Peregrinação ao Mundo encantado das Crianças

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AFONSO DUARTE

O desenho das crianças! O desenho decorativo do povo e a expressão gráfica da infância: (…) No estudo daquele e desta, (…) Afonso Duarte marcou o seu lugar: um lugar único em Portugal. E esse, já ninguém lho tira. JOSÉ RÉGIO (1932) Aposentado do ensino normal primário, de que foi um dos verdadeiros e incompreendidos renovadores, é notável a sua obra de pedagogia do desenho e de etnografia artística. VITORINO NEMÉSIO (1939)

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Afonso Duarte alia à alma de um pedagogo a presença de um verdadeiro mestre. (…) Como professor, ousou introduzir no ensino de desenho na Escola Normal Primária, onde lecionava, estremecido pelos seus alunos, métodos inteiramente novos, que estrangeiros vieram a adotar, enquanto os nacionais se limitavam a encolher os ombros… JOÃO GASPAR SIMÕES (1956)

Afonso Duarte (o primeiro da fila de trás), em 1925, com professores da Escola Normal Primária de Coimbra

Afonso Duarte nasceu para ser na vida, fundamentalmente, estas duas coisas: professor e poeta. CARMINÉ NOBRE (1947)

As prosas [da notável obra pedagógica de Afonso Duarte] pedem de há muito uma edição conjunta, que as arranque às contingências da sua publicação ocasional e lhes dê o relevo que merecem. CARLOS DE OLIVEIRA e JOÃO JOSÉ COCHOFEL (1956)

Afonso Duarte (ao centro), em 1937, com Miguel Torga, António de Sousa, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio

PEREGRINAÇÃO AO MUNDO ENCANTADO DAS CRIANÇAS

1919-1932! Tanto foi o tempo que dediquei ao ensino normal primário. Catorze anos quase mudos para a produção literária, mas do mais vivo interesse no estudo dos problemas de educação e ensino. AFONSO DUARTE (1934)

PEREGRINAÇÃO AO MUNDO ENCANTADO DAS CRIANÇAS

JOAQUIM AFONSO FERNANDES DUARTE 1884 – Nasce a 1 de Janeiro, na Ereira, Verride, Montemor-o-Velho. 1894-1896 – Instrução primária em Alfarelos. 1898-1901 – Aluno interno no Colégio Mondego, em Coimbra. 1902-1907 – Regimento de Lanceiros dʼEl-Rei e Liceu de Coimbra. 1907-1913 – Universidade de Coimbra. Bacharel em Ciências Físico-Naturais. 1914-1915 – Professor no Liceu de Vila Real de Trás-os-Montes. 1915-1918 – Lisboa: Escola Normal Superior / Professor do Liceu de Gil Vicente / Mobilizado para o Regimento de Artilharia de Costa / Sofre ataque de paraplegia. 1919-1932 – Coimbra: funções administrativas nos Liceus José Falcão e Infanta D. Maria / professor na Escola Normal Primária.

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AFONSO DUARTE

1932 – Colocado na situação de adido fora do serviço e compelido à aposentação. Passa a viver na Ereira, com periódicos regressos a Coimbra. 1958 – Morre em Coimbra, a 5 de Março. É sepultado no cemitério da Ereira.


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O DESENHO NA ESCOLA E OUTROS TEXTOS PEDAGÓGICOS

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FICHA TÉCNICA Peregrinação ao Mundo Encantado das Crianças (O Desenho na Escola e outros textos pedagógicos) AUTOR: Afonso Duarte EDIÇÃO GRÁFICA: edições Ex Libris ® (Chancela Sítio do Livro) RECOLHA DE TEXTOS E NOTAS:

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TÍTULO:

Mário Araújo Torres Capa: Retrato de Afonso Duarte em 1922, por José Planes (Murcia, 1891-1974). Badana da capa: Edifício da Escola Normal Primária de Coimbra (Largo da Sé Velha). Contracapa: Professores da Escola Normal Primária de Coimbra, em 1925. Miguel Torga, António de Sousa, Afonso Duarte, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio, em 1937. PAGINAÇÃO GRÁFICA: Alda Teixeira ARRANJO DE CAPA: Ângela Espinha

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1.a edição, Lisboa Fevereiro, 2019

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ILUSTRAÇÕES:

ISBN:

978-989-8867-51-3 449850/18

DEPÓSITO LEGAL:

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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

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O DESENHO NA ESCOLA E OUTROS TEXTOS PEDAGÓGICOS

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Recolha de textos e notas por

Mário Araújo Torres

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NOTA SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO

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“Afonso Duarte nasceu para ser na vida, fundamentalmente, estas duas coisas: professor e poeta. (...) Um dia o Dr. Leite de Vasconcelos, sabedor da obra que Afonso Duarte estava a levar a efeito, surpreendeu-o numa visita à sua Escola. Viu, admirou, felicitou o autor e exclamou: – Quando teremos nós um Ministro da Instrução que publique estes trabalhos?”

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CARMINÉ NOBRE, Três poetas: Eugénio de Castro – Afonso Duarte – Miguel Torga, Coimbra, 1947, pp. 25 e 28.

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A obra poética de Afonso Duarte [Joaquim Afonso Fernandes Duarte (Ereira, 1 de janeiro de 1884 – Coimbra, 5 de março de 1958)] continua pouco conhecida, apesar das recolhas completas feitas pela Plátano Editora (1974) e pela Imprensa Nacional (2008). Mais chocante é o completo esquecimento da sua valiosa obra pedagógica e etnográfica, desenvolvida na Escola Normal Primária de Coimbra, onde foi professor de Desenho desde o início do funcionamento da Escola, em 1919, até 1932, ano em que foi compelido à aposentação pelo Estado Novo. Nos apontamentos biobibliográficos elaborados por Carlos de Oliveira e João José Cochofel, que acompanham a recolha da Obra Poética de Afonso Duarte (Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1956, p. 257), recorda-se que: “Afonso Duarte fala com frequência de um outro trabalho que a sua saída da Escola Normal Primária lhe não permitiu levar a cabo. Chegou a reunir ainda consideráveis materiais, mas não pôde concretizar o projeto tanto tempo acalentado: uma Peregrinação ao mundo encantado das crianças, que teria sido, conforme a sonhava o poeta, uma longa e apaixonada exploração pelos domínios maravilhosos do desenho infantil. As prosas de Afonso Duarte pedem de há muito uma edição conjunta, que as arranque às contingências da sua publicação ocasional e lhes dê o relevo que merecem”. O mais completo projeto de edição da obra pedagógica de Afonso Duarte foi delineado por Eduíno de Jesus, em 1956, mas ficou por

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concretizar. No ano do falecimento de Afonso Duarte, recordou Eduíno de Jesus (“Está vaga a Cátedra de Poesia em Coimbra”, em Estudos – Revista de cultura e formação católica, órgão do C.A.D.C., ano XXXVI, fascículos III-IV, n.ºs 365-366, março-abril 1958, pp. 236-241, nota 4):

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“Tive já ocasião de conhecer a maioria dos ensaios que Afonso Duarte escreveu sobre a pedagogia do desenho. Em tempos, confiara-me ele grande parte dessa «papelada da Escola», para preparar a sua edição conjunta. Depois de estudar esses originais, ordenei-os em duas partes, como segue: I. Peregrinação ao Mundo Encantado das Crianças, que incluiria os seguintes ensaios: 1) Da Educação da Infância (inédito), 2) Do Desenho Infantil (in «presença»), 3) Da habilidade, etc. (idem), 4) Génese do Desenho Infantil (in «Seara Nova»), 5) Do Realismo Infantil (in «A Escola Primária»; apenas conheci este trabalho manuscrito), 6) Os Desenhos de Tito (inédito), 7) Os Desenhos Animistas de uma Criança de 7 anos (Imprensa da Universidade, Coimbra); II. Uma Experiência Pedagógica, com os ensaios seguintes: 1) Carta Metodológica do Desenho Infantil (in «Seara Nova»; conheci-o em Separata, numa folha volante), 2) O Desenho na Extinta Escola Normal Primária de Coimbra (in «Seara Nova»), 3) Iniciação do Desenho (inédito), 4) Desenho Infantil (in «Revista de Educação Geral e Técnica»), 5) Diversos tipos de composição (inédito), 6) Lições de Desenho (reconstituídas segundo os cadernos de apontamentos de alguns alunos). Quando lhe expus, em carta, este plano, Afonso Duarte escreveu-me: «Não sei que dizer ao seu plano de trabalho, excelente mas já muito superior às minhas forças». Numa outra altura, escrevera-me: «A parte mais importante para mim seria aquela de que não tem ainda todos os elementos: a) Iniciação dos alunos no estudo do desenho das crianças; b) o desenho nos inquéritos ao serviço social (ainda hoje não aproveitado na chamada Escola Normal Social) e c) o desenho ao serviço da etnografia». Devolvi a Afonso Duarte, pouco antes da Exposição Bibliográfica que, integrada na homenagem que lhe foi prestada em 1956, esteve patente na Delegação de «O Primeiro de Janeiro», todos os ensaios que tinha em meu poder (os mencionados acima e outros). A alguns deles se referem Carlos de Oliveira e João José Cochofel no apêndice à «Obra Poética», págs. 256 e 257.”

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Neste ano de 2018, no 60.º aniversário do falecimento de Afonso Duarte, decorridos quase cem anos sobre o desafio de Leite de Vasconcelos e mais de sessenta sobre o projeto editorial de Eduíno de Jesus, é tempo de lutar contra esse esquecimento, que representa uma inaceitável lacuna cultural. Em anterior volume (Edições ex-Libris, 2018) foram recolhidos os seus textos de índole etnográfica: O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa (1.ª edição, 1936; 2.ª edição, 1937), Um Esquema do Cancioneiro Popular Português (1948) e três colaborações publicadas na revista Vértice: “Glosas Populares – Comentário e Coletânea” (1954), “Do registo e cotejo das variantes do cancioneiro popular” (1954) e “O Brasil no cancioneiro popular português” (1956). Neste volume recolhem-se os textos de Afonso Duarte sobre temas pedagógicos, principiando pelas obras objeto de edições autónomas:

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– O Desenho na Escola: I – Barros de Coimbra – editado pela Lumen, Empresa Internacional Editora, em Coimbra, no ano de 1925. Nele se anunciavam, integradas na mesma série O Desenho na Escola, mais duas obras (II – Motivos da Natureza e III – Arte Decorativa), que não chegaram a ser editadas. A parte relativa às bilhas adapta o artigo “Barros de Coimbra. I – As bilhas”, publicado em A Voz de Coimbra – semanário regionalista, ano I, n.º 1, 25 de maio de 1924, p. 5, e n.º 2, 1 de junho de 1924, p. 5; – Carta metodológica da Exposição de desenhos decorativos inspirados na cerâmica popular regional, na Escola Normal Primária de Coimbra (Escola Normal Primária, Coimbra, sem data); – Os desenhos animistas de uma criança de 7 anos – publicado em O Instituto – Revista Científica e Literária, vol. 86.º, n.º 1, Coimbra, 1933, pp. 1-23, e, em separata, pela Imprensa da Universidade, Coimbra, 1933 (onde se anuncia, como “a publicar”, a obra Peregrinação ao mundo encantado das crianças, que nunca foi editada). Na sua origem estiveram duas conferências, com o mesmo título, proferidas por Afonso Duarte: a primeira, em 24 de abril de 1932, em Coimbra, inserida numa série de palestras, promovidas por elementos ligados ao movi-

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mento da Presença, por ocasião do “III Salão Académico” de artes plásticas; e a outra, a sua “primeira lição-conferência, em maio de 1932, na Escola do Magistério [Primário] de Coimbra”, como refere em nota ao texto impresso.

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Seguem-se, por ordem cronológica de edição, os textos correspondentes a colaborações de Afonso Duarte em publicações periódicas:

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– Uma semana de trabalhos manuais, recensão a opúsculo com esse título, contendo os esquemas das lições dadas, na Escola de Mogofores, nas férias de verão de 1922, por Álvaro Viana de Lemos, professor da Escola Normal Primária de Coimbra, publicado na revista Tríptico: arte – poesia – crítica, n.º 1, Série I, Coimbra, 1/4/1924, p. 6; – O desenho na escola, publicado em Os Novos – Revista dos alunos da Escola Normal Primária, 1.ª série, ano 1.º, n.º 2, Coimbra, 1926, p. 7; – Para uma nova posição estética: Subsídios de arte popular portuguesa, publicado na Presença – Folha de Arte e Crítica, n.º 12, Coimbra, 9/5/1928, pp. 4-5; – Métodos iniciais de escrita e leitura (Fundamentos), publicado em A Escola Primária – Semanário Pedagógico e Literário, ano III, 3.ª série, n.º 115, Lisboa, 20/3/1930, pp. 81-82; – O desenho na extinta Escola Normal Primária de Coimbra (hoje Escola do Magistério), nota fornecida a Adolfo Ferrière, publicado na Seara Nova – Revista de doutrina e crítica, n.º 229, de 11/12/1930, pp. 200-202; – Algumas notas pedagógicas, publicado na Presença – Folha de Arte e Crítica, ano 6.º, vol. 2.º, n.º 36, Coimbra, novembro de 1932, pp. 1-3; – Do realismo infantil, publicado em A Escola Primária – Semanário Pedagógico e Literário, ano III, série IV, n.º 46, Lisboa, 20/6/1934, p. 3; – O desenho infantil, publicado na Revista de Educação Geral e Técnica – Boletim da Sociedade de Estudos Pedagógicos, série X, n.ºs 1-2, Lisboa, 1934-35, pp. 58-67; – Como se faz um livro, publicado em O Diabo, n.º 84, de 2/2/1936, p. 1;

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– Desenhos de Tito, publicado na Revista de Portugal, n.º 5, Coimbra, outubro 1938, pp. 70-74; e – Génese do desenho infantil, publicado na Seara Nova – Revista de doutrina e crítica, n.º 601, de 18/2/1939, pp. 3-8.

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Encerra esta primeira parte a Carta a Adolfo Lima, acompanhada de Nota sobre o significado pedagógico dos trabalhos expostos na Biblioteca e Museu do Ensino Primário (junho de 1936), publicadas por J. E. Moreirinhas Pinheiro, em Notas sobre personalidades e instituições do ensino e da cultura em Portugal, Escola Superior da Educação de Lisboa, Lisboa, 2001, pp. 56-60. Na segunda parte reproduzem-se entrevistas concedidas por Afonso Duarte, com alusões à sua atividade como professor: ao Diário de Notícias, de 19/5/1928; ao Jornal de Penacova, de 4/3/1933; ao Diário de Coimbra, de 17/3/1936; e ao Diário Popular, de 3/7/1944 e de 30/10/1945. Seguem-se textos sobre a atividade pedagógica de Afonso Duarte, da autoria de:

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– ÁLVARO VIANA DE LEMOS, Os novos horizontes no ensino do desenho – O método ensaiado na Escola Normal de Coimbra pelo Prof. Dr. Afonso Duarte (Escola Renovada, ano I, n.º 2, Coimbra, 8/4/1930, p. 15); e Afonso Duarte como professor e educador, publicado na Vértice – Revista de cultura e arte, volume XVI, n.ºs 154-155, Coimbra, julho-agosto 1956, pp. 345-351; – JOSÉ RÉGIO, A obra de Afonso Duarte na extinta Escola Normal Primária de Coimbra (hoje Escola do Magistério), publicado na Presença – Folha de arte e crítica, n.º 36, Coimbra, novembro de 1932, pp. 12-13; – ALMEIDA COSTA, Afonso Duarte: Mestre de desenho e de poesia, publicado no diário República, de 14/6/1956, pp. 1 e 11; – SÍLVIA DE MATOS LEITÃO DE FREITAS, Um grande Professor – Depoimento de uma antiga aluna de Afonso Duarte, publicado em Mar Alto, n.º 93, Figueira da Foz, 20/3/1968, p. 8; – JOSÉ PIRES LOPES DE AZEVEDO, Lembrança de Afonso Duarte, Cadernos Municipais, n.º 5, Figueira da Foz, 1981, pp. 5, 23, 25 e 29; e Semeando Afonso Duarte, em Afonso Duarte – Obra Poética – Vol. I: Os 7 Poemas Líricos, Casa-Museu Infante

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Dom Pedro / Câmara Municipal de Montemor-o-Velho / Associação Fernão Mendes Pinto / Centro de Estudos do Mar e das Navegações Luís de Albuquerque, Montemor-o-Velho, 2003, pp. 7-13; e – JOÃO CARLOS PAULO, Joaquim Afonso Fernandes Duarte, em António Nóvoa (direção), Dicionário de Educadores Portugueses, Edições Asa, Lisboa, 2003, ficha n.º 305.

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Em apêndice: uma lista dos livros de psicologia e de pedagogia pertencentes a Afonso Duarte, existentes na livraria por ele doada à Biblioteca Municipal de Coimbra, listagem elaborada pela Dr.ª Alexandra Augusto, responsável pela Galeria de Doações dessa Biblioteca, a quem penhoradamente agradeço a colaboração prestada.

Lisboa, novembro de 2018.

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MÁRIO ARAÚJO TORRES

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“O Desenho na Escola: I – Barros de Coimbra” (Lições de Afonso Duarte) acabou de se imprimir a 18 de abril de 1925 na Tipografia da LVMEN (Rua Ferreira Borges, n.º 103, Coimbra). Os autores das ilustrações foram Alberto van Hoerte de Teles Machado (1897-1969) e João Carlos Celestino Gomes (Ílhavo, 1899 – Lisboa, 1960), artista plástico (João Carlos) e escritor (Celestino Gomes). Anunciavam-se, na mesma série O Desenho na Escola, mais duas obras (II – Motivos da Natureza, e III – Arte decorativa), que não chegaram a ser editadas.

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O DESENHO NA ESCOLA I – BARROS DE COIMBRA

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«Tous les élèves étant placés et munis de leurs instruments de travail, le maître, en présentant le modèle, indique en quelques mots ses particularités, sa fabrication, son usage, sa provenance, puis il appelle l’attention sur son caractère au point de vue artistique. On entend par caractère les traits saillants et distinctifs, ce par quoi un objet diffère d’un autre objet analogue. L’observation du caractère est l’opération la plus importante pour le dessinateur.» GASTON QUENIOUX

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As bilhas e o moringue

A série de modelos que lhes apresento, as refrescantes e graciosas bilhas de barro dos oleiros de Coimbra – bilhas de asas simples, espalmadas, bilhas de asas torcidas, e moringues – derivam fundamentalmente, todas elas, da mesma curva. De volume abacial em ovoide, qualquer das formas exalta um tal equilíbrio de proporções no seu conjunto e unidade de composição,

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uma tão bem achada harmonia com o uso que delas fazemos, que regala os olhos menos regionalistas. E – lindo e estranho aspeto! – estas bilhas de asa singela, vistas em silhueta, horizontalmente, desenham-se-me, debaixo de certa visão caricatural, deformadora, com flagrante feitio de peixe. E se a asa não pode com facilidade afigurar-se-nos de dorsal barbatana, e a embocadura tomar-se por cabeça – a base, o terço inferior da bilha, essa dá bem a ideia da cauda de um barbo ou da tainha. O gargalo estreito, como de garrafa, aflora em bocal de clarim, delicadamente modelado. A asa – um ângulo cujo vértice sobe à altura da embocadura, nasce abraçada à parte bojuda do gargalo para vir dobrar-se sobre a vertical tangente à curva do maior diâmetro da bacia a que ela rudemente se prende. É esta asa um acessório feito com fortidão, conveniente, necessária, e não simplesmente decorativa. Bem proporcionada e cómoda, tanto na forma singela, máscula, como na sua forma feminina, torcida em trança de cabelo, ela dá um fácil beber da bilha que se emborca sobre os lábios e donde então a água corre gargarejante, quase numa cantiga, fresca e aromática, do barro, como se ela saltasse da veia de rocha, puríssima, na gorja sequiosa dos camponeses por calmas de verão soalheiro.

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A infusa, o pichel e a almotolia

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Dos quatro modelos que lhes apresento, a infusa (tipo A) é a mais geométrica, a de linhas mais rígidas, a mais fria e, por isso, plasticamente a menos bela. Não há mais que se lhe diga do que a um tronco de cone com uma forte mandíbula de pássaro na boca – o bico, e uma asa que a abrange desde a borda superior ao sopé da base, modelada em jeito de ponto de interrogação. A sua decoração é pobre: uma simples ornamentação de rosas estampilhadas. Comparando esta infusa (A) com o pichel (B), logo ressalta como esta forma nasce espontânea das mãos do modelador, como toda ela está cheia da quentura da sua sensibilidade! Bojo, colo, asa e boca – esta, harmoniosamente aberta em campânula, para melhor aparar o vinho do espicho, sem desperdícios, e apenas recurva em bico de ave de presa repuxado por leve pressão de dedos do oleiro, são integralmente afinados pelo mesmo ritmo de linhas, e todo o seu estranho semblante parece animar-se, aos nossos olhos, quase como um ser vivo. Olhai-a de frente! Não vos quere parecer, na realidade, que ela tem as suas semelhanças com certa ave de agoiro – a coruja? Pois esta é simplesmente a esbelta picheira ou pichel de Coimbra, cujo colorido de azeitona verde, que a esmalta, é saborosíssimo para a levar cheia de tinto-escarlate à mesa remediada do lavrador rústico mas feliz.

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A infusa (tipo C), apesar dos seus bem adaptados motivos decorativos, género louça das Caldas, e de bem denunciar os quatro predicados essenciais da composição de todo o vaso cerâmico (ordem, proporção, estabilidade e conveniências), nem por isso ela me comunica especial interesse. Não tem a frescura espontânea das linhas e colorido do pichel, nem galbo que a individualize. Outra forma tradicional e da mais popular olaria de Coimbra é a rude e humilde almotolia de barro vidrado (D), e que ainda hoje serve à mesa do cavador sertanejo. Modelada em bojo pando, elipsoidal, e com seu gargalo esganado pelos dedos somíticos do oleiro, «Cala-te aí boca aberta, Gargalo de almotolia»

diz a «cantiga ao desafio» – com um dedo de barro por asa, levemente arqueado, e uma espécie de cabecita de ave sem atavios de plumagem, com a boca a fazer beicinho caído, como um amuo – o

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bico, é de todas elas, no seu primitivismo de linhas, na sua rusticidade e colorido, a que tem mais caráter próprio, uma mais vincada personalidade. Olhar para ela enche-me de atávica simpatia.

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Falei-lhes do pichel que semelhava uma ave; da bilha que deformei em peixe; e breve lhes apresentarei duas das formas de maior beleza da olaria nacional e que têm por modelo a própria figura humana. Hão de compreender depois, comigo, que S. Francisco, o pobrezinho de Assis, chamava com razão às avezinhas, suas irmãs, e irmão-lobo, porque eu hei de ensinar-lhes que os próprios vasos de barro – o cântaro e a talha de Coimbra – são nossos semelhantes. E pois que todas as obras criadas pela Natureza, inventadas pelos artistas, ou produzidas pelos sábios, estão cheias de inteligência, com todas elas, seres ou coisas, devemos procurar entender-nos o melhor.

O Cântaro e a Talha

O CÂNTARO

Produto originário das olarias de Miranda do Corvo, o cântaro de barro, ou asado, como lá lhe chamam, é uma das formas mais voadas e gráceis que têm saído das modestas mãos dos oleiros desta região de Coimbra, secularmente votadas ao fabrico de vasos cerâmicos –

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essas terrosas mãos de oleiros para quem a beguina sensibilidade de Rodenbach, o poeta universal da «Bruges-la-Morte», parece haver escrito este verso admirável: «Les mains qui sont un peu notre âme faite chair».

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«Tão descrito, tão cantado, sob tantos aspetos e nomes dos poetas e prosadores novos que pelos campos de Coimbra algum dia se apaixonaram como aquele viajante dos Diálogos de Mariz, nunca, entre tantos, nenhum lhe deu o nome que o povo lhe dá, o nome por que o conhecem os que o fabricam e com que a região onde nasceu o batizou – o asado, palavra de tão expressivas recordações para os olhos pela forma presente neles, que, quando o mesmo povo quis chamar a uma coisa, bem formada, airosa e perfeita, lhe chamou asada». (Etnografia artística, DR. V. CORREIA).

Proveniente das rudimentares, muito primitivas rodas de oleiro, ainda hoje o seu fabrico se continua tradicionalmente assim: «Vem o dono da oficina para o trabalho. Senta-se ante o maquinismo, e o seu pé descalço assente um pouco de lado e fazendo carregar com mais força o polegar móvel como o dos primatas, começa a fazer girar a roda inferior e todo o aparelho com ela com uma velocidade que aos poucos se vai regularizando. Toma agora de lado, onde o tem amassado e pronto em monte, um pedaço de barro. E é primeiro sobre o prato da roda em obe-

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liscozinho de faces redondas coberto por uma calote semiesférica. Rapidamente o polegar rasga a calote, penetra na massa húmida, inclinado no gesto que entre os romanos condenava, e começa a abrir em taça esbelta, que alarga, alarga mais e mais, afina nas paredes progressivamente até ser bojo pando de cântaro interrompido a meia altura. Retirado do prato, fica de lado, esperando. De novo a cena se repete, com transformações plásticas rapidíssimas, e uma outra parte, quase idêntica, se inverte e solda sobre a parte já feita, fechando e completando o vaso. As asas são simples fitas de barro que facilmente se arqueiam e ligam. E a obra frágil ainda, erguida pelo milagre da coesão das formas, é levada para o ar livre para secar e endurecer enquanto não chega o afogueamento da cozedura. Está feita essa maravilhosa vasilha, tão admirada e cantada dos poetas e prosadores que indissoluvelmente o ligaram à mulher e à paisagem de Coimbra – o asado» (Etnografia artística, DR. V. CORREIA) – como podeis ler nesta sugestiva Canção do Oleiro: Ao pé das águas correntes De bruços matei a sede: E, encanto que me faz mágoa, Nas mãos depois encontrei A concha de beber água.

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Mas o vaso era imperfeito E a sede não me parava Por montes de áridas fráguas; A modos que era de jeito Ter um regato comigo Pelos desertos das águas! E vai, como era preciso, Com juízo E logo adrede Da terra-mãe fiz o vaso Que bastasse à minha sede.

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E, como sabia amar, A gosto de rapariga, Minha amiga, E minha bela, Foi cheio do gosto dela Que eu me dei a modelar.

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De um barro cor de sol-posto, Ora vede que primor! Eu fiz o púcaro e o cântaro À vista do meu amor.

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Foi meu amor... foi aquela... Num dia morto de sede. Ora vede Quem o anima e reanima Se não é o corpo dela Da cintura para cima!

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E, em ar de dança do povo, Os braços ergue à cabeça; É o pucarinho, com graça, Sentado no testo covo É uma figura travessa.

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(Cancioneiro das Pedras, 1912).

«Desde o século XIV que a palavra púcaro para designar vasos pequenos para beber água se encontra em documentos portugueses. A sua beleza estava na cor do barro, na sua porosidade que os

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fazia chiar quando se lhes deitava água que ressumava logo para fora, deixando a de dentro tão fresca que Camões, escrevendo da Índia, lembrava com saudade os beijos bebidos no “rosto de uma dama lisbonense que chia como pucarinho novo com água”. Para ser belo o púcaro devia ser bem vermelho e costume era roçarem-no com uma pedra até aparecer barro novo» (A cerâmica de Coimbra, DR. T. DE CARVALHO). É este jogo magnífico do Cântaro com seu testo em cujo covo descansa gracilmente o pucarinho, obra de tal ritmo e de galbo tão bem casado ao donaire das nossas raparigas do campo, como eu não sei de vasilha mais linda quando, a caminho do rio ou das fontes, o levam à cabeça apoiado sobre essa outra pequena obra-prima – a rodilha feitiça, que as coroa e matiza. Obra de maravilha, de uma singelíssima decoração – leves impressões digitais passeando-lhe o bojo em onduladas linhas, e em talhes de coração – obra de feitiçaria não sei se mais para a nossa sede se para os nossos olhos, ela é ainda hoje na sua pureza arquitetónica e poesia, o mesmo vaso, quero afirmá-lo, que na Cantiga a Leonor – essa grácil coimbrã quinhentista, Camões cantou:

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«Descalça vai para a fonte Leonor pela verdura Vai formosa e não segura. Leva na cabeça o pote, O testo nas mãos de prata, Cinta de fita escarlata, Sainho de chamelote…»

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Sabei que a criação de um vaso cerâmico de forma impecável e a sua decoração são obra que só por si podem fazer o nome de um artista eminente. O galbo de um vaso cerâmico pode bem comparar-se a uma ordem em arquitetura; uma simples taça – a um quadro, ou uma ânfora – a uma estátua. Os vasos tipos primitivos tiveram por modelo o corpo humano e assim se dizia e diz ainda: a barriga do cântaro; a boca do púcaro; o gargalo da garrafa; o pé do pote; e as asas que são braços.

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BARROS DE COIMBRA

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E por analogia davam ainda os antigos qualidades morais às vasilhas: a lâmpada, companheira do estudo, era qualificada de «silenciosa» pelo filósofo e erudito; de «consumidora» pela dona da casa porque lhe consumia o azeite; e a taça que bebia o vinho que se lhe deitava (todos estes vasos eram de barro poroso) era conhecida por «glutona», dizendo-se que sorria ao bebedor quando cheia até aos bordos. Ânfora que se conservasse em casa há muitos anos – à ânfora davam os gregos o tratamento de «filha mais velha» e, quando ela se quebrava, costume era dizerem: «a ânfora morreu».

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A TALHA

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De todos os vasos de conter água, saídos das nossas tradicionalíssimas rodas de oleiro, a talha de Coimbra é a forma mais estilizada. Irmã aristocrática do cântaro ou asado, ela representa como que um luxo na humilde, quanto decorativa, cantareira do povo. Modelado com acabamentos de jarra, de floreira, o seu pescoço é esbelto, alto, como que a pedir grilhões em volta dele – ornatos de cordões de oiro. Quis-lhe mais o oleiro e enriqueceu-a: apurou-se todo no torcido das asas, no arqueado do peito, na delicadeza da cintura. Deu-lhe mais galbo e satisfação decorativa, mas, também, ela ficou menos sua filha: fez-se mais senhoril; usa um chapéu de abas mais largas e de recortes no rebordo, o testo covo; e o seu pucarinho é também mais terno, delicado.

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BARROS DE COIMBRA

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Mas, colocada sobre poial apropriado, decorando jeitosamente um recanto de sala – a nossa casa de estar, ou Studium – eu não sei de obra de estatuária que ensombre o seu feminino talhe – que tanto sonho dê aos nossos olhos ávidos de algum repouso de beleza harmoniosa – que tanta vivacidade arranque do mudo barro-plástico dos oleiros – os mestres das mãos virtuosas.

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CARTA METODOLÓGICA DA EXPOSIÇÃO DE DESENHOS DECORATIVOS INSPIRADOS NA CERÂMICA POPULAR REGIONAL, NA ESCOLA NORMAL PRIMÁRIA DE COIMBRA

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… si nos filles doivent apprendre à peindre, qu’elles commencent par ses décorations familières.

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RABINDRANATH TAGORE (L’Alpona ou les Décorations rituelles au Bengale)

Ce qui Tagore a fait pour les Alponas, on commence à le faire ici, pour les broderies bretonnes; et les vieux motifs bretons ressemblent parfois étrangement aux vieux motifs hindous… En art populaire, tous les peuples ont parlé la même langue.

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ANDRÉE KARPELÈS

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Inspirados na escola decorativa dos oleiros de Miranda do Corvo, cuja arte ingénua entrelaça elementos que remontam aos primitivos iberos e estilizações de abraços ou gavinhas de videira – espiras e volutas –, rosas desenhadas em simples projeção geometral, ondeantes linhas dispostas em greca, e corações floridos, filigranados – os trabalhos que expomos, a par do seu interesse etnográfico, documentam sobretudo um problema escolar de metodologia e de cultura estética. Cientes de que todo o ensino primário deve ser localizado, tratando-se da disciplina de desenho decorativo, fomos naturalmente levados ao estudo das atividades populares que mais compreensiva e diretamente estimulassem as faculdades criadoras dos educandos no sentido de uma intuição de arte. Foi a cerâmica de Miranda do Corvo, arredor de Coimbra, com seus diversos tipos de bilhas, asados, cântaros e talhas, de uma incomparável beleza arquitetónica1, rica e pitorescamente decorados

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Vide Barros de Coimbra, Lumen, 1925.

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por incisões lineares – um desenho a traço, e que é também pintura – que nos serviu de sugestivo modelo. (É evidente que não limitámos o ensino a este único meio de produção: Como estudámos a cerâmica popular, assim nos ocupámos de outras produções regionais. O método de trabalho é o mesmo: partimos da observação pedagógica direta.) Nesta conformidade, estudado o trabalho do oleiro, observados nas próprias formas cerâmicas os elementos decorativos e seus arranjos, servindo-nos deles como de um verdadeiro material autodidático, começam os educandos por copiar isoladamente esses elementos, estilizando-os por sua vez a seu bel-prazer. É o adestramento manual e iniciação no traço, base de todo o ensino do desenho. E como o oleiro se serviu de uma pequena esquírola de louça ou de um pequeno bico de madeira para gravar no barro fresco do vaso as suas decorações, o desejo de obtermos traços fortes contínuos, por mais próprios a este género de desenho, em que predominam as curvilíneas, do que o bico de aparo, e mais seguros para a mão pouco firme dos educandos do que o pincel, embora sem os excluirmos, fomos naturalmente levados a inventar uns estiletes de cana – espécie de cálamo dos árabes, com que desenhámos a tintas de anilina. A sua vantagem recomenda-se ainda porque podemos, com eles, empregar qualquer tipo de papel, e são os alunos quem fabrica o seu próprio material. Cores a traço de estilete, ou de pincel, sobre projetos a Faber, ou logo diretamente a tinta para os alunos mais adestrados, eis no que se resume a técnica destes nossos trabalhos decorativos. Os próprios cheios coloridos são a tracejado e não a jeito de aguarela. É uma verdadeira pintura a traço, rudimentar nos processos, mas belamente educativa. Uma vez selecionados os desenhos dos diversos elementos que decoram os vasos, com eles formámos uma Carta onde ficam dispostos em ordem à sua complexidade. Daqui em diante é a essa Carta que os alunos recorrem quando precisam de elementos para ornamentar os seus trabalhos, com ampla liberdade, é claro, de por sua alta recreação os estilizar ou inventar outros no mesmo estilo. É uma fonte de inspiração e não um modelo único e imposto. Os fundos a decorar devem ter aplicação a trabalhos manuais e, nos cursos femininos, a lavores. Eles serão: um tampo de caixa,

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um frontispício para um livro, um almofadão, uma tapeçaria, um gradeamento, etc., ou um vaso de barro modelado pelos próprios alunos, quando não adquirido numa olaria, o que é um excelente exercício para lhes dar noção de certas deformações perspetivas. Da cópia dos elementos à decoração de pequenos fundos, o trabalho é sempre individual. Por fim, alguns destes desenhos individuais são agrupados com destino à decoração, por decalque, de um quadro mural, que possa ocupar a atividade de um grupo. À medida que os trabalhos se acabam, são eles expostos na sala da aula. Estas exposições são a melhor lição que dar-se pode aos tipos psicológicos menos dotados de imaginação criadora ou de intuição artística. É também reservada uma aula para um exercício escrito, uma crítica dos trabalhos expostos: cada aluno é convidado a descrever as suas impressões sobre dois ou três dos trabalhos que mais lhe agradarem pelo arranjo decorativo e pelo colorido. Na aula seguinte o Mestre diz à classe quais os desenhos que obtiveram maior número de admiradores, estabelecendo a discussão. Esta lição é tão melindrosa quanto rica de ensinamentos para as direções pedagógicas do Mestre. A par dos escolhidos, que ficam embelezando o meio escolar, durante certo período, é conveniente ir expondo um ou outro dos menos votados, dando assim as honras da galeria ao maior número possível de trabalhos. Agora que os alunos compreendem a estilização, depois que sabem distinguir entre elemento natural e elemento decorativo, inspirados na arte popular e não em estilos clássicos, é que a natureza, com a sua variedade infinita de motivos, será a fecunda inspiradora. Apesar de muitos serem os meios por nós ensaiados no ensino do desenho decorativo, nenhum outro despertou tanto interesse nos educandos como o estudo dos desenhos folclóricos. E é natural. Se tivéssemos também de responder às exigências da última Reforma de Itália, confiando aos alunos temas individuais de observação do país, ou se os nossos programas, como os italianos, entre outros, dessem um lugar de primazia à educação estética, este nosso método seria, num curso normal, um dos recomendáveis meios de ação. «Podemos divagar à vontade», escreve Ezequiel de Campos, «pelas questões políticas nacionais: no exame delas, seja qual for

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a discussão e o estudo, chegamos sempre a concluir que a série de crises e de necessidades da vida portuguesa se amarra aos dois elos iniciais: a falta de conhecimento e de utilização dos recursos do país e a falta de cultura da gente. O primeiro é uma consequência das qualidades do ambiente natural; o segundo é, quanto a mim, a consequência do mau gosto, a falta de conveniente compreensão da estética». AFONSO DUARTE. (Edição da Escola Normal Primária de Coimbra, Coimbra, sem data). NOTAS:

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1. Afonso Duarte, na nota fornecida a Adolfo Ferrière, adiante publicada sob o título O desenho na extinta Escola Normal Primária de Coimbra (hoje Escola do Magistério Primário), refere o ano de 1925 como o da publicação desta Carta Metodológica.

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2. Foi também publicada na revista Seara Nova, n.º 103. Lisboa, 4/8/1927, pp. 136-1237, precedida do seguinte texto, da autoria de Mário de Castro:

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“UM NOTABILÍSSIMO ARTISTA E DISTINTO PROFESSOR Não sei bem porquê, sinto-me sempre impelido a admirar num homem, mais do que o seu talento ou a sua inteligência, a sua alma! Acho que toda a personalidade que por forma elevada se carateriza predominantemente por esse aspeto, vem mais cheia de humanidade, traz em si mais profundo sentido da vida. É por isso que, na república das letras, as pessoas que menos admiro são os poetas. Sendo os que mais falam em alma, são, pela minha observação, os que a têm mais mesquinha. Daí o admirar tanto mais os que fogem à regra e dentre esses poucos, com especial simpatia, a Afonso Duarte. Acontece, porém, que em Afonso Duarte, além de dons de alma verdadeiramente enternecedores, outros concorrem de não menor valia. Artista de singular finura, há nos seus versos emoção sem artifícios, espontânea, sincera, elevada (porque na emoção há sempre categorias), mas impressionante sobretudo pelo que tem de comunicativo. Quero exprimir-me e não posso. Se há alguém que me adivinhe, direi que o sentimento que corre nos versos de Afonso Duarte tem qualquer coisa de intuição que está quase a tornar-se inteligível, brasa em que se pressente a chama que ilumina, voo de ave pousada que ainda se não tentou e já se figura. Encan-

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ta-me, porém, nele alguma coisa ainda mais pura, mais nativa: a incomparável frescura do seu espírito. Das inclemências da dor, que a poucos mortifica como a ele, ressurge, não com a altivez dos fortes, mas com a inefável candura dos santos. Estas qualidades fazem em geral de um homem um «puro indivíduo». Afonso Duarte, porém, projeta-se com elas no mundo exterior e com elas dá, ao melhoramento da sociedade em que vive, uma valiosa contribuição. Afonso Duarte é um professor sagaz, esplendidamente orientado acerca da finalidade portuguesa do ensino e, além disso, um professor com alma. À SEARA NOVA interessa sobretudo, dada a função que se atribui, este último aspeto da personalidade de Afonso Duarte. Hei de escrever sobre este homem, que é um símbolo! Por agora, estas palavras são apenas a homenagem devida, por ser justa, com a qual apresento aos leitores um documento, que passo a transcrever, e muito abona os juízos que deixo registados. M. de C. [MÁRIO DE CASTRO]

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3. José Pires Lopes de Azevedo (Lembrança de Afonso Duarte, Figueira da Foz, 1981, p. 26) refere que a Carta Metodológica acompanhou a exposição de trabalhos com que a Escola Normal Primária de Coimbra participou no III Congresso Regional das Beiras, em Aveiro, realizado entre 13 e 16 de maio de 1928. O livro organizado por Francisco Ferreira Neves sobre esse evento [O III Congresso Regional das Beiras (Congresso de Aveiro) – Relatório, Teses, Votos, Vila Nova de Famalicão, 1928, pp. 205-206], insere a seguinte nota:

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“A exposição da Escola Normal Primária de Coimbra. A Escola Normal Primária de Coimbra abrilhantou o III Congresso das Beiras, expondo no salão nobre do Teatro Aveirense uma coleção de desenhos inspirados na arte popular regional beirã. As cartas dos elementos decorativos dos barros de Miranda do Corvo e de Molelos são dois valiosos documentos etnográficos. As composições originais dos alunos e alunas, revelando riquíssimas faculdades artísticas, haviam merecido já no Congresso Pedagógico de Locarno (Suíça), onde um ano antes foram expostas, honrosas referências de pedagogistas eminentes. Além dos desenhos, expôs a Escola de Coimbra uma interessante coleção de bonecas de farrapo, representando os diversos trajes populares das Beiras, e preciosos trabalhos de arte aplicada dirigidos pela professora de lavores – D. Ema Neves.

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Mais expôs ainda a mesma Escola uma coleção de desenhos copiados dos barcos moliceiros da ria de Aveiro por alunos naturais desta cidade. Todos estes trabalhos eram acompanhados de uma carta metodológica do Prof. Dr. Afonso Duarte, criador do novo método de ensino do desenho. Além dos trabalhos atrás referidos, estavam ainda expostas outras manifestações variadas da Escola Normal Primária de Coimbra, de harmonia com os modernos processos educativos, compreendendo o seguinte: – Um exemplo da correspondência interescolar e internacional, representada por uma série de folhas com trabalhos escolares, documentação colecionada pelas crianças, desenhos, estampas, fotografias, publicações, etc., enviadas por uma escola alemã em troca de um álbum semelhante, enviado pelas escolas anexas e trabalho dirigido por alunos da E. N. P. – Muitos documentos e modelos relativos ao ensino dos trabalhos manuais na E. N., como: vários desenhos de trabalhos executados para servirem de ilustração a um livro sobre trabalhos manuais escolares; um quadro com provas de linoleogravura, processo de gravura tipográfica, em oleado, vulgarizado em Portugal por intermédio da E. N. P. de Coimbra, e várias publicações dos alunos, ilustradas por esse processo, traduzindo uma nova orientação da vida escolar. – Alguns trabalhos de cerâmica (pratos) em porcelana e faiança ordinária de Coimbra, ornamentados com motivos compostos pelos alunos e professores da Escola Normal. Estes trabalhos eram acompanhados das respetivas direções pedagógicas do prof. Álvaro Viana de Lemos, que fez também, num dos intervalos das sessões do Congresso, uma conferência sobre a Cruz Vermelha da Juventude.”

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OS DESENHOS ANIMISTAS DE UMA CRIANÇA DE 7 ANOS

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O desenho, na sua expressão espontânea, é a linguagem que verdadeiramente pode dizer-se, e em toda a sua extensão, tão infantil como a criança. Livre dos condicionalismos da linguagem verbal, ali, onde a palavra tantas vezes esconde a representação que do mundo se faz a criança, é de uma nudez virginal a linguagem gráfica. E dir-se-ia mesmo que a verdadeira gramática das criancinhas, a lógica do seu pensamento, se acha mais explícita nos seus desenhos espontâneos que no seu falar. A criança percebe, pensa, raciocina ou atua, como desenha, mais do que como fala. Também não fora já o desenho a primeira linguagem-articulada que deu ao homem os hábitos de transmitir seus pensamentos, fixando-os, para que viéssemos a desvendar-lhe a longevidade, as crenças da sua alma, os passos da civilização? Pois é ainda esta linguagem primitiva a melhor chave para entrar no mundo encantado das crianças – e digo encantado, por demasiado realista que ele é para os nossos hábitos de ver e de pensar. Enquanto a criança não dá por outras perspetivas que não sejam as dela própria, encerrando-se egocentricamente no seu mundo, é bem de reconhecer que o seu lugar não pode estar completamente neste outro mundo de experiências feito, de realidades a que não pôde adaptar-se, pelo simples facto de que tempo há de vir ainda para as viver. Ora, é todo o quadro do realismo infantil, como do veio mais límpido, que vai decorrer da presente galeria de desenhos de Tito. Vão eles acompanhados das respetivas legendas, que colhemos da boca da criança, ato contínuo ao desenho, e das datas em que foram feitos, pois nos servem, a um tempo, de numeração e de indicação da idade da criança, tendo presente que ela nasceu em 28 de junho de 1923.

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Reunidos, embora, sob a rubrica genérica de desenhos animistas de uma criança de 7 anos1, a série que publicamos vem, no entanto, a ilustrar as diferentes modalidades que, nos termos de Piaget, caraterizam a mentalidade infantil, ou sejam: de egocentrismo, sincretismo, animismo e artificialismo. Oferecendo o cotejo das duas linguagens – a verbal e a gráfica – singulares exemplos de convergência, não há que buscar nomes diversos para designar um mesmo facto, embora dado por meios expressivos diferentes.

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Ora, e indo com Piaget, diremos que há egocentrismo enquanto a criança sente tão ligado a si o mundo que a rodeia que dele é incapaz de fazer um juízo desinteressado e impessoal. Manifesta-se por uma plena concordância consigo própria, como se do universo ela fora o centro, crendo que as coisas são em si tais como as vê, isto é, como se outras relações não existissem que não sejam as que lhe pode oferecer a mera estrutura ótica da realidade. Daí um saboroso ocultismo na sua atitude mental e que se traduz em representar o mundo como se fronteiras não houvesse bem delimitadas entre o subjetivo e o objetivo, a ponto de confundir a imagem visual com a imagem tátil (o objeto) ou o nome e as coisas nomeadas ou, quando menos, a atribuir uma significação humana às próprias coisas ou aos fenómenos da natureza. E explica-se: é que o processus básico da evolução do espírito não se faz por associações sucessivas mas sim da indissociação para a associação. É por uma dissociação criadora que a criança vai, pois, gradualmente adaptando-se à realidade. A criança não é sistemática, mas orgânica: é a totalidade da vida, no seu marulhar de fonte sem represas, que se representa à criança, nas primeiras idades: ela identifica-se com a própria corrente da vida.

1 Título da nossa primeira lição-conferência, em maio de 1932, na Escola do Magistério de Coimbra.

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É o que pode exprimir-se, sob o ponto de vista intelectual, como um dos traços mais salientes da atitude egocêntrica da criança, dizendo que ela desenha, como percebe ou pensa, sincreticamente. O sincretismo, desde o já clássico estudo de Claparède sobre um petiz de 4 ½ anos que, não sabendo uma letra nem uma nota de música, reconhecia, e passados tempos, num álbum de músicas, as páginas que ele mais gostava que lhe tocassem, associando, portanto, a fisionomia geral da página da música com os títulos conhecidos verbalmente, é hoje um dos fenómenos mais bem esclarecidos da psicologia infantil. Piaget dedicou-lhe notabilíssimo estudo, logo na sua obra Le langage et la pensée chez l’enfant e, teorizando os fundamentos do seu método de iniciação da leitura, Decroly em La fonction de globalisation et l’enseignement. *

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Quanto a nós, um interessante caso de sincretismo, e que tem sido explicado por um mero automatismo gráfico, é o que se representa quando as crianças desenham os animais com maior número de patas que, na realidade, possuem. A multiplicidade de patas, nos desenhos infantis, corresponde a uma experiência visual da criança, ou mesmo auditiva, e tem a sua explicação no sincretismo de perceção. De nenhum modo é um produto de automatismo, pelo qual a criança, depois de haver desenhado o número exato de patas, se teria deixado ir ao sabor do ritmo gráfico. O desenho revela que a criança apenas tem das patas do animal uma imagem sincrética, colhida na sensação de multiplicidade de patas que o animal aparenta quando corre. A simples sensação auditiva do trotar de um cavalo, podia levar a criança a esta representação da multiplicidade. Em qualquer caso: o que se figura é uma série de ritmos visuais, ou auditivos, confusamente percebidos. Luquet, que explica esta multiplicidade pelo automatismo gráfico, e como ele outros especialistas do desenho infantil, oferece-nos em Le dessin enfantin, em abono da nossa interpretação, estas preciosas notas: uma criança que diz: está bem, é assim mesmo, quando se lhe chama a atenção para o desenho; outra, que justifica a multi-

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