri sem sentido. Virei à esquerda e, sem parar em frente do Poço da Morte, fui na direção das luzes amarelas anunciando “Farturas”. Ali estaquei, sem forças para fazer andar as pernas. Os olhos fixando as filas das lâmpadas brancas e amarelas brilhando, brilhando, brilhando sem parar. Não precisei de muito tempo para confirmar as minhas suspeitas: estava irremediavelmente perdido. Tremiam as pernas, pulava o coração. O fio de uma lágrima bordejava-me os olhos, descia pelo rosto.
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Mostrava uma tão óbvia expressão de pânico que um senhor, que por ali passava, me interpelou: “Estás perdido?” Acenei que sim. “Onde estão os teus pais?” Não sabia. Mas ganhando um novo alento logo me expliquei: “Sou filho do Manuel do Serafim. O senhor leva-me à casa do portão grande?” Dera a informação necessária e fundamental. O homem colocou a mão direita sobre o meu ombro, era uma mão larga agarrando-me como uma pinça. Depois conduziu-me até à cabine de som onde um senhor gordo, muito encarniçado, interrompeu a programação habitual para fazer o anúncio que se espalhou pelos altifalantes do recinto: “Perdeu-se um menino que diz ser filho do Manuel do Serafim. Espera que o venham buscar à cabine de som.” Não precisei de esperar muito para reencontrar a família e encerrar tão assustadora experiência. Depois dos abraços e das lágrimas incontidas só tinha um desejo, uma única vontade, voltar para a “casa do portão grande”. Naquele tempo existiam dois mundos separados por um portão de ferro. A fronteira física era pequena, mas aquelas duas portas fechadas sobre si mesmas transformavam-se em montanhas intransponíveis. Daí o portão me parecer gigantesco apesar de, na realidade, ter um porte modesto. Tudo o que eu conhecia, o meu mundo, o meu território, ficava portão adentro. Lá fora vivia o desconhecido e uma série de vizinhos com quem partilhava a rua e a vida. A rua era de terra batida. No inverno enchia-se de poças de água, no verão ondulava de pó. Os rodados das carroças
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e dos carros de bois ajudavam a formar os bordos e o fundo dos pequenos lagos castanhos, pontuando o caminho em tempo de chuvas. Caminhar ou andar de bicicleta era uma brincadeira para um miúdo e um desafio para quem evitasse molhar os pés ou os rodados. Durante o dia as portas das casas estavam sempre abertas. Havia mais mulheres do que homens, e eu era a única criança. As mulheres mais velhas vestiam de preto dos pés à cabeça. Usavam lenço a cobrir os cabelos e cheiravam a fumo e a panelas. Julgo que a maioria nunca terá tomado um banho completo em toda a sua vida, o que se compreende, pois ainda não havia casas de banho ou água corrente. As necessidades faziam-se numa retrete estrategicamente instalada nos fundos da casa, depois da pocilga e do galinheiro. As mulheres mais antigas, como a Rosa do Pardal, só usavam a retrete para as urgências sólidas. Quando se tratava de aliviar a bexiga, faziam-no em qualquer canto do quintal ou na valeta. Abriam bem as pernas lá por debaixo da rodada e longa saia preta, inclinavam os tamancos para o lado de fora, libertando-se sem mais demora ou trabalho. Nos dois lados da rua havia sete casas, o resto era campo. Do nosso lado, colando adega com adega, ficava a casa do Ti Pedro e da Ti Glória, os meus diletos vizinhos que me apaparicavam com pipocas e rebuçados. Logo depois, formando um pequeno gaveto, havia uma casa mais pobre, de adobo sem reboco. Ali vivia Maria Peralta, uma mulher marcada com o ferrete de adúltera porque, em sinal de desafio, cometera o gravíssimo pecado de parir três filhos que nunca souberam o nome do pai. Talvez por ter pisado os terrenos do demo, tinha adquirido uma sabedoria tão especial, tão rara,
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uma força tão peculiar que até era capaz de espantar o mau-olhado e enfrentar forças maléficas. Uns chamavam-lhe feiticeira, outros, bruxa. As casas do outro lado da rua eram feitas de adobos. À esquerda havia a casa e a oficina do Mário da Barroca, o ferreiro. Logo depois vivia a Ti Palmira com a irmã, a Louca, que tinha uma filha, a Vitalina. Eram três mulheres de pouca sorte, enfrentando a dura vida do campo sem ajuda masculina. A seguir a um palheiro, mais recuado, surgia a casa da Rosa do Pardal, uma viúva que partilhava a existência com pintos, patos, galinhas e gatos. Muitos gatos. Fechando a minha área de influência, estabelecendo uma nova fronteira para um terceiro mundo, ficava a casa dos meus avós, Maria e Serafim. Também tinha um portão grande, mas este era de madeira e estava emoldurado por cantaria em pedra que, no arco superior, tinha esculpida uma data, 1916. O avô Serafim foi o meu primeiro companheiro, o meu primeiro amigo. Nem poderia ter sido de outra forma porque ele era o único com tempo para isso. Ao contrário de todos os outros, principalmente dos meus pais que andavam sempre atarefados correndo de afazer em afazer, o avô Serafim, que caminhava apoiado numa bengala, passava muito tempo sentado. Não era grande falador, mas a sua presença, o seu olhar, umas vezes perdido, outras fixando-me enternecidamente, bastavam-me por companhia. Eu ia inventando brincadeiras com paus, pedras e o que demais houvesse em redor. Às vezes fingia de avô e punha-me a caminhar apoiado numa bengala de fazer de conta. Ele ria-se. Tinha bigode como a maioria dos homens do seu tempo. Toda a vida foi agricultor, labutando em meia dúzia de pequenas leiras onde produzia vinho, batatas, milho e o
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demais necessário para alimentar a família. Sabia ler e tinha um pequeno escritório na frente da casa, antes da adega, onde guardava papéis, livros e documentos. No fundo da gaveta da secretária andavam perdidas algumas moedas do tempo dos reis. “Isso não vale nada”, comentava ao ver o meu interesse na efígie de D. Luís e D. Carlos. Nem as moedas tinham valor, por isso estavam abandonadas na gaveta, nem a monarquia era regime admirado. Bem pelo contrário, esta era uma casa de republicanos. No alto da estante do escritório, Serafim Simões da Costa exibia com orgulho o busto verde-rubro da República. Frequentava a terceira classe quando uma estranha doença começou a reter o meu avô no leito. No início não me preocupei. A ter em conta a minha experiência, acreditava que tudo se resolveria tomando comprimidos ou xaropes, prática que podia ser mais aterradora do que a picada de uma agulha. Odiava xaropes! Fui multiplicando as viagens pelo carreiro da missa, a caminho da escola, depois entrei para o ensino secundário sem haver notícias de melhoras. Até que numa segunda-feira, dia 3 de março de 1967, me disseram que não ia às aulas, mas sim para casa do meu primo Luís, em Aveiro. Defendiam-me da dor, protegiam-me do trauma de uma experiência fúnebre. Não foi assim que o entendi. Provavelmente porque era mais fácil alimentar a revolta do que enfrentar a dor. Senti-me enganado e à tristeza aliou-se uma profunda desilusão. Perante os protestos e perguntas insistentes, os meus pais falaram-me da multidão que se juntou para a cerimónia fúnebre, descreveram-me a emoção, o respeito de toda aquela
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gente a caminhar em duas filas paralelas, enquanto a banda filarmónica marcava o compasso. Muitos levavam ramos de flores, muitas flores. Os meus pais nunca me falaram da existência de um Deus capaz de distribuir os mortos pelo céu, inferno ou purgatório. Nunca admitiram a existência de um Senhor, poderoso e omnipresente, a dirigir os destinos do universo. Nunca veneraram santos ou cruzes. Explicaram-me que, tal como as plantas e os outros animais, cumprimos um ciclo de vida que se renova e multiplica com o nascer de cada nova geração. Cada um de nós é importante, quando não mesmo decisivo, por ser um elo essencial no prolongar de uma cadeia de vidas sucessivas. E de mortes. Com eles aprendi o significado, a importância e a beleza dos cemitérios. Ensinaram-me a respeitar os mortos, os construtores do nosso mundo, e a olhar com carinho as suas campas sem mistério. Assim me explicaram que misteriosa não é a morte, mas a vida.
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Escola (muito) Primária Os rostos infantis esborrachados contra o gradeamento do edifício escolar revelavam nervosismo e muita ansiedade. Sem algazarra, com a prudência de quem não quer ser visto, uma dúzia de olhos espreitavam por entre as grelhas de ferro, esforçavam-se por não perderem pitada do que acontecia na rua. Naquela manhã outonal e fria, os rapazes da segunda classe da Escola Primária de Bustos tinham recebido a notícia de que iriam conhecer o novo professor. Enquanto ele não chegava, uns jogavam ao berlinde e ao pião, enquanto outros, como eu, escondiam a aflição enfiando a cabeça entre as grades do recreio. A vinda do novo professor era conhecida de todos, em consequência da morte inesperada do professor Manuel Pires. Eu esperava pelo novo professor com o desdém e a angustiada revolta de quem espreita a chegada de um usurpador. Odiava-o, antes mesmo de o conhecer. A troca era inaceitável.
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Ninguém poderia substituir o professor Pires, muito menos um desconhecido professor da Mamarrosa com o estranho nome de Carriço. Com o rosto entalado entre ferros sussurrava o meu descontentamento: ”Carriço, piço, piço! Carriço, piço, piço!” Quando o substituto chegou, de olhar sobranceiro e cabelos cuidados, bem resguardado numa samarra cinzenta com uma espalhafatosa gola de pelo de coelho, logo me convenci de que nunca iria gostar de tal tipo. O que era uma forma de permanecer fiel ao carinho e à saudade que sentia pelo falecido professor Pires. A minha intransigência foi-se consolidando com o passar das semanas. O professor Carriço não tinha a mesma paixão pelo ensino. A música e o canto eram o seu verdadeiro amor, pelo que assumia com orgulho a condição de vocalista do grupo de baile, Os Faraós. Muitas vezes, tantas vezes, especialmente depois dos bailes de domingo ou das atuações nos arraiais populares, chegava à escola mal dormido e com pouca paciência para a criançada. Irritava-se facilmente e resolvia as questões de indisciplina ou falta de aprendizagem à custa de berros e reguadas. Tal severidade era então muito bem vista e os pais eram os primeiros a incentivar tal atitude: “Se ele se portar mal, dê-lhe, que é para ver se ele aprende!” Não estava habituado àquela filosofia e quando o professor fazia uso da violência encolhia-me, fechava os olhos e, ignorando tudo em meu redor, imaginava o olhar cândido e doce do velho professor Pires, mais os coloridos bonecos com que nos ensinara as primeiras letras. Cinco bonecos que continuavam empoleirados em cima do armário, as cinco vogais com pernas, braços e cabeça.
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Fechado no meu mundo, debruçado sobre o caderno, fingia nem existir. Assim recluso, recuava um ano, revivia o tempo em que, naquela mesma sala, o professor se transformava em maestro e nos ensinava a cantar. Foi na loja do Mestre André Que eu comprei um rabecão, Chiribiribão, um rabecão, Chiribiri-biri, uma rabequinha, Tlim tlim tlim, uma campainha, Tum tum tum, um tamborinho, Plim plim plim, um pianinho, Tiro, liro, lir’um pifarito, Ai olá, ai olé, Foi na loja do Mestre André. A sala de aula, virada a nordeste, era fria e húmida, despida de estampas ou objetos que a pudessem humanizar. Estava organizada em função de uma única parede, uma única verdade. Três filas de secretárias com banco acoplado enfrentavam a secretária do professor, devidamente chegada ao lado esquerdo da sala, de forma a desimpedir a restante parede, onde estava fixada uma ardósia enorme, um quadro preto que era maior do que o susto. Ir ao quadro era sinónimo de enfrentar o terror. Temíamos aquele lugar, tremíamos só de pensar em ficar perante aquela escuridão, à frente de todos, abandonados e à mercê do professor. Tudo podia acontecer naqueles momentos, e quem não tinha a sorte ou sapiência de acertar nas contas, sujeitava-se a algumas humilhações verbais ou até a um dramático puxar de orelhas.
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Era uma situação temível, mas não era o maior castigo, nem a situação mais difícil de enfrentar. Que o digam aqueles que se viram obrigados a sair da escola com um “chapéu de burro” na cabeça, tendo que percorrer as ruas da aldeia, pois só lhes era permitido tirar o chapéu depois de entrarem em casa. O ensino pela humilhação fazia parte da estratégia pedagógica do regime, e os seus líderes não podiam deixar de estar presentes e vigilantes em cada sala de aula. Na parede do quadro preto, bem por cima de tudo, ladeando uma cruz de madeira com Jesus mortificado, destacavam-se as solenes molduras com os retratos de Oliveira Salazar e Américo Tomás. Aquilo metia tanto medo! Salazar mostrava uns olhos severos, num rosto branco com um nariz em forma de bico. No retrato de Tomás sobressaíam a farda com os botões de metal, a condecoração, a fita adornando-lhe o peito e, sobretudo, as dragonas cobrindo-lhe os ombros. O rosto parecia despido de emoção ou inteligência. Aprendera a não gostar daquela gente que, quais donos da verdade e da razão, mandavam perseguir e prender quem deles discordasse. Como os valores da República e o discurso anti-salazarista faziam parte das refeições familiares, foi entre colheres de sopa que aprendi a desprezar Salazar e a alimentar a esperança e a ambição de viver em liberdade. Na Escola Primária de Bustos, o discurso era bem diferente. Guardo o meu livro de exercícios da quarta classe (196566). É de lá que transcrevo dois ditados, textos que tínhamos de ouvir e reproduzir em letra cuidada num caderno de linhas. Enquanto se cuidava da caligrafia e dos erros ortográficos, difundia-se a mensagem, esculpiam-se os cérebros.
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Ditado Os chefes actuais da Nação Portuguesa são o senhor Contra Almirante Américo Tomás e o senhor Doutor Oliveira Salazar. O primeiro é o Presidente da República e o segundo é o Presidente do Conselho. Ocupando os mais elevados postos de comando da Nação a eles compete velar superiormente pelo bem-estar, progresso e engrandecimento da Pátria Portuguesa. Pelas enormes responsabilidades e tarefas que têm de enfrentar, pelos imensos e constantes sacrifícios que o cumprimento do dever lhes impõe, o Chefe de Estado e o Chefe do Governo são credores do nosso ais vivo respeito e da nossa sincera admiração. Em 15 de fevereiro de 1966 o ditado, que no dia seguinte foi repetido sob a forma de uma cópia, era outro, mas a doutrinação repetia-se: Implantou-se a República em Portugal em 1910. Homens de fraca preparação para o Governo ficaram à frente do país com um Parlamento que os partidos políticos desprestigiavam. O povo, desorientado por enganadoras e falsas ideias, deixava-se arrastar para a indisciplina e para a desordem. As forças produtoras da nação eram abandonadas e a administração tornava-se ruinosa. Ao exército faltava disciplina e o povo assistia a constantes lutas partidárias. Era grande o desprestígio de Portugal no estrangeiro. Só uma parte do exército, que
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se conservava fiel aos princípios do mais puro nacionalismo, poderia salvar o país. Curiosamente, o desamor à Escola Primária não se adensou por via de Salazar ou da política. Foi a imagem de Cristo sofrendo na cruz que acabou por muito perturbar a minha inocente existência. Tudo aconteceu de forma inesperada quando, sem aviso ou preparação prévia, o pároco da aldeia, António Vidal, entrou na sala e tomou conta da aula. De batina preta, decorado apenas com um anel branco em volta do pescoço, o sacerdote explicou que estava ali em nome de Deus, que tudo sabia porque estava em todo o lado. Como era impossível esconder Dele um gesto ou uma agulha, o melhor seria não fazermos asneiras, nem sequer pensar nelas, porque até os pensamentos eram analisados pelo Omnipresente. Jesus Cristo, sim, aquele que ali estava sofrendo na cruz. Jesus Cristo, sim, o filho de Deus que criou o céu, a terra e a humanidade. – Vocês são obra de Deus! – clamou o padre erguendo o dedo indicador na direção de todos e de cada um. António Henriques Vidal, pároco de Bustos desde abril de 1954, chegou à aldeia com a fogosidade dos seus 32 anos. Determinado e impulsivo, assumiu-se como um líder, tendo conseguido levar a cabo o processo da construção de uma nova igreja. Foi pouco tempo depois do Bispo de Aveiro ter inaugurado o novo templo que o padre, derramando glória por todos os poros, apareceu na sala de aula. O jogo de braços, a solene entoação de cada palavra, revelavam bem o prazer que sentia naquele ofício. Sabia pisar o palco e estava determinado em orientar o infantil rebanho.
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– Somos todos filhos de Deus! – proclamou com a certeza de um arauto, começando a passear-se por entre as carteiras, parando em cada uma delas para nos tocar na cabeça e nos benzer com um gesto sumário. Conhecia-nos a todos e melhor ainda às nossas famílias. A mim apelidava-me de Vitorinozinho, por eu ser neto, por via materna, de Vitorino Reis Pedreiras. Mas havia algo de perverso naquela expressão. O meu avô era um ateu assumido que, rompendo com a tradição, deixou de batizar os filhos e, por via deles, também os netos. Fazia questão de afirmar os seus valores. Não entrava na igreja, e nunca perdeu a oportunidade para desafiar consciências. Quando mandou construir um grande edifício em Bustos para funcionar como café, restaurante e hospedaria, face a face com a velha Igreja, não só ergueu uma cúpula tão alta quanto a torre da capela, como lá colocou um irónico manifesto, a estátua de Ceres, deusa das colheitas e do amor maternal. Como é bom de ver, o Padre Vidal não apreciava estas heresias. Talvez por isso, naquela manhã, quando se aproximou da minha carteira parou, fitou-me sem cerimónia. Depois rodou a cabeça por toda a sala e retomou o discurso, que não terá sido muito diferente daquele que agora improviso: – Quando uma criança vem ao mundo, os pais devem batizá-la. Esse é o sagrado sacramento que nos abre as portas do Céu. Pelo batismo, Deus dá-nos o seu Espírito e adota-nos como filhos… Deixou a frase em suspenso e, colocando a larga mão na minha pequena cabeça, acrescentou em tom condoído e triste: – Quem não é batizado não pode alcançar a vida eterna, sujeita-se a sofrer no inferno.
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Aquilo soou-me pior do que uma ameaça, mais parecendo uma maldição. Ele deve ter sentido o meu encolhimento, o meu arrepio, porque exclamou: – Mas todos têm o direito ao arrependimento. Também Pedro, depois de por três vezes ter negado o seu mestre, chorou lágrimas de arrependimento. Também eu quase chorava, petrificado debaixo da garra que me cobria a cabeça. Aquele peso, aquela ameaça caiu sobre mim como um raio, a ponto de jurar que nunca mais voltava à escola. Tudo porque os meus colegas lançaram uma ladainha com que não paravam de me atenazar: – Ai-ai, não és batizado! Ai-ai, vais parar ao inferno! Não partilhei com ninguém os pesadelos que tomaram conta das minhas noites e não encontrei coragem para faltar às aulas. Sem outro remédio, lá me sujeitei ao infortúnio de ir à escola mas, em manifestação de revolta e desinteresse, deixei de fazer os trabalhos de casa. Fazê-los para quê, quando raramente o professor se lembrava de os corrigir? Isso não me livrou da constante arrelia: – Ai-ai, não és batizado! Ai-ai, vais parar ao inferno! Tão grande era a pressão e o desatino que, tomado de infernal angústia, decidi entrar na igreja nova. Queria conhecer a casa de Deus e do padre Vidal. Se há momento que a minha memória guarda é aquele em que, com o coração aos pulos, empurro a grande porta lateral da igreja que logo se fecha atrás de mim com estrondo. Pam! Fez-se silêncio. Parecia que tinha entrado no além. Não havia vivalma, só os bancos corridos e uma cruz na parede do altar. Dei três furtivos passos e senti-me incapaz de continuar. Não sabia como me comportar em tal território. O templo, amplo mas austero, intimidava. O silêncio não tinha
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comparação. Era total, estendia-se como um manto pela grande nave, enregelava. Sentindo-me estrangeiro, ser furtivo em casa alheia, dei meia volta e saí dali. A correr. Nessa noite comecei a andar atrás de minha mãe, até encontrar o momento oportuno para lhe perguntar: – É verdade que quem não é batizado vai para o inferno? Esmeraldina, minha mãe, olhou para mim surpreendida e respondeu-me de forma tão clara e simples que logo afugentou todos os meus receios. – Não te preocupes. Estás batizado por mim, que é um batismo tão bom ou melhor que o do padre. Para o inferno não vais, podes ter a certeza. Suspirei de alívio. Desfez-se o temor, acabou a arrelia e voltei a ter um sono descansado.
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Maria Peralta Não Gostava de Bruxas Era uma casa pequena, quatro paredes de adobos com telhas de barro por cobertura. Ao invés de todas as outras, era a única que não estava virada para a rua. Posta de lado, talvez por falta de espaço, mais fazia lembrar um arrumo ou um curral do que uma verdadeira habitação. Mas era. Ali vivia Ti Maria Peralta sem eletricidade ou água corrente. Nunca se queixou, agradecida por dispor daquele pequeno retângulo em chão de terra batida, dominado por uma tosca chaminé encostada a uma parede escura, de tão comida pelo fogo e pelo fumo. Não havia janelas, só uma porta de madeira muito carcomida na parte de baixo. Ali criou os três filhos sem nunca lhe faltar espaço que, apesar de pequeno e único, servia de cozinha, de sala de estar e de jantar, de quarto de dormir, de despensa, arrecadação, e até de consultório. “Graças a Deus tenho um teto.” Benzia-se, agradecida. Dizia que tudo o que tinha, que era mais do que suficiente,
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Belino Costa
o devia a Deus. A Ele agradecia os legumes, os tubérculos e as frutas que produzia na leira encostada à casa. Sem esquecer a água do poço e as duas galinhas. Ti Maria Peralta sentia com tal intensidade a presença de Deus, em todas as coisas e no próprio ar, que estava possuída por uma força superior. A esta convicção profunda acrescentava alguns conhecimentos decisivos. Sabia de cor rezas e benzeduras, conhecia tratamentos capazes de eliminar maleitas tão complexas como a espinhela caída e o mau-olhado. Alguns chamavam-lhe feiticeira ou bruxa, mas a maioria sabia fazer a distinção. Nem feiticeira nem bruxa, Ti Maria Peralta era curandeira. Em nome de Deus e da Virgem Maria. Uma curandeira não se mete com as questões do destino, nem lê o futuro. Limita-se, tal qual se faz na medicina, a aplicar “tratamentos”, ainda que estes incluam pingos de azeite, queima de incenso e alecrim ou o uso de folhas de oliveira. Sem esquecer a decisiva importância das rezas e do respetivo ritual de repetição. Deus te fez, Deus te criou, Deus te tire todo o mal que no teu corpo entrou, pelo poder de Deus e da Virgem Maria em seu louvor, Padre-nosso e Ave-Maria. Ti Maria Peralta não só recusava o título de bruxa como dizia não acreditar em bruxarias. Mas não criticava nem denegria quem fizesse tal trabalho. E havia. A bruxa mais famosa chamava-se Rosa do Pedro e morava no Sobreiro, próximo da capela de S. João. Ali exercia a sua arte de adivinha porque, para além de conhecer rezas e benzeduras, era capaz de comunicar com o passado, o presente
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e o futuro. Os seus olhos sabiam ver o que ninguém alcançava, os seus ouvidos escutavam vozes que mais ninguém ouvia. Tinha tão vastos poderes que era capaz de ler o futuro nas cartas, no grão-de-bico e nas borras do vinho. Viajava no tempo e comunicava com os espíritos. Era grande o movimento em redor da casa de Rosa do Pedro. A sua fama passava além Caramulo e havia gente que vinha de longe, em carros de praça, para a consultar. Certo dia, de rotina, recebeu em consulta um agricultor de Ancas que queria saber quem lhe tinha feito mal ao boi, atacado por súbita doença. O pobre animal não só suava muito, como rangia os dentes e dava sonoros estalidos com a língua, salivando abundantemente. Aquilo cheirava a coisa do demo e o homem estava certo de que ali havia mão malvada. Rosa do Pedro não o contrariou, bem pelo contrário. Depois de muito ouvir e perguntar, recolheu-se por breves instantes atrás de uma cortina. De lá voltou para informar o exaltado senhor que a razão do problema estava na vizinha. Nenhum deles suspeitou que o boi poderia ter febre aftosa. O homem não precisou de mais ouvir. Saiu dali disparado, chegou a casa e carregou a caçadeira com dois cartuchos. De forma discreta, escondido por um muro, caminhou pelos fundos da casa até ao quintal da vizinha que, por desgraçada coincidência, estava sentada na casa da eira a limpar vides. A pobre senhora estava tão ausente que não se apercebeu de nada. Nem tempo teve para se despedir desta vida, tal a eficácia do tiro. Morreu sem dar conta e sem razão. A razão, de acordo com o confesso assassino, fora a Rosa do Pedro. Culpava-a por ter cometido tal loucura, explicando à polícia que a verdadeira assassina era a bruxa.