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fora da Academia

1. Reflexões sobre Finanças Públicas que nos anos 1920 vão tendo ecos fora da Academia

Percorrendo as Lições de Finanças de quatro Professores de Coimbra

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Há interesse em discutir se a acção de António de Oliveira Salazar – que assinou no início das suas funções como Ministro das Finanças o Decreto 11 n.º 16 670, criando em 1929 a Intendência-Geral do Orçamento – estava ou não prefigurada no ensino que assegurou na Universidade de Coimbra nas cadeiras de Economia Política e de Finanças, como o próprio não deixou de propalar, e se as preocupações com a eficiência que na época se apresentavam, em contexto empresarial, muito ligadas com a difusão das teses da Organização Científica do Trabalho (OCT), tinham lugar relevante neste seu ensino. Nuno Valério, que organizou a edição pelo Banco de Portugal (BdP), em 1997, sob o título O ágio do ouro e outros textos económicos 19161918 (Salazar, Valério, 1997) de três trabalhos de Salazar no domínio da Economia, redigidos no início da sua actividade académica (O ágio do Ouro. Sua natureza e suas causas (1891-1915); Questão Cerealífera: O Trigo; Alguns aspectos da crise das subsistências), refere-se também à existência de lições de Economia Política, organizadas em 1927 pelo aluno Alberto Menano que apenas abrangem a introdução e uma das partes do curso – a produção (faltando circulação, distribuição e consumo) e de Finanças, organizadas em 1922 pelo aluno João Pereira Neto. A inclusão destas lições na colectânea editada por Valério é afastada pelo organizador por razões semelhantes: Preview

– no primeiro caso – Economia Política – apontamentos coligidos das prelecções do Exmo Sr. Dr. Oliveira Salazar pelo aluno Alberto Menano,

Coimbra, Gráfica Coninbricense, 1927:

por um lado, trata-se de um manual elementar e claramente datado; por outro, é, em rigor, impossível saber o que é que, da redacção final, pertence realmente a Salazar e o que é que pertence ao estudante organizador da publicação. – no segundo caso – Lições de Finanças – conforme as prelecções do Exmo

Sr. Dr. Oliveira Salazar pelo aluno, João Pereira Neto, Coimbra Editora, 1927, adiante designadas por Lições de Finanças …

12 por suceder precisamente o mesmo. Percorremos as lições de Economia Política organizadas pelo aluno Alberto Menano em 1927 (Salazar, Menano, 1927) e, de facto, não encontrámos nada que nos parecesse relevante para a presente investigação, a não ser a omissão – que anotámos, no que se refere à produção e, dentro desta, à divisão do trabalho – de qualquer referência à Organização Científica do Trabalho, de que já se falava na época, graças aos trabalhos de Frederic Taylor, nos Estados Unidos, e de Henri Fayol, em França. Tinha já havido referência desenvolvida centrada em Fayol por parte de Armindo Monteiro numa comunicação de Dezembro de 1923 ao Congresso das Associações Comerciais e Industriais de Portugal, em sessão em que Salazar também apresentou uma comunicação, que não abordava os trabalhos daquela escola de pensamento, e de Fernando Emygdio da Silva, que se referiu tanto a Taylor como a Fayol numa conferência realizada em Janeiro seguinte que constituiu que um prolongamento do Congresso. Ora, já existia pelo menos uma tradução portuguesa da autoria de Braga Paixão1, publicada em 1922 em Angra do Heroísmo, de A Organização 1 Tratar-se-á possivelmente de Vítor Manuel Braga Paixão (1892-1982), que por altura de 1934 foi Director-Geral do Ensino Primário (Torgal, Estado Novo, Estados Novos, 2.ª Preview

Scientífica do Trabalho de Taylor em cuja introdução, datada de Outubro de 1920 e intitulada “Duas palavras”, o tradutor escrevera:

Parece-me que é especialmente azado êste momento para divulgar em Portugal o método de Taylor na organização scientífica do trabalho. Quando muito já se diz, e se escreve que Portugal só pelo desenvolvimento de todas as suas faculdades de produção, em todos os ramos de actividade, poderá disfrutar uma vida digna de povo livre e honrado, não é desarrazoado que se divulguem métodos com que inteligentemente se pretende conseguir a melhor produção. Tais métodos o presente livrinho dará a conhecer a quantos estão sinceramente interessados em que Portugal não continue a ser parasita de empréstimos e indús13 trias estranjeiras. A obra de reconstrução nacional, esboçada por mercê da boa vontade e da tenacidade com que alguns atacam a rotina e a inércia de quási todos, parece gravemente ameaçada pela onda da revolta social, cega de paixões como todas as revoltas, daqueles que, aspiram por uma fatia de pão e por um lugar ao sol das venturas da terra, que outros avaramente lhes têm impedido … No que se refere às Lições de Finanças … organizadas pelo aluno João Pereira Neto em 1922 (Salazar, Neto, 1922), embora também nos pareça evidente que formalmente nunca poderiam ser incluídas numa colectânea de textos da autoria de Oliveira Salazar, não podemos deixar de as considerar relevantes para a nossa investigação pela atenção dada ao “princípio edonístico”, pelo tratamento que nelas é feito da despesa pública, e pelas indicações bibliográficas. No que se refere ao “princípio edonístico”, este aparece referido nas Lições de Finanças … a propósito de um dos três critérios utilizados para definir edição revista, II Volume, pp. 301-302), tendo também exercido funções homólogas no Ministério das Colónias, e sido membro da Academia das Ciências. Preview

as “necessidades públicas”, e que eram o critério político, o critério económico e o critério histórico.

Segundo o critério económico, necessidades públicas são aquelas em cuja satisfação, o máximo edonístico se consegue ùnicamente mediante a acção do Estado. O princípio edonístico é a aplicação da lei do menor esforço a todas e quaisquer manifestações da vida económica. Segundo êste princípio o homem procura obter a máxima utilidade com o menor esforço possível. Aplicando este conceito às necessidades públicas, temos que, nestas o máximo edonístico se consegue apenas pela acção do Estado. Os indivíduos satisfazendo-as por si, não conseguem tão vantajoso número de utilidades, nem mesmo em tão boas condições …. Este princípio é 14 importante para orientar os governantes acêrca dos serviços que hão-de ser reservados para o Estado e daqueles que hão de ser deixados à iniciativa dos indivíduos (Salazar, Neto, 1922:6). Estas referências ao princípio edonístico (mais tarde grafar-se-ia “hedonístico”) são praticamente idênticas às que podemos encontrar no Tratado (incompleto) de Marnoco e Sousa, editado postumamente, com prefácio de Anselmo de Andrade, com o título de Tratado de Sciência das Finanças (Sousa, 1916:20 e 21), numa abordagem já anteriormente desenvolvida por aquele Professor, como se deduz pelas referências em Finanças (apontamentos coligidos por dois alunos sobre as prelecções feitas ao curso do 3.º ano jurídico no ano de 1911 a 1912), Coimbra, LITH e TYP Correia Cardoso, na p. 26: “A Escola Austríaca, cujo único e grande princípio é o do homem edonista” e em Apontamentos para a cadeira de Finanças colligidos em harmonia com as prelecções feitas pelo Sr. Dr. Marnoco e Sousa ao curso do terceiro ano jurídico de 1910 a 1911, por A.Baptista, Marques da Cruz e A. Rebelo, em cuja p. 26 se esclarece o conceito: “princípio edonístico, ou a lei do menor esforço, em virtude do qual o homem procura obter a máxima utilidade com o menor sacrifício possível.” Preview

Podemos assim dizer que a problemática da economicidade relacionada com as intervenções públicas não é estranha ao ensino de Finanças de Oliveira Salazar, embora sem que das vagas referências feitas nas Lições de Finanças… se possam retirar conclusões no plano, digamos, operacional, e sem que haja referência expressa à Organização Científica do Trabalho e aos autores situados nessa escola de pensamento.

Sobre estas lições de 1922 escreveu Nuno Valério:

Também elas têm um plano tradicional – uma curta introdução e quatro partes, sobre o orçamento, as despesas públicas. a dívida pública e as receitas públicas (incluindo impostos e de propriedade de empresas públicas) … As lições são clara15 mente lições de um professor de direito para estudantes de direito. O essencial da obra trata de legislação, evidentemente sobretudo de legislação portuguesa, embora algumas comparações internacionais sejam também apresentadas. … Para além disso, apenas é importante sublinhar que as doutrinas clássicas da minimização e do equilíbrio do orçamento ... (Valério, 1997). Não acompanhamos totalmente este autor nas observações acima transcritas, uma vez que, por um lado, pelo menos na parte relativa às despesas públicas, Oliveira Salazar coloca por diversas vezes questões relacionadas com a dificuldade de redução das despesas e de compressão de orçamentos, de uma forma que, na nossa opinião, não corresponde a uma visão exclusivamente jurídica ou apenas susceptível de ser discutida entre juristas, e que por outro lado, conforme regista Manuel Braga da Cruz na introdução à edição dos Inéditos e Dispersos que promoveu, inserida no Vol. I – Escritos político-sociais e doutrinários, 1908-1928, apresentou no Congresso das Associações Comerciais e Industriais de Portugal em Dezembro de 1923 uma tese em que, numa abordagem com alguns pontos de contacto com a das Lições, se pronunciava sobre a “Redução das despesas públicas” (Cruz, 1997:I, 19-20). Texto por nós consultado nas Teses e Actas do Congresso das Associações Comerciais e Industriais de Portugal mas que Braga da Preview

Cruz recolheu igualmente nos mesmos Inéditos e Dispersos, Vol. II – Estudos económicos e financeiros 1916-1928 (Cruz, 1997:II, tomo 2, 19-29). Também não nos parece líquido que os estudantes a quem foram ministradas estas prelecções, num curso então marcadamente culturalizante, se destinassem exclusivamente às profissões jurídicas, aliás em O Fascismo

Catedrático de Salazar Jorge Pais de Sousa chama a atenção para que Salazar terá tido como alunos um conjunto de oficiais do Exército que, a seguir à

Primeira Guerra Mundial, terão frequentado a Universidade de Coimbra, com o intuito de melhorarem a sua formação geral, ou mesmo de alcançarem uma licenciatura que os preparasse para o exercício de cargos civis sem renúncia à sua condição de militares, o que terá ajudado a divulgar o 16 nome do Professor junto dos meios a que pertenciam, sendo inclusive por essa via que terá surgido o primeiro convite, logo a seguir ao 28 de Maio de 1926, para se ocupar da pasta das Finanças (Sousa, 2011:282-292). O Decreto n.º 16 044, de 16 de Outubro de 1928 (promulga a lei orgânica das Faculdades de Direito) – que reorganizou o ensino nas Faculdades de Direito de Coimbra e de Lisboa e restabeleceu a segunda, extinta por Decreto do último Ministério da Ditadura presidido pelo General Carmona2 – viria a dar testemunho de que os cursos de Direito eram muito procurados na época. A experiência tem demonstrado que se matriculam no primeiro ano alunos muito insuficientemente preparados para seguirem com aproveitamento o ensino do 2 Decreto n.º 15 365, de 14 de Abril de 1928 – (Extingue a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a Faculdade de Letras da Universidade do Pôrto e a Faculdade de Farmácia e a Escola Normal Superior da Universidade de Coimbra – Extingue igualmente o Liceu da Horta e as Escolas Normais Primárias de Coimbra, Braga e Ponta Delgada – Limita, a partir do próximo ano lectivo, a matrícula nos liceus de Lisboa, Pôrto e Coimbra – Determina que, desde o próximo ano lectivo, só seja permitido o funcionamento dos cursos liceais de letras e sciências nas classes cuja matrícula atinja, pelo menos, dez alunos). Preview

direito, com grave prejuízo não só para os cursos a que pertencem, onde são um elemento de atraso e perturbação, mas para eles próprios, porque estão antecipadamente condenados a um seguro insucesso. As provas escritas e orais revelam frequentemente a incapacidade ou falta de habilitação de alunos que não sabem estudar, que não sabem redigir, que não sabem exprimir-se correctamente, a quem faltam noções radicalmente indispensáveis para a compreensão das disciplinas jurídicas. Para corrigir êste defeito torna-se evidente a necessidade dos exames de admissão às Faculdades. Este remédio não é porém de per si bastante para pôr têrmo a um outro mal: a excessiva afluência de alunos que procuram a formatura em direito, por ventura 17 em detrimento de outras profissões não menos necessárias à vida nacional. Dêste facto resulta por um lado a exagerada aglomeração dos cursos, o que pedagógicamente é um grandíssimo inconveniente, que não deve evitar-se com o alargamento exagerado do quadro de professores ou com uma grandíssima acumulação de serviços. Por isso, prescreve-se uma limitação ao número de inscrições no primeiro ano. Anotemos entretanto, porque tal nos virá a ser útil no desenvolvimento do presente estudo, que a Bibliografia indicada por Salazar para a disciplina de Finanças, a qual aliás Nuno Valério relevou na sua “Introdução”, incluia o já referido Tratado de Marnoco e Sousa, três obras de autores franceses (duas de Gaston Jèze e uma de Edgard Allix), três obras de autores italianos (Niti, Graziani e Einaudi) e o Tratado de Ciência das Finanças do alemão Wagner, em edição francesa, mas nenhum autor anglo-saxónico. Coloca-se finalmente a questão de saber até que ponto seriam as Lições de Finanças …, organizadas em 1922 por João Pereira Neto, fiéis às prelecções do Professor. No já referido O Fascismo Catedrático de Salazar, Jorge Pais de Sousa faz apelo a Bissaia Barreto e à sua descrição das aulas dadas por Salazar pela altura do ano – 1918 – em que fez o seu concurso para Professor: Preview

Antes de falar, traçava no quadro o plano exacto da sua lição. Assim se evidenciavam as suas raras qualidades de ordem e lógica. Terminava a lição dizendo: “É esta a minha opinião. Quando tiverem consultado os elementos de estudo que lhes indiquei, quando tiverem pesado bem os prós e os contras, sigam, meus senhores, a opinião que lhes parecer melhor”. Não comentava nunca as respostas dos alunos. Os seus olhos frios nunca revelavam aprovação ou descontentamento (Sousa, 2011:282-283).

No intróito da publicação das Lições de Finanças… de 1922, sob o título “Duas palavras”, escreve João Pereira Neto:

18 E como recompensa do nosso trabalho – seja-nos permitido dizê-lo – bastar-nos há a consolação de podermos afirmar que estas LIÇÕES DE FINANÇAS se encontram em perfeita harmonia com as prelecções magistrais do Exmo Senhor Doutor Oliveira Salazar. Se por vezes o desenvolvimento do sumário intercalado no texto não é escrito integralmente, é porque dêste modo se torna a leitura menos pesada e mais simples e nunca, como se poderia depreender, porque se tenham reduzido os assuntos. Embora não disponhamos de qualquer indicação expressa de que Salazar aprovou formalmente esta versão, não deixamos de notar que foi editada pela Coimbra Editora, que viria a ser também editora de livros publicados pelo Ministro das Finanças e Presidente do Conselho, designadamente A Reorganização Financeira. Dois anos no Ministério das Finanças 19281930, e os seis volumes de Discursos e Notas Políticas. Luís Reis Torgal em Estado Novo, Estados Novos indica: “Note-se que Salazar era sócio da “Coimbra Editora, Limitada” tendo, inclusivamente nela trabalhado nos seus tempos de professor” (Torgal, 2009:I, 133). Ligação também várias vezes referida por Franco Nogueira no seu Salazar, Vol I – A Mocidade e os Princípios (Nogueira, 1977a:I, 256, 273). Já os apontamentos coligidos por Alberto Preview

Menano sobre as Prelecções de Economia Política viriam a ser publicados pela Gráfica Conimbricense (grafada “Conimbricence”). Seria interessante confrontar o texto com o das Lições de Finanças: Em harmonia com as prelecções feitas pelo Exmo. Sr. Dr. Oliveira Salazar ao Curso do 3.º Ano Jurídico de 1916-1917, Coimbra, Tip. Literária, 1916, organizado por Mário Pais de Sousa, que Jorge Pais de Sousa incluiu nas “Fontes” de O Fascismo Catedrático de Salazar, mas não tivemos acesso àquele trabalho. A concluir esta passagem pelas “Lições de Finanças” de vários Professores de Coimbra, que alargámos aos anos 1930, façamos referência ao que nas Lições de Finanças de harmonia com as prelecções do Exmo Senhor Doutor 19 João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), ao curso do III ano jurídico de 19321933, por Hernâni Marques, Paiva Manso, Bacelar Ferreira, reproduzidas na Atlântida – Livraria Editora, Coimbra, 1932, aquele a quem Salazar passara as suas cadeiras e viria a passar em 1940 a pasta das Finanças, explicava, a páginas 82 a 84, sobre a Intendência-Geral do Orçamento: “pertence à Intendência Geral do Orçamento a incumbência de elaborar o Orçamento do Estado“ e mais adiante, a páginas 92 a 94, alertava “ainda não está nitidamente definida a competência da Intendência, visto que ela ainda não funciona”, tentando embora uma distinção: a fiscalização administrativa das despesas públicas no que respeita à utilidade compete à Intendência Geral do Orçamento, no que respeita à contabilidade (execução do orçamento, cumprimento das formalidades legais e dispêndio dos duodécimos) compete à Direcção-Geral da Contabilidade Pública Ao Tribunal de Contas competiria, por sua vez, a fiscalização judicial (ou jurisdicional) das despesas públicas. Costa Leite (Lumbrales) também remete para o princípio hedonístico na discussão feita a páginas 82 a 84 das suas Lições, concluindo do artigo 16.º do Decreto n.º 16 670: “Os directores e administradores dos serviços são Preview

obrigados a aplicar as verbas que fazem face às despesas dos seus serviços de modo a alcançarem um máximo de rendimento útil com o mínimo dispêndio possível” que “Este artigo estabelece assim, o princípio hedonístico aplicado às Finanças do Estado”.

Já nas Lições de Finanças: Em Harmonia com as Prelecções do Prof. Doutor José Teixeira Ribeiro ao curso do III Ano Jurídico de 1935-36, compiladas pelos alunos Frederico Furtado Morgado, Romeu Nobre Gomes e Mário Roseira, Coimbra, Casa do Castelo, 1936, apenas se dá conta da legislação publicada sobre a Intendência-Geral do Orçamento e da circunstância de esta não estar em funcionamento.

20 Discutindo a possível influência de Congressos Internacionais Ana Carina Azevedo, que de algum modo procurou relacionar o diploma de 1929 com a realização de Congressos sobre Organização Científica do Trabalho referenciados na sua investigação, dá conta na sua tese de doutoramento da existência de dois textos de João Camoesas publicados um em 1925 e outro em 1927, com os títulos, respectivamente “O Taylorismo e a organização científica do trabalho” e “O Trabalho Humano”, e da participação de Portugal no IV Congresso de Organização Científica do Trabalho realizado em 1929 em Paris (Azevedo, 2014:1-2) mas na sua dissertação de mestrado, onde discute com maior desenvolvimento a questão, decorre, como já tivemos ocasião de fazer notar em trabalho por nós publicado, que, se na sequência de carta do Secretário-Geral deste Congresso a Oliveira Salazar foi enviada por um núcleo com ligações ao Instituto Superior de Agronomia uma relação de estudos sobre o tema, e nos anos seguintes aprovadas iniciativas relacionadas com a OCT na Agricultura, não se confirma que houve efectivamente participação no referido Congresso de uma delegação portuguesa (ou pelo menos a autora não indica a composição desta), aliás seriam os trabalhos da Secção de Administração privada Preview

e pública do Congresso que poderiam interessar à discussão da génese do diploma de Salazar e desses não há notícia de terem na altura concitado interesse entre nós (Azevedo, 2014:1-2; Azevedo, 2015:42-45; Gonçalves, 2019:274).

Acresce que em matéria de investigação sobre a participação portuguesa em Congressos nos causa alguma perplexidade o que Ana Carina Azevedo deixou escrito na sua tese de doutoramento:

…ainda na década de 1950, Portugal participaria no IX Congresso Internacional de Organização Científica realizado em Bruxelas entre 5 e 11 de Julho de 1951 – para o qual o secretário-geral do comité nacional belga da organização científica 21 solicita, através da legação de Portugal em Bruxelas, que seja chamada a atenção de industriais, professores e especialistas que em Portugal se interessem pelos trabalhos de organização e gestão de empresas. O facto é que também deparámos com este documento quando procurávamos informação sobre a participação portuguesa em Congressos Internacionais de Ciências Administrativas, mas não se encontra junto a ele no arquivo referenciado qualquer outro que comprove o encaminhamento da solicitação para entidades portuguesas, ou a participação destas neste Congresso de 1951, nem ao longo da tese de Ana Carina Azevedo existe qualquer desenvolvimento sobre esta suposta participação. Depois desta referência, a autora passa, sem transição, a discorrer acerca do Instituto Internacional de Ciências Administrativas (IICA), que nada tem a ver com os Congressos Internacionais de Organização Científica (Azevedo, 2014:238-239). Entretanto, um outro texto de Ana Carina Azevedo, este publicado em Abril de 2019, voltou a suscitar-nos dúvidas sobre a forma como a autora fundamenta as suas referências sobre a participação portuguesa nos Congressos Internacionais de Ciências Administrativas, a ponto de termos considerado imprescindível apresentar estas dúvidas em Apêndice 2 Preview

ao presente trabalho, onde também daremos nota de uma actualização da nossa publicação de Fevereiro de 2019 quanto a esses Congressos (Azevedo, 2019). Nessa nossa publicação, ao identificarmos os temas dos primeiros

Congressos Internacionais de Ciências Administrativas, assinalámos que o “aperfeiçoamento dos métodos administrativos com vista a um maior rendimento” foi um dos que transitou do Congresso de Paris (1927) para o

Congresso de Madrid (1930). Sabendo-se embora que João de Magalhães Colaço, Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, foi o único português a participar nos Congressos de 1923, em Bruxelas (para além do responsável pela Legação de 22 Portugal, Alves da Veiga), de 1927 em Paris, e de 1930 em Madrid, e que a Secção Nacional Portuguesa dos Congressos Internacionais de Ciências Administrativas, à qual este Professor pertenceu, foi constituída em 1928 por Portaria do Ministério do Interior, a falta de indícios de que tenha sequer funcionado proíbe-nos de presumir uma influência directa da Secção na génese da criação da Intendência-Geral do Orçamento (Gonçalves, 2019:29, 76-88, 274). Também não temos qualquer elemento que nos sugira que João de Magalhães Colaço tenha feito qualquer comunicação directa sobre o assunto ao seu antigo colega no professorado de Coimbra, Oliveira Salazar. Já poderíamos admitir, sim, que, uma vez que tinha sido indicado em 1923 pela Faculdade de Direito de Lisboa ao Ministério do Interior para ser um dos integrantes de uma delegação portuguesa de que só ele apareceu, e que terá sido indicado directamente pela Faculdade para participar no Congresso de 1927, que tenha feito no regresso destes Congressos relato ou comunicação aos outros Professores da Faculdade, entre os quais se encontrava Fernando Emygdio da Silva, delegado ao Congresso inaugural do movimento em 1910, e que chegara a integrar a primeira Comissão Internacional Permanente, mas a existência de tal relato não está documentada (Gonçalves, 2019:71-81). Preview

De qualquer forma a problemática da Organização Científica do Trabalho era já conhecida na universidade portuguesa pelo menos desde 1913, como nos conta este mesmo Fernando Emygdio da Silva num texto intitulado “Organização Científica do Trabalho. Palavras ditas na sessão comemorativa do exercício da sua actividade entre nós da Fundação Bedaux”, inserido no III Volume das suas Conferências e Mais Dizeres, publicado em 1964 mas onde se refere terem decorrido 12 anos após a morte de Bedaux em 19443, pelo que supomos que o texto datará de 1956 ou de 1957 (Silva, 1964c: III, 211-216).

Quando já vão mais de quarenta anos estava preparando o meu concurso para 23 a Faculdade de Direito de Lisboa, três pontos, insertos entre os vinte para a tiragem à sorte de uma das minhas lições, particularmente me intrigavam. À luz do que eu tinha aprendido até esse momento não lograva explicar essa inclusão: em resumo, não lhes sabia determinar o conteúdo nem apurar o interesse. Felizmente, num desses dias de exaustivo trabalho, dei, na montra de uma livraria, com um livro, surgido de novo, cujo título bastou para me dar, num relance, a chave do triplo enigma. Chamava-se o autor, Frederic Winslow Taylor e chamava-se o livro “Organização científica do Trabalho”. Parece que pelo maior dos acasos, como vim a saber depois, o Dr. António Centeno dera antes de mim pela brochura, sofrera o aliciante contágio das ideias nela expostas, aptas, com efeito, a impressionar a notória presteza do seu espírito – e, com zelo apostólico para mim não isento de riscos, apressou-se a dar o livro a ler ao seu amigo prof. Roberto Alves, que logo ardeu na mesma chama e sendo precisamente (o mundo é pequeno) o vogal do júri do meu concurso encarregado de formular os pontos de economia política, 3 Charles Bedaux, com actividade relevante nos Estados Unidos da América, Canadá, Reino Unido e França, aproximou-se do nazismo e acabou por ser capturado aquando da ocupação americana do Norte de África em 1943. Levado para os Estados Unidos, suicidou-se em 1944. A Fundação terá sido instituída pela sua viúva. https://en.wikipedia. org/wiki/Charles_Bedaux . Preview

imprimiu afanosamente a três de entre eles – os tais três pontos até aí misteriosos – cambiantes da doutrina que, embora só com perigo para mim, chegou com leve diferença de tempo, ao conhecimento do examinador e do examinado. Acidentado jogo do alvoroço e do acaso que determinou assim o primeiro ajuste de contas e de ideias realizado em Portugal com base no tema enunciado e de certo modo afim ao debate desta noite. Fàcilmente se compreende que a surpresa e contentamento daquele remoto achado, em ligação com os dados de um verdadeiro problema de fundo na reorganização do trabalho dos homens, houvessem preso para sempre a minha nunca esmorecida curiosidade no seguimento do que então me apareceu.

António Centeno, indica-nos Filipe S. Fernandes no seu livro À minha 24 maneira, era em 1931-1932 “um dos grandes empresários da época”. Segundo o autor, o empresário em causa, formado em Teologia e em Direito em 1879, esteve envolvido na vida política e foi fundador e proprietário de jornais até à proclamação da República. No entanto, já por esta altura exercia actividades empresariais, tendo sido administrador e depois presidente da Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, “de que era um dos principais accionistas portugueses ”, em 1898 “requereu a patente de introdução de nova indústria para transformar sucata de ferro em ferro forjado em bruto ou aço e fazer laminagem do ferro e aço”; “Em 1912 assistiu à conferência realizada por Guglielmo Marconi na sessão promovida pela Sociedade de Geografia de Lisboa, a 23 de Maio. Participou na constituição da Companhia Portuguesa Radio Marconi em 1925, assumindo a presidência entre 1925 e 1938”; “Presidiu à Companhia do Niassa e esteve ligado à Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, à Companhia do Papel do Prado, à Fundição e Construções Mecânicas (Fundição de Oeiras), etc.” e ainda “Em 1896 presidiu à Associação Industrial Portuguesa” (Fernandes, 2013:112-115). Este é o homem de, no dizer de Fernando Emygdio, “notória presteza de espírito” (e exercendo um notável leque de actividades empresariais) que, convenhamos, não podia deixar de ficar impressionado pelas ideias de Taylor. Preview

Quanto a Roberto Alves, revela-nos o “Curriculum” de Fernando Emygdio da Silva, publicado postumamente no V Volume das suas Conferências e Mais Dizeres que o júri das provas realizadas em 1913 era constituído por professores de Coimbra e por este professor da Universidade do Porto (Silva,1975a: V, 11-24). Fernando Emygdio não nos elucida se a edição disponível na livraria correspondia à língua original ou a uma edição francesa, embora seja de excluir que se tratasse de uma edição portuguesa. Recordemos que Braga Paixão, querendo divulgar as ideias de Taylor, sentiu a necessidade em 1920, como já referimos, de fazer uma tradução portuguesa, não se sabendo a partir de que língua. 25 Os pontos de vista de dois Professores de Lisboa Na altura em que António de Oliveira Salazar era o Professor de Finanças de Coimbra, o Professor de Finanças de Lisboa era este Fernando Emygdio da Silva a que acabámos de aludir, o qual, natural da capital, se formara em Direito em Coimbra anos antes de Salazar e aí fizera o seu acto de licenciatura e, em 1911, o seu doutoramento, comparecendo no Congresso Internacional de Ciências Administrativas realizado em Bruxelas em 1910 na qualidade de delegado do Governo e da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), da qual, conforme assinalámos no nosso as Secções Nacionais Portuguesas do Instituto Internacional de Ciências Administrativas (1908-2012), só se faria sócio em 1936 (Gonçalves, 2019:71-75) . Do que entretanto ficámos a conhecer da personalidade de Fernando Emygdio, concluímos que este, que acumulava o exercício de funções como Professor da Faculdade de Direito de Lisboa com as de Administrador do Banco de Portugal (mais tarde, Vice-Governador em representação dos privados) e de diversas sociedades comerciais, não terá querido inscrever-se na SGL antes do falecimento de seu pai, Manuel Emygdio da Preview

Silva, que era sócio da referida Sociedade, o qual ocorreu em 1936, como aliás só a partir deste ano assumiu funções (como Presidente do Conselho de Administração) no Jardim Zoológico de Lisboa, de que Manuel

Emygdio também fora membro da administração. Retenhamos por agora a profunda delicadeza da atitude de Fernando Emygdio neste tipo de circunstância, reencontrá-la-emos mais tarde. Numa miscelânea da Biblioteca Nacional localizámos um opúsculo editado pela Associação Comercial de Lisboa em 1924, com o título A crise financeira e a revisão das despezas públicas. Conferência realizada na Associação Comercial de Lisboa na noute de 30 de Janeiro de 1924. No dia seguinte, o conferencista, Fernando Emygdio da Silva, numa introdução intitulada 26 “Duas palavras”, dá conta de que a referida Associação: reincidindo na fidalguia das suas atenções para comigo deliberou não só a publicação que hoje se faz como, de acordo com a respectiva comissão executiva, a inserção deste texto a par dos relatorios notaveis que formam o volume destinado a perpetuar a obra do ultimo congresso das Associações Industriaes e Comerciaes Portuguêsas. No entanto apesar do suposto acordo da comissão executiva do Congresso, não encontrámos este texto nas 454 páginas do volume de Teses e Actas, tendo a Associação Comercial de Lisboa, apesar do que terá dito a Comissão Executiva do Congresso, acabado por editar autonomamente o texto da conferência. Temos portanto António d’ (assim era grafado o “de” na edição de 1923) Oliveira Salazar e Fernando Emygdio da Silva a pronunciarem-se sobre o mesmo tema – as despesas públicas – numa mesma conjuntura política e económica, anos antes de a Reforma Orçamental ser, primeiro, aprovada, e depois, alargada ao orçamento da despesa com criação da Intendência-Geral do Orçamento. Preview

Em rigor foram três os académicos, sendo dois de Lisboa, a pronunciar-se sobre o tema nesta ocasião. Escreve Pedro Aires Oliveira que também Armindo Monteiro, muito próximo de Fernando Emygdio da Silva, presente no mesmo Congresso na qualidade de Director do Banco do Continente e Ilhas, apresentou uma comunicação, em que também era identificado como Professor, intitulada “A questão do equilíbrio orçamentário”, que teve grande impacto no Congresso e, posteriormente, na imprensa. O biógrafo político de Armindo Monteiro refere:

A discussão da sua comunicação teve lugar na sessão nocturna de 2 de Dezembro. Por razões não esclarecidas, Salazar não compareceu nessa sessão, tendo regressado a 27 Coimbra imediatamente após a sua curta conferência … Franco Nogueira, estranhamente, não menciona esta importante comunicação de Salazar na sua biografia do ditador. De qualquer forma não deixa de ser curioso que Salazar tenha apressado o seu regresso a Coimbra. Tendo dado a conhecer as suas propostas financeiras aos representantes das forças económicas, estaria ele interessado em guardar as suas distâncias face à ‘”plutocracia” ? (Oliveira, 2000:49). Parece-nos mais simples admitir que Oliveira Salazar, já no topo da carreira, percebeu que a sua comunicação, aliás sóbria (pp. 83-95 do volume editado com as intervenções no Congresso) não podia deixar de ficar ofuscada pela intervenção do jovem (ainda não tinha atingido os 30 anos) Doutor da Faculdade, de algum modo concorrente, de Lisboa, Armindo Monteiro, Professor apenas desde o ano anterior, a qual chegou a ser qualificada, por um seu colega do Banco, é certo, durante o debate, de “verdadeiro programa de governo”, e veio a ocupar uma grande parte da edição (pp. 97-167 do mesmo volume). Enquanto a primeira se atinha no essencial às despesas públicas, aliás em estrita obediência ao tema da sessão, a segunda fazia a discussão das finanças portuguesas das últimas décadas e tratava do equilíbrio, da despesa e da receita. Mais, enquanto a primeira era genérica mostrando Preview

grande relutância a formular propostas concretas, a segunda mostrava um profundo conhecimento da Administração da época e revelava-se fortemente propositiva. Só conhecemos uma referência posterior de Salazar a este Congresso, inserida num dos famosos artigos publicados no Novidades em finais de 1927, mais especificamente no de 21 de Dezembro:

Ao arrumar uns velhos papéis, encontro uma carta de há anos e em que um amigo me pede que consinta na eliminação duma frase por mim escrita em tese destinada a um Congresso qualquer. Havia quem a julgasse pouco patriótica ou pelo menos pessismista, desalentadora para tantos que queriam trabalhar com entusiasmo e com fé. Mandei que se cortassem as palavras do reparo. Diziam: ´a redução das 28 despesas públicas é um problema polìticamente insolúvel’… A frase desapareceu, mas a verdade…a verdade ficou. 4 Em termos mais amplos, é de fazer notar que chegaram até nós textos apresentados por Salazar em outros eventos mas nenhum relato de confronto de opiniões havido nessas ocasiões com outros oradores5. O relato da ascensão de muitos estadistas é apresentado frequentemente como uma sucessão de veni, vidi, vici, que até pode ser explicada por os protagonistas se furtarem a medir-se com outros opinadores. A análise das intervenções dos três académicos permitiria, por si só, como veremos, intuir que a criação da Intendência-Geral do Orçamento não nascera de uma ideia de Salazar, e não estava prefigurada nas suas lições. A elas voltaremos por isso na II Parte do presente trabalho. 4 Anais da Revolução Nacional, Vol II, 1926-1930:158. 5 Não podemos também excluir que a não-participação de Salazar se devesse simplesmente a razões familiares, já que na altura a saúde da sua mãe, Maria do Resgate, era periclitante (Nogueira, 1977a: I, 252-285). Preview

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