Diário Quase Filosófico

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FICHA TÉCNICA edição: Edições ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: Diário Quase Filosófico (2007-2010) autor: Nelson L. Esteves capa: Patrícia Andrade paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, setembro 2017 isbn: 978-989-8867-07-0 depósito legal: 430529/17 © Nelson L. Esteves

publicação e comercialização:

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Às grandes vítimas da má sorte, em particular às que me mostraram quão terríveis podem ser os efeitos do acaso.

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“Cultura animi philosophia est” — A filosofia é o cultivo da alma. (CÍCERO) “Um pouco mais de sol — e fora brasa,/Um pouco mais de azul — e fora além./Para atingir, faltou-me um golpe de asa... /Se ao menos eu permanecesse aquém...” (do poema Quase, de MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO) “Temam menos a morte e mais a vida insuficiente.” (BERTOLT BRECHT) “The universe is not only stranger than we imagine, it is stranger than we can imagine.” (SIR ARTHUR EDDINGTON) “A obsessão é a fonte do génio e da loucura.” (MICHEL DE MONTAIGNE) Se não fores dominado por uma obsessão suficientemente forte e boa, jamais concluirás uma obra que te satisfaça. Mas tu não podes procurar essa obsessão, terá de ser ela a procurar-te. Imaginar novas mundivisões não é difícil. Difícil é encontrar boas razões para preferir uma a todas as outras. O acaso é a origem de todas as desigualdades irracionais. 7

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“Los grandes filósofos son poetas que creen en la realidad de sus poemas.” (ANTÓNIO MACHADO, poeta espanhol) “Sem poesia não há humanidade.” (TEIXEIRA DE PASCOAES) “A vida é um consumir-se em perguntas.” (ANTONIN ARTAUD) “Esta vida é um perpétuo combate e a filosofia o único emplastro que podemos pôr nas feridas que recebemos de todos os lados.” (VOLTAIRE)

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PREÂMBULO A justificação deste diário foi feita na Apresentação inserida no primeiro volume [1]. Acrescento agora que, com o tempo, a escrita foi-se tornando um hábito. Um dia em que não leio algumas páginas de um livro, nem escrevo algumas linhas deste diário, é para mim um dia incompleto. Normalmente, antes de me deitar, transcrevo para o computador as notas que escrevi durante o dia, por vezes num recibo de supermercado. Este diário é um esboço da minha visão do mundo, ou seja, um registo sucinto dos pensamentos que as leituras de índole filosófica e os acidentes da minha vida têm despertado em mim. Ele é a expressão da minha recusa a viver com o objectivo único de sobreviver e satisfazer os desejos imediatos, e escrevê-lo tem contribuído muito para me manter espiritualmente vivo. Tenho pena de que a minha ignorância filosófica não me permita um tratamento mais profundo dos temas aqui considerados, que são, como no primeiro volume, os problemas de Deus, do livre arbítrio, do mal, dos limites da ciência e do sentido da vida. Este diário tem progredido devagar, porque cada vez tenho menos tempo para os meus passatempos preferidos 9

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— ler e escrever. Devido à crise, todas as tarefas domésticas têm de ser feitas por mim, pela minha mulher e pelo meu filho. Temo que, quando um dia já não pudermos fazê-las, não vamos ter dinheiro para contratar alguém que as faça, e muito menos para pagar as despesas de um lar de idosos. Já cheguei à fase de comprar alguma roupa na Feira do Relógio e comer frequentemente no Pingo Doce da Bela Vista, por temer as surpresas que o futuro poderá trazer à minha família. No primeiro volume deste diário dei claramente a entender que a natureza aleatória e caótica do Universo é para mim uma ideia indispensável para compreender a vida humana. Esta ideia continua a ser importante neste volume. Sucintamente pode dizer-se que a expressão “natureza aleatória” refere a influência do acaso sobre a evolução da realidade. (Acaso é a designação genérica dada aos mecanismos de escolha aleatória que influenciam a evolução do mundo. Se um acontecimento é influenciado pelo acaso, não é possível justificá-lo inteiramente com base no conhecimento do passado.) Por outro lado, a expressão “natureza caótica” aponta o facto de que causas aparentemente insignificantes podem produzir efeitos de grande relevância e frequentemente desastrosos. Este facto está relacionado com a capacidade de alguns sistemas para amplificar as perturbações aleatórias (ruído) que os atingem constantemente, devido a uma tendência intrínseca para a instabilidade. Estes sistemas, ditos caóticos, podem assim potenciar o acaso como causa de alterações da realidade. Para o homem, estas alterações podem ser benéficas ou maléficas. No entanto, dado 10

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que as maneiras de errar são muito mais numerosas do que as de acertar, o acaso acaba por originar mais mal do que bem. Sendo influenciadas pelo acaso, aquelas alterações são imprevisíveis e a sua magnitude aleatória atinge por vezes proporções catastróficas. A experiência mostra que, num período de tempo suficientemente longo, qualquer aspecto da realidade flutua erraticamente, porque o suporte material dessa realidade tem uma natureza aleatória e caótica. Deste modo, qualquer ideia de progresso será sempre duvidosa. Num mundo aleatório e caótico, a catástrofe está sempre à espreita, porque mais tarde ou mais cedo atingem-se equilíbrios muito instáveis, que podem romper-se brusca e violentamente. Metaforicamente podemos dizer que por vezes a realidade desequilibra-se e cai. Às “quedas” mais violentas costumamos chamar catástrofes ou crises. Tanto o início como a intensidade de uma catástrofe são imprevisíveis, pelo que, quando ela começa, pode ser já tarde para tomar medidas correctivas. A Humanidade não tem capacidade para controlar eficazmente a evolução de algumas destas situações, o que permite compreender que a cultura que produziu Bach e Goethe tenha estado na origem do Holocausto. Um mundo aleatório e caótico tem necessariamente um certo nível de irracionalidade, porque um acto quase insignificante, praticado com a melhor das intenções, pode alterar drasticamente o trajecto de uma pessoa e conduzi-la à desgraça. Por serem caóticos, os sistemas complexos são frágeis e é razoável esperar que um aumento da complexidade os torne mais frágeis. É assim expectável que a globalização crescente 11

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vá continuar a provocar fenómenos de grande instabilidade social e financeira, com consequências cada vez mais desagradáveis para muita gente. Importa ainda notar que a natureza aleatória e caótica da realidade não nos permite avaliar com rigor a importância relativa das possíveis causas de uma dada crise, entre as quais está sempre o acaso. O Massacre de Lisboa, em 1506, é um exemplo de como um acontecimento insignificante e fortuito pode ser a origem de uma catástrofe. Tudo começou dentro de uma igreja, com uma visão de alguns crentes fanáticos, cuja explicação foi contestada por um cristão-novo. Este foi imediatamente morto e a seguir uma onda de falsidades e boatos percorreu as mentes de uma multidão fanática e inculta, que massacrou cerca de três mil cristãos-novos em três dias. Apesar do enorme progresso da ciência e da tecnologia durante os últimos séculos, as calamidades “da fome e das múltiplas espécies de segregação subsistentes conduzem à inquietante constatação de que nunca houve, simultaneamente, tanta riqueza nem tanto sofrimento sobre a Terra.” (Viriato Soromenho-Marques, in [2, p. 129]) Aqueles flagelos, e as instabilidades climáticas e ecológicas, colocam a Humanidade perante vários equilíbrios altamente instáveis, cuja ruptura pode provocar crises sociais violentas, causadoras de muito sofrimento, e até pôr em risco a própria sobrevivência da espécie. Para os leitores que pretendam uma explicação mais detalhada sobre a natureza aleatória e caótica do Universo, foi incluído neste volume um apêndice sobre o assunto.

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Para facilitar a pesquisa na Internet, foram dadas as versões de algumas expressões e citações no idioma original. Quero agora propor que as minhas afirmações mais polémicas sejam entendidas como interrogações ou hipóteses, posto que neste diário sigo frequentemente a intuição. Deixo aos filósofos e aos cientistas a tarefa de avaliar a verdade dessas afirmações. No entanto, estou perfeitamente consciente de que nem mesmo a ciência pode dar-nos a certeza definitiva, como o filósofo Karl Popper mostrou claramente. Só o Todo possui a Certeza, mas o Todo é incognoscível. Resta-me desejar que, no meio da muita ganga que forma este texto, o leitor consiga encontrar algumas “pepitas de ouro” que compensem o seu esforço. Da versão inicial deitei fora mais de 20%, mas estou certo de que ainda ficou muito lixo.

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1. Os filósofos falam de coisas necessárias e coisas contingentes. As necessárias são as que não poderiam não ter existido. As contingentes são as que poderiam não ter existido. Mas as coisas são apenas formas construídas sobre uma ou mais substâncias fundamentais, que podem ser partículas elementares, um campo de energia potencial e talvez um espírito. Se eu partir uma estátua em mil pedaços fico com a mesma substância mas com uma forma diferente. Se eu tiver um ficheiro digital com toda a informação sobre a geometria e a constituição química da estátua, posso mandar reconstruí-la. A Física diz-nos que a maior parte da estátua é espaço vazio. Por isso ela é como a arte pontilhista e podemos facilmente registá-la sob forma digital. Penso que a substância é que é necessária, as formas são apenas viáveis ou inviáveis. As coisas são de facto informação que se sobrepõe à substância para lhe dar formas diferentes. A substância é moldável e por isso as formas podem alterar-se com o tempo. Todo o ser pressupõe portanto uma fonte de informação. Isto foi intuído por quem escreveu “No princípio era o Logos [Ideia]” (Jo. 1, 1). Creio que existe algures um arquivo das formas possíveis, situado talvez na mente de Deus ou numa entidade a que o 15

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filósofo Ervin László chama Consciência Cósmica [3]. Neste arquivo deve existir apenas uma forma humana, porque as diferenças entre os seres humanos são devidas à influência do acaso. Refiro-me aqui apenas às diferenças suportadas pela substância material. Por serem devidas ao acaso, estas diferenças não traduzem nada de necessário e essencial. Para que dois seres humanos tenham essências distintas, estas devem ser suportadas por alguma substância que escapa à nossa percepção. Notemos que teoricamente é possível transformar uma pessoa noutra mudando as posições de alguns átomos e acrescentando ou excluindo outros átomos, de modo que os registos espaciais fiquem exactamente iguais. Se nada sustentar uma diferença de essências depois da transformação, essa diferença também não existia antes. 2. Devido ao comportamento aleatório das partículas elementares da matéria (indeterminismo quântico), qualquer sistema macroscópico está permanentemente sujeito a perturbações aleatórias que constituem o que podemos chamar ruído de fundo universal. Em muitas situações, este ruído pode ser ignorado por ter uma intensidade baixa. Todavia, existem fenómenos que podem amplificar muito esse ruído, nomeadamente os fenómenos caóticos (ver o Apêndice), as mutações genéticas e porventura outros mecanismos que desconheço. É sobretudo por intermédio destes fenómenos que o acaso se manifesta a nível macroscópico. A evolução da realidade macroscópica é comandada pelas leis naturais deterministas. No entanto, as circunstâncias em que estas leis actuam são constantemente alteradas pelo acaso, 16

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e por isso os resultados possíveis podem variar do sublime ao horrível. Não fora a incerteza quântica, razão de ser do ruído de fundo universal, o mundo seria puramente determinista. O erro seria então um conceito inexistente, porque nas mesmas circunstâncias teríamos sempre os mesmos resultados. O acaso normalmente erra, mas também pode acertar, como a evolução biológica demonstra. No entanto, é muito provável que na origem da maioria dos erros graves, crises e catástrofes esteja o acaso, o que torna impossível explicar exaustivamente esses acontecimentos. Quando dizemos que a realidade “poderia ter sido melhor”, estamos a admitir que o acaso a desviou da trajectória óptima que seria seguida num mundo determinista comandado por uma inteligência infinita. Mesmo nos casos em que a evolução foi determinada pelos homens, qualquer irracionalidade revela a influência do acaso (deficiências mentais e de educação, impulsos irracionais, etc.). Toda a escolha irracional deve ser considerada aleatória. Aleatório é sinónimo de “sem causas ou sem Razão”. Confesso que me sinto perseguido pelo acaso, porque penso que o sofrimento absurdo é devido à irracionalidade do mundo, que por sua vez é uma consequência do acaso. A influência do acaso na evolução da realidade não nos permite aceitar o Princípio da Razão Suficiente, segundo o qual tudo tem uma explicação racional, conhecida ou desconhecida. 3. O mundo descrito pela Física é formado por blocos de matéria e energia (quarks, electrões, fotões, etc.). Mas a Física 17

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não nos diz como a partir desses blocos se chega às ideias e aos sentimentos que dão forma e valor aos seres. A construção de uma casa com blocos de Lego pressupõe a ideia de casa. Analogamente, sobreposta à matéria-energia deve existir no Universo uma Consciência Cósmica capaz de explicar a existência imaterial das ideias, dos sentimentos e dos valores, e a forma de qualquer objecto material. Por se manifestar na actividade mental (ou vida espiritual), essa entidade abstracta pode também ser chamada Espírito Universal e ser considerada o suporte dos Mundos 2 e 3 de Karl Popper [35, Cap. 38]. Sem uma Consciência Cósmica que tudo interligue, como podem as partículas elementares justificar a nossa consciência de estar no mundo e o desejo de conhecê-lo? Nenhum sistema cognitivo pode dar uma explicação exaustiva de si mesmo, porque não pode definir todos os seus conceitos nem justificar todas as proposições que considera verdadeiras. Esta situação é semelhante à de qualquer teoria axiomática, que contém necessariamente conceitos primitivos (indefiníveis) e axiomas (proposições indemonstráveis). Nestas condições, para justificar a mente humana parece-me necessário invocar a fonte da informação que dá forma ao mundo — a Consciência Cósmica —, concebida como uma componente do Universo. Sem esta entidade abstracta, as várias formas de intuição e inspiração parecem-me ininteligíveis, tal como a espantosa imaginação da Natureza revelada pela evolução da Vida. Todavia, sendo a mente humana uma manifestação dessa Consciência, se a primeira

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não pode compreender-se a si mesma também não pode compreender a segunda. 4. A extinção da espécie humana não implicará o desaparecimento da ideia de ser racional e sensível, porque esta ideia não foi criada pelo homem e porque se manterá a possibilidade de um tal ser voltar a existir. E a ideia de amor, como capacidade deste ser, subsistirá igualmente. Havendo leis que permitem a existência de seres com determinadas capacidades, a formulação destas leis pressupõe a existência de certas ideias. O Espírito contém todas as possibilidades racionais, cuja concretização material é perturbada pelo acaso. Assim, os seres correspondentes à mesma ideia podem diferir muito entre si. 5. Os instintos dos animais, por vezes tão sofisticados, e os dons inatos dos seres humanos, por vezes tão geniais, parecem-me incompreensíveis sem a intervenção de uma entidade imaterial e inteligente, indissociável da matéria — a Consciência Cósmica —, capaz de moldar o organismo desses seres tendo em vista determinados objectivos. Acredito que a Consciência Cósmica não só influencia a forma de cada estrutura material mas também determina a relação causal entre a estrutura e o comportamento de cada ser vivo. Deste modo, a informação que cada pessoa recebe pelos sentidos pode alterar o seu sistema nervoso e consequentemente alterar a resposta da pessoa na sua relação com

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o mundo. O resultado desta resposta vai provocar nova alteração do sistema nervoso, e assim sucessivamente. Em comparação com os outros animais, o homem tem uma consciência mais precisa do seu comportamento e por isso pensa normalmente que esse comportamento é determinado por ele mesmo. No entanto, acredito que o comportamento humano é tão determinado pela Consciência Cósmica como o dos outros animais. Dado que o organismo humano é mais complexo e variável, a variabilidade do comportamento é também maior no homem do que nos outros animais. Muitos só estarão dispostos a aceitar a explicação anterior no caso de alguns comportamentos patológicos, mas estou convencido de que ela é verdadeira em todos os casos. Temos consciência do nosso comportamento mas a convicção de que o determinamos é pura ilusão. Para ser bom, é necessário ter uma boa natureza material e ter sido educado (programado) para o Bem. Naqueles que nasceram com um dom genial, a Natureza acertou em cheio, porque a estrutura material e as circunstâncias foram propícias à concretização da Ideia (contida na Consciência Cósmica) com um elevado grau de aproximação. No entanto, uma estrutura fortemente perturbada pelo acaso poderá produzir um comportamento muito disfuncional. Em cada momento, os acontecimentos do mundo são os melhores possíveis. Eles só podem melhorar se, por iniciativa das melhores mentes, a estrutura do mundo for mudada, porque existe uma relação de causalidade entre esta estrutura e aqueles acontecimentos. Assim, se em face do compor-

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tamento de uma pessoa dissermos que ela podia ter agido melhor, estamos a pensar erradamente. 6. Na forma actual da vida humana, aspirar à imortalidade é uma pretensão ridícula! De facto, devido às suas imperfeições, a vida humana não me parece suficientemente valiosa para ser mantida indefinidamente. “Entre o homem das cavernas e o projecto humano existem uns seres intermédios que somos precisamente nós.” (Konrad Lorenz, citado em [4, p. 23]). Ou por outras palavras: somos uma imitação tosca do autêntico Homem, que a acção do acaso talvez nunca permita realizar. 7. Penso que a interrupção da gravidez só deveria ser legalmente permitida no caso de graves defeitos congénitos do feto, a fim de evitar grandes sofrimentos à pessoa que irá nascer e à sua família. Quando se estabelece o limite das dez semanas para a chamada interrupção voluntária da gravidez (IVG), tenta-se convencer os médicos de que esse acto não é ilícito dentro desse limite. Sem este limite não haveria médicos honestos dispostos a praticar a IVG. Em vez de IVG deveria dizer-se interrupção do desenvolvimento duma pessoa (IDP), porque esta designação exprime melhor a gravidade do acto. Uma pessoa é uma realidade global que não pode fragmentar-se no tempo. A gravidez indesejada não deve combater-se com a IDP mas com a educação das futuras mães e com instituições dispostas a aceitar as crianças que as mães não puderem 21

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criar. Em face da gravíssima crise demográfica que enfrentamos, impedir o nascimento de uma criança saudável é uma enorme estupidez. No referendo sobre a IVG, a opção pelo Sim ou pelo Não é sobretudo uma questão de sensibilidade e quanto a problemas de sensibilidade não há raciocínios que nos valham. 8. A vida humana começa com capacidades reduzidas e termina normalmente com capacidades reduzidas. Assim, a possibilidade de matar uma pessoa com menos de dez semanas sugere que possamos também matar uma pessoa com mais de, digamos, noventa anos. A prática indiscriminada do aborto é moralmente mais grave do que a aplicação da pena de morte, porque esta visa eliminar um criminoso, ao passo que aquela elimina um ser indefeso que poderia vir a revelar-se um génio. 9. Numa entrevista publicada pelo jornal Público em 1 de Julho de 2006, Fernando Savater afirma que “Um bom mestre tem de ser um pouco ignorante. Ou seja, os grandes sábios não são bons professores porque não compreendem a ignorância dos outros. Tenho companheiros muito sábios, de filosofia, que são muito maus professores, porque não entendem que os outros não compreendam as coisas, parece-lhes que há má vontade nos outros. Em contrapartida, os que são um pouco ignorantes são melhores professores porque compreendem a ignorância dos outros, põem-se facilmente no seu lugar e percebem o que é que eles não entendem”.

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10. No programa “Prós e Contras” de 29-01-2007, sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG), algumas pessoas disseram que a IVG praticada até às dez semanas não é crime porque só as pessoas têm direitos. Segundo essas pessoas, o feto até às dez semanas não é pessoa. Para que este argumento faça sentido é preciso primeiro dar uma definição de pessoa. Segundo qualquer das definições possíveis, a pessoa é dotada de autoconsciência. Será o feto autoconsciente às 15, às 20 ou às 30 semanas? É provável que não. Mas mesmo que o seja, será muito difícil prová-lo. Podemos, é claro, usar o termo pessoa no sentido mais lato de ser humano, mas neste sentido o feto é pessoa desde a fecundação. Assim, o critério das dez semanas parece-me arbitrário e ilógico. A pessoa é caracterizada por determinadas capacidades do cérebro humano. Estas capacidades vão sendo adquiridas progressivamente e portanto não é possível determinar um momento em que elas começam a existir. Alguns adeptos do Sim nem sequer tentam dar uma justificação científica do critério das dez semanas. Dizem simplesmente que a maioria das IVG são realizadas durante as primeiras dez semanas do feto e que portanto este prazo resolveria a maioria das situações. Um argumento deste tipo traduz desrespeito pela vida humana. Se o resultado do referendo de 11 de Fevereiro de 2007 for favorável ao Sim, as pessoas que lutam pela defesa da vida não devem baixar os braços, mas pelo contrário devem reforçar o seu ânimo. O facto de a lei permitir a IVG sem qualquer justificação não obriga ninguém a praticá-la. Se as instituições que defendem a vida continuarem a educar os cidadãos 23

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e a apoiar as mulheres grávidas que estão desprotegidas, o aborto sem justificação válida tenderá a desaparecer. 11. À pergunta, formulada por Leibniz, “Porque existe algo e não o nada?” podemos responder “Porque existe uma mente que é capaz de fazer essa pergunta, e esta mente, por ser uma manifestação do Espírito necessário e eterno, não pode aniquilar-se a si mesma para obter o nada”. A grande questão não é saber porque existe o mundo e não o nada, mas porque existe o homem no mundo. 12. Na transição dos macacos para o homem, não aparece nada de essencialmente novo. Há apenas o aparecimento de uma inteligência e uma sensibilidade mais desenvolvidas, que permitem uma cultura mais complexa. É pela educação que o homem ganha a sua humanidade. Se um recém-nascido fosse criado no meio de macacos, iria adquirir a cultura dos macacos e ficaria incapacitado de comunicar com os seres humanos. O homem constrói um mundo do qual é o centro, imagina uma história romântica sobre as suas origens e o seu destino e julga-se um ser especial radicalmente diferente de todos os outros. O desejo de perfeição que alguns seres humanos sentem não significa que sejamos seres especiais mas apenas que o homem é capaz de ocasionalmente tocar o sublime. A extensão e a idade do Universo tornam muito provável a existência de seres inteligentes mais próximos do sublime do que os homens. Se recuarmos na cadeia de ascendentes de qualquer pessoa, chegaremos a animais que, apesar de terem o nosso 24

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ADN, não são humanos, por não terem ainda uma cultura humana. (A humanidade não está no corpo, mas sim no Espírito, entendido como o suporte imaterial das ideias, dos sentimentos e dos valores.) E é evidente que a nossa cultura ainda é pouco humana. 13. O conhecimento da verdade não é condição necessária da felicidade. Podemos viver de acordo com um sistema de ideias completamente imaginário e ser felizes. Pelo contrário, certas verdades podem causar infelicidade. Por exemplo, se um dia conseguíssemos provar que o nosso sentimento de liberdade é uma ilusão, essa descoberta seria um grande abalo para muitas pessoas. “Há coisas que não deviam escrever-se, mesmo sendo verdadeiras!” (Isaiah Berlin, citado em [5, p. 327]) Algumas verdades podem ser insuportáveis. “Para viver o homem precisa de ser enganado e iludir-se.” [6, p. 32]. Por isso, nenhuma sociedade pode subsistir sem vendedores de ilusões, sejam eles filósofos, padres ou políticos. “Sem ilusões, a humanidade pereceria de desespero e de tédio.” (Anatole France) 14. “A última das ilusões é crer que as perdemos todas.” (Maurice Chapelan) Todavia, o suicídio prova que é possível perder todas as ilusões. Sem a “vontade de sobreviver” que trazemos nos genes, as características do mundo tornariam o suicídio inevitável. Se fôssemos livres, não precisaríamos de ser limitados por essa vontade instintiva. 25

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“Dá-me veneno para morrer ou sonhos para viver.” (Gunnar Ekelof) Aquela “vontade de sobreviver”, que se traduz na procura de alimento e na reprodução, e que certamente já existia nos primeiros organismos vivos, só pode compreender-se como manifestação do Espírito Universal. 15. A sociedade humana só poderá progredir através de uma educação cada vez mais cuidada dos cidadãos. A responsabilidade por este esforço de educação cabe sobretudo ao Estado. No entanto duvido que o Estado consiga arranjar dinheiro suficiente para conseguir o nível de educação necessário. Para conseguir manter as barrigas cheias, podemos estar condenados a ter as cabeças mais vazias do que seria desejável. 16. A frase “Eu fiz esta mesa” tem um sentido. Mas a frase “Deus criou o Universo” pode não ter sentido, porque o Universo pode ter resultado da transformação de uma realidade intemporal inimaginável. 17. Em Janeiro de 2007, num programa televisivo sobre A. Alçada Baptista a propósito do seu 80.º aniversário, este escritor disse: “Tenho a impressão de que a vida me deu mais do que pedi, esperei ou mereci”. Só posso dizer o mesmo sobre alguns aspectos da vida, que na verdade são os menos importantes. Mas como a vida é em grande medida comandada pelo acaso, não posso lamentar-me nem culpar ninguém. Na mesma entrevista Alçada Baptista afirmou que 26

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“Um escritor escreve para sua satisfação, não para ganhar o prémio Nobel”. No entanto, um escritor não pode escrever só para sua satisfação, deve também ter a intenção de melhorar o mundo. Doutro modo, a sua escrita é uma autêntica masturbação. 18. O nosso cérebro constrói uma visão do mundo com base nas impressões recebidas através dos sentidos. Provavelmente os nossos sentidos não são sensíveis a alguns aspectos da realidade. Se assim for, estes aspectos irão escapar para sempre ao nosso conhecimento. Há aspectos da realidade que escapam completamente a algumas pessoas mas outras têm plena consciência deles. Não será de estranhar que haja aspectos que escapam completamente a todos, enquanto outros são apenas vislumbrados por uma minoria. “Há quem passe pelo bosque e só veja lenha para a fogueira.” (Leon Tolstoi). 19. Somos mais inteligentes do que as formigas mas a maior parte dos seres humanos levam uma vida quase tão monótona, repetitiva e falha de criatividade como a das formigas. Que objectivo pode atribuir-se a uma vida deste tipo? Mais tarde ou mais cedo o homem vai ter de repensar o seu modo de vida. 20. Cristo parece acreditar na existência de dois mundos: o mundo material e o mundo espiritual. “Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. César aparece aqui como o soberano do mundo material, ao passo que Deus é o 27

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soberano do mundo espiritual. A lógica do mundo material é uma lógica inflexível, cruel, quantitativa. A lógica do Espírito é a dos valores éticos e estéticos, de tudo o que não pode medir-se e é intemporal, das verdades imutáveis. 21. Os códigos genéticos dos indivíduos duma dada espécie não são rigorosamente idênticos. A existência de códigos diferentes é útil para a espécie, porque se esta for atacada por um vírus, por exemplo, alguns indivíduos serão mais resistentes do que outros. No entanto é de esperar que cada alteração do código genético possa ter vantagens e inconvenientes. Provavelmente não existe um código que seja melhor do que todos os outros, sob todos os pontos de vista. Nestas condições a solução óptima consiste na coexistência de um grande número seres diferentes. Pode dizer-se que a Natureza prefere a diversidade, tanto ao nível da estrutura genética como ao nível da cultura. Assim, é altamente improvável que uma única religião venha a ser adoptada por todos os homens. “Como a Natureza sabe, sem diversidade não existe evolução.” (Isaías Raw). Do ponto de vista ético seria desejável que todos os homens fossem idênticos, mas a Natureza está mais interessada na sobrevivência do que nos aspectos éticos. Estes aspectos talvez pertençam a um nível diferente da Realidade Total. 22. A posse de uma inteligência superior à dos outros mamíferos é, no homem, simultaneamente uma vantagem e uma desvantagem. É uma vantagem porque aumenta a pro28

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babilidade de sobrevivência da espécie. É uma desvantagem porque a inteligência permite-nos ver o absurdo da vida, resultante da ausência de um objectivo que valha a pena perseguir, mas não é suficiente para definir este objectivo. Permite-nos ainda constatar que estamos à mercê dos efeitos do acaso. 23. O acréscimo de inteligência, relativamente aos outros animais, gerou no homem uma tendência para o individualismo. Este individualismo é contrário à lógica da Natureza, na qual o indivíduo conta muito pouco, e só o grupo é realmente importante. Uma grande parte dos infortúnios da Humanidade resulta deste individualismo. 24. No que respeita ao comportamento moral, a educação tem um efeito análogo ao que o treino tem sobre o desempenho dos desportistas. O aperfeiçoamento das técnicas de treino tem permitido melhorar o desempenho dos atletas. No entanto, as limitações físicas impedem que este desempenho melhore continuamente. O mesmo se pode dizer quanto ao efeito da educação sobre o comportamento moral. As limitações da inteligência e da sensibilidade não permitem que o comportamento moral médio dos seres humanos melhore indefinidamente. No entanto, o retrocesso moral que se tem verificado ultimamente resulta do facto de a educação estar a ser descurada. Este descuramento talvez seja intencional, porque alguns membros das chamadas elites vivem de enganar os restantes membros da sociedade, e pessoas mais cultas são mais difíceis de enganar. 29

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25. A nossa invenção da realidade faz-se por pequenos passos, cada um dos quais desencadeia um efeito multiplicativo (fenómeno caótico?) que ultrapassa muito a vontade de cada um de nós. A influência de cada pessoa sobre o resultado final é diminuta e este resultado pode até desagradar a muitos de nós. É mais verdadeiro dizer que a realidade se nos impõe do que dizer que nós escolhemos a forma dessa realidade. Parafraseando uma sentença bem conhecida podemos dizer que a vontade da realidade é maior do que a soma das nossas vontades. É sabido que a realidade é formada por múltiplos sistemas homeostáticos e que estes são imprevisíveis (o resultado de uma acção pode ser o oposto do esperado). 26. “Deus criou-nos livres.” Mas certamente Deus sabia que, com as nossas imperfeições, essa liberdade não poderia deixar de produzir todos os horrores da história humana. Isto basta para provar que o aparecimento do homem não pode ter sido programado. O homem existe porque a lógica do Universo torna inevitável o aparecimento de seres como o homem. 27. Em muitas situações o homem consegue discernir várias possibilidades de acção, ao contrário de outros animais que actuam sempre da mesma maneira. No entanto, as nossas decisões são fortemente influenciadas pela estrutura do sistema nervoso (hardware, que varia de pessoa para pessoa) e pelo sistema de ideias (software) que a educação instalou no nosso cérebro. Quando a nossa educação foi deficiente, 30

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estamos na situação de um computador trabalhando com um mau sistema operativo: não pode produzir bons resultados. O que é então a liberdade? Ser livre será agir contra o nosso sistema de ideias? Mas alguém conseguirá fazer isso sistematicamente? Não consigo imaginar um computador operando contra o sistema operativo que está instalado nele. Se educarmos bem os jovens e depois eles cometerem actos indignos, não vale a pena culpá-los disso. Podemos apenas concluir que as suas imperfeições intrínsecas não permitiram que a educação desse frutos. 28. Individualmente, cada pessoa nada vale. Só como parte de uma comunidade ela pode ter algum valor. Mas ninguém é insubstituível, porque o Universo tem todo o tempo para chegar ao seu destino. 29. As noções de espaço e de tempo que o homem possui são conceitos locais, isto é, extraídos da realidade próxima. O homem talvez não tenha capacidade para compreender o espaço e o tempo globais. Assim, tempo infinito e espaço infinito são provavelmente expressões sem significado preciso. Para Kant, o espaço e o tempo não são propriedades intrínsecas da realidade, mas sim formas de intuição existentes a priori na mente e usadas por esta para organizar a percepção da realidade exterior. Além disso, Kant negou a possibilidade de conhecer a realidade como ela é em si mesma. Mas se não podemos conhecer a “realidade em si”, como podemos saber que aquelas formas de intuição não têm qualquer correspondência nesta realidade? Além disso, em face das dife31

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renças que certamente existem entre as mentes humanas, as ideias de Kant tornam muito difícil explicar as relações fixas entre o espaço e o tempo estabelecidas pela Teoria da Relatividade. Mas podemos admitir que existe uma parte comum a todas as mentes e que esta parte é uma manifestação de uma Consciência Cósmica que permeia todo o Universo e orienta a evolução deste. Segundo Kant, “a mente humana está pré-programada para ver o mundo de determinadas maneiras” [7, p. 205]. 30. Muito do que se passa neste mundo faz-nos pensar que estamos a cumprir uma pena. Mas de facto o mundo não existe para nos agradar nem para nos desagradar. Alguns acontecimentos causam-nos sofrimento porque ferem a nossa sensibilidade e não conseguimos evitar que actuem sobre nós. Um vulcão que rebente debaixo dos nossos pés irá certamente causar-nos sofrimento. Mas este sofrimento não é desejado por ninguém. Se Deus, que é infinitamente inteligente e bom, não impede que o vulcão nos atinja, é porque não pode impedi-lo. Mas há “vulcões” de muitos tipos. Um cancro é no fundo um “vulcão” que rebenta dentro de um ser vivo. Temos tendência para culpar alguém do nosso sofrimento. Quando não encontramos ninguém para culpar, culpamos Deus. Mas de facto só podemos culpar a natureza aleatória e caótica do mundo, que lhe confere uma probabilidade não nula de se descontrolar brusca e violentamente a qualquer momento. Deus não pode actuar directamente sobre os mecanismos da realidade material, porque pertence a um nível diferente da Realidade Total. A relação entre os 32

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vários níveis desta Realidade é possivelmente mais enigmática do que a relação entre os níveis da nossa mente. O Universo é um sistema caótico onde ocorrem amiúde “tempestades” violentas, que são a origem da maior parte do que chamamos Mal. É importante notar que essas tempestades não ocorrem só na atmosfera, nos oceanos ou nas estrelas, mas também nos cérebros humanos, que estão sujeitos às mesmas leis que as outras partes do Universo. O estrago causado por um bombista suicida parece-me tão natural e caótico como o que resulta de um furacão. 31. Sem uma Inteligência que esteja na origem da informação contida no mundo de que fazemos parte, este mundo é incompreensível. É a esta Inteligência que alguns chamam Deus. Mas além desta Inteligência existem também os “tijolos” com que é construída a realidade (electrões, quarks, fotões, etc.). Nenhum edifício construído com estes “tijolos” pode ser perfeito, porque eles não se ajustam perfeitamente uns aos outros. Dito de outro modo: os mecanismos em que assenta o funcionamento de qualquer sistema não são perfeitos, devido à influência do acaso, e por isso esse funcionamento tende a degradar-se. Os seres materiais são mais esboços de ideias do que realidades acabadas. A ideia que sai da Inteligência pode ser perfeita — “Deus é perfeito” —, mas a sua realização material nunca é perfeita. Dum modo semelhante, quando ampliamos muito uma gravura de um jornal, só vemos os pontos que a formam e convencemo-nos de que a gravura não é perfeita. 33

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32. Muitas pessoas pensam que somos todos diferentes porque cada um de nós foi planeado para ser como é. Isto não é verdade. Somos diferentes porque somos gerados por processos com uma componente aleatória. E se em muitos casos se obtêm seres com um comportamento razoavelmente bom, noutros casos obtêm-se seres francamente defeituosos. 33. A vida da Humanidade evolui como a água de um rio se escoa por um vale. Cada um de nós é como uma molécula de água do caudal do rio. Esta molécula não sabe para onde a corrente a leva e nós também não sabemos. Mas acredito que ela nos leve para algum destino, porque todo o rio tem uma foz. Seria muito estranho que tanto esforço e tanto sofrimento não tivessem um objectivo realmente importante. Mas na verdade nós ainda não sabemos qual é esse objectivo. Só podemos dizer que um ser foi criado quando resultou de uma intenção e tem portanto determinados objectivos. Se eu pudesse criar um ser inteligente, dar-lhe-ia uma inteligência suficiente para compreender o sentido da sua existência. Um ser limitado sem objectivo, como o homem, só pode ser compreendido como manifestação necessária de uma realidade ilimitada, necessária e eterna. 34. Na nossa vida não pode haver certezas sobre os assuntos mais importantes, porque a nossa inteligência é fraca e está sujeita a ilusões. Se alguém disser o contrário está enganado ou está a tentar enganar os outros. 34

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“Uma coisa é certa, que é o facto de não podermos dar nada por certo; sendo assim, não é certo que não podemos dar nada por certo.” (Samuel Butler, poeta inglês) “Duvidemos até mesmo da própria dúvida.” (Anatole France) 35. Há loucos cujo discurso apresenta incoerências lógicas e que por isso são fáceis de identificar. Outros têm um discurso aparentemente lógico e a sua loucura consiste na obsessão de mudar radicalmente a sociedade, sem olhar a meios. Estes são os mais perigosos porque tendem a transmitir a sua loucura a outras pessoas, através de uma mentalização intensa e sistemática. Pertencem a esta classe pessoas como Hitler e Estaline, e todos os implicados nas tragédias do 11 de Setembro de 2001 e do 11 de Março de 2004 e em tantas outras que ocorrem diariamente na Palestina. Só a loucura pode explicar o seu comportamento. O propósito de os responsabilizar pelos seus actos é mera ilusão. Estes loucos estão convencidos de ter descoberto a verdade e desejam impô-la a todos por qualquer meio. Pensam que é possível e legítimo controlar com total rigor toda a realidade. A sua loucura é a obsessão da certeza e do rigor. Devemos desconfiar dos homens que têm muitas certezas. Muitas das maiores desgraças da Humanidade foram causadas por este tipo de homens. “Acredita nos que procuram a verdade; duvida dos que dizem tê-la encontrado.” (André Gide). “É a convicção de que possuem a verdade que torna os homens cruéis.” (Anatole France) Esta é uma grande verdade! 35

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Os homens não podem ter certezas mas apenas crenças (mais ou menos científicas, ou mais ou menos metafísicas). Quando deixam de resolver os problemas que as justificam, as crenças extinguem-se e teremos de inventar outras. Os melhores livros, isto é, aqueles que podem tornar-nos mais humanos, são os que nos tiram as certezas ilusórias e nos dão crenças que incitam a combater o sofrimento da Humanidade. A verdade destas crenças é demonstrada pelo sucesso desse combate. Apesar de este diário não ser um daqueles livros, espero que ele tire uma ou outra certeza tanto aos crentes como aos não crentes, para que fiquem mais humildes. Para mim a humildade é a virtude mais consentânea com a nossa fraqueza. Mas há uma certeza que não podemos perder: a obrigação de dar a certeza do nosso respeito aos que não têm certezas. 36. Cristo pensava que Deus Pai amava os homens através d’Ele. Por isso dizia a verdade quando afirmou que Deus nos ama. Deus ama-me através dos meus amigos. E a única maneira que temos de amar Deus é amar o nosso próximo, porque não é possível amar uma ideia. Se realmente sentíssemos em nós a dignidade humana, a nossa sensibilidade não nos deixaria dormir sabendo que alguns seres humanos passam a noite na rua. Mas a verdade é que, apesar disso, conseguimos dormir. Em vez de ensinarmos as crianças a rezar, devíamos ensiná-las a respeitar todos os seres humanos, independen36

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temente das suas crenças e do seu aspecto físico. Ajudar os que sofrem é a melhor maneira de rezar (e talvez a única). 37. A nossa inteligência é por vezes conduzida a paradoxos que não consegue resolver. Isto prova que uma parte da realidade lhe escapa. A nossa mente não consegue assimilar completamente o todo, porque este é mais complexo do que aquela. O Universo é certamente muito mais complicado do que a ciência nos indica. A ciência só considera aquilo que os sentidos e a inteligência são capazes de perceber. 38. O sentimento mais forte que os seres humanos despertam em mim é a compaixão porque, mesmo quando não estão sofrendo, estão a caminho do sofrimento. 39. Mesmo os amores felizes são por vezes banais, ou quase, porque são vividos com fraca intensidade. Não vale a pena ter uma definição teórica de amor, se esta definição não for concretizável. O amor define-se pelos actos que dele resultam. A avaliar pelo estado da sociedade, a maioria das pessoas sente o amor duma forma muito superficial e ineficaz. 40. Os cientistas não querem ser vendedores de ilusões. Querem perceber como funciona o Universo e explicar aos outros o seu funcionamento. Podem querer acreditar em Deus mas querem também que a ideia de Deus seja logicamente compatível com o seu conhecimento do Universo. 37

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41. O sofrimento é o conceito central da condição humana. Reduzir tanto quanto possível o sofrimento dos seres humanos deverá ser um dos grandes objectivos da Humanidade. O paraíso é muito provavelmente inatingível, mas devemos aproximar-nos dele tanto quanto pudermos. O amor é a principal ferramenta na realização deste objectivo. Só uma sociedade em que o amor seja compreendido e praticado pela maioria poderá atingir o mínimo de sofrimento. Foi isto que Cristo disse à Humanidade, por palavras diferentes. Mas o amor não pode ser imposto. Tem de surgir nas boas mentes e, por influência destas, contagiar progressivamente a maioria das pessoas. 42. Não pensamos e sentimos porque a nossa vontade determina que pensemos e sintamos, mas porque o nosso cérebro é uma máquina de pensar e sentir. É da sucessão de pensamentos e sentimentos do nosso cérebro que resulta a sucessão de actos que praticamos. Posso assim dizer que o meu cérebro é livre, porque a sua actividade não depende da minha vontade. Mesmo durante o sono ele continua a trabalhar. Alguns dos meus pensamentos parecem-me ter surgido do nada, em resultado de uma ruminação mental inconsciente. 43. Nos momentos de infortúnio aproximamo-nos uns dos outros. É o nosso instinto de sobrevivência a funcionar. Só depois de sofrer podemos compreender a dor alheia. O sofrimento torna-nos mais solidários. O amor revela-se mais forte no infortúnio. 38

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Por vezes parece-me que a única coisa relevante das nossas vidas é o alívio que conseguimos para o sofrimento dos outros. 44. O pai do escritor brasileiro Fernando Sabino costumava dizer que “no fim tudo dá certo, se ainda não deu certo é porque ainda não chegou ao fim”. Mas outro aforismo, de autor desconhecido, diz-nos que “uma história que acaba bem é uma história que ainda não terminou”. Se desprezar a ironia que sinto no primeiro aforismo, o segundo parece-me mais verdadeiro porque, de uma forma ou de outra, a vida acaba sempre por humilhar-nos. Além disso, todo o amor acaba em tristeza. 45. Toda a visão do mundo tem que ser inventada pela mente. O que está fora desta é a tela sobre a qual pintamos o quadro das nossas vidas. 46. Os vendedores de ilusões louvam a diversidade mas nunca dizem que ela não traz apenas os génios mas também as aberrações. Estas são o preço que temos que pagar por aqueles. Os mecanismos que constroem a realidade admitem uma gama muito vasta de possibilidades, porque têm uma componente aleatória. E a estas possibilidades a nossa mente atribui valores diferentes, talvez erradamente. 47. “Uma vida bem-sucedida não é fácil. É construída sobre qualidades fortes — sacrifício, diligência, lealdade e integridade. A corrida nem sempre é ganha pelo mais rápido 39

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