O Homem que Não Gostava de Música

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CONTOS

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FICHA TÉCNICA O Homem que Não Gostava de Música. Histórias e outros Sonhos. Contos AUTOR: Victor Marques dos Santos EDIÇÃO: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) PAGINAÇÃO:

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TÍTULO:

Alda Teixeira Carolina Quirino

ARRANJO DE CAPA:

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1.a Edição Lisboa, fevereiro 2019 ISBN:

978-989-8821-86-7 450283/18

DEPÓSITO LEGAL:

© VICTOR MARQUES DOS SANTOS

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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500.

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ÍNDICE 7

O Homem que Não Gostava de Música . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A Casa de Xisto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Provérbios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

45

Um Convite ao Anoitecer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O Acaso e a Chuva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A Pala do Boné . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Mudar a Vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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“Escapade” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

131

“Le Caprice des Dieux” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O Futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

167

A Sabedoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Um Bem Maior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

183

O Livro dos Desencontros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

205

O Regresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

219

Amanhecer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

231

Em Roma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

245

As Férias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

257

Talvez em Setembro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Epílogo – Ouvir o Silêncio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Procurar uma justificação para escrever poderá levar-nos à conclusão que não é preciso encontrar motivos ou razões, para além das que decorrem da própria vontade. Acontece, porém, que esta é apenas uma das condições necessárias, mas não suficiente. Precisamos, também, de um contexto propício e de disponibilidade intelectual. Quando esses elementos estão reunidos, sentimos que o acto de escrever se torna uma exigência imperativa, uma necessidade absoluta. Esse momento surge quando percebemos que existe algo que nos transcende e que precisamos de transmitir. Quando sentimos a inevitabilidade de partilhar aquilo que o nosso íntimo já não consegue conter por mais tempo. Algo que, superando a fragilidade intrínseca da essência humana, confere sentido a este nosso irrepetível tempo de passagem. Reconhecemos esse momento quando, finalmente, nos dispomos a prolongar o transitório, fazendo perdurar para além da nossa efémera existência, o pouco que trazemos connosco, mas que consideramos ser importante demais para ficar definitivamente ignorado, confinado ao silêncio secreto da nossa vivência interior e da dimensão finita da nossa humilde condição terrena. Escrever adquire, assim, a expressão de uma forma de partilha, seguramente limitada, certamente imperfeita, mas única e incontornável. Estas condições ficaram reunidas recentemente, e foi neste contexto que surgiu, em Fevereiro de 2018, O Obelisco de 7

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Kubrick. Por entre Encontros e outros Momentos. Contos, como primeiro livro de ficção. Mas as opções e as decorrentes acções ou omissões têm as suas consequências e, assim, deveremos reconhecer que os efeitos da escrita se verificam, não apenas sobre quem lê, mas também sobre quem escreve. A publicação deste segundo livro de contos, que agora se edita sob o título O Homem que Não Gostava de Música. Histórias e outros Sonhos. Contos, insere-se entre esses efeitos. Trata-se de um livro que talvez contenha mais histórias, memórias e reflexões na origem do conteúdo ficcionado, do que manifestações de uma criatividade originada por essa natural musa inspiradora que é a vida. Nele se procura dar expressão e sentido lógico a momentos inesquecíveis, a memórias longínquas e a recordações de tempos distantes através do exercício da escrita, enquanto experiência de comunicação. A redescoberta de pormenores há muito esquecidos mas que, mesmo assim, actuam como factores determinantes sobre o que nos vai na alma, implica a superação activa da monotonia do quotidiano e a entrega consequente a uma aventura que se concretiza cruzando as fronteiras do interdito, atravessando geografias que os mapas ignoram, percorrendo os territórios movediços do desconforto, ousando transgredir as margens volúveis de um obsceno politicamente correcto, ultrapassando os limites do círculo restrito das nossas relações, numa tentativa de partilhar as experiências, de transmitir os pensamentos, as situações, as palavras e as acções que recolhem boa parte dos factos inspiradores da ficção, nas vivências do autor. A escrita que nos permite ficcionar a realidade tornando-a suportável, adquire os contornos de um claustro tranquilo, de um lugar sereno propício à meditação, à reflexão. Revela-se nas formas de um espaço de retiro favorável à construção de um ima8

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ginário que não se contenta com as vozes dispersas ou com os sons aleatórios, e que nos faz estremecer apenas quando somos confrontados com o contraste entre o preto e o branco, materializado na gramática das letras, das palavras e das frases. Quando a insuspeitada arquitectura das ideias articuladas pela escrita nos faz despertar para a inevitabilidade desses pensamentos indizíveis, que persistimos em apagar do quadro negro, da ardósia de uma escola que é a vida e que no decurso desolador da rotina que nos aprisiona, nos faz querer esquecer, ignorar ou afastar verificamos que através da escrita, esses pensamentos vão adquirindo forma concreta ali à nossa frente, no papel ou no monitor, como evidências flagrantes impedidas de escapar à consciência. E então apercebemo-nos, angustiados, da vastidão imensa de tudo aquilo que não dizemos porque não sabemos escrever melhor. É o silêncio do não-dito. São os sons de músicas que nos trespassam e que não sabemos interpretar. São as sensações que nos fazem vibrar e que nem os mais inspirados poetas sabem descrever. São os afectos que nos enlaçam e que nem o talento dos melhores escritores consegue reproduzir. É o lugar-comum que não conseguimos evitar pela ignorância das palavras que, ao longo de uma vida inteira, se dedicam apenas a alguém, das emoções que elas revelariam se não fossem os limites do verbo e a finitude dimensional deste espaço onde a ficção procura iludir o encontro inadiável com a realidade em que nos tornámos, reconhecendo-nos naquilo em que a vida, entretanto, nos transformou. Nesse reino secreto das grafias que nem sempre dominamos, revivemos em todo o seu doloroso detalhe, a retrospectiva frustrante e o desespero de uma existência que é a nossa, tão frequentemente desperdiçada na demanda de soluções para o que, afinal, não são problemas. Ou, como lemos algures em 9

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Tolentino, “quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos”, sempre na procura de uma coerência fugaz, ou cuja total ausência ousamos, finalmente, assumir e confrontar com o aqui e o agora que são o nosso lugar no presente. Toda esta intensidade e significado se tornam transversais à actividade da escrita e dependem mais da sensibilidade do autor do que da finalidade eventual que ele procura, quando se entrega ao seu exercício. No entanto, apesar dessa dependência, talvez a sensação mais fascinante que a escrita nos trouxe tenha sido a de nos fazer perceber que, independentemente daquela sensibilidade, a nossa intervenção no processo criativo é extremamente limitada. Mesmo que em certos momentos possamos pensar que estamos inspirados, que controlamos a situação, a verdade é que no preciso instante em que sentimos isso, estamos a ser inequivocamente transportados num movimento que nos transcende, que nos envolve e que não dominamos, mas pelo qual somos seduzidos. Os factos sucedem-se numa sequência aparentemente aleatória. Interpelam-nos de forma provocatória, deixando-nos entregues ao desafio de lhes criar ou encontrar um nexo. Para isso, inventamos personagens, damos-lhes vida, concedemos-lhes vontade e poder, imaginação e pensamento, sentimentos e emoções, gestos e temperamentos, atitudes e comportamentos, intuição, lógica e incoerência. Projectamo-nos através deles naquilo em que não conseguimos transformar a nossa existência. E eles fazem-nos descobrir, através das suas surpreendentes capacidades evolutivas, aquela inesperada versatilidade que, por vezes, reduz o autor à condição de refém da sua própria escrita. E assim, vamos transpondo o paliativo da fantasia que criamos, para uma vida concreta em busca de sentido. 10

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Os personagens que inventamos libertam-se do criador, adquirem vida própria, desenvolvem relações improváveis, exprimem-se na acção, criam factos, segredam-nos tabus fantásticos e horizontes impossíveis, ignoram as nossas intenções, desvendam passagens insuspeitadas e revelam trilhos tortuosos e veredas escondidas, sugerem-nos rumos de aventura, impelem-nos para o desconhecido, conduzem-nos por caminhos sem regresso, por rotas desertas para destinos utópicos, numa promessa de infinito. Falam connosco. Dizem-nos o que nunca imaginámos, o que nunca ousaríamos pensar, trazem-nos a música que, em cada momento, dá sentido à existência, a música que lhes corre nas veias e que nos dá vida para além da vida. Através desses personagens que temos a veleidade de inventar, de criar, revelando-nos o nosso íntimo, a escrita torna-se num lugar de encontro e de reencontro connosco próprios. Com o que de mais secreto há em nós, com o nosso ser interior desconhecido ou deliberadamente ignorado, mas que esteve sempre presente, ao qual não podemos mais resistir, com o qual ajustamos contas e para o qual procuramos respostas, escrevendo. A escrita é também um lugar de encontro e de reencontro com os outros com quem partilhámos a vida e a quem dedicámos todos os esforços e toda a sabedoria, todos os tempos, todos os momentos e todos os instantes, os afectos mais intensos, os amores mais ardentes e as entregas mais inimagináveis, as alegrias mais puras. É um lugar de encontro com aqueles que ainda estão aqui dentro mas que não o sabem, e que desconhecem a força, a nitidez, a claridade e o deslumbramento dessa omnipresença porque estarão, para sempre, desesperadamente longe, e um lugar de reencontro com aqueles que passaram por aqui e que deixaram gravada uma marca indelével, mesmo sem nunca o 11

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terem percebido. E também com os que foram mais um desencontro mas que, mesmo assim, permanecem e nunca nos deixaram. A escrita é, finalmente, um lugar de encontro com aqueles que estão longe apenas no tempo e na distância, mas que continuam aqui como presenças incontornáveis, que julgávamos definitivamente esquecidas mas que, de facto, estavam apenas dissimuladas num recanto remoto do nosso mapa-memória e que, de repente, nos apercebemos de como estão enraizadas no âmago da nossa existência. Como se nunca tivessem saído de nós. E ficamos com a certeza de que aqueles para quem escrevemos, se reconhecem nas nossas palavras, como seus destinatários inequívocos. Quando as lerem, se alguma vez as lerem, compreenderão que foi para eles que escrevemos, e como foram importantes na sua passagem pela nossa vida. Por vezes, essa vida que eles preencheram mesmo sem o saberem, invade-nos e passa através de nós alterando as nossas perspectivas. Outras vezes, atinge-nos mas não passa. Envolve-nos, leva-nos com ela, entranha-se, fica definitivamente alojada em nós, contrariando a nossa vontade, alterando a nossa forma de estar nela. E não encontramos solução para os resíduos que queremos alienar, para os resultados das experiências que gostaríamos de não ter tido e que, por isso mesmo, queremos apagar, para os marcadores cognitivos irrecusáveis que queremos erradicar mas que a memória recolhe e regista para sempre, fazendo persistir as recordações que não queríamos que o fossem, trazendo-nos as lembranças que preferiríamos esquecer. Quando nos entregamos a esse exercício de reflexão, somos surpreendidos pela aparente plasticidade da memória, condicionada pelo ritmo de vida a que nos habituámos. E essa inesperada característica cria-nos a ilusão de que temos uma potencial 12

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capacidade selectiva que nos permite eliminar as recordações mais penosas, as lembranças mais insuportáveis. A memória aproxima-se, assim, da sua dimensão exígua. De repositório intocável, luminoso e incandescente de todas essas nossas recordações, a sua luz insuportável transforma-se numa aura de curta duração, e o ritmo tendencialmente acelerado do aqui e do agora em que vivemos, torna-a depois num simples clarão, num flash ofuscante, como um relâmpago que desaparece instantaneamente. Mas o tempo determinará o nosso confronto inevitável com essas lembranças e recordações que preferíamos ter deixado no passado, e perderemos para sempre a ilusão e a esperança de que as conseguiremos esquecer. Recorremos então à realidade ficcionada, construída como refúgio secreto nessa desesperada e vã tentativa de fuga à nossa inescapável realidade concreta e às memórias dilacerantes com que ela insiste em fustigar-nos. E vislumbramos melhor o sentido da frase de Camus: “cada homem tem de descobrir a sua casa”. Talvez a escrita seja a minha casa, apenas enquanto espaço de projecção estética de vivências revisitadas. Mesmo se essa casa não for o lugar seguro de aconchego, de calor e de intimidade pelo qual ansiamos. Mesmo se essa casa for apenas um lugar de amargura temperada por laivos de uma felicidade rara, inesperada, tranquila e efémera que um dia por lá passou, iluminando-a de surpresa, fugazmente, e cujos resquícios desafiaram o esquecimento, atravessaram o tempo, chegaram ao presente e, ainda perceptíveis, deram forma e expressão aos textos aqui reunidos. VICTOR MARQUES DOS SANTOS .

Bom Sucesso, 31 de Agosto de 2018. 13

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Entre as muitas coisas em que eu não acreditava, uma

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das que sempre me parecera mais óbvia era a possibilidade de existir alguém que não gostasse de música. Nem nunca tinha pensado no assunto que, aliás, seria para mim um não-assunto. Parecia-me uma hipótese absurda, sem necessidade de ser demonstrada ou testada porque era apenas teórica, pura e simplesmente não verificável na prática. Foi, portanto, com natural cepticismo que o facto me atingiu. Tive que o admitir apenas porque o Eduardo me declarou, peremptoriamente, que não gostava de música. A princípio achei curioso e permiti-me duvidar do que ouvia. É certo que, ao longo de toda a minha vida, a música estivera sempre presente temperando bons e maus momentos. Aprendi piano, órgão e guitarra, toquei em bandas, cantei em coros e aprendi a gostar de música em todas as suas formas, folclórica, clássica, ligeira, erudita, popular, sacra ou profana, étnica, típica das várias regiões do país e de outras paragens onde tudo era estranho mas, de certo modo, ligado ao todo da humanidade por esse elo universal que é a música. Adquiri, ou desenvolvi, a sensibilidade suficiente para reconhecer o que era bom e para rejeitar o que era menos bom, independentemente da etiqueta que lhe colocavam antes 17

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de me convidarem a ouvir e a pronunciar-me, na esperança de uma aceitação incondicional ou de uma rejeição prévia. Em qualquer situação, desde que se ouvisse música, uma parte da minha atenção era atraída pela melodia e pelo ritmo, seduzida pelas harmonias e pelas orquestrações, desviada para um território imaginário de novo revelado, e envolvida pela fantasia que, inevitavelmente, despertava. Mas o Eduardo era muito diferente em quase tudo, de todos os meus outros amigos. As suas palavras tinham o peso da autoridade com que abordava os assuntos, com que fundamentava as suas convicções e as suas ideias, com que construía argumentações sólidas sobre as posições que defendia. Não valia a pena contrapor-lhe outras perspectivas, a não ser pelo privilégio de debater com ele, que aceitava as posições de partida que lhe eram propostas, para depois as desconstruir de forma inteligente, consistente e sistemática apelando ao bom senso e à racionalidade, avançando depois, com as suas propostas, ideias e perspectivas. O Eduardo era diferente, em primeiro lugar porque tinha idade suficiente para ser meu pai. Em segundo lugar, porque fora educado no seio da família originária de ascendências italiana e alemã, que lhe tinha moldado uma personalidade fortíssima e uma forma muito particular de estar na vida. Essa característica que ressaltava da firmeza das suas convicções, traduzida na proverbial autenticidade que adquiria expressão na forma como fazia corresponder as ideias, os princípios e os valores que defendia, às suas opções de vida, às suas acções e à sua forma de lidar com pessoas e de gerir situações, transcendia o plano da honra, do respeito pelos outros, pelos compromissos e pela lealdade demonstrada no cumprimento da palavra dada. 18

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Alargava-se com idêntico vigor e simplicidade tácita, a aspectos e dimensões essencialmente estéticos, como era o caso da música, que desclassificava na hierarquia dos interesses imateriais dos pobres humanos, com um desoladoramente simples e definitivo “gostos não se discutem”. Depois, e em terceiro lugar, o Eduardo tinha tido uma vida longa, aventurosa, profusamente recheada de viagens, povoada de casamentos, preenchida por actividades, cargos e profissões diversificadas, feita de vivências em paragens distantes, exóticas, de momentos enriquecidos pela diversidade dos contactos e dos conhecimentos que essas experiências lhe haviam proporcionado. Quando nos conhecemos, por acaso, no Jockey Club, o Eduardo era jornalista e escritor. Alguns anos mais tarde, numa das conversas que mais me impressionaram, o Eduardo, referindo-se à nossa amizade disse-me que não estava habituado a ter amigos durante tanto tempo. Geralmente incompatibilizava-se com eles, mais tarde ou mais cedo, dizia ele, por uma questão de diferenças de opinião ou de perspectiva sobre questões que o Eduardo decidira previamente que eram indiscutíveis e que não merecia a pena conversar sobre um assunto indiscutível. Só se fosse um debate inteligente, fundamentado em argumentação incontornável e bem construída mas que, mesmo assim, ele sabia à partida, que nunca aceitaria outra posição que não fosse a sua. Para ele, a cedência da outra parte era um dado adquirido, uma inevitabilidade com a qual os seus interlocutores se habituavam a conviver. A aceitação das suas posições estaria garantida à partida, pelo peso e qualidade da argumentação, pela irrecusável anterioridade das reflexões a que, de há muito, se entregara sobre o assunto em questão.

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De facto, houve entre nós uma inesperada e transitória incompatibilização, mas a relação foi retomada posteriormente. O tempo passara, entretanto, e o que prevaleceu no seu julgamento foi a percepção de que ambos tínhamos sentido que, mesmo ficando “cada um na sua”, admitindo e reconhecendo a existência de diferenças, os esclarecimentos recíprocos eram mutuamente enriquecedores em termos de diversidade de perspectivas e de conhecimento. E a diferença de idades significava uma vantagem para ambos, nessa troca sempre conseguida em convívio agradável e assíduo. E, assim, continuámos a conversar e a debater assuntos sobre os quais as suas posições e perspectivas eram, no mínimo, fascinantes, controversas e diferentes de tudo o que eu tinha conhecido até aí. Mas que poderia eu fazer, ou dizer, perante uma afirmação tão categórica de rejeição da música? Por muito simples que parecesse, não era fácil entender uma declaração semelhante porque, para mim, sempre fora tácito que não se podia não gostar de música. Poder-se-ia não gostar de um género musical específico, de um determinado estilo, de uma época, de uma sonoridade, enfim, de numerosos aspectos relacionados com a música e com os seus compositores e interpretes. Mas não gostar de música em concreto, em termos gerais e absolutos, sob qualquer aspecto, na sua totalidade, não me parecia que fosse possível. O tempo, porém, encarrega-se, frequentemente, de me desenganar, de me corrigir quanto à insuficiência das ideias feitas, quando se pensa que as verdades são indiscutíveis e imutáveis. E desta vez, mais uma vez, isso tinha acontecido. O tempo tinha-se encarregado de me provar que eu estava errado. Que aquilo que tomara como sendo verdade absoluta, como certeza

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indiscutível e que não carecia de demonstração, afinal, não era verdade. Era, de facto, possível não gostar de música e, definitivamente, o Eduardo não gostava de música. Detestava qualquer ritmo, considerava as vozes horríveis, o canto desagradável, por vezes, caricato, e não apreciava qualquer instrumento. Quanto aos sons musicais, ouvia-os mais como ruído impertinente no meio das conversas, do que como melodia harmonicamente integrada e fazendo parte dos ambientes sociais. Com excepção de von Karajan, que admirava pelo seu historial de vida, mais do que pelo seu desempenho, achava que os maestros eram acessórios desnecessários, por vezes ridículos, como o Bernstein, considerava ele, porque todos os músicos sabiam ler as partituras e não precisavam de direcção. Entre as muitas coisas de que o Eduardo não gostava, para além da música, havia uma outra que me impressionava, também, embora menos. O Eduardo não gostava de filmes de ficção científica. Mas essa falta de gosto era diferente e mais fácil de gerir, porque o Eduardo gostava de cinema. Tentei superar essa situação, e acho que consegui, quando o convidei para ver o 2001 – A Space Odyssey, do Kubrick, porque, inteligente e perspicaz como era, percebeu imediatamente o alcance pós-científico da mensagem ficcionada e passou a perspectivar a ficção científica sob um outro prisma em termos de potencialidade e de ousadia das propostas que, até então, nunca imaginara como sendo possíveis. Esta alteração de atitude, raríssima no Eduardo, foi, apesar de tudo, um acontecimento relativamente simples, quando comparado com a tentativa de superação da radicalidade da sua posição sobre a música, e com a inerente frustração intelectual que eu sentia, ao ouvi-lo dizer que não gostava de música, o que 21

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me provocava uma vontade desesperada de o fazer mudar de opinião. Quando conversávamos sobre o assunto, dizia-lhe sempre o quanto lamentava não poder discutir com ele sobre esses assuntos e aspectos que tanto me atraiam e faziam concentrar esforços no sentido de aprender sempre um pouco mais. O Eduardo também lamentava, mas não podia fazer nada. Até que um dia, lhe propus fazê-lo mudar de opinião, também quanto à música. O Eduardo riu-se com pena de mim pela missão impossível a que eu me comprometia. Mas, ao mesmo tempo, admirava a coragem que eu demonstrava ao arvorar-me em heróico defensor de causas perdidas, talvez por ele próprio se identificar com este papel, e se ter encontrado frequentemente nessa situação ao longo da vida. Expliquei-lhe, então, que não pretendia que ele viesse a gostar fosse do que fosse, mas apenas que tivesse razões válidas e motivos lógicos para não gostar e, para isso, teria que conhecer as peças, para além dos nomes dos compositores e das obras, que ele conhecia, como qualquer profissional da escrita. Isto porque, esforçava-me eu por esclarecer, em vez de uma ausência total de gosto, que não dava para discutir, teríamos gostos diferentes, específicos, baseados em razões e argumentos que poderíamos defender, ou evitar, na ausência de fundamento, sob o lema irresistível e sempre invocável, de que “gostos não se discutem”. Porque uma coisa eram os gostos que não se discutiam, outra coisa era a ausência total de gostos discutíveis e, neste caso, não só não se discutia, como também não se dialogava. E sendo eu seu amigo, gostava de poder discutir, debater com ele, pois de outro modo nenhum de nós sairia enriquecido da comparação racionalizada dos gostos. 22

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Partindo desta situação de facto, questionei-me sobre a possibilidade concreta de o fazer mudar de ideias e sobre a melhor maneira de tentar atingir esse objectivo. Pensei que talvez me tivesse mesmo metido numa situação sem saída, num problema sem solução, e percebi que tinha de arquitectar uma forma de fazer o Eduardo ouvir as peças que eu escolhesse. Decidi que teriam de incluir, pelo menos, um tema de voz e um tema exclusivamente instrumental, de forma a dar ao Eduardo a oportunidade de se pronunciar sobre um deles em relação ao outro, separando opiniões eventualmente diferentes. Procuraria que a voz tivesse uma função relaxante, um efeito calmante e de preparação do ambiente de acolhimento propício à segunda peça. Mas isto era apenas o meu plano. Nada me garantia que a minha táctica desse resultado, que a minha lógica funcionasse dessa maneira na perspectiva do Eduardo, e contribuísse, de facto, para lhe alterar a atitude, aparentemente inabalável, sobre a música. Durante várias semanas, fui anotando e sistematizando mentalmente as suas esporádicas referências a pormenores e detalhes, que considerava sempre “horríveis” ou “detestáveis”, e os comentários arrasadores que fazia sobre qualquer das músicas que ouvia quando vinha a minha casa, e para as quais eu lhe chamava a atenção. Percebi que, pelo menos numa primeira abordagem, alguns géneros estariam, à partida, fora de questão. O jazz era apenas um deles. Foi assim que, certo dia, num fim de tarde calmo de Outono, lhe propus que viesse a minha casa e que ouvisse algo que tinha preparado para ele. O Eduardo sorriu, recordando a missão a que eu me propusera, e aceitou por deferência para com o meu reconhecido esforço. Convidei-o, então, a instalar-se num sofá, 23

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a uma distância calculada entre duas colunas de altifalantes, ofereci-lhe um Chivas com gelo, perguntei-lhe se se sentia confortável, se precisava de mais alguma coisa, e disse-lhe: – O meu convite é para que o Eduardo oiça esta voz, enquanto aprecia o seu whisky. – E na sequência do convite, coloquei o disco no prato do gira-discos, que começou a rodar. Depois sentei-me noutro sofá ao seu lado. O Eduardo começara a saborear o Chivas, quando se ouviu a voz da Judy Collins interpretando “Since You’ve Asked”. Os sons do oboé, do violoncelo e a da trompa flutuaram sobre a harmonia discreta dos violinos formando uma nuvem sonora envolvente, da qual provinha aquela voz aveludada que nem os poetas nunca conseguiriam descrever. O Eduardo ficou estático, de copo na mão. Não se moveu. O som da voz e dos instrumentos evoluíam pelas pautas e pelas notas dos acordes que serviam de fundo à voz suave que vogava serenamente dando forma e emprestando cor à melodia. Quando a canção terminou, o Eduardo fez um gesto de incredulidade com a mão e franziu a testa. Dir-se-ia que tinha constatado um facto inesperado e teoricamente impossível. Abanou a cabeça e preparava-se para comentar, quando lhe pedi: – Eduardo, por favor, não diga nada, por enquanto. Continue a saborear o seu whisky e o silêncio, que não é a ausência dos sons mas antes a sua continuação, num contexto único. – E com isto, substituí o disco e continuei: – E agora, que a voz conseguiu induzir a sensação de calma e de tranquilidade do seu estado de espírito, que a expressão do seu rosto revela, oiça apenas o que lhe proponho a seguir. Os naipes de cordas providenciaram a amplitude espacial de acolhimento para o som da harpa e começaram, em conjunto, a percorrer a partitura, ao ritmo lento dos primeiros acordes do 24

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Adagietto. Pouco depois, olhei de soslaio para o Eduardo. Estava recostado, tinha pousado o copo, fechado os olhos, e acompanhava a cadência dos compassos com um ligeiro movimento da cabeça. O seu rosto estava crispado, tenso e a testa continuava franzida denunciando o efeito dos sons que o penetravam no mais recôndito do seu íntimo, revelando-lhe áreas desconhecidas da sua própria sensibilidade, situadas no plano sensorial muito para além da sua capacidade auditiva, subjugando-o à potência contida da linha melódica dos violoncelos e ao vigor profundo e solene dos contrabaixos. Quando a peça terminou, o Eduardo permaneceu imóvel e de olhos fechados. Continuámos ambos calados e sem nos movermos. Penso que o Eduardo percebeu, nesse instante, a importância fundamental do silêncio como prolongamento das sonoridades que, lentamente, se extinguiam nos ecos da sala. Tal como eu lhe referira poucos momentos antes, percebeu que a ausência de som não significava o fim da música, mas antes o registo do espaço / tempo de transição entre a música e a realidade relativamente à qual ele fechara os olhos, tentando concentrar-se e alcançar a dimensão etérea de uma vivência sensível, cuja existência reconhecia, agora, pela primeira vez. Desde as primeiras notas cantadas pela Judy Collins, o Eduardo quase não mudara de posição. Eu também não ousava interromper aquele momento, não queria ser eu a quebrar aquela espécie de magia que se instalara no ambiente da sala. Até que, perante o seu silêncio prolongado, que me parecia interminável, resolvi abdicar desse propósito e perguntei: – Toma outro whisky, Eduardo? – Ele pareceu despertar naquele instante e, ignorando a minha pergunta, abriu finalmente os olhos e começou, numa voz trémula e sumida: 25

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– Quem… – disse ele. Depois interrompeu-se, endireitou-se lentamente no sofá parecendo esforçar-se em vão para articular os sons que não conseguia emitir, como se não conseguisse pronunciar o início da frase. Fez uma pausa, aclarou a garganta e, pouco depois, retomou a palavra: – Quem é…quem foi… – e, apontando para as colunas, olhou para mim numa atitude de expectativa, com a expressão de quem espera a resposta a uma pergunta que não fez, como se tivesse, de facto, formulado a questão que acabara por não lhe sair da boca. – A voz é da Judy Collins – disse eu –, e a peça sinfónica é o Adagietto da 5.ª Sinfonia de Gustav Mahler, pela Filarmónica de Berlim dirigida pelo Herbert von Karajan… – Fiz novamente uma pausa suficientemente prolongada para que o Eduardo se sentisse à vontade para se manifestar, para comentar, enfim, no fundo para me fazer perceber os efeitos da minha tentativa e da minha proposta. Porém, ele continuava em silêncio e, perante a sua atitude, ousei sugerir: – Talvez queira ouvir outra vez… Passaram alguns segundos até que o Eduardo, continuando muito direito no sofá e pegando de novo no copo, respondeu, sem olhar para mim e ainda sem se mover: – Sim… – disse ele. O seu rosto revelava uma expressão invulgarmente calma. E após uma curta pausa, olhando-me agora nos olhos, recuperou a voz e concluiu tranquilamente: – Sim… Gostaria de ouvir outra vez… Ouvimos, de novo, ambas as peças e aquele episódio ficou por ali. Não pedi ao Eduardo qualquer comentário e ele também não disse nada. Apenas lhe ofereci mais um whisky e a conversa derivou para os temas habituais. A música continuou a não fazer parte deles. Os meus esforços não tinham tido qualquer êxito,

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ou pelo menos assim parecia. Não se tinham registado resultados tangíveis, nem havia sinais identificáveis que permitissem perceber alguma alteração evolutiva da posição do Eduardo em relação à música. Algumas semanas mais tarde, num dia frio e chuvoso, já muito próximo do Inverno, estávamos ambos em minha casa, sentados exactamente na posição em que o Eduardo ouvira as minhas propostas musicais, e tomávamos o nosso whisky. Lembro-me de que falávamos sobre cavalos, sobre a sua participação nos concursos hípicos no Jockey Club do Rio de Janeiro, e sobre a minha recente estadia na escola de equitação em Inglaterra. A certa altura, fez-se uma pausa enquanto saboreávamos mais um pouco de scotch. Após alguns momentos de silêncio, o Eduardo virou-se para mim, inclinou-se sobre o braço do sofá, e disse num tom de confidencialidade: – Sabe o que me apetecia? – Não – disse eu –, não sei, Eduardo… Mas diga-me, talvez se possa arranjar o que lhe apetece… – ele olhou-me com um sorriso cúmplice e respondeu-me: – Sabe, gostava de ouvir de novo aquela voz… A voz da outra vez…

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Todas as manhãs quando entrava no desfiladeiro, vindo da

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aldeia de Gândara em direcção a Corália, António deparava-se com a paisagem surpreendente daquele horizonte distante. A nesga de céu entalado entre as montanhas espelhadas na superfície calma do lago de Tarsos, no outro extremo do vale, proporcionava-lhe uma imagem diferente em cada dia. O jogo de luz e de sombras reflectia o movimento irrequieto das nuvens e ele interrogava-se sempre sobre se aquele cantinho do mundo não seria um recanto de paraíso que tivesse caído da divina construção. Quando saía para o trabalho, pensava sempre que aquele momento mágico era uma das poucas consolações estéticas que o compensavam no refúgio rural a que se remetera, e que o faziam esquecer o vento frio da manhã que lhe fustigava o rosto e que, por vezes, vinha acompanhado de um chuvisco gelado que o penetrava até aos ossos. Estremecia durante alguns momentos, nesse primeiro contacto com a realidade exterior. Depois, despertava e, finalmente, aproveitava para andar mais depressa. Nos dias em que não havia nevoeiro matinal conseguia ver à saída da aldeia, a casa de xisto e granito do lado esquerdo da estrada de terra batida. As floreiras e o arranjo exterior da zona 29

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envolvente davam-lhe um ar acolhedor. Estava sempre fechada e ele nunca vira ninguém entrar ou sair. Apesar disso, notava-se que não estava abandonada. As plantas estavam cuidadas, em vasos e ânforas de barro alinhados de ambos os lados da porta e ao longo da parede. O acesso fazia-se por uma pequena rampa que subia da estrada em direcção à entrada e que terminava nos poucos degraus que conduziam até ao patamar da porta. A caminho do pequeno hotel de Corália, onde tinha encontrado emprego como recepcionista, a sua curiosidade aumentava de dia para dia sempre que passava em frente da casa. Apesar de levar uma vida simples, retirada e solitária, no ambiente calmo de Gândara, uma aldeia quase deserta para onde se mudara havia poucos meses, a verdade era que a nova actividade o ocupava durante a maior parte do dia, deixando-lhe pouco tempo para pensar muito na misteriosa casa pela qual se sentia inexplicavelmente atraído. Afinal, havia nas redondezas tantas outras casas parecidas, que não conseguia descobrir o que o atraía naquela. Para além do aspecto estético, indiscutivelmente agradável, sentia como que uma afinidade intuitiva pela casa. Tinha a sensação de conhecer o seu interior, de já lá ter estado, como se a tivesse habitado antes. Durante o Inverno, o sol desaparecia a meio da tarde escondendo-se atrás das montanhas. Terminado o turno e depois do jantar que o hotel lhe facultava, quando fazia o caminho de regresso pela estrada escassamente iluminada, António via a casa mergulhada numa escuridão total. Podia jurar que durante todos aqueles meses nunca vira uma janela aberta e, olhando de fora, não se conseguia perceber a presença de ninguém, nem de qualquer luz interior. Impressionava-o sempre a desolação de uma casa desabitada. Provocava-lhe uma sensa30

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ção de solidão, de abandono e de tristeza. Sempre quisera ter uma casa, partilhar a sua existência com alguém numa casa como aquela. Mas sempre que o tinha tentado, o alguém que entrava na sua vida, acabava por sair, mais tarde ou mais cedo, sem deixar rasto de felicidade nem de dor, mas apenas traços de uma frustrante indiferença. E aquela casa atraía-o, sem ele perceber porquê. António decidira experimentar uma mudança de vida, procurando uma actividade mais calma, e um sítio sossegado para viver. Saíra da cidade em busca de um lugarejo no interior onde ninguém o conhecesse, e onde pudesse encontrar alguma paz de espírito. Queria, sobretudo, refugiar-se num local tranquilo, afastar-se de pessoas e de situações de stress com as quais se cansara de lidar. Conseguira um modesto emprego, alguns meses antes, naquela remota aldeia. Alugara um quarto minúsculo numa velha casa pertencente a um casal de idosos reformados, parentes afastados da família do patrão, que o tinham recebido por recomendação deste, e onde vivia sozinho. Saía cedo todas as manhãs e gostava de fazer aquele caminho a pé. Situado na margem do lago de Tarsos, o Westfield Lodge, era um daqueles raríssimos e vetustos hotéis de província, que conseguem preservar o seu esconderijo natural e escapar à fúria homogeneizante das cadeias hoteleiras internacionais, entidades que consideram nefastas e que desprezam, numa atitude orgulhosa e de afirmação identitária tipicamente paroquial. O hotel pertencia, há várias gerações, a uma família local, os Westfield, e o dono, John Westfield, o seu patrão, era um homem de meia-idade, simpático, educado e com o qual, ele mantinha um relacionamento fácil. Ao princípio, John Westfield estra31

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nhara que um citadino viesse à procura de trabalho a um sítio tão improvável, mas à medida que o tempo passava, a sua confiança nele consolidava-se e percebeu que as competências de António seriam uma mais-valia para o negócio. Ao chegar ao hotel, António entrou pela porta de serviço, vestiu o casaco da farda e dirigiu-se à recepção. Estava na hora de começar o turno e não gostava de chegar atrasado. Naquele fim de tarde, um carro parou à porta de hotel. O condutor entrou, dirigiu-se à recepção e pediu-lhe para falar com o proprietário. – Desculpe, senhor Westfield. Está ali na recepção um senhor que quer falar consigo –, disse António entreabrindo a porta do escritório. O patrão desviou os olhos do monitor, tirou os óculos, levantou-se e, sem uma palavra, saiu do escritório dirigindo-se à recepção. Sorriu para o desconhecido e cumprimentou-o: – Boa tarde, faça o favor de dizer, senhor… – Peço desculpa de o incomodar, o meu nome é Peter Smith, preciso de uma informação e disseram-me que o senhor Westfield, sendo da terra e conhecendo o meio, seria a pessoa mais indicada para me esclarecer… – Faça favor, se puder ajudá-lo, terei muito prazer –, repetiu o patrão. – Trata-se da casa de xisto que fica à entrada de Gândara… Nesse momento, António interrompeu o que estava a fazer e concentrou toda a sua atenção na conversa. Pensou por que razão não tinha ele próprio perguntado ao patrão alguma coisa sobre a casa. Depois, reflectindo melhor, concluiu que não encontrava perguntas lá muito concretas ou pertinentes em relação ao assunto, e até poderia correr o risco de ser mal interpretado pelo patrão, de ser considerado bisbilhoteiro, se bem que, naquele ambiente de aldeia a bisbilhotice fosse o passatempo 32

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mais comum. Mas António não se esquecia que era um forasteiro naquele meio pequeno, e sentia que não devia imiscuir-se na vida dos outros. Esta seria, no entanto, a sua primeira e grande oportunidade de vir a saber alguma coisa sobre a casa. Talvez conseguisse satisfazer, pelo menos, um pouco da sua curiosidade. O homem, entretanto, continuou: – Estou interessado em saber se será possível alugar a casa. Tenho reparado que não está habitada, e indicaram-me o senhor Westfield como sendo a pessoa junto de quem me poderia informar, repetiu o visitante… – Westfield hesitou durante alguns segundos e, por fim, disse: – A casa está, de facto, desabitada. Os donos são meus velhos amigos…cá da terra, sabe… Trabalham no estrangeiro há vários anos, vêm cá regularmente mas muito poucas vezes por ano e, ultimamente, não têm vindo. Mas pagam a uma pessoa para cuidar da casa e conservá-la de modo a que possa ser ocupada em qualquer altura. Para tentar alugar, seria necessário contactar com os proprietários. – Interrompeu-se durante alguns segundos e prosseguiu: – Se o senhor quiser… Eu tenho uma chave da casa… Talvez lha possa mostrar e, se lhe interessar, podemos contactar os meus amigos e perguntar-lhes se querem alugar. – Óptima ideia! – exclamou Smith, e continuou: – E quando acha que poderei visitar a casa? – Eram sete horas da tarde, o céu cobria-se de nuvens escuras a ameaçar chuva. Westfield olhou para o relógio, pensou durante alguns segundos e disse: – Neste momento não me convém abandonar o hotel. Estou à espera de um grupo de clientes que reservaram uma mesa para jantar, mas…talvez possa pedir aqui ao António para lá ir com o senhor… – e com isto, olhou para António que, entretanto, não 33

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queria crer no que ouvia. Diria que a casa vinha ao seu encontro, pensou ele, tentando disfarçar a excitação que aqueles inesperados desenvolvimentos lhe causavam. – António, importa-se de ir com este senhor visitar a casa de xisto que fica à entrada da aldeia? Eu asseguro a recepção enquanto lá vai… – perguntou o patrão virando-se na sua direcção. – Claro que não me importo, senhor Westfield –, apressou-se ele a responder. – Excelente! – exclamou Smith. – Vou então buscar a chave –, disse o patrão entrando no escritório e desaparecendo durante alguns minutos. Quando regressou, justificou a demora dizendo: – Há tanto tempo que não mexo na chave da casa, que agora, nem me lembrava onde a tinha guardado… – enquanto comentava o facto, entregou a chave a António. – Podemos ir agora, então? – perguntou Smith olhando para o patrão. – Claro! – respondeu Westfield, e acrescentou: – Pode ir, António… Saíram do hotel, entraram no carro e fizeram-se à estrada. O percurso demorava alguns minutos, não porque Gândara fosse muito distante de Corália, mas sobretudo porque a estrada de terra batida já tinha conhecido melhores dias. Smith estacionou o carro no princípio da rampa de acesso à casa. Subiram os degraus que os separavam da porta. António esforçava-se, mas não conseguia controlar o nervosismo. Meteu a chave na fechadura e rodou-a várias vezes, sem esforço, até que a porta cedeu e eles entraram. Instintivamente, António procurou um interruptor, que encontrou ao lado da porta. Tentou 34

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accioná-lo, mas a luz não acendeu. Smith reparou na sua tentativa e comentou: – O quadro eléctrico deve estar desligado. Vamos procurá-lo. – E dizendo isto, tirou uma lanterna do bolso da gabardina. António continuava nervosíssimo. Aquela situação inesperada e a forma insólita e súbita como tinha surgido a oportunidade de visitar a casa, deixavam-lhe as pernas a tremer. Agora tinha a sensação nítida de já ter estado ali antes. Tudo lhe era familiar. Tinha a certeza de saber onde eram os quartos, o escritório, a cozinha… Smith continuava à procura do quadro, até que António sugeriu: – O quadro deve estar junto da porta de entrada das traseiras, que dá da cozinha para o quintal. – Ao dizer isto, ficou petrificado. De onde lhe tinha vindo aquela ideia? Como estaria ele a par daquele pormenor? Perante a resposta de António, Smith ficou curioso e perguntou: – O António já conhece a casa? Já cá tinha estado? – António apressou-se a responder: – Não, de facto, nunca cá estive, mas a julgar pela casa onde vivo, por uma ou outra que conheço e pelo hotel, essa é a localização habitual dos quadros eléctricos, pelo menos, aqui na terra. – A justificação também lhe saíra sem ele perceber bem de onde. Percorreram vagarosamente as várias divisões, apreciando cada detalhe do mobiliário e da decoração, desde a cave até ao sótão, passando pelo andar superior onde se situavam os quartos. António não sabia o que pensar. A cada nova divisão em que entravam, acentuava-se a sensação de déjà vu. Mas mais do que isso, parecia-lhe estar a reviver situações remotas, de há muito 35

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esquecidas. Fez o possível por não deixar transparecer o seu estado de espírito. Terminada a visita, enquanto percorriam o caminho de regresso, o pensamento de António continuava preso às imagens do interior da casa, como se a atracção que sentira antes de lá entrar se tivesse transformado numa obsessão que o impedia de raciocinar, de reflectir sobre o que lhe estava a acontecer, de se libertar daquela sensação de familiaridade derivada de uma outra vivência, de um conhecimento anterior da casa. Mas, estranhamente, e ao mesmo tempo, esse pensamento parecia solicitá-lo de forma irresistível levando-o a paragens muito distantes, a épocas muito remotas, noutro tempo e noutra latitude, que ele não conseguia identificar, e muito menos articular com o presente, com aquele local e com a situação que estava a viver. Era como se a visita à casa o tivesse transportado numa viagem aos esconsos esquecidos do inconsciente, deixando-o em suspenso no limiar de memórias antigas que agora começava a vislumbrar sem, no entanto, as perceber. Nem dava pelos solavancos causados pelos buracos da estrada enlameada. Smith não fizera qualquer comentário sobre a casa mas, quando parou à porta do hotel agradeceu e pediu a António: – Por favor, diga ao senhor Westfield que entrarei em contacto com ele. António despertou da sua viagem interior e respondeu: – Pode ficar descansado. Boa noite, senhor Smith! – disse ele saindo do carro. – Boa noite! – respondeu o homem, afastando-se devagar em direcção a Abrunhos, a povoação situada no extremo do desfiladeiro, na outra margem do lago. António entrou no hotel, procurou o patrão e viu que ele estava ocupado com o grupo no restaurante. Foi ter com ele, 36

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transmitiu-lhe o recado de Smith e foi para a recepção. Sentia-se stressado devido aos inesperados acontecimentos daquele fim de tarde. Felizmente, o seu turno de serviço estava a terminar. Tinha que meditar sobre todas aquelas estranhas sensações, de encontrar alguma coerência lógica para os factos que pertenciam à incontornável dimensão do real, da verdade concreta. Não eram fantasias nem sonhos, eram realidades. Tinha que pôr alguma ordem no inexplicável turbilhão de sentimentos contraditórios e de lembranças angustiantes que o assaltavam. Tinha de arrumar definitivamente as situações vividas e as memórias enterradas havia muito tempo, das quais se procurava afastar, e que não fazia qualquer sentido regressarem ao presente e à sua vida actual. Nessa noite, depois do trabalho, e de volta à desolação solitária do seu minúsculo alojamento, António sentia-se diferente, como se na sua vida se tivesse iniciado um processo de mudança. A casa de xisto já não lhe era desconhecida, mas continuava a ser misteriosa pela sensação que lhe causava havia tanto tempo. Tinha entrado, conhecido o interior e confirmado no seu íntimo que havia alguma coisa no seu passado, que o ligava àquela casa, mesmo que ele não soubesse ou não se lembrasse do que era. Enquanto caminhava, envolto nestes pensamentos, meteu a mão no bolso e encontrou a chave da casa, que o patrão lhe tinha confiado. Só então se lembrou que não a tinha devolvido. O patrão estava ocupado e ele esquecera-se de lha entregar. Pensou se deveria voltar atrás, mas achou que não valia a pena, que a devolveria no dia seguinte. O senhor Westfield, por certo, compreenderia. A sensação de ter a chave da casa na mão dentro do bolso, despertou-lhe de novo a curiosidade e a excitação. Pensou que 37

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talvez pudesse fazer um pequeno desvio no caminho tortuoso e íngreme que o levava à parte alta da aldeia onde se situava o seu pequeno quarto alugado. Estava cansado, apetecia-lhe dormir profundamente e esquecer aquele dia insólito e diferente. Mas o facto era que tinha a chave consigo. E se voltasse de novo à casa? Agora que estava à vontade, sozinho e com a noite toda à sua disposição. Dificilmente teria outra oportunidade de entrar naquela casa. Mas, afinal, para que queria ele ir lá de novo? O que procurava ele? Que interesse tinha para si a misteriosa casa? António achou melhor pôr termo àqueles devaneios disparatados, esquecer aquele dia, seguir o seu caminho e resistir à tentação. Os donos da casa já estavam deitados àquela hora. António recolheu ao seu quarto, deitou-se, mas não conseguia dormir e começou a dar largas à imaginação, sobre o que se seguiria se lá fosse. Por fim, cansado pelas emoções que vivera naquela dia e extenuado pelo trabalho intenso, fechou os olhos e caiu numa sonolência que o impedia de raciocinar com clareza e de reconhecer o local onde se encontrava. Ainda conseguiu perceber que estava a entrar num sono profundo, num estado letárgico que lhe condicionaria o sonho, aproximando-o da realidade concreta, impedindo-o de querer resistir, fazendo-o duvidar da própria lucidez. Tinha de entrar de novo naquela casa. Apesar do cansaço, sentiu-se a caminhar sem esforço, em passo acelerado, apressando a marcha. Mas o sonho ultrapassara-o. Avançara à sua frente entrando pela casa adentro numa procura angustiada e desesperante de respostas para perguntas que não lhe davam sossego, nem margem para repousar a mente. Respostas ignoradas a perguntas que não o deixavam descansar, como ele precisava tanto. Agora que já a conhecia, por que sen38

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tiria ele a mesma atracção que experimentara antes de lá entrar? Certamente porque confirmara o que esperava: tinha quase a certeza de que alguma parte da sua vida estava, de algum modo, ligada àquela casa. Começou a abrandar o passo, olhou em volta e atravessou a estrada, mais iluminada pelo luar do que pelas luzes mortiças dos escassos candeeiros. Àquela hora não se via vivalma na rua. Tentou enumerar as razões que justificariam que entrasse novamente na casa, e não encontrou nenhuma. Por fim, pensou que talvez não precisasse de nenhuma. Bastava-lhe aquela atracção inexplicável que o fazia sair da realidade e procurar um refúgio imaginário na fantasia dos seus sonhos. Prometeu a si próprio que não se demoraria muito. Apenas o tempo necessário para satisfazer a curiosidade e, talvez, encontrar uma explicação para o que sentia. António olhou de longe para a casa. À medida que se aproximava pareceu-lhe ver algo de estranho, de diferente em relação à sua visita daquela tarde. Quase que podia jurar que conseguia distinguir um fumo esbranquiçado a sair por uma das chaminés. Aproximou-se da porta, meteu a chave na fechadura e rodou. A porta abriu-se como da primeira vez. António entrou e procurou o interruptor. Desta vez, a luz acendeu. Tinham-se esquecido de desligar o quadro, pensou ele. Avançou lentamente pelo hall e passou à sala de estar. A primeira coisa que notou foi o forte cheiro a lenha queimada. A sua percepção não o enganara. O que vira de fora era realmente fumo a sair pela chaminé. Olhou para a lareira e viu as cinzas e os borralhos ainda incandescentes. Depois olhou em redor e verificou que havia objectos espalhados sobre os móveis, nas estantes e sobre as mesas de apoio perto dos 39

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