O Berço onde Nasci

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A MARCA DE ÁGUA DE UMA POETA

Quem vem seguindo o trabalho poético de Marta David reconhece facilmente a marca de água

A Marta constrói um universo de palavras e sentidos onde poderemos encontrar a ressonância de algum surrealismo e dos seus processos aglutinadores de ideias e imagens. Neste novo livro ela procura recuperar memórias de um passado real e reinventado, uma vez

Marta David

da sua oficina poética.

que toda a memória é “mentirosa”, redesenhada, acrescentada, reconstruída. Para essa recons-

Ponte de Lágrimas (2006)

Português - Inglês, na Faculdade de

O Berço onde Nasci

Letras de Lisboa, e mais tarde o Curso de Formação Musical do Conservatório.

No seu ofício por vezes inquietante de palavras encantadas, ela fala-nos no “branco inquebrá-

aulas de Educação Musical. Publicou

vel”, na “divina matemática”, no “pecado que é a chave/de uma nuvem casta”.

contos em revistas e jornais e os livros

“campa de sois antigos”, da “árvore sem idade”, de lúcifer anjos/ castas de obreiros benfeitores e malfeitores/ universo”, mas não se refugiando apenas nos tempos antigos e capaz também de convocar uma nova mitologia ao falar da “morada de email/ do som primordial da criação” e

O Berço onde Nasci

Rainha da Aura Digital (2003)

Literaturas Modernas - variante de

Tem-se dedicado ao ensino, dando

expressas numa cavalgada mágica dos seus símbolos maravilhosos e terríveis, falando da

POESIA:

Concluiu a Licenciatura em Línguas e

trução a Marta pergunta-se que “alfabeto exumar/ da arca dos tesouros ancestrais”.

Encontramos ainda nesta poesia a ressonância de uma espiritualidade de diversas origens

Obras de Marta David

Marta David

Marta David nasceu em Coimbra.

de Poesia Rainha da Aura Digital, Ponte de Lágrimas, Quando um Beijo for uma Loja sem Comércio, A Rapariga da Trave Sobe ao Céu e o Berço onde Nasci.

colocando lado a lado “o leopardo nas veias” com “a mão da roda gravada no ADN.”

Quando um Beijo for uma Loja

É encantatória a música desta poesia. Transporta-nos para fora do quotidiano, faz-nos dançar

sem Comércio (2015)

“para além de limites ilimitados”, arrasta-nos através das “sombras do corpo/ embargado pelo

A Rapariga da Trave Sobe ao

nevoeiro”. É uma poesia que exige uma entrega intensa aos seus leitores uma entrega que os

Céu (2016)

deixe despojados à frente da palavra, do verso, do voo sem destino marcado.

O Berço onde Nasci (2017) José Fanha

POESIA


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O Berรงo onde Nasci Marta David 2002

P OE SI A

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FICHA TÉCNICA edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: O Berço onde Nasci autora: Marta David capa: Laura Malaquias paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, janeiro 2018 isbn: 978-989-8821-54-6 depósito legal: 429395/17 © Marta David

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

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VersĂŁo revista em 2007, 2010 e 2011 e acabada em 2017

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I

Às quatro da manhã, arranco ervas daninhas do arrozal. Mas o que é isto: orvalho do campo, ou lágrimas de dor

“Desfolharam-se as rosas sobre o rio e, passando, espalharam-nas os ventos, como se o rio fosse a couraça de um guerreiro rasgada pelas lanças, por onde corresse o sangue das feridas”

in Bebedor Nocturno, Herberto Helder (poemas mudados para português) 7

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linguagem das pedras palavras em silêncio jorrando da sílaba que dá nome e corpo à hóstia palavras que dão à luz um alvo linho e tecem halos de sete pétalas anelam o espírito o supremo lótus em vigas de pureza e perfeição sustentando da raiz à copa a vida, a ascese do homem e do cosmos em expansão palavras nutridas das nostalgias dos pássaros a quem roubaram as asas para que pudessem voar e os faróis da patrulha acendem-nas dão germe ao fogo alumiam a busca da última ave da montanha perdida na cidade regeneram-na na repartição de finanças que lhe contabiliza o sonho em movimentos e balancetes que transmutam palavras em números e rituais numa alquimia de notas de ouro divino enviado por um joalheiro celestial 8

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sai um diploma celestial versado na circunvalação dos números: das nove musas que nasceram de Zeus por hora de nove noites de amor dos anjos hierarquizados em nove coros ou três tríades versando a ordem, a perfeição, a unidade nove é o números das esferas celestes nove são os degraus do trono imperial chinês e as portas que o separam do mundo exterior mundano nove são os céus que se opõe às suas nove fontes morada dos mortos nove são as planícies dos céus chineses e 9999 cantos nove são os céus budistas as patrulhas vendo a ave a verter o sol do gelo a soletrar vida na plenitude em cada passo obraram leis legitimaram cada voo visto do portal da cidade para a selva onde os homens podem beber a seiva dourada do leão que fala a linguagem das pedras e onde o sol dilui os números obrando asas invisíveis somente sentidas pelo veludo da erva

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face(rewind) sonho de criança ser mago numa floresta de anéis envolvendo a verdura de um facebook de luas escarlate a acertar os ponteiros do desejo pela alquimia do sonho virtual na hora em que os lençóis esvaziam a dor e a fonte de água verte beijos abraços de mercúrio que curam a densidade da água obscurecida por uma renascida lua negra

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madrugada madrugada turva de quem por desejar o cume decepa o branco do olhar

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assinatura do universo grutas imoladas em machados de vento donde melodias surdem memórias exumadas dos túmulos e um vento vem, desterra as vestes liberta-se do êmbolo artesanal em chamas desabridas derrama o nu as almas destemidas à direita do sol no berço e no túmulo dos vivos e dos mortos no lugar onde reside a águia nesta aridez de céu e de vento noturno que o norte em riste e ondeante soletra liames unem jatos piramidais de pulmões que expiram o sémen em lanças de dardo de granizo fogo e chuva – pulmões que se nutrem de anéis abraçando o poder renovador do vento não temem as sentinelas os guerreiros das muralhas entendidos do coração ágil e destemido das montanhas o coração do nu que se revela em verdade para além do tempo vestido de tinta listrada dissolve-se num lago em essência cósmica transmutada 12

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são almas nuas que vestem o ar puro e glacial do inverno trazem no corpo um traje urdido à medida da brisa do espaço carregam de ácido alimento a dor ignorada dos acorrentados e montados na valentia dos seus cavalos libertam-nos em redemoinhos de vento – libertam o olhar ágil do sono acordado da arca dos segredos estelares em espera que vêm para afinar o alicerce vulcanizar o homem são machados mas podiam ser amantes da sombra da terra descem ao mais profundo átomo à ignorância da luz em si – crentes que de seus noturnos lençóis brotarão pérolas renascidas no fogo das águas tombando dos céus perfurarão a matéria e renascerão purificadas em feto no ritmo cósmico e lunar desde os lírios em flor à estação das uvas por vindimar ocultas em suas conchas as pérolas desabrocharão em relâmpago únicas e ímpares 13

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numa futura coroa celestial de verdade e pureza suspensa e intercetando o eixo da terra sob os alicerces estelares jamais passíveis de olvidar almas que alumiarão os olhos vítreos e lilás da maresia e os elevarão no acordar do sonho ao círculo luminoso solar de erva olhos portadores da lentidão firme dos abraços da luz da aura dos nomes vindouros assinados pelas mãos do universo pelas dádivas de almas em espiral subindo em maculados vasos de cristal

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arauto do sol do lençol dourado do sol decepado suas penas descem e desferidas regressam ao túmulo do céu e de novo à terra para ascender ao cume da montanha para exaurir a luz doada e descendo ao círculo das trevas oferecê-la ao fogo divino às pupilas da selva – há sempre um rio de um só curso de água com dois sentidos um para o tapete discorrendo em alvo manto da aura de uma nuvem de éter – outra para o lodo da terra e há sempre um pássaro uma alma um deva que busca a luz na compreensão e a oferta aos homens de sentidos alicerçados na loja que vende o bilhete de disputa para o campeonato entre o sol e o betão

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há sempre alguém que dá vitória ao golo marcado na baliza desde o meio do campo onde se intercetam as retas de norte a sul de ocidente a oriente no eixo do músculo a interceção de conjuntos a taça recetora da harmonia as janelas do claustro que o sol alumia em sublime visão

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somente somente a seiva o deva da flor no trampolim da manhã poderão amparar o voo do pássaro sobre o telhado de veludo erguendo o sonho da palavra acrobata do lume que arde em estrela no rebordo do papel somente um silvo de vento vestido de vidro púrpura poderá descer à aurora da rua bélica e vadia ao sangue dos dedos diurnos e vegetais e transmutar a tempestade num adro de esfinge e erva arauto de um sol que não assina mas diviniza os homens num suave e lento soar

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alfabeto reinventado o comboio desfila no horizonte parto no túnel donde fugiram as vacas e ficou o vaqueiro a sós com os sulcos do sol abertos pelo chip celestial embutido em mãos robot que mugem as tetas de uma nuvem do leite permanece o alvo o olvidado tempero da terra o segredo primordial da criação transmutado pelos homens de vestes lustrosas vertendo verniz de um barril de éter no posto de abastecimento do gás veio o vigilante da terra que se uniu às sentinelas e aos astros de vestes lilases e devolveu à lua o halo ordenhado luz a uma amora silvestre claridade às células ainda de erva e terra deuses abrigavam o redentor da massa cindida prestes a unir-se em torno de um futuro de nomes anónimos projetados sem régua 18

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onde o sentido perdido do alfabeto das palavras a nudez dos homens vestidos de salinas e mar será perpetrado de sentido noutro planeta noutro universo noutra estrela pela vara de um índigo pastor que fará do euromilhões o golo marcado na baliza de um globo de éter eleito para a equipa do sistema solar

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morada digital da alma nu sem esgrima passeava-se pelo terreiro à espera que o balão de ar aterrasse e o levasse à campa de sóis antigos à árvore sem idade perfumada pelas raízes imóveis do tempo às vestes da romaria às faces rosadas das raparigas inebriadas por um sol sem data rodeando a íris polar os ponteiros de um relógio de sangue as mais vetustas estrelas nu sem esgrima o vazio mundo do tempo era a densidade de sua casa que teletransportava para todos os lugares de prece em coches alugados ao portal dos deuses em forma de ígnea taça a sua casa era a sua alma e a morada digital de sua alma eram canoas de verga sintonizadas com a morada de email do som primordial da criação

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ser-se de acordo com o que se é sonhava palavras para além do cristal do dia em que se lesse tão nítido o amor fora da fechadura da porta do quarto da casa dos filmes e das românticas manchetes nas bancadas – o amor de um cometa em queda que sinaliza outro em ascensão o amor da erupção de um feto na morte das águas que se degola dando à luz a vida no dia que olvida a noite transgredida um amor que ame para além do amor sentido o amor sábio conhecedor da travessia do cântaro de água original das folhas de papiro do deserto de um livro sem nome ornado com um título em manchete de jornal: um amor que também não esqueça de que na senda da vaidade do amor humano o planeta perdeu a rota

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e que isso é ser de acordo com o que se é e ser de acordo com o que se é também é natural

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um novo ADN

queria viajar na cauda de uma estrela sem dono mas cada uma que montava caía na terra ou era cobiçada por ossos e esqueletos por ladrões do brilho alteante dos astros caçadores de heranças batismais do universo – não eram rostos de ecrã impostores da alva solidão de espectadores alinhados na esteira da imagem no conforto de uma pele e de um copo de adega não eram amantes do sorriso do sol num dia temperado de uvas e sal eram apenas o lugar vazio de um embrionário cometa eram a sombra que nenhuma mãe alguma vez concebera e que continha o novo ADN do petróleo para inseminar no útero dos vales e deles extrair-se reinventada a força telúrica da montanha

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ordem imprevisível a folha do teu rosto imperfeito e hexagonal não cabe no círculo do compasso há sempre uma janela aberta por onde a ponta da seta sai e fura o fruto branco te acorda do sonho inacabado e ainda assim a esperança não morre na base da mesa de jantar o lume da vela enxertado no avental aristocrático de tecido de leopardo da governanta de porte estático abriga a rota dos ponteiros do relógio em sintonia com o genoma da alma repõe a desordem ordenada do sonho do sono em notas que fazem soar os derradeiros minutos da chegada dos arautos do luar do alfabeto das sereias dos homens aprendizes bebedores de fundo da verdade original

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viventes sob o abajur iniciático da noite que procede o cônscio mergulho na imperfeição dual dos mortos nas setas do caos da encruzilhada arrumada que dissipa e faz jorrar da ordem imprevisível a viril pureza do sal

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da emoção à ideia, da ideia à forma era um leão solar e um leopardo lunar numa geometria de retângulo de patas frontais e dianteiras uma fórmula de quatro vezes dois a rugir por entre searas nascidas do asfalto – no segredo da ternura sombria na selva recebendo a luz soalheira enxertada nas avenidas eram espelho e sangue de homens tragando remotas vestes de orvalho eram o passado desordeiro eram a pele arrancada e amolecida enxertada em futuros vales eram promessas de vindouros devas esmeris das cidades erigidas sobre mantos e padrões de triângulos alumiando os vértices eram animais mas também homens vestidos pela aurora da pele reinventada no sono de um leopardo telecomandado por cérebros polares que uniam a razão do rugido à emoção da ideia à forma do desejo 26

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cérebros que no trânsito da memória saúdam a mão da roda gravada no ADN do cabo aéreo da pele chamada CIVILIZAÇÃO e o leopardo nas veias no rastro do leão solar era telecomandado a norte pelas coordenadas do GPS – as suas células com duplicado no céu e certidão na terra uniam-nos submetidos a uma dual assinatura em uníssono de esgares de sol e lunares com um traço de vegetação da selva

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berços vindouros bebia na música do rio a dor de saber que a lua foi desviada de sua rota pelos homens e enviada pelo destino à íris remanescente dos deuses bebia-a do ecrã líquido em ritmo de quem chora a cantar e canta porque se não cantar nada mesmo vai mudar a galope pelos montes buscava a dor na alma dos círculos de água remanescentes na fonte de luz que rompe com o metal dos cordões e seca as fronteiras da pele fundidas no sangue moldando o pensamento a emoção o desejo ao uno guardanapo de linho da taça original perdidos os limites entre o terreno e celeste cantar uma alma ginasta de vara derrubava a montanha inamovível emprenhando-se da força subtil 28

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da água de um cântaro ainda em magma a arder nutrindo-se das sementes das agulhas e da resina do imortal pinheiro ileso às tempestades e ao vento sabia que um dia em sangue um anjo sonhado doutra galáxia exumaria alagado na pele de um vestido branco escorreria a segredar o rosto os sons de vindouras eras em que a luz das janelas das casas as cortinas se abririam em flor em que no ecrã as notícias seriam o programa que enche de luz os rostos e os sorrisos dos berços vindouros e o telecomando da televisão seria o piloto de uma nave que transmutaria o som vazio e nu da lua de rota perdida e renascida na unidade e nos esgares de veludo e do prazer da navegação de cada dia 29

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