CecĂlia Barreira
Masculinidades e Outros Estudos
Edição: Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)
Título: Masculinidades e Outros Estudos Autora: Cecília Barreira Revisão: Mafalda Falcão Paginação: Paula Martins Capa: Patrícia Andrade Lisboa, 1.ª edição julho, 2018 ISBN: 978-989-8867-28-5 Depósito legal: 437123/18 © Cecília Barreira
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
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Masculinidades e Outros Trajetos Durante milénios, a humanidade pertenceu a um imaginário coletivo em que o sujeito universal era o Homem. Apesar de estudos sobre papéis sexuais (Talcott, Parsons.1956), o papel majestático e de poder da figura masculina não se punha em causa. Os estudos sobre os homens só se projetaram após o desenvolvimento dos estudos feministas (Aprender a Ser Homem. Lígia Amâncio. 2004). Muito mais tarde descobriu-se que a sexualidade é fluida e que os géneros feminino ou masculino se encontram em construção. A nomeação da homo ou da heterossexualidade não é apenas social ou cultural, mas política. Os estudos tradicionalistas das diferenças entre sexos encontram-se baseados em estereótipos. Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, diz a célebre frase: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.
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Beauvoir abriria o caminho para o conceito de género enquanto construção social e cultural. Com as tendências do pós-modernismo, cada vez mais se questiona o estatuto de mulher enquanto estádio imutável. O conceito de género não se desliga dos conceitos de raça ou etnia, classe social e enquadramento histórico. Toda a nossa linguagem é sexuada. Diz Susan Bordo que “Quer nos agrade ou não, na cultura presente as nossas actividades são codificadas como masculinas ou femininas e funcionarão como tal no sistema prevalecente das relações de poder entre os sexos” (1990). (Francesca Rayner, in Dicionário da Crítica Feminista. 2005). Os feminismos tradicionais realçam a maternidade, a importância de uma ética e de uma moral específicas. Os feminismos pós-modernos representam essa tal rotura com os feminismos mais antigos. Em França, as teses de Luce Irigaray visam já a construção de um feminino bem longe das lógicas masculinas dominantes (Maria Luísa Ribeiro Ferreira, in Dicionário da Crítica Feminista. 2005). O branqueamento da homossexualidade enquanto performance é a recusa da politização do ser homossexual. Como todos os grandes movimentos inovadores, a construção da homossexualidade é um grito político em torno de uma maneira diferente de estar no mundo, de questionar os poderes estabelecidos, de propor uma alteridade à heteronormatividade absoluta. Esta homossexualidade enquadra-se nos movimentos pós-materialistas, numa problematização sobre papéis sociais, ambientais, organizações políticas, questões de raça, transgenderismo, novas abordagens sobre o corpo.
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Há muito medo na sociedade portuguesa. Sociólogos, sexólogos e psicólogos clínicos lideram os grandes questionamentos sobre a fluidez dos géneros. São estudos académicos que raramente chegam ao público comum. Na imprensa, há muita discussão sobre estas novas conceções. António Guerreiro, Eduardo Pitta, Ana Luísa Amaral e Miguel Vale de Almeida são os articulistas que melhor desempenham a função de críticos e especialistas das sexualidades alternativas, fluidas e políticas. Porquê políticas? Quando uma pessoa chega a um grupo para jantar, se é heterossexual, pertence ao universo moral da razão construída desde a pré-história até à atualidade. Sobre essa pessoa não se nomeia a sexualidade senão nos possíveis parceiros heteros que for conhecendo. Imaginemos o contrário. Um gay vai jantar com um grupo de amigos. Os outros são heteronormativos, mas “tolerantes”. O gay agradece a “tolerância”. À partida, dele próprio, quando é nomeado pelo Outro, diz-se prontamente a sua orientação sexual. Os amigos intelectuais “toleram” e “gostam” daquele ser estranho. Em meios mainstream, é olhado de soslaio. Quase que pede perdão pela sua orientação sexual e os paradoxos e, em volta dessa orientação, resolvem-se em piadinhas e risos. É notória a presença, algo alcoviteira, da melhor amiga hetero do gay. Fica feliz em encontrar parceiros possíveis para o seu amigo “esquisito”. Essa amiga propagandeia por todo o lado que tem um amigo gay, que é um “querido”. Os homens, na sua majestade, calam-se, reservados. As mulheres, por sua vez, querem todas conhecer o gay de serviço. Esta é a situação atual do gay nas sociedades democráticas e liberais.
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Noutras sociedades, o gay é morto, espancado ou preso. Os grandes fundamentalismos religiosos odeiam gays e lésbicas, e mesmo as religiões mais tépidas só “aceitam” desde que haja uma confissão do “pecado”. Um pequeno excerto de uma história em Londres. A Gay Liberation Front (GLF) constituiu-se em 1970. Em Inglaterra, como na maior parte dos países, a medicina classificava a homossexualidade como uma doença com presumível cura. Os Estados rotulavam-na como antinatural e indecente. As Igrejas condenavam-na. Os heterossexuais perseguiam e reprimiam os gays. Os próprios ativistas da GLF disfarçavam-se de heteros para conseguirem alguma aceitação. Até que, inspirada pelo slogan Black Power, surgiu com o slogan Gay is Good! Havia imensos heteros piedosos que ficaram horrorizados com este slogan. Foram organizadas manifestações em bares que recusavam a entrada de gays e lésbicas. O psiquiatra Hans Eysenck defendia os eletrochoques para a cura de semelhante mal. A GLF criou a primeira linha telefónica de apoio a homossexuais, um serviço psiquiátrico e um jornal. (Peter Tatchell. QX Mardi Gras Day Guide. 2000). A assunção da masculinidade nunca foi fácil no centro de questionamentos de sexualidades. O símbolo do macho man, nos anos 50, era John Wayne ou o homem que fumava Marlboro. Nos anos 70, na androginia dos trajes femininos e
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masculinos (Jeans e camisas coloridas), houve uma réstia de esperança para que a heteronormatividade se autoquestionasse e outros modelos pudessem fluir. Pura ousadia hippie. Os anos 80 iniciaram o fim das androginias dos anos 70. Começavam, nos media, as publicidades femininas para uma mulher feliz: enamorada, casada, branca, “emancipada”, com bebés e eletrodomésticos. Os homens, viris, seguros, sempre prontos para uma conquista, iniciaram um percurso de “embelezamento” que vai até à depilação total dos dias de hoje e os peitorais alargados que os jogadores de futebol exibem. Sabe-se de algum caso desviante no futebol? Há muitos anos, na passagem do século XX para o XXI, suspeitou-se de um caso em Portugal. Os jornais e as televisões explodiam. Os “pecadores” tiveram de se afastar das luzes da ribalta, apresentar esposa e filhos (traços de masculinidade segura) e, com o passar das memórias, cada um seguiu o seu percurso, anonimamente. Em Portugal, nos dias de hoje, sobre as masculinidades não pode recair uma dúvida. As mulheres, se solteiras, ou têm namorado ou são “estranhas”. Se, por acaso, vivem em par numa casa, está assumido o escândalo. Desde 2010 que os homossexuais se podem casar civilmente, mas, se por hipótese um homossexual for pai biológico de um menino, por morte do pai a criança não é entregue ao cônjuge. Fica com uma avó, com uma tia ou numa instituição social, se a mãe biológica não estiver presente. Recentemente falou-se do caso de Fabíola Cardoso, com dois filhos biológicos e portadora de um cancro. A cônjuge, com quem ela partilha as crianças, não existe legalmente na relação com os filhos.
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Os partidos políticos que negaram a coadoção tiveram uma atitude política. Não se trata de uma “escolha” entre um homem e uma mulher. Trata-se da vida de crianças. Trata-se de uma restrição abusiva em relação aos homossexuais que têm os seus filhos biológicos. Se uma lésbica quiser engravidar, tem de exibir o seu parceiro homem. À lésbica não se reconhece a reprodução medicamente assistida. A lésbica é uma cidadã de segunda. O gay, ao não poder ser pai de pleno, é um cidadão de segunda. Não é por acaso que os políticos mais à direita no espetro partidário, se querem ausentar, entre pingos de chuva, desta decisão política. Sobre as Igrejas já sabemos. Os homossexuais têm de se manter castos e em casal, o mais “puros” possível. Enquanto a publicidade erótica submete os heterossexuais a um clima orgásmico tirânico, os “outros”, os que não se nomeia por serem cidadãos de segunda, deverão remeter-se ao anonimato e ao silêncio. O erotismo é sempre perspetivado pelo olhar universal, ou seja, o masculino. Nesse olhar podem coexistir desde o par heteronormativo ao o ménage à trois: duas mulheres rodeando um homem, na mesma cama. Trata-se de uma fantasia masculina muito erotizada. Os cidadãos de segunda, além da menoridade, são considerados promíscuos. Em 2015 ainda não se ultrapassou esta milenar fórmula heteronormativa dominante. “Masculinidade e feminilidade constituem formas de pensar, dizer e fazer, socialmente construídas em diversos planos da vida em sociedade, incluindo os das relações entre homens, entre mulheres e entre homens e mulheres”.
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(Aprender a ser Homem. Lígia Amâncio. 2004) Inimigos da inovação são os mitos populares baseados em arquétipos e que incidem biologicamente sobre a interligação de fêmeas e machos. As vulgatas cientificistas sobre macacos, abelhas ou formigas condicionam-nos para uma harmonia universal baseada na reprodução e na procriação. Os estudos feministas conseguiram, por entre as poeiras, trabalhar muitas questões. Os estudos sobre a masculinidade esperaram muito tempo pela revista especializada Men and Masculinities, fundada em 1999 (Aprender a ser Homem. Lígia Amâncio. 2004). Antes da “invenção” da homossexualidade havia o sodomita, a quem era atribuído um determinado ato sexual. Seguiu-se-lhe o homossexual, que é uma espécie de categoria da natureza humana. Uma perversão. Uma extravagância. Uma menoridade biológica (Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010) Freud não considerava a homossexualidade biológica. Considerava-a social. Nos anos 50, Kinsey propôs escalas intermédias entre homossexualidade e heterossexualidade. (Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010) Os Essencialistas veem a identidade como inata e fixa. Os Construcionistas, além de verem na sexualidade um produto de um processo de construção social, veem a homossexualidade e heterossexualidade como dimensões fluidas, mutáveis e contingentes ao longo da vida. (Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010). Os estudos queer interpelam o que é ser desviante ou normal, dado que há um continuum, fluido, na sexualidade de cada um. (Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010).
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Butler, em Gender Trouble (2004), desmonta completamente os rituais fabricados do feminino e do masculino. “A diferença sexual precisa de ser materializada em corpos e actos para “existir” realmente enquanto diferença social.” Sofia Aboim A masculinidade hegemónica estende-se às instâncias do social, do cultural e do político. Existem masculinidades mais hegemónicas do que outras. Masculinidade não se confunde com um determinado papel sexual masculino (Aprender a ser Homem. Lígia Amâncio. 2004). Para problematizar, vejamos a opinião de Miguel Vale de Almeida (Teoria Queer e a Contestação da Categoria “Género” in Estudos Gays, Lésbicos e Queer. 2004): “Em Portugal, as noções de comunidade, cultura, e política homossexual, precisariam de avaliar os três estádios do movimento (homofilia, gay e queer) e proceder ao bricolage conceptual e estratégico que a situação portuguesa de semi-periferia e atraso estrutural permitem (…), em vez de subscrever um modelo desenvolvimentista, (…)” A questão da semiperiferia do estádio gay e queer em Portugal faz algum sentido. Quando Sofia Aboim, num vasto espetro de questionário sociológico, percecionou que, num universo de mais de 3 500 inquiridos, somente 0.5 % de mulheres e 0.9 % de homens declararam a sua homossexualidade (havendo cerca de 5 % dos indivíduos que declararam bissexualidade), concluímos o peso profundo da heteronormatividade na sociedade portuguesa. (Sexualidades em Portugal. Sofia Aboim. 2010).
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As ensaístas Ana Luísa Amaral e Gabriela Moita referem a emergência, nos anos 90, do movimento LGBT, bem como a legislação de março de 2001 sobre a regularização das uniões de facto. Mas as mesmas ensaístas não esquecem que, em 1995, acerca da homossexualidade, o político católico António Guterres disse que era um assunto que não lhe agradava particularmente (Público. 17 de setembro de 1995). O próprio Cavaco Silva, interrogado sobre o casamento entre homossexuais, considerava essa situação não adequada numa sociedade em que o casamento é a génese da verdadeira família (Visão. 21 de dezembro de 1995). Em 1997, no Ministério da Administração Interna, os homossexuais não poderiam ser polícias por serem anormais sexuais, invertidos e personalidades psicopáticas. (Como se faz (e se desfaz?) o armário. Ana Luísa Amaral, Gabriela Moita. 2004). Num inquérito à população portuguesa, datado de 1997, 69 % rejeitavam os casamentos homossexuais e 50 % ainda viam na homossexualidade uma doença (Visão. 26 de Junho de 1997). Nesta mesma lógica, os terapeutas portugueses apresentam uma homofobia interessante do ponto de vista analítico. Nos dias de hoje, com o desenvolvimento do movimento LGBT, já existem alguns terapeutas com um olhar neutro em torno das alteridades. Mas, o conceituadíssimo sexólogo e psiquiatra Allen Gomes, numa obra que mais tarde destacaremos, apresenta um paternalismo empático para com as minorias. A homofobia é tão fortemente enraizada nesta sociedade que até os gays e as lésbicas interiorizam essa mesma homofobia.
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Aquando dos dias do Orgulho Gay, sabemos de muitos homossexuais que repudiam as manifestações coloridas e entusiásticas, travestizadas, de algumas centenas de pessoas. Numa cultura fortemente patriarcal, e à medida que nos aproximamos dos anos 20 do século XXI, há mais individualismo e interação com as tecnologias, e cada vez mais afastamento de várias camadas da população em torno da política, dos partidos, dos ideais politizados. Nuno Carneiro e Isabel Menezes vão mais longe no isolamento dos homossexuais no seio de um público normativo. Falo da “camuflagem, do faz de conta ou da vida dupla a que a ausência de modelos positivos e encorajantes, (…) possivelmente violentos, a que se vota frequentemente esta “minoria escondida”, assim designada por Fassinger (1991) ao sublinhar que a “invisibilidade se deve a uma rede complexa de atitudes sociais negativas e estigmatizantes” (Paisagens, Caminhos e Pedras. Nuno Carneiro e Isabel Menezes. Estudos Gays, Lésbicos e Queer. 2004). Para McIntosh, muitos homossexuais aceitam e suportam a homossexualidade como uma condição. De menoridade, pensamos nós. De menoridade, de falta de autoestima, de depressão face ao preconceito. As normas identitárias no domínio do género (o gay é menos masculino, a lésbica é menos feminina), podem ser uma tirania. (Paisagens, Caminhos e Pedras. Nuno Carneiro e Isabel Menezes. Estudos Gays, Lésbicos e Queer. 2004). E os silêncios? O silenciamento é opressivo, tal como os ruídos que o homossexual ouve à sua volta.
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Falámos há pouco de cidadania de segunda. A exclusão, a desproteção, as ambiguidades, contornam o finissecular século XX para o XXI. O casamento civil, em 2010, foi uma primeira proposta de inclusão. Os discursos oficiais sobre feminino/masculino são de um basismo confrangedor: ao feminino associa-se, além da passividade, a beleza, a fragilidade, a eroticidade, a juventude e a aposta numa futura Mãe. Em relação ao masculino, pretende-se um homem viril, não importa a idade, com status, ironia, culto, charmoso. Se um homem é casado não importa, se olha detalhadamente o corpo de outras mulheres é “natural”. Uma mulher casada, mesmo no século XXI, não vai sozinha a um bar: junta-se com um grupo de amigas para apreciar um ambiente, comentando, quase sem olhar, um ou outro elemento masculino. A masculinidade cúmplice, com uma estrutura global de poder e as chamadas “diferenças” entre sexos tem de ser contestada, visando uma masculinidade que coexista com uma feminilidade (Aprender a ser Homem. Lígia Amâncio. 2004). A sociedade portuguesa, com a sua proclamada “tolerância”, integra no centro as várias margens. Desse centro à invisibilidade dessas mesmas margens vai apenas um passo (Crueldade e Crueza do Binarismo. Teresa Levy. Estudos Gays, Lésbicos e Queer. 2004). O espaço da masculinidade dominante é ocupado pela profissão fora de casa. Por exemplo, nos dias de hoje, com o desemprego acentuado, há homens que se sentem menorizados ao não ocuparem o tempo fora de casa e estando
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sujeitos a depressões silenciadas, porque um homem não foi feito para estar dentro da habitação. Há um outro traço da masculinidade que normalmente se evita referenciar: como a masculinidade é dominante e os homens detêm “poder”, muitas mulheres abusam psicologicamente de muitos deles, e ainda são assediados moralmente. A atitude masculina do silêncio e da vergonha de afirmar a condição de vítima (doméstica ou outra) deixa os homens frágeis, recorrendo, sem dizer a ninguém, a um antidepressivo de ocasião, até porque um homem não chora. A masculinidade de domínio tem esse lado perverso. O homem ocupa o espaço público, mas na intimidade tem medo de uma performance menos boa, tem medo de não ser aceite pelos pares, tem medo de assédios de chefias e não sabe com quem comentar ou desabafar. Se a feminilidade e a masculinidade fossem, para além de trajetórias diferenciadas, lugares, eles próprios investidos de poderes não hegemónicos, os homens libertar-se-iam do tirânico estatuto de ser homem. A linguagem entre pares, quer na masculinidade quer na feminilidade, é um agregador e difusor de estereótipos. Tolson (1983), num projeto de estudos que recorreu a entrevistas, realçou um pequeno discurso de um talhante inglês (António Manuel Marques. Os Trabalhos da Masculinidade in Aprender a Ser Homem): “Todos os carniceiros são iguais. Quando você os vê reunidos, são sempre os mesmos motivos de conversa – o sexo, as mulheres, está a ver? Falamos em calão o dia inteiro (…) o sexo vem à baila o dia todo”.
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Tolson, 1983 Os discursos da feminilidade são referentes à forma como se seduz os possíveis namorados, as maternidades, as melhores Bimbys e Nespresso, sonhos e fantasias de enamoramentos impossíveis, mas o sexo enquanto prática está ausente. Os anos 70, no decurso dos hippies e de Woodstock, foram anos de mudanças. Falou-se da crise da família. Ariès, em 1973, referia que durante os séculos XVII e XVIII não havia uma função afetiva de família. Existia, sim, um homem fora a trabalhar nos campos e a mulher em casa a construir os quotidianos das refeições, das vastas proles, dos convidados, enfim, das sociabilidades privadas. A emersão do amor romântico surge mais para os fins do século XIX, quando os casamentos, alguns, deixaram de ser um compromisso de heranças entre duas famílias. E hoje? Com a total “liberdade” de escolher quem quisermos não é bem assim. Uma rapariga branca que apresente o namorado negro à família burguesa, preconceituada, no quadro da mentalidade portuguesa, é um drama existencial, é a parentalidade a exercer pressões, é o racismo, esse profundo mal que o Ocidente ainda não resolveu, que predomina sobre todos os outros aspetos. Liberdade? Só entre pares, classes sociais, as mesmas, nada que possa coagir e amedrontar a parentalidade, também ela conservadora e muito pouco amiga de desvios. E se, por um mero acaso, um rapaz leva o melhor amigo, entretanto namorado, para jantar no espaço da família perfeita? O pai fica logo assustado, sem ainda saber do que se trata. A irmã pergunta ao nosso protagonista se o amigo é um “bom partido”, a mãe, mais atenta, reprime-se toda para
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não chorar copiosamente com o “drama” que se irá desenrolar. Sair do armário falando à família e apresentando o companheiro de uma forma “natural”. Tragédia. O pai, para não se confrontar com a alteridade do filho, ausenta-se rapidamente. A irmã, que já desconfiava, coloca-se a um canto manobrando o smartphone furiosamente. Resta a mãe, que olha com tristeza para aquele par, sempre com a esperança que tudo seja efémero e que o filho reencontre o “caminho”. Não há praticamente nenhum homossexual que não saiba o que é sair do armário junto da família mais próxima. Registei, há bocado, um caso simples, sem gritos, sem violência. Mas vamos para uma família de ciganos com as milenares tradições que os caracterizam. Duvido que um cigano homossexual se atreva a dizê-lo à família. Provavelmente fugirá da cidade ou do país, em busca, não de aceitação, mas da celebérrima “tolerância”. Coloquemos um outro caso: uma filha proveniente das maiores famílias portuguesas apresenta a namorada junto do pai banqueiro e da mãe com título monárquico. O banqueiro até pode ser cínico, a mãe nobiliárquica diz à filha para ela fazer um casamento de conveniência, deixar um herdeiro e ter simultaneamente, em anonimato, uma namorada. As parentalidades conjugadas desde a infância até à juventude estão despertas e vigilantes acerca de alguns desvios dos seus filhos. No caso dos meninos, se andam desde pequeninos a brincar com bonecas e a gostar de vestir roupa feminina, os próprios pais os colocam no terapeuta normativo que tentará “salvar” aquela alma.
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A menina-rapaz, apesar de tudo, sofre menos na infância e na adolescência que o seu amigo das roupas femininas. É que a masculinidade dominante coloca o rapaz com a sua playstation, corridas de carros e jogos masculinizantes e a rapariga/arrapazada, pensa a família, é uma fase a que logo se seguirá o enamoramento por um “intelectual”, após o que virá um enlace abençoado. Nos locais de profissão, os homossexuais raramente saem do armário, com medo de percalços ou mesmo do desemprego. Nos núcleos de amizade, os chamados heterossexuais tolerantes admitem um ou outro amigo gay. Não há mulher heterossexual que não conheça um amigo gay: faz parte da “fauna”. O branqueamento da homossexualidade através das pequenas “tolerâncias” ajudam as masculinidades dominantes a reproduzirem-se e a conduzirem as margens para o centro. A sexologia trabalha muito a homossexualidade. Nada melhor do que ler o sexólogo e psiquiatra Allen Gomes na obra Paixão, Amor e Sexo (2004). Em 1999, a revista Science refere a descoberta do gene gay. “Os próprios dados genéticos sugerem a necessidade de ter em conta importantes factores de ordem ambiencial para o eclodir de um determinado comportamento, normal ou patológico”. Allen Gomes Mais um case study que o sexólogo refere: dois gémeos homozigóticos, em 1966. Um dos gémeos no de-
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