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A autora nasceu em 1953 e é filha de emigrantes em França, onde viveu toda a sua infância. Contudo, regressou a Portugal, vivendo nos dois regimes políticos descritos na obra. Licenciou-se em Filosofia, em Coimbra. O seu trabalho e dedicação foram sempre exercidos no seio das Forças Armadas Portuguesas, nomeadamente no ramo do Exército.

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Sob o ponto de mira é uma realidade ficcionada que vai dos anos 60 do século XX à primeira década do século XXI. A ação desenrola-se num período marcante para todas as famílias deste país com maridos, filhos e irmãos em idade de cumprir o serviço militar obrigatório: primeiro, no regime Salazarista e, depois, como voluntários no regime democrático nascido da Revolução de 25 de Abril de 1974.

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FICHA TÉCNICA TÍTULO:

Sob o ponto de mira Maria Gaio EDIÇÃO: Edições Vírgula® (Chancela do Sítio do Livro) AUTORA:

PAGINAÇÃO:

Alda Teixeira Liliana Simões ARRANJO DE CAPA: Ângela Espinha

ISBN:

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1.a Edição Lisboa, outubro 2019

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REVISÃO:

978-989-8986-02-3 458043/19

DEPÓSITO LEGAL:

© MARIA GAIO

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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

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Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

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O SOLDADO DA GUERRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Soldado mutilado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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II. O SOLDADO DA REVOLUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Soldado exaltado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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ÍNDICE

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III. SOLDADO INCOMPREENDIDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͩͱ Soldado humilhado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͪͨ IV. O SOLDADO JOANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͪͩ Soldado(a)s da modernidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͪͫ V. SOLDADOS DA PAZ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͪͭ Soldados da universalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͪͱ

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VI. SOLDADO SEM GUERRA ȍEXǧSOLDADOȎ . . . . . . . . . . . . . . . . ͫͩ Soldado esvaziado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͫͬ VII. O SOLDADO JOÃO E O SOLDADO JOANA . . . . . . . . . . . . . . . ͫͭ O voluntário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͭͫ POSFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ͭ​ͭ

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I O SOLDADO DA GUERRA

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Chegado o dia de «ir às sortes», à inspeção médica no Distrito de Recrutamento e Mobilização da área da residência, João foi logo chamado ao cumprimento do seu dever em defender a Pátria. Um dever que todo o cidadão do sexo masculino tinha para com o seu país. As mães, esposas, irmãs, estas acompanhavam o soldado ao cais de embarque e ficavam à espera de notícias, sempre rezando para que voltasse são e salvo. João crescera a ouvir falar da «guerra do ultramar», mas nestes verdes anos, tudo o que ouvia eram ecos que pareciam não o atingirem. A pouco e pouco, foi-se apercebendo que todos os homens saudáveis estavam empenhados nesse dever e que brevemente lhe caberia a sua vez. Agora que se impunha a sua partida, olhava para trás, tentando compreender o que se passava à sua volta, mas faltavam-lhe muitas peças do puzzle, ainda era novo… ͱ

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mesmo assim era um desfiar de recordações, que tinham por detrás atitudes para as quais ele tentava arranjar uma razão ou uma justificação. Em pequeno, na escola, onde se misturavam todas as classes, de manhã rezava-se e ao fim das aulas, cantava-se o Hino Nacional! Sabia de cor a disposição dos móveis e das pessoas naquela sala, daqueles quadros na parede: o preto, a cruz de Cristo ao lado, o Presidente do Conselho, bem no topo, a dominar tudo e todos, a palmatória em cima da secretária, a cana-da-índia, no canto e para completar o professor. Fizera a quarta classe e ficara por isso mesmo, pois os pais eram pobres. Para já precisava de ajudar os pais, continuar os estudos ficaria para mais tarde. Lembrava com saudade já, aqueles encontros com rapazes da sua idade, aos quais e aos domingos se juntavam algumas raparigas, numa espécie de jogo do gato e do rato. Habituara-se àquela caixinha mágica, que chamavam televisão, instalada no clube da terra e à frente da qual toda a gente se sentava para saberem um pouco mais sobre o resto do mundo e ver belas séries de «cowboys» que o João seguia com entusiasmo. Naquele dia e mais uma vez a caminho do clube, ia pensando, que bom seria ter dinheiro para comprar uma ͩͨ

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televisão lá para casa, os seus pais de certeza que iam gostar, eles que agora não compreendiam tanto entusiasmo por tal coisa… tomou uma bebida ao balcão e foi sentar-se na primeira fila bem ao centro para não perder nada do que se passava na tal caixinha. Vivia-se a quadra do Natal, e anunciaram que o Presidente do Conselho iria fazer um comunicado à Nação. Não era que isso interessasse o João, mas foi ficando, pois estava demasiado cansado do dia de trabalho… ouviu-o falar da nação, da família, e de Deus. Acabado o discurso, seguiu-se um desfilar de soldados, que combatiam nas colónias, com o intuito de comunicarem com os seus, que tinham ficado cá deste lado… um após outro, sempre o mesmo discurso… alguns atrapalhavam-se e as palavras saíam distorcidas e sempre sem entusiasmo: — Ao meu Pai, à minha Mãe e restante família, desejo um bom Natal, e um ano novo cheio de «propriedades» eu encontro-me bem! Em vez de prosperidade, saía-lhes atabalhoadamente tal palavra… «Adeus até ao meu regresso», adeus até ao meu regresso! Adeus até ao meu regresso!… Ecos que permaneciam para o resto da vida.

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Ficou sempre a pensar naqueles rostos e naquelas palavras e imaginou-se também a desfilar… Nada percebia de política, mas falava-se à «boca pequena» do jugo, da mordaça e dos homens de confiança do regime, disfarçados entre as gentes. A verdade é que João nunca conhecera outros horizontes, fora educado no trabalho e para o trabalho e enquanto jovem, nada disso parecia atingi-lo, pois as suas expetativas não iam além de arranjar «um pé-de-meia», casar e ter filhos. Bastava-lhe então o convívio com os colegas, os bailaricos e os namoros à socapa!! Mas não era bem assim, estes valores afinal não eram os únicos e a par das novidades que lhe traziam os seus conterrâneos emigrantes, descobriu e ganhou o gosto pela leitura e foi assim que foi ganhando corpo na sua mente a ideia de estudar mais e ser alguém. Estes emigrantes falavam-lhe de liberdade e liberdades que ele nunca sentira nem vivera, de livros e filmes proibidos cá no seu país. João queria e de certeza que iria conhecer o porquê desta situação. João pensou em mil estratagemas para não ser mobilizado: automutilar-se, fugir para o estrangeiro de «assalto» ou ainda e instado pela mãe, fazer uma proͩͪ

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messa à Virgem, ir a pé até Fátima e oferecer-lhe uma vela do seu tamanho e isto servia também para o caso de ter mesmo de ir, voltar são e salvo. Apresentou-se, decidira que não iria fugir. Foi mobilizado para a província de Angola, mesmo para a frente de guerra… era condutor talvez se safasse, pensava ele. Mas mesmo ele como tantos outros foi apanhado numa emboscada. De repente, um estrondo e nada mais até muitos meses após o acontecimento… a memória foi-lhe chegando aos poucos, como que a poupá-lo da violência do incidente de que fora alvo, ele e os outros que seguiam naquela Berliet. Foram ͩͮ dias de escuridão total que o imobilizaram no leito daquele hospital, até recuperar os sentidos, foi submetido de seguida a uma operação à cabeça, tendo ficado internado até recuperar. Agora recordava o que tinha acontecido, estrada fora passara por cima de uma mina, que mandara pelos ares o camião e os tripulantes, todos os companheiros morreram, menos ele, que fora projetado para fora daquela boca de fogo. Sofrera um traumatismo craniano. Pouco recuperara e entretanto foi considerado incapaz para o serviço militar e mandado para casa, regressou à metrópole. Ganhou medo de andar sozinho pela rua, fosse a ͩͫ

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pé ou de carro, a velocidade e a temperatura alteravam-lhe o comportamento e de vez em quando «passava-se» para o outro lado, desmaiava. Daqui em diante tudo seria diferente, perdeu o emprego, passou a vegetar, já não podia trabalhar, a conselho médico, tinha de fazer nova operação para proteger um pouco mais o seu cérebro. Conseguiu algumas melhoras, mas estava implantada a diferença, era o antes e o depois. Nunca mais esqueceria mesmo que muito quisesse, apagar da sua vida, aquela hora fatídica. Fazia agora, parte de um quadro, cujos valores se tinham desmoronado, na sua cabeça, na sua mente, primeiro e depois na sociedade, pagando com o estigma da doença e da inutilidade para o resto da sua vida. Era deficiente das Forças Armadas!!

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Soldado mutilado

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II O SOLDADO DA REVOLUÇÃO

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João viera para a rua gritar Vivas à Liberdade. Um banho de multidão rodeava-o, a ele e a todos os seus camaradas, sentia orgulho nisso e sentia-se importante, pois toda aquela gente estava ali reunida no mesmo propósito, num só corpo e numa só voz. Caminhavam lado a lado, militares e civis para construir um mundo melhor e mais bonito, onde as flores emprestavam a todo o cenário uma aura romântica. Todo aquele cenário se misturava na sua cabeça, onde não faltava a sua Gracinda que ficara lá na terra e que com certeza já teria notícias, ainda que vagas da revolução. Se ela o visse sentiria orgulho nele. Ele só queria que ela estivesse ali também participando naquele cortejo, que ele pressentia ser coisa para contar aos seus filhos e netos mais tarde! Sentia necessidade de a abraçar e falar-lhe de tudo o que lhe ia na alma… com certeza que levada nesta excitação ela se entregaria, tinha a certeza ͩͭ

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disso, não podia resistir ao seu discurso, — claro que era aquele que o comandante de companhia fazia, mas ela não sabia nada disso — não podia resistir à música, às suas atitudes, à sua roupa, ao seu cabelo… tudo era novo na vida dele, talvez até enveredasse pela política mais tarde. A instituição precisava efetivamente de ar fresco, de tornar os homens mais iguais a si próprios, sem aquela rigidez que faz temer mais do que ter respeito pelo superior hierárquico. João vivia excitado, todas as manhãs se punha frente ao espelho, à espera ansiosamente que a sua barba crescesse, como o Che Guevara, cujo poster guardava religiosamente, pois que os tempos eram de liberdade, mas dentro dos muros do quartel, nem tanto… Sentia-se cada dia mais homem, queria parecer mais velho, ter um ar sábio, já que iria integrar as equipas que faziam a «dinamização cultural» por essas terras fora. Sentia orgulho do seu País e do novo «Homem». Dar oportunidade a todo o cidadão de se tornar culto era o máximo e era a missão que competia e tornava imprescindível a instituição militar!

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Soldado exaltado

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Resolvera ficar, ser soldado até ao fim da vida, por amor à liberdade e por acreditar no papel das Forças Armadas.

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III SOLDADO INCOMPREENDIDO

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Se tinha de sair à rua, João deslizava por aquelas ruas e becos, sempre colado aos muros, como se estes o protegessem e lhe devolvessem a sua imagem civil. A sociedade estava tão «civilizada», que tudo o que fosse farda, fosse ela verde, azul ou cinzenta, não era bem vista. O tempo dos cravos dera lugar a um ambiente um pouco hostil dentro e fora das casernas. A disciplina e a rigidez da conduta dentro dos muros dos quartéis ganhava terreno pouco a pouco. A instituição dobrava-se sobre si mesma, farta da promiscuidade civil-militar que a descaracterizara, tentando reerguer o seu corpo de homens e voltar à sua missão de defesa dos territórios e dos povos, que desde a aurora dos tempos era seu papel. Em consequência, João passava quase todo o seu tempo no Quartel com os seus camaradas, saía só para ir às aulas e aos fins de semana visitar a família. Ao fim ͩͱ

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