Moral e Direito em Kant e Habermas

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Kant representa do ponto de vista moral o cume do pensamento filosófico, cujas consequências se fazem sentir com relevo no pensamento contemporâneo. Na primeira parte, a obra Moral e Direito em Kant e Habermas debruça-se sobre a moral kantiana, não só do ponto de vista da sua fundamentação, mas em articulação com o conceito de grandezas negativas, põe a uma nova luz a teoria do mal radical e o respeito (Achtung) como o móbil da lei moral. Habermas publicou, onze anos depois de Teoria do agir comunicativo (1981), um opus magnum, Direito e Democracia, entre facticidade e validade (1992). Trata-se de uma obra de vulto porque aborda o direito e o Estado como um momento capital da modernidade social. A relação complementar entre a ética e o direito, bem como a postura pós-kantiana de Habermas fazem do direito um «sistema de acção» por excelência nas sociedades pós-convencionais. Paralelamente, ao contrário de Kant, a ética do discurso afirma a impossibilidade de uma fundamentação última da moral no quadro do actual pensamento pós-metafísico. Na segunda parte analisa-se o pensamento de Habermas no que diz respeito à relação entre a moral e o direito sob o ângulo do «princípio da democracia».

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MANUEL JOÃO MATOS

MORAL E DIREITO EM KANT E HABERMAS

Manuel João Matos é, desde 1984, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo feito o Doutoramento em 2004. As suas áreas de especialização são Ética e Política na Filosofia Moderna e Contemporânea. Estuda, actualmente, as fontes da moral autonómica e os conceitos de justiça e democracia, nomeadamente em autores como Rousseau, Kant, Rawls e Habermas, etc. Leccionou, entre outras, as cadeiras de Filosofia Política, Filosofia Moderna, Ética Aplicada, História da Filosofia Política e Temas de Filosofia Moderna. Publicou anteriormente Rousseau e a Lógica da Democracia (Lisboa, Colibri, 2008) e Ensaio sobre o Mal em Rousseau (Lisboa, Ex-Libris, 2016).

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FICHA TÉCNICA edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: Moral e Direito em Kant e Habermas autor: Manuel João Matos revisão: Patrícia Espinha capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, Dezembro 2017 isbn: 978-989-8867-18-6 depósito legal: 432995/17 © Manuel João Matos

publicação e comercialização:

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Índice

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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PRIMEIRA PARTE

A FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL E O MAL RADICAL EM KANT

CAPÍTULO I – Kant e a fundamentação da moral . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO II – Grandezas negativas e mal radical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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SEGUNDA PARTE

MORAL E DIREITO EM HABERMAS

CAPÍTULO III – Moral, direito e democracia em Habermas . . . . . . . . . 89 CAPÍTULO IV – Habermas e a impossibilidade da fundamentação da moral pelo discurso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 Índice Onomástico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 7

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Agradecimentos Os meus agradecimentos ao Professor Doutor Michel Renaud, Professor Catedrático Aposentado da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, à Professora Doutora Isabel Renaud, Professora Catedrática Aposentada da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, e ao Professor Doutor Francisco Caramelo, Director da FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Os meus agradecimentos à minha mãe Rosa Benedita Matos, à minha irmã Ana Matos, ao meu filho João Matos e à minha mulher Sílvia Matos.

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Abreviaturas

Kant’s Gesammelte Schriften, hrsg. von der Preussischen Akademie der Wissenchaften zu Berlin, 1902-, à qual remetemos pela sigla Ak, seguido do tomo em numeração romana e do número da página em numeração árabe. Vedersuch den Begriff der negativen Grӧssen in die Weltweisheit einzuführen (1763), Ak II. KrV Kritik der reinen Vernunft (1781, 1787), Ak III. GMS Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785), Ak IV. KpV Kritik der praktischen Vernunft (1788), Ak V. MS Metaphysik der Sitten (1797-1798), Ak VI. Religion Religion innerhalb der Grenzen der Blossen Vernunft (1793-1794), Ak VI. VnG

As restantes obras de Kant são indicadas pelo respectivo título. As obras de Habermas, publicadas pela editora Suhrkamp Verlag desde 1962, são indicadas pelos títulos originais in extenso.

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Introdução Kant trouxe contribuições seminais para a fundamentação moral do direito moderno. Em 1797, na Metafísica dos Costumes, a preocupação principal era a aplicabilidade do princípio moral exposto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), isto é, a aplicação do imperativo categórico ao âmbito da teoria moral e jurídica. Para tal, admite a necessidade de leis éticas e jurídicas, dando-lhes fundamentos racionais, pelo imperativo categórico, o princípio supremo da moralidade. O peso da fundamentação moral do direito em Kant fez com que a sua teoria jurídica surgisse, no contexto da tradição jurídico-filosófica, como uma teoria racional a priori do direito, isto é, sem depender de justificações teológicas, de bases empíricas ou de qualquer contingência histórica, implicando a ruptura com a concepção tradicional tanto do Estado como do direito. Segundo Kant, à condição jurídica como «a relação dos seres humanos entre si que engloba as condições sob as quais exclusivamente pode cada um participar do seu direito e o princípio formal da possibilidade do mesmo, considerado de acordo com a ideia de uma vontade legisladora universal, chama-se justiça pública»1, e a doutrina do direito é o conjunto das leis pelas quais é possível uma legislação externa. Kant

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KANT, I., MS, Ak VI, 305-306. 13

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define o direito como «o conjunto das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com a lei universal da liberdade»2. No conceito kantiano de direito, a liberdade – que na sua filosofia é um pressuposto moral –, é posta como o critério de legitimação das acções, apontando para a imbricação e subordinação do direito à moral. Em Zum ewigen Frieden (1795), demarcando os limites da relação entre a moral, o direito e a política, o direito aparece já fundamentado na moral e a política figura como a doutrina aplicada do direito. Estava, assim, configurada a interconexão entre a moral, o direito e a política como o tripé de sustentação de todo o Estado republicano. Na Metafísica dos Costumes, expõe pela primeira vez de modo sistemático a relação entre a moral e o direito. A moral aparece como a instância fundamentadora da legislação jurídica (que é passível de coerção externa) quanto à legislação ética (que não admite coerção externa, mas somente motivos internos e subjectivos para a realização da acção). O direito, como a condição de possibilidade das liberdades externas, é uma instância normativa, e Kant sabia de antemão que de factos não se podem derivar normas. Assim, a sua tese é a de que o direito não pode ter o seu fundamento no empírico, no histórico, nos costumes ou na dimensão fáctica, mas a sua legitimidade deve ser deduzida a priori da própria ideia da liberdade (Freiheit als Idee). É a partir da liberdade que o direito kantiano é subordinado à moral, porque tal liberdade é, por excelência, uma ideia moral da razão prática. Na Crítica da Razão Prática (1788), Kant estabelece que a liberdade é uma ideia a priori, independente da causalidade natural dos fenómenos e, por isso, está ancorada na razão humana enquanto faculdade legisladora universal.

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KANT, I., MS, Ak VI, 230. 14

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Ora, diz Kant, «como a cabeça de madeira da fábula de Fedro, uma doutrina do direito meramente empírica é uma cabeça possivelmente bela, mas que, infelizmente, não tem cérebro»3. O cérebro do direito kantiano é, neste sentido, o direito natural da liberdade que, por sua vez, é uma ideia moral. Kant afirma que «os direitos, como doutrinas sistemáticas são divididos em direito natural, o qual se apoia somente em princípios a priori, e direito positivo (estatuário), o qual provém da vontade de um legislador»4. O direito natural, entendido não mais em termos teológicos, mas logonómicos, constitui o parâmetro para o direito positivo e só a liberdade pode fundamentar o direito porque, sendo uma ideia moral da razão prática, é universal e, por isso, fornece os fundamentos imutáveis para o direito positivo. Assim, Kant empreende a reelaboração do direito natural, mas é neste que reside a pedra de toque do direito positivo, numa noção meta-positiva e, simultaneamente, meta-histórica, da justiça ancorada no carácter inteligível da moral. A conexão, sempre presente na filosofia prática de Kant, entre a liberdade e a universalidade carrega consigo a marca do imperativo categórico no que diz respeito ao procedimento de universalização das normas. O direito – conjunto de imperativos hipotéticos – para ser justo deve legitimar-se no imperativo categórico. A legitimação do direito na moral significa que a norma jurídica deve passar no teste de universalização e valer também como lei moral universal. Kant, ao tratar da relação entre a teoria e a prática, já havia reforçado a ideia de que o fundamento do direito decorre do conceito de liberdade (universalidade) e não do conceito de felicidade (generalidade empírica) e deixa claro que «a cada um é permitido buscar a felicidade pela via que lhe

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KANT, I., MS, Ak VI, 230. KANT, I., MS, Ak VI, 237. 15

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parecer boa, contanto que não cause dano à liberdade dos outros (isto é, ao direito de outrem)»5. Sendo o direito kantiano, mesmo o estatutário, proveniente do direito natural racional, a sua função é a de preservar o que foi celebrado na ideia de contrato originário, a saber, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. O Estado de direito kantiano repousa «na condição em que a sua constituição se conforma o mais plenamente aos princípios do direito; é por esta condição que a razão, mediante um imperativo categórico, nos obriga a lutar»6. Portanto, a liberdade é o cérebro ou o fundamento do direito e a razão prática é a instância última pela qual são possíveis leis universais. Assim como o princípio da universalidade obriga a vontade a cumprir as máximas auto-impostas pela lei moral, também o direito obriga os sujeitos de liberdade externa a cumprir a legalidade universal, uma vez que os deveres do direito dizem respeito somente às obrigações cuja transgressão inviabilizaria a priori a coexistência da liberdade externa. O procedimento seguido por Kant na Doutrina do Direito é característico de toda a sua filosofia prática, recorrendo em última instância ao imperativo categórico e às suas consequências práticas e teóricas e, no caso da doutrina do direito, ao postulado jurídico da razão prática pura. É certo que deveres officia debiti, como são os do direito, não podem ter valoração moral, pois ao serem considerados grandezas negativas passíveis de correcção (coerção) são axiologicamente neutros. Contudo, o conceito racional de direito (direito natural), que tem para a legislação o significado de um padrão supremo de medida

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KANT, I., Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, Ak VIII, 290. 6 KANT, I., MS, Ak VI, 318. 16

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crítico-normativo, está apoiado na ideia de liberdade ou no imperativo categórico. Direito e virtude participam da doutrina dos costumes e têm os mesmos fundamentos últimos, pela unidade da razão prática; as duas legislações são provenientes da autonomia da vontade. A autonomia da vontade é o fundamento das duas legislações e o princípio supremo da metafísica dos costumes é o imperativo categórico. Quanto à origem dos ordenamentos, Kant irá apresentar uma visível distinção entre a lei ética e a lei jurídica: a legislação que faz de uma acção um dever e desse dever, por sua vez, um móbil é ética. Mas a que admite também outro móbil distinto da própria ideia de dever é jurídica. Enquanto a acção feita conforme ao dever diz respeito a uma lei imposta exteriormente (esfera da legalidade), uma acção praticada por dever irá pressupor uma esfera moral interior ao indivíduo, cujos limites residem no próprio imperativo categórico. Assim como a fórmula imperativa de todo o dever ético, também a lei do direito se pauta por um princípio formal em que a negatividade do direito respeita à limitação das acções que não estão em conformidade com aquele, tendo em consideração não poderem tornar-se objecto de uma legislação universal. Em suma, o direito integra o sistema moral e está subordinado a ele. Ambas as legislações da liberdade, a ética e a do direito, são enformadas pelo imperativo categórico. Neste sentido, a obrigatoriedade dos deveres origina-se na razão prática e manifesta-se através dos imperativos da acção. A diferença reside em que enquanto na esfera da legalidade se pode fazer uso da coerção para a manutenção da liberdade, à esfera moral resta a auto-coação à lei como a condição necessária para a ética. O direito e a moral distinguem-se pela diferença da legislação que une um e outro móbil à lei. Assim, o factor de distinção entre o ético e o jurídico é o móbil, que no caso da legislação jurídica implica ater-se à legalidade, isto é, obedecer às leis com a possibilidade de motivos alheios à ideia do dever. Já seguir as leis da legislação ética 17

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implica obedecer às leis por puro dever. A legislação do direito, por um lado, só é possível para leis que se referem ao arbítrio exterior das pessoas e, por outro lado, só é moralmente possível quando contém as leis universais da liberdade. Em Kant, a cada obrigação jurídica corresponde um dever da legislação ética e deve-se agir sempre pelo simples dever sempre que não haja uma motivação externa eficaz. Passando agora para Habermas, logo no início de Faktizität und Geltung (1992), adverte que a sua intenção não é a de criar uma teoria do direito, mas analisar o direito a partir da sua teoria da sociedade e da sua ética discursiva. Ele parte da tese fundamental de que, no contexto pós-convencional, o direito não pode mais fundamentar-se numa moral metafísica, como em Kant. Habermas, mesmo defendendo a autonomia da esfera jurídica, não é defensor de uma cisão entre a moral e o direito. A sua preocupação fundamental é que o direito não se transforme numa simples esfera subserviente da moral. Como Kant, Habermas defende a imbricação entre o direito, a moral e a política, contudo, ao contrário de Kant, defende a tese segundo a qual cada uma dessas esferas mantenha a sua autonomia, de modo a que uma não se dilua na outra. A compreensão da relação entre a ética e o direito a partir da ética discursiva implica que as normas jurídicas não são mais produtos de uma racionalidade abstracta e desconexa do «mundo da vida» (Lebenswelt), mas produtos de consensos de ordem argumentativa. De facto, um dos pontos de contacto mais elucidativos entre Kant e Habermas é a relação estabelecida entre o direito e a moral. Nas Tanner Lectures, de 1986, agrupadas em Recht und Moral, a questão em causa era a legitimidade da legalidade. Habermas defendia nessa altura que o direito e a moral se complementam. Mas, mais do que essa relação complementar, importa o entrelaçamento recíproco da moral e do direito. Habermas é crítico em relação a Kant, quando constata que a moral não está mais acima do direito, como ocorre no direito racional de 18

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Kant, mas «a moral emigra para o direito positivo, sem perder a sua identidade»7. A posição inicial de Habermas em Recht und Moral não será mantida em Faktizität und Geltung. Nesta última, é a democracia e não a moral que está comprometida com o princípio do discurso e a forma jurídica. Trata-se de um processo circular, segundo Habermas, «em que o código do direito e o mecanismo para a geração do direito legítimo, portanto, o princípio democrático, constituem-se co-origirariamente»8. No Prefácio de Faktizität und Geltung, o autor chama a atenção para esta mudança, quando afirma que «actualmente, cheguei a uma determinação da relação complementar entre a moral e o direito que difere daquela que propus nas minhas ainda recentes Tanner Lectures»9. Enquanto em Recht und Moral a moral designa a legitimidade do direito e a noção de complementaridade submete o direito à moral, isto é, a moral fundamenta a validade jurídica, em Faktizität und Geltung Habermas esclarece que a ideia de uma hierarquia entre a moral e o direito pertence ao mundo pré-moderno, para concluir que «a moral autónoma e o direito positivo, que depende de fundamentação, encontram-se numa relação de complementaridade recíproca»10. A alteração na trajectória filosófica de Habermas quanto ao modo de conceber as relações entre a moral e o direito reflecte a substituição do «facto da razão» (Faktum der Vernunft) kantiano por um discurso neutro do ponto de vista deontológico. Segundo Kant, é em virtude do poder vinculador da lei moral que se tem consciência da liberdade e

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HABERMAS, J., Recht und Moral, Tanner Lectures 1986 aus «Faktizität und Geltung», in Faktizität und Geltung, p. 568. 8 HABERMAS, J., Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats, p.155. 9 HABERMAS, J., Faktizität und Geltung, p. 10. 10 HABERMAS, J., Faktizität und Geltung, p. 137. 19

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a certeza da pertença a um mundo que não está submetido à causalidade das leis naturais. A garantia da realidade objectiva do princípio superior da razão pura e prática reside na faculdade da razão determinar a vontade na pretensão de ser, ela própria, vontade pela síntese pura prática. Ora, Habermas não concebe, como Kant, a razão prática somente pelo respeito pela lei moral, mas, como afirma já na segunda edição de Conhecimento e Interesse (1973), pela sua inserção na comunidade ideal de comunicação dos sistemas sociais e, mais recentemente, depois da «viragem linguística» da Teoria do agir comunicativo (1981), como um objectivo imanente ao telos da linguagem ordinária. Habermas afirma que somente uma fundamentação do princípio moral, que não se dá por satisfeita em apontar para um «facto da razão», pode esvaziar a suspeita de um sofisma etnocêntrico que, quanto à moral, paira sobre as sociedades ocidentais. Em Habermas, a autonomia kantiana da vontade dá lugar à figura do pensamento da «auto-legislação democrática» que, teórica e discursivamente, revela que «os destinatários do direito são, ao mesmo tempo, os seus autores»11, mostrando a origem simultânea da autonomia privada, na acepção kantiana, e da autonomia pública, de cariz rousseauniano. A substituição da razão pura prática pelo exercício da «auto-legislação democrática» (figura de pensamento realizada na praxis) equivale a uma translação discursiva da moral, em que ela abandona o campo exclusivo da razão prática, passando a integrar o domínio da razão teórica, e o princípio do discurso “D” enforma a praxis dos Estados democráticos de direito. Com esta mudança, a ética discursiva assume a feição cognitiva da acção comunicativa reclamada na «viragem linguística».

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HABERMAS, J., Faktizität und Geltung, p. 153. 20

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Se assim não fosse, a Crítica da Razão Prática teria resultado no mal-entendido do «faktum da razão» porque nada pode ser mais ao gosto do céptico moral do que o uso sintético da razão pura e prática esteja comprometido com uma dedução transcendental do princípio supremo da moralidade que, como afirma Kant, «mostra-se aqui – temos de confessá-lo francamente – uma espécie de círculo vicioso do qual, ao que parece, não há maneira de sair»12. Logo no Prefácio de Faktizität und Geltung, Habermas é lapidar ao afirmar que «elaborando a Teoria do agir comunicativo, substituí a razão prática pela razão comunicativa» e não deixa dúvidas quanto ao alcance da sua mudança: «isto é mais do que uma troca de etiquetas»13. Em Habermas, o discurso moral liberta-se do «faktum da razão» kantiano, que é substituído por uma regra de universalização do discurso argumentativo “U” em que as normas éticas, cognitivamente cunhadas pelo discurso, são fundamentadas por meio de condições procedimentais universalizáveis. Embora seja impossível conhecer antes do terminus do discurso – per se interminável – o que é moralmente correcto, como se houvesse um discurso derradeiro por definição, o que não é o caso, Habermas crê ser possível defender, contra as objecções do céptico em matéria moral, a noção cognitiva da universalidade moral, embora renuncie a contribuições substanciais próprias. Em Consciência moral e agir comunicativo (1983), Habermas combate resolutamente o cepticismo moral, defendendo que em ética temos de partir da suposição mais fraca de uma pretensão «análoga à verdade». A tarefa de neutralizar a posição céptica e a correspondente fundamentação da moral é enunciada pelo princípio discursivo da ética do

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KANT, I., GMS, Ak IV, 450. HABERMAS, J., Faktizität und Geltung, p. 17. 21

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discurso, identificado por “D”, de acordo com o qual só podem reclamar validade as normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de todos os participantes de um discurso prático. Segundo Habermas, logo que «o princípio de universalização “U”» é aplicado às consequências e aos efeitos colaterais que previsivelmente resultam de uma obediência geral da regra controversa para a satisfação dos interesses de cada indivíduo, as normas devem poder ser aceites sem coação por todos. Contudo, a cláusula da universalidade requerida pelas normas morais, exclui determinadas formas de egoísmo e combate particularismos excessivos, mas não está em condições de dar orientações substanciais próprias, pois a exigência de universalização permanece refém dos respectivos conteúdos originados no consenso. No âmbito de uma fundamentação teórica coerente, as convicções morais não adquirem qualidade reflexiva e validade substancial devido a procedimentos lógico-formais, mas graças à sua concordância e interacção com outras posições congéneres. A validade das convicções morais depende da consistência que sanciona interesses práticos, ratifica pontos de vista teóricos e viabiliza orientações semanticamente significativas. Um desempenho informativo, que não vá para além de conceptualizações generalizantes, não condiz com os critérios de universalidade. Nesta perspectiva, Habermas postula a reformulação do imperativo categórico kantiano; «ao invés de prescrever a todos os demais como válida uma máxima que quero que seja uma lei universal, tenho de apresentar a minha máxima a todos os demais para o exame discursivo da sua pretensão de universalidade»14. O que, no imperativo categórico, o indivíduo pode querer sem contradição como lei universal desloca-se, na vontade comum de todos pelos princípios “U”/“D”,

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HABERMAS, J., Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, p. 77. 22

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para o que todos querem de comum acordo reconhecer como norma universal. Habermas propõe a reformulação intersubjectiva do imperativo categórico de Kant, cujo traço mais saliente é o seu monologismo transcendental. Segundo Kenneth Baynes, «como uma regra de argumentação que é constitutiva para um discurso prático, o princípio U pode ser considerado como uma reconstrução comunicativa ou intersubjectiva do imperativo categórico de Kant»15. Para Habermas, o imperativo categórico de Kant tem o mérito da universalização, mas o seu procedimento é ainda limitado ao pólo individual de um sujeito que a partir da sua consciência confere validade a uma regra de acção, isto é, a proposta kantiana seria ainda restrita a uma perspectiva monológica. Rawls também não foi capaz de romper com esta limitação procedimental, quando pressupôs o «véu de ignorância» na «posição original», na tentativa de oferecer princípios puros de justiça, porque as partes na referida posição deveriam estar isentas de informações, o que levaria à neutralização das múltiplas cosmovisões envolvidas. Pelo contrário, a ética discursiva incorpora o ponto de vista moral no procedimento argumentativo intersubjectivo, levando todos os participantes a uma conciliação idealizante das suas perspectivas interpretativas. O direito pensado em termos discursivos promove uma deflação transcendental: a validade das normas jurídicas não é mais justificada a partir de uma moral metafísica e de uma razão auto-referenciada. Habermas fala de uma razão destranscendentalizada como base do agir comunicativo. Internamente à moldura conceptual mentalista, Kant concebe a auto-compreensão racional dos autores como um saber de si, por meio do qual se confronta esse conhecimento da primeira

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BAYNES, K., The normative grounds of Social Criticism: Kant, Rawls and Habermas, New York, State of New York Press, 1992, p. 108. 23

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pessoa com o da terceira pessoa de um observador. Entre ambos existe um desnível transcendental, de tal maneira que a auto-compreensão do sujeito inteligível não pode ser fundamentalmente corrigida através do conhecimento do mundo. Contrariamente à perspectiva de Kant, os sujeitos agindo comunicativamente tratam-se como falantes e destinatários, nos papéis de primeira e segunda pessoas, colmatando as suas diferenças, no mesmo nível de compreensão entre os falantes, no pressuposto de uma simetria discursiva. Ao contrário de Kant, que parte de uma harmonia pré-estabelecida entre os diferentes sujeitos transcendentais na universalização das máximas morais, Habermas defende que entre os sujeitos falantes existe um desnível transcendental que funciona ao nível do «mundo da vida», como as inúmeras desigualdades, entre elas sociais e educacionais, que precisam ser colmatadas pela força não coactiva do melhor argumento. Assim, a ética discursiva traz a vantagem, em relação à ética de Kant, de não ser gerada no quadro transcendental monológico, enfrentando na praxis da vida, a operacionalização e a resolução de conflitos intersubjectivos, quando os agentes morais entram em consenso sobre as normas morais ou jurídicas que devem ser universalizadas no âmbito da pluralidade dos mundos da vida ou na constelação mais alargada de uma «situação ideal de fala». Habermas considera que «diferindo das normas morais, que constituem sempre um fim em si mesmas, as normas jurídicas servem também como meios para fins políticos. Elas não existem apenas para solucionar, de modo imparcial, conflitos de acção, como é o caso da moral, mas também para a efectivação de programas políticos»16. O direito constitui o medium entre a política e a moral, uma vez que trata tanto de argumentos jurídicos como de argumentos morais,

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HABERMAS, J., Recht und Moral, Tanner Lectures 1986 aus «Faktizität und Geltung», in Faktizität und Geltung, p. 567. 24

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constituindo o «medium» de assimilação de ambas as práticas. Agora, a moral não está mais «sobre» o direito, como na construção do direito racional de Kant, mas emigra para o direito positivo, sem perder a sua identidade. Assim, o direito e a moral têm a capacidade de se controlarem mutuamente. Quanto a Kant, o momento de indisponibilidade inserido no âmago dos fundamentos morais do direito é tão elevado que o direito positivo é subsumido pelo direito natural racional. Então, restaria pouco espaço para o aspecto procedimental do direito do qual se serve o legislador político para as suas tarefas de estruturação pública. Em analogia, existiam então dois mundos platónicos. De um lado, a res publica noumenon, supra-sumo de toda a ordem do direito que, como ideia justificada pela razão pura prática, deve ser seguida do modo mais fiel possível; do outro lado, a res publica phaenomenon, ou seja, o fenómeno social de uma ordem instituída. A problemática aponta justamente para o problema da subordinação do direito e da política como simples meios de consecução das leis da razão prática. Por isso, Habermas afirma que a posição de Kant acerca da legitimação do direito precisa de ser reformulada no quadro da ética discursiva. O que antes era entendido a partir do imperativo categórico passa agora a dispor do princípio de universalização do discurso “U”. Finalmente, «a construção de Kant, segundo a qual a política e o direito eram subsumidos aos imperativos morais do direito racional, é desmentida, tanto na dogmática do direito privado, como na teoria do estado jurídico – quer na perspectiva da justiça, quer na perspectiva do legislador político»17. Em suma, quando a política e o direito são conduzidos pelas leis da razão prática, no posicionamento subordinado

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HABERMAS, J., Recht und Moral, Tanner Lectures 1986 aus «Faktizität und Geltung», in Faktizität und Geltung, p. 594. 25

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de órgão de execução, a política perde a sua competência legislativa e o direito a sua positividade. Por isso, Kant recorre às premissas metafísicas da teoria dos dois reinos para distinguir, de algum modo, ainda que contraditório, a legalidade e a moralidade.

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PRIMEIRA PARTE

A Fundamentação da Moral e o Mal Radical em Kant

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CAPÍTULO I

KANT E A FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL

As estratégias de fundamentação da lei moral são múltiplas na obra de Kant. Por um lado, temos uma dupla estratégia, analítica e sintética, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outra estratégia na Crítica da Razão Prática que parte do «Faktum» da razão como o fundamento da lei moral. A estratégia da Fundamentação comporta três momentos, correspondentes a cada uma das secções da obra. Na primeira secção, a lei moral é apresentada como subjacente às nossas diferenças morais comuns; a segunda secção centra-se na obtenção do princípio da moralidade a partir da concepção de ser racional e, por fim, na terceira secção, há a tentativa de dedução da lei moral a partir da liberdade, o que significa uma prova da validade da lei moral para seres sensíveis racionais. A estratégia da Crítica da Razão Prática inverte o sentido da prova, partindo do «faktum» auto-evidente da moralidade, para obter a liberdade. Na primeira secção da Fundamentação, a partir do entendimento moral comum, Kant mostra que o imperativo categórico subjaz à moralidade ordinária. A distinção de agir por dever e conforme ao dever são facilmente acessíveis à compreensão comum e o vulgo considera que há mais valor na acção por dever do que conforme ao dever. A apresentação do imperativo categórico na primeira secção segue o estilo retórico do convencimento, por parte de Kant, de que o 29

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imperativo categórico não é estranho às nossas intuições morais ordinárias, mas subjaz aos nossos juízos morais comuns. Tal não significa que usamos esta fórmula cada vez que indagamos sobre o carácter moral de uma acção, mas que, ao ser apresentada em forma de imperativo categórico, a reconheceríamos como o fundamento, ainda que não explícito em cada juízo, das nossas distinções morais comuns. Segundo Paul Guyer, a estratégia da Fundamentação é a do auto-conhecimento das nossas distinções morais. O alvo principal seria o utilitarismo, segundo o qual a fonte da motivação moral seria a felicidade. A estratégia de auto-conhecimento seria levada a cabo, na primeira secção da Fundamentação, onde «Kant defende que uma genuína, senão mesmo total, compreensão do princípio fundamental da moralidade é reflectida na nossa compreensão comum da boa vontade e do dever nos juízos morais que fazemos sobre os casos particulares da acção comum»18. A Fundamentação enraíza-se na descoberta metafísica do homem como ser livre directamente incrustada na consciência comum. É uma «metafísica do senso comum»19 ou ainda a descoberta que «a consciência comum é um uso prático da nossa razão»20. Kant mostra que a distinção entre o valor moral e os móbeis morais não são invenções do filósofo, nem contra-intuitivas, mas o senso moral comum admite como verdadeiras. O apelo ao senso moral comum e à sua forma de imperativo é claro nas palavras de Kant: «Então aqui chegamos, dentro da razão humana comum, ao seu princípio, o qual assumidamente não pensa de forma tão abstracta na sua forma

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GUYER, P. (ed.), Groundwork of the Metaphysics of Morals, Critical Essays, Lanham, Bowman & Littlefield Publishers, 1998, p. 242. 19 PHILONENKO, A., Introduction à la Doctrine de la vertu, Paris, Vrin, 1996, p. 14; 24. 20 DELBOS, V., La philosophie pratique de Kant, Paris, P.U.F., 1969, 3.ª ed., p. 279. 30

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universal, mas o qual realmente sempre tem diante si e o usa como a norma dos seus julgamentos»21. Kant ressalva que a razão comum não pensa de forma tão abstracta cada vez que age e não é necessário formularmos o princípio em cada situação moralmente relevante, para admitirmos a validade do seu princípio. Neste sentido, as objecções levantadas por vários críticos de Kant, de que a filosofia kantiana exige que se pense muito antes de agir, referem-se mais a uma caricatura de Kant do que ao indicado por Kant. A validade do princípio não implica que seja formulado por cada agente no momento da sua acção, mas que seja reconhecido como a regra de avaliação das máximas morais. O empirismo apela às distinções morais comuns para provar que o princípio da utilidade é a fonte do valor. No Enquiry Concerning the Principles of Morals (1651), Hume tenta localizar o erro das teorias morais que não admitem o princípio da utilidade no equívoco de rejeitar um princípio conforme à experiência, apenas pela dificuldade em encontrar uma origem teórica ou alcançá-lo com outros princípios teóricos mais abrangentes. Hume acusa os outros filósofos de se apoiarem em princípios morais para os quais não podem oferecer alguma dedução teórica, quando tais princípios são facilmente constatados pela experiência. Na primeira secção da Fundamentação, intitulada «Passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao conhecimento filosófico»22, Kant contra-ataca Hume no seu próprio terreno e segue o entendimento filosófico de Rousseau. Allen Wood salienta a ideia kantiana da «igualdade humana»23 quanto às capacidades morais do 21

KANT, I., GMS, Ak IV, 404. KANT, I., GMS, Ak IV, 392. 23 WOOD, A., Kant’s Ethical Thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, pp. 5-6: «Kant’s commitment to the equal worth of all human beings pervades 22

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ser humano ou o pressuposto democrático da ética kantiana da igual dignidade do ser humano, que se deve à influência de Rousseau. No respeito pelo mais humilde dos mortais, co-extensível a toda a humanidade no reino dos fins, faz-se ouvir a sublimidade da lei moral no âmago da «personalidade». Tal ideia é corroborada por Kant nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (1764), publicada dois anos após o Émile (1762), em que Kant descobriu os contornos de uma nova filosofia moral, denominando Rousseau o «Newton do mundo moral»24: «Eu sou por gosto um investigador. Sinto toda a sede de conhecer, o desejo inquieto de estender o meu saber ou ainda a satisfação de todo o progresso realizado. Houve um tempo em que cria que tudo isso poderia constituir a honra da humanidade, e desprezava o povo, que é ignorante em tudo. Rousseau desenganou-me deste cego preconceito. Esta ilusória superioridade dissipou-se; aprendi a honrar os homens; e encontrar-me-ia bem mais inútil que o comum dos trabalhadores, se não cresse que o objecto deste estudo pudesse dar a todos os outros um valor que consiste nisto: fazer a defesa dos direitos da humanidade.»25

Sob qual aspecto a humanidade deve ser ela própria considerada para estar em posse destes atributos e direitos soberanos? Kant viria a aprendê-lo de Rousseau: «A Rousseau, talvez mais do que a Hume, afirma Delbos, conviria a famosa expressão de que ele despertou Kant do seu sono dogmático»26. his ethical thought [and] acknowledges the influence of Jean-Jacques Rousseau in shaping his moral outlook». 24 KANT, I., Ak XX, 58-59. 25 KANT, I., Ak XIX, 145. 26 DELBOS, V., La philosophie pratique de Kant, Paris, P.U.F., 1969, 3.ª ed., pp. 96-97. 32

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O ponto de partida da ética kantiana, radicado na moral ordinária, possibilita ultrapassar a tradição racionalista vigente na época, de Leibniz a Wolff – assim, Kant afastou-se completamente da concepção moral leibniziana que estabelece graus do mal ao bem e concebe a passagem de um ao outro segundo a lei da contingência, defendendo que o mal é privatio boni. Ora, como Kant defende no Ensaio para introduzir em filosofia o conceito de grandezas negativas (1763), obra quase contemporânea das Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, no mundo moral como no mundo físico requer-se uma força oposta, não lógica, mas real, para destruir uma determinada força, não só quanto ao bem e ao mal, como aos outros predicados do mundo psíquico. A teoria do Ensaio defende que a oposição real é irredutível à oposição lógica, que é definida, não por uma relação como a de não-A a A, mas por uma relação como a de –A a +A, ou seja, ela não pode ser explicada pelo princípio da contradição. Em lógica, uma coisa não admite predicados opostos; na realidade, comporta estes predicados. Kant não trata como simples faltas de virtude os pecados por omissão: para omitir uma boa acção, é necessário resistir por uma certa força à potentia da lei que no coração de todo o homem comanda a amar o próximo; o não-amor é uma oposição real ao amor; o vício não é uma privação (privatio) ou uma falta de virtude. Seguindo a linha da investigação em direcção à fundamentação da lei moral na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, os passos da argumentação podem ser concatenados do modo que se segue na primeira secção. Kant parte da moralidade ordinária, ou seja, do senso comum moral que é expresso através do valor incondicional que é dado à boa vontade. O argumento tem então como primeira premissa a proposição: 1) uma boa vontade possui um valor absoluto27.

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A primeira secção visa dar resposta ao que se entende por boa vontade. Kant afirma que a boa vontade tem um valor absoluto; ora, o valor absoluto é o que supera qualquer outro tipo de valor. O valor absoluto relativo à acção humana e à moralidade é o valor moral. Temos, então, a segunda proposição da exposição da Fundamentação: 2) uma acção humana é moralmente boa se e apenas se for realizada por dever. Assim, chegamos à proposição segundo a qual uma acção é moralmente boa se e apenas se for feita por dever porque tem um valor moralmente absoluto. A acção por dever não tem o seu valor no efeito da acção, portanto, ela deve ser julgada segundo uma máxima. Desta forma, obtemos a seguinte proposição: 3) agir por dever é relativo apenas à máxima de acordo com a qual a acção é decidida. O princípio subjectivo da vontade denomina-se máxima, enquanto os princípios práticos objectivos são as leis práticas, quer dizer, válidos para todo o ser racional. O valor moral de uma acção é a qualidade da sua máxima que deve ser adoptada não em função do conteúdo, mas da sua forma, portanto, obtém-se a seguinte proposição: 4) o princípio formal do querer, o princípio da adopção das normas morais em virtude da sua forma, é simplesmente a exigência de que a minha acção seja conforme à lei universal. A boa vontade deve ser determinada por um princípio formal, e não material. O princípio formal deve ser válido para todo o ser racional, e não apenas para uma vontade subjectiva. Logo 5) a lei moral obriga a que se aja de tal forma que possa querer que essa máxima se torne lei universal. Então, como agir por dever é agir segundo a lei moral, resulta que 6) agir por dever é agir apenas segundo a máxima que pode ao mesmo tempo ser desejada como lei universal. A partir da concepção pré-analítica da boa vontade, extraímos a concepção da lei moral como aquela que deve ser seguida por uma vontade que possui um valor absoluto e é guiada por uma lei formal a

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priori com validade universal. Tal é, em traços gerais, a argumentação da primeira secção da Fundamentação. A segunda secção da Fundamentação inicia-se com a afirmação de que «se nós, até agora, retiramos o nosso conceito de dever do uso comum da razão prática, não significa que o tratamos como um conceito da experiência»28. Kant propõe, então, que a fórmula do imperativo categórico seja obtida analiticamente do conceito de ser racional: «como as leis morais devem valer para todo o ser racional, elas devem poder ser derivadas do conceito universal de um ser racional em geral»29. Kant mostrou como o imperativo categórico é obtido a partir da noção de boa vontade; a segunda secção mostrará como o imperativo categórico pode ser obtido a partir do conceito de ser racional. Somente a terceira secção mostrará que o imperativo categórico é válido para seres racionais sensíveis, isto é, teremos uma verdadeira prova da validade do imperativo categórico. A prova de um possível uso sintético da razão prática pura é deixada para a terceira secção da Fundamentação, onde é provado que somos uma instanciação do conceito de ser racional e sensível. O imperativo categórico não foi, até este ponto, formulado com base na finalidade que determina a vontade racional. É o que Kant fará na segunda formulação do imperativo categórico, conhecida como a fórmula da Humanidade como um fim em si mesma: «Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem sempre ao mesmo tempo como um fim, e nunca simplesmente como um meio»30. A terceira fórmula do imperativo categórico é obtida a partir da concepção da vontade do ser racional como uma vontade legisladora universal. A vontade autónoma, que se dá as suas próprias leis, é o

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KANT, I., GMS, Ak IV, 406. KANT, I., GMS, Ak IV, 412. KANT, I., GMS, Ak IV, 429. 35

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único fundamento possível da obrigação moral. O reconhecimento dessa vontade auto-legisladora está expresso na fórmula da Autonomia: «a ideia da vontade de todo o ser racional [deve ser] concebida como uma vontade instituindo uma legislação universal»31, quer dizer, «uma vontade instituindo por todas as suas máximas uma legislação universal». Kant afirma em várias passagens da segunda secção que, dado um determinado conceito de ser racional, poder-se-ia obter analiticamente a lei moral. «Como tal proposição sintética é possível a priori e porque é necessária é um problema cuja solução não reside nos limites de uma metafísica dos costumes, e não afirmamos aqui a sua verdade, muito menos pretendemos ter uma prova dela em nosso poder. […] Esta secção, como a primeira, foi meramente analítica»32. Contudo, a conexão entre o imperativo categórico e a vontade de um ser racional é sintética e não analítica. Kant apresenta a conexão entre o imperativo categórico e a vontade de um ser racional sensível como sintética, pois acrescenta uma determinação que não estava aí contida. A prova da possibilidade do imperativo categórico para seres racionais teria duas etapas: qualquer acção de um ser racional deve ter não somente uma forma, mas também uma finalidade ou objecto, além de um móbil ou motivo. A finalidade seria dada pela fórmula da Humanidade, o móbil ou motivo pela fórmula da Autonomia. A obtenção da fórmula da Humanidade e da Autonomia é feita analiticamente a partir do conceito de ser racional. Tal obtenção, sendo analítica, Kant comentando o carácter sintético do imperativo categórico, referir-se-ia ao que vai provar na terceira secção, ou seja, que o imperativo categórico é válido para uma vontade racional sensível. Assim, há uma distinção entre o princípio moral como uma lei

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válida em geral para uma vontade perfeita e como imperativo válido para uma vontade imperfeita. Somente o imperativo moral ou categórico seria caracterizado como uma proposição sintética, enquanto a lei moral poderia ser derivada analiticamente. Kant afirma no final da segunda secção que apenas foi realizada uma obtenção analítica da lei moral. Só na terceira secção, há uma prova de que o imperativo categórico é válido para seres racionais sensíveis. Assim, embora o princípio da moralidade tenha sido descoberto e exposto, resta o problema da validação do princípio. Na terceira secção, trata-se de mostrar que o imperativo categórico é válido para seres sensíveis racionais, isto é, de que somos uma instanciação do conceito de ser racional e de uma vontade imperfeita e, como tal, toda a Fundamentação culmina na terceira secção onde se irá proceder a uma «dedução» da lei moral. A terceira secção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes é um dos textos mais complexos e controversos de Kant. A adopção de um método sintético e a conclusão do último passo para a fundação definitiva da moralidade talvez expliquem, em parte, as dificuldades; mas são as aparentes diferenças em relação à Crítica da Razão Prática que tornam a secção obscura e complexa, mesmo para os maiores comentadores da filosofia kantiana. No prefácio da Crítica da Razão Prática33, Kant defende que a obra teria como pressuposto a Fundamentação da Metafísica dos Costumes. O editor Vorländer sugere que a Fundamentação da Metafísica dos Costumes seria uma introdução à Crítica da Razão Prática34. A própria terceira 33

KANT, I., KpV, Ak V, 12-13. HENRICH, D., «The Deduction of the Moral Law: The Reasons for the Obscurity of the Final Section of Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals», in GUYER, P. (ed.), Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals, Lanham, Rowman & Littlefield Publishers, 1998, pp. 303-341; 339. 34

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secção, conforme se afirma no prefácio35 e no final da segunda secção36, já teria a função de uma crítica da razão prática, enquanto ela fosse necessária para fundar a Metafísica dos Costumes em bases sólidas. Se a terceira secção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes fosse tão discrepante em relação à Crítica da Razão Prática quanto aparenta, essa hipótese seria simplesmente absurda. Talvez seja possível compreender as duas posições como fundamentalmente iguais. De facto, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes fala de uma «dedução» da liberdade37. Os comentadores de Kant não são unânimes em relação a este problema. Para Allison há um «vivo contraste»38 entre a dedução da terceira secção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a doutrina do «Faktum der Vernunft» da Crítica da Razão Prática. Henrich39 defende que a incompatibilidade entre as obras é somente relativa e que a polémica deriva da maneira obscura como Kant se expressa na terceira secção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Entre os comentadores, há uma notável divergência sobre a efectiva realização de uma dedução da lei moral. Beck admite que há uma dedução, em sentido estrito, na Fundamentação (e Allison defende a mesma ideia), mas que certos passos do argumento da dedução foram omitidos por Kant. Para Henrich e Paton40 não há tal tipo de dedução.

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KANT, I., GMS, Ak IV, 392. KANT, I., GMS, Ak IV, 445. 37 KANT, I., GMS, Ak IV, 447. 38 ALLISON, H., Kant’s Theory of Freedom, Cambridge, Cambridge University Press, 1990, p. 238. 39 HENRICH, «The Deduction of Moral Law: The Reasons for the Obscurity of the Final Section of Kant’s Groundwork of the Metaphysics of Morals», p. 338. 40 PATON, H., The Categorical Imperative: A Study in Kant’s Moral Philosophy, Chicago, University of Chicago Press, 1948, pp. 203-204. 36

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Beck, Henrich e Paton defendem, contudo, que não há uma contradição entre a Fundamentação e a Crítica da Razão Prática. Paton e Henrich consideram que não há contradição, pois não há verdadeiramente uma dedução na Fundamentação. Beck admite que há uma dedução que se segue na Crítica da Razão Prática41. Trata-se de um tópico crucial para a compreensão da definição e da unidade do projecto kantiano de fundação da moralidade, ou melhor, da segunda parte desse projecto, que consiste na dedução (Deduktion) da lei moral. A primeira parte denominada exposição (Exposition) da lei moral não encontra muitos pontos de divergência, comparando a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática. Enunciamos os passos seguidos por Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes para essa dedução determinando, em seguida, os pontos de concordância e discordância com a Crítica da Razão Prática. Tentaremos reconstituir a dedução da lei moral a partir da afirmação de Kant de que consistiria na resposta à pergunta «como é possível tal proposição prática a priori? – o imperativo categórico»42. Tal dedução passará por dois passos fundamentais: (1) a defesa da tese de que liberdade e moralidade são conceitos reciprocamente implicados, à qual chamaremos, seguindo Allison43, a «tese da reciprocidade»; (2) a defesa da tese de que a razão precisa supor-se livre ao agir, que cha-

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Cf. H. ALLISON, Kant’s Theory of Freedom; L. BECK, A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason; H. J. PATON, The Categorical Imperative: A Study in Kant’s Moral Philosophy; D. HENRICH, «Die Deduktion des Sittengesetzes: Über die Gründ der Dunkelheit des letzten Abschmittes von Kant’s Grunlegung zur Metaphysik der Sitten», in Schann A. (org.), Denken im Schatten des Nihilismus: Festschrift für Wilhelm Weischedel. Darmstad, Wissenchaftliche Buchgesellschaft, 1975, pp. 55-112. 42 KANT, I., GMS, Ak IV, 444. 43 ALLISON, H., Kant’s Theory of Freedom, pp. 201-202. 39

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