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Norberto do Vale Cardoso
(Filamentos líricos)
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Norberto do Vale Cardoso
In Limine
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Norberto do Vale Cardoso é professor. Foi bolseiro da FCT entre 2007 e 2010, ano em que concluiu o doutoramento. Responsável, desde 2017, pela fixação da obra de António Lobo Antunes, é ainda autor dos ensaios A Mão-de-Judas: Representações da Guerra Colonial em António Lobo Antunes e António Lobo Antunes: As Formas Mudadas (2011 e 2016, Texto Editores). Publicou vários artigos em revistas, jornais e livros de actas, em países como Alemanha, Brasil, Estados Unidos da América e Portugal. Tem sido orador em vários colóquios nacionais e internacionais. Está incluído em mais de uma dezena de antologias e revistas de poesia e de conto, em Portugal e no Brasil. Alguns livros de poesia dos quais é autor: Poemas escritos em folhas de papel brilhante (2011); O poeta na fímbria (2013); O poeta no seu homizio (2014); As Aporias do Silêncio (2020), livro que viu um dos seus poemas publicado e traduzido nos Países Baixos.
In Limine (Filamentos líricos)
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(Filamentos líricos)
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Título: In Limine Autor: Norberto do Vale Cardoso Edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) Paginação: Norberto do Vale Cardoso Capa: Ângela Espinha
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1. ª edição Lisboa, julho 2021 ISBN: 978-989-8986-45-0 Depósito Legal: 485264/21 © Norberto do Vale Cardoso
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«ESCREVO PARA DESILUDIR COM MÉRITO.»
(AGUSTINA BESSA-LUÍS)
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A CASA AZUL
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IN LIMINE Por mais exíguos que sejam os lugares que os poetas habitam subliminares
sentados nos limiares de certas câmaras ladeados por livros
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eles são esquivos
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que vão colhendo ao longo de anos opacos como pétalas caídas dos lábios de alguém que amam sem que se saiba o que significam
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nem o que representam para os seus desígnios acho que invertidos não estou certo No começo eram apenas eles e eu num quarto escuro sem medo com princípios de promessas
Pr
e hoje apercebo-me que quem segue uma estrada tem um destino seja ele qual for uma cidade uma casa um rio uma fronteira por desemparedar e talvez isso tenha um sentido não sei enquanto aqueles que estão como eu em flor aqui neste lugar não mais que uma senda um trilho esperam outros sinais mas que sei eu
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Passo os dedos pelos livros com um cinzel réstias de pó esfolham-se na via da luz às vezes fantasmas e ermos lugares noutros momentos coisas de que abdiquei
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e que já nem lembro nem sei só sei o quanto envidei palavras em estase e de que agora
de que agora pareço ter medo sem êxtase obscuro
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(domínios que não compreendo evoluem neste compartimento) De mim dissentido
sinto que quem segue por um caminho
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uma via
não tem mais que margens
e de cada uma delas vê-se o mesmo lugar seja ele qual for é sempre uma encosta inexacta e o homem que a atravessa permanece iníquo
Pr
voltando a todo o tempo ao lugar de onde nunca saiu e o caminho estreitando-se fá-lo saber de um dorso de um domo de um rompimento
de um filamento de frase que se desfaz entre os dedos
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PALAVRAS EM PURIDADE ESCRITAS Os largos castanheiros vergam-se ao seu próprio peso Sob a sua amplitude cada fruto é uma idade
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e uma casa azul é ainda um pouco um dos lugares do meu murmúrio num
tempo
em
que
pacientemente
os
passageiros
aguardam
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bruxuleando indícios de (não posso verbalizá-lo) os autocarros e os rios que passam e os batéis como se o tempo se demorasse
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enquanto sopeso os castanhedos entre os meus dedos como se as minhas mãos tuas
coisas condutoras fios tessituras nos meandros dos meus dedos
para onde para onde se as fronteiras são as pessoas
Pr
Na tarde de neve os castanheiros dobram-se mais e mais e eu interponho-me e sou eu e não sou eu menos e menos eu
pois que me falta a coragem de descer as escadas bater a porta bater à porta mais remota
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Passam sombras na minha espera não sei se paciente carrego passos e sentidos e desço ao lugar onde apenas chuva e depois dela
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as margens que transbordam macularam-se numa linha das paredes da casa que fica depois da curva uma casa azul
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Dela vejo as pinturas das raízes a mulher pensando na morte
e um poeta morto pensando nessa mulher
não se conhecem talvez jamais venham a falar-se
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Há um quadro à Casa Azul pintam vozes
enquanto eu agarro
a fractura que a estrada me deu
As obras são o seu peso sem a coragem de revelar
Pr
as minhas mãos os meus dedos
e o livro de que tenho medo adormecido no seu ninho é uma fibra ténue que envido
entre mim e o que há em mim de mim ainda
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O ALGEROZ Sigo as folhas que decaíram dos lambris perderam raízes vestiram o chão de suas texturas
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sigo-as ao longo de uma caleira deslizando sem consciência
Vais pensando no que a água te trouxe enquanto as folhas competem entre si
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Qual delas chegará primeiro ao poço
qual delas se metamorfoseará com a terra qual delas será húmus e folha novamente
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até tu seres tu com toda a força
Na margem de um caminho o meu caminho aí estou eu uma folha dispersa vigiando
o quanto que me infligem aquelas folhas percorrendo as calhas e que folha de entre elas sou eu
Pr
A folha na queda de água no final do trilho é um poeta que sonha sonhava no que se quebra as mãos quentes de uma avó que nos abraça o corpo todo abraçando-nos apenas as mãos As coisas principiam onde se acabam as linhas O poço lá ao fundo chama pelas folhas uma delas é talvez a minha
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A FRONTEIRA Há uma folha ferida na calha uma terra por viver um caminho por fazer
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(no olhar uma réstia de poalha) tem veios que vão até à baliza da página rasgos de sementes azuis nos seus olhos que desconheço ainda
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uma curva junto a uma casa que mais à frente se bifurca e depois vem a fronteira a arraia
ao lado vinha a estrada que não segui
ev
Enquanto atravesso para a outra margem tenho um sonho
sempre que atravesso a raia tenho um sonho a impressão de que fujo de mim de uma estrada que sobe a montanha não segue em direcção
Pr
à fronteira onde os castanheiros à beira me pesam e alguns ouriços caídos marcam as minhas hastes e as calhas levam as folhas jamais as devolvendo e as agulhas dos pinheiros ferem as plantas dos pés Penso nisto enquanto pintam a casa com uns rolos pastosos quando calha o verão ser mais longo tão grande tão extenso até ao limite de nós
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A MARGEM Não tinha pensado ainda o caminho afinal a sua é a morfologia de um caudal denso
chegar ao outro lado do índigo edifício
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e indago-me em como posso atravessá-lo
Não sei porque pintaram a casa dessa tonalidade
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Não sei por que razão a estrada segue até à fronteira se aquela que eu conheço
tão-só um montículo de ínfimas pedras sobrepostas
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junto a uma escola tão antiga que as crianças correm nela ainda volvidos os anos mesmo que anis agora
eles ou os meus poemas
Não sei porque tenho um quarto azul
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como a casa azul-cobalto
como não sei porque tenho este quarto que não me pertence e se no entanto
esse é ou não o meu quarto pouco importa muitos quartos não fazem de nós mais que partes Não sei se no outro lado o meu querer é voltar
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à outra margem até que o caminho me leve ao lugar a que uma estrada deve levar mas o caminho é apenas isso mesmo
ainda e ainda outra vez salgueiros laurissilvas quanto às lágrimas
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lancinantes
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e a minha árvore é demasiado tenra
como um ramo que me olha de uma janela na casa de uma árvore
uma folha frágil frugal
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sem receio de descender
Não sei se o meu caminho é sobreviver até chegar ao outro lado
como uma bola devolvida por uma parede ou um muro
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se não sei que múnus exerço sem ser o meu
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SONHO Sonhei com uma cadeira movente e uma fala reincidente por vezes imperceptível
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mesmo quando ajudada por gestos que exprimem o inexprimível
Vicejam nas tuas mãos as sementes do meu mistério As asas das tuas mãos manufacturam-me de sonhos
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tirando isso nada tenho nem sonhos nem calos
apenas um passarinho na ronda incolor
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que a tarde chora entre gessos
Quem encontra ele na sua vigia
nem mesmo os algerozes que já não existem que alguém quem e com que direito
arrancou do vale como arrancaram outras linhas
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E agora como pode a cadeira mover-se sem linhas como pode a folha mover-se sem água como podemos sonhar sem palavras nem gestos Resta-nos observar as coisas através da vigia da nossa cacela que mesmo nunca tendo sido nossa também perdemos
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FLORAÇÃO A memória dolorida de uma porta a abrir a fechar a bater
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e sombras no biombo envidraçado que a porta faz quando o vento assoma e a chaminé inexiste Um alfaiate me descoseu o coração
jamais se recompôs e agora modula-se
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na oficina que fica na parte rasa de uma casa nas terras baixas no princípio da estrada
por onde velozmente o rio gosta de cirandar
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Mesmo que me cedam os utensílios necessários a novas manufacturas e dactiloscritos recoser por exemplo
é esconso o lugar onde os pedaços do meu coração dispersos pospostos
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se encontram
e mesmo que os soubesse de um saber intuitivo até quem sabe
não sei dar uso nem mesmo às palavras O coração dual a abrir e a fechar
como uma porta
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O oposto do que tudo deveria ser Também as palavras são usadas para descoser o cariz de si mesmas Então o coração desfeito
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de pendor divergente Então as páginas reduzidas a um nada
que preambularmente é ainda uma espécie de tudo
ou sido
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o que afinal sempre tenho vindo a ser
cindindo-me
pois que o poeta é como um fruto subsumido na rama apresenta-se e oculta-se enquanto a lâmina o espera
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supletiva
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NIDIFICAÇÃO Tudo o que sabia fazer quando o rosto tinha a lisura da seda
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e o bicho o casulo dos sonhos era receber bolas vindas da parede
sem me aperceber que a velocidade sombria delas era proporcional à força com que eu sombrio
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velho dentro do menino as atirava Agora que passei a sabê-lo
perdi as bolas como quem perde cabelos
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Agora olho apenas a parede despida
lisa calva velha que o pintor deveria ter pintado enquanto eu dormia num quarto adjacente numa vida paralela enquanto era verão (o que é o verão)
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e tinha folhas brancas à minha frente
como um pássaro caído de uma janela Agora pergunto o que foi feito dos sonhos Posso perguntá-lo porque afinal poucos discernem o que é ver o seu próprio nome inscrito numa lápide num lugar remoto
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MATURAÇÃO O limpa chaminés desce as chamas sobem
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é inverno e chove e as cinzas não são saudades
outrossim descem por dentro de mim enquanto se cauteriza a face
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O limpa chaminés devolve a página branca à casa
o fumo ascende e cruza-se com o homem enegrecido enquanto eu compro um livro em branco
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que custa alguns poucos de escudos
na livraria que fechou quando se desce a rua tornada que foi numa loja de roupa ou de outra coisa qualquer sem importância
se calhar mais tarde um café entre tantos outros
Pr
Ao limpa chaminés extinguiu-se-lhe o rigor da lisura as chamas prosseguem e percutem a chuva das cinzas cada palavra suja cada palavra incapaz que não escrevi afinal em cautério e ainda assim numa tensão poética e no entanto as páginas de um negro lustroso
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A chama na vida e a flor do limpa chaminés mais apagadas as linhas que ninguém executa da casa por colorir
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A criança pinta-a com lápis de carvão para se lembrar do cavalo de ferro que segue linha fora escura
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e no desenho da casa a chaminé tem fumo
Uma conduta é um parágrafo em tentativas esmeradas
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jamais conseguidas porque a página ilegível quem a limpa
Todas as coisas se extinguem deixando a fuligem e as cinzas
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nótulas maduras
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MIGRAÇÃO Como numa ampulheta as lágrimas o tempo passa lentamente
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sem que nos apercebamos desfaz-se em contas desce até aos nossos lábios e tem um certo sabor queremos defini-lo reiniciá-lo no seu percurso mais estreito a dada altura
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Para ganhar o silêncio desfiam-se mais
as areias do rosto doendo-nos na memória que tenho de ti
como os lençóis que cobrem hoje a casa
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outrora habitada hoje como a areia se desfaz na praia onde já não estamos caminhamos e sentimo-la vazia um ventre que perdemos e nos dói tê-lo perdido Não é possível voltar
mas todas as coisas têm um verso
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não estamos em qualquer lugar
Da casa em frente ao mar não sou capaz de ver o mar sei dele sinto-o escuto-o ainda que o não veja Esta é a minha condição mais estreita agora que já não recebo postais provenientes do outro lado da fronteira com música no ébano dos seus troncos
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