O Estranho Caso do Botão de Punho

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FICHA TÉCNICA edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: O Estranho Caso do Botão de Punho autor: António Enes Marques design da capa: Paulo Marques design.paulomarques@gmail.com paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, novembro 2017 isbn: 978-989-8821-59-1 depósito legal: 432728/17 © António Enes Marques

publicação e comercialização:

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Amor eterno é efémero. Persiste, apenas, somente, Quando o sentimos, Realmente.

A suspeita sempre persegue a consciência culpada; o ladrão vê em cada sombra um polícia. WILLIAM SHAKESPEARE

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Capítulo Um

A

manhecia quando Pedro Ventura acordou ao retinir do telemóvel. Aquele era o som que escolhera, entre uma diversidade de toques polifónicos disponíveis, que imitava os antigos despertadores em desuso, pelo avanço incessante da tecnologia. Às sete horas, impreterivelmente, soergueu-se da cama e ficou durante alguns minutos a marinar o sono, com as costas de encontro ao travesseiro. A ganhar coragem para se levantar. Antes, porém, premiu o botão com o dedo indicador da mão esquerda a fim de silenciar o telemóvel pousado sobre a mesinha de cabeceira. Já de pantufas calçadas optou por não acender a luz do candeeiro para não lhe encandear a vista. Hábito que já lhe tinha valido ao longo da vida algumas cabeçadas na parede e pontapés nos pés da cama. Às apalpadelas por entre o escuro do quarto atingiu o estreito corredor que dava para a casa de banho. Aí, de olhos semicerrados, acendeu a luz. Descerrou os olhos e postou-se de frente para o espelho pendurado na parede 7

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por cima do lavatório a mirar o rosto. Não estou mal de todo, para quem já está quase nos sessenta, realmente até estou bem conservado, pensou, e dispôs-se a avaliar o aspeto da cútis que revelava ainda alguma firmeza apesar dum ligeiro acentuar de rugas. Na verdade a sua aparência não estava assim tão ruim para os seus cinquenta e sete bem medidos, comparativamente com outros que conhecia, alguns deles menos velhos que ele. Não fosse o avolumar dos cabelos grisalhos mais do que contavam os pretos e poderia muito bem enganar muita gente em relação à sua data de nascimento. Isto desde que se apresentasse elegantemente vestido, pois a barriguinha um pouco proeminente, o peito não tão firme como já fora, não valeria uma avaliação assim tão bondosa. O certo é que ainda se sentia bem capaz de fazer o seu treino normal. Não dispensava o ginásio, pelo menos duas vezes por semana, ou longas caminhadas, horas a fio, aos fins de semana, por caminhos crespos de serranias ou trilhos acidentados. Feita a vistoria presunçosa do rosto e da robustez física, desligou-se de tais lucubrações e tratou de se despachar antes que se fizesse tarde. Com redobrado cuidado fez a barba. Usava por costume e inércia a tradicional lâmina de barbear e qualquer movimento descuidado da mão, poderia ferir a pele do rosto. Ademais preferia o método antigo, já que o uso da máquina de barbear fazia-lhe alergia, 8

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ficava com a pele seca e irritada. Ainda se lembrava da primeira vez que usara a gilete, socorrendo-se dos ensinamentos do pai de como manobrar a lâmina sem se cortar. Debalde. Mesmo seguindo à risca as instruções o sangue proliferou no rosto imberbe, só para rapar um musgo de pelos esparsos e mal distribuídos. No fim parecia um cristo a que apenas faltava a cruz talhada à medida do seu corpo para o quadro ficar completo. Já bem barbeado e escanhoado tomou um duche rápido de água tépida e vestiu-se. O relógio de pulso marcava sete e quarenta quando pegou na pasta e saiu de casa. Uma certeza aterradora, porém, estalou medonha que o fez subitamente estacar o passo. Hesitante, parado no meio do passeio, de ânimo quebrado, ficou sem reação com o pensamento fixo na dura certeza que não lhe ocorrera ainda, como que anestesiado, até que o embate de um ombro apressado nas suas costas o retirou do letargo. De andar trôpego retornou ao prédio onde morava e subiu as escadas muito lentamente como se a dezena e meia de degraus que mediava o vestíbulo até à porta da casa fosse equivalente a uma escalada longa e íngreme de uma montanha. A arfar entrou e sentou-se no sofá, suspirou forte, o cenho franzido denotando tristeza e preocupação. A angústia que se cravara como um punhal na consciência de que todos os seus gestos madrugadores, 9

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tantas vezes repetidos, eram agora absolutamente inúteis, irrompeu como se um buraco fundo e escuro o apartasse da face da terra. Uma sombra de desilusão toldou-lhe o bom humor. Estava tão acostumado ao ramerrão casa-trabalho-casa que quase apagara da memória, naquela quase hora de higienização e preparação matinal, em que a mente ainda não aclarara para a recentíssima realidade, que o dia anterior fora o último, que precedera a inevitável entrada na pré-reforma. Até fora almoçar dias antes com alguns colegas cujos laços de amizade eram mais fortes para, de algum modo, celebrar um novo ciclo que desejaram de proveitoso descanso e livre de obrigações profissionais. Ficou longos minutos a fixar a cristaleira que se erguia perante os seus olhos mortiços e vazios, meditando como fora possível ter-se lavado e vestido tão afincadamente para ir trabalhar, sem se lembrar da nova realidade. E pôs-se a pensar sobre o que o esperava imaginando-se na pele de milhares de casos como o seu. Via-se como mais um indivíduo para sobrecarregar a estatística dos desocupados. Um descartado como tantos outros que pululam nos jardins a jogar às cartas ou nos cafés a costurar o tempo ou em casa na solidão a coser o desencanto. Desalentado, deixou-se ficar no sofá, imóvel, perante a crua realidade que se colava a ele de ora em diante. A nostalgia da rotina perdida acudiu-lhe à mente. Como refúgio ao desespero pôs-se a relembrar 10

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o que fora a sua vida no escritório da empresa, onde desempenhara as funções de tesoureiro durante cerca de trinta e cinco anos. De como era sempre o primeiro a chegar ao escritório. Hábito que permitia ter algum tempo disponível para tomar o pequeno-almoço e beber a costumeira bica na pastelaria que ficava na rua paralela à do emprego. E o tempo que mediava entre entrar no estabelecimento e picar o ponto no escritório e se sentar à secretária era um corrupio de saudações que ninguém lhe regateava. Cortês, educado, a todos saudava de igual modo sem fazer distinções. Um verdadeiro cavalheiro, assim se tinha em consideração, que a todos falava com um sorriso afável, desde o segurança, às mulheres da limpeza, aos colegas. E mesmo ao chefe, autoritário e pouco recomendável pela forma como lidava com os subalternos, saudava com cordialidade, o que instigava inveja e alimentava comentários acintosos dos colegas e não raras vezes de branda troça. Mas tirando o colega Bruno, sujeito rancoroso e não muito benquisto pelo superior hierárquico, e que um dia o acusara de lambe-botas e engraxador do chefe, todos os demais colegas desvalorizavam a afetada empatia da chefia para com ele, valorizando sobretudo o seu inquestionável brio profissional. Dele dependia a boa gestão e controlo de todos os pagamentos e recebimentos, fossem em numerário, cheque, transferência bancária. E ao fim do dia, no balanço do saldo, entre 11

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o deve e o haver, não admitia que houvesse nem um cêntimo a mais ou a menos. E se tal sucedia não descansava enquanto não ajustasse as contas o que implicava, por vezes, sair da empresa a altas horas da noite, afetado por um jejum excessivo e voluntário. A sua extrema dedicação à empresa, a forma diligente como se consagrava à sua função, as horas que juntava ao período normal exigido pelo contrato, abdicando, por vezes, do fim de semana, de certo modo ajudava a ultrapassar o desgosto da perda da mulher. Fazia um ano e alguns meses que Maria da Graça partira, acometida de doença fatal. Ter o cérebro ocupado, preenchia-lhe o vazio imenso, amainando a saudade que na solidão não cessava de crescer e de o atormentar. Porém, quando chegava a casa, depois de amortecer a fome com uma daquelas refeições rápidas género fast-food à portuguesa, a saudade volvia, alteava e comprimia-lhe o ânimo de forma absurda, irracional, e uma tristeza profunda, dorida, corroía a sua alma de homem solitário. Só a recordação das coisas boas vividas com Maria da Graça acalmava a dor, apaziguava-lhe a mágoa de a não ter. Ou então era a televisão que acudia como máquina automática de autoajuda que, não resolvia a tormenta, mas que tinha o condão de fazer esfriar a mágoa aquietando-lhe a insónia e atuando como sonífero. 12

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Até que, inesperadamente a administração, pela boca sisuda do chefe Albino lhe deu a má nova, informando-o de que no fim do mês prescindiriam dos seus serviços usando a prerrogativa legal, de despedimento com justa causa por extinção do posto de trabalho. Advogara a gerência que, apesar da sua entrega inexcedível, a lisura com que sempre executara a sua função, havia que fazer face à crise que o país atravessava e que afetava a empresa, tal como havia acontecido com muitas outras. Para tal a estratégia seria eliminar postos de trabalho excedentários. O que era o seu caso, no dizer da entidade patronal. E tudo porque o Nunes do departamento de contabilidade assumiria também os movimentos de caixa e demais operações monetárias e financeiras, não fazendo sentido manter uma das peças (forma absurda de Albino se referir aos seus subordinados), afeta somente à tesouraria. E Albino acrescentou outro argumento para vincar bem a conveniência da decisão tomada, de que não seria o único a ser dispensado, já que a redução do volume de negócios da empresa não se compadecia com a manutenção de excedentários. Ao todo seriam mais quatro as peças a serem dispensadas, todas da área das vendas. A reiterada alusão do chefe Albino ao vocábulo “peças”, sempre lhe parecera uma forma algo depreciativa de se referir aos colaboradores da empresa. Era como se os tomasse como peças de uma engrenagem que, deterioradas pelo uso ou tornadas obsole13

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tas, devessem ser automaticamente substituídas por outras de maior rendimento. Termo que também relacionava à importância relativa de cada uma das peças de um jogo de xadrez. Os peões como ele, as peças mais fracas, estavam na linha da frente, a defender as torres do castelo, no caso o edifício da empresa, onde reina a gerência. Mais do que conselheiro dos monarcas, o bispo Albino, sendo único na função, zelava pela integridade do reino, vigiando sobretudo o labor dos peões, não fossem eles se desviarem das suas obrigações, abrindo brechas no bom funcionamento e na estabilidade da corte. Faltavam os cavalos. Pouco importava, sobravam os camelos. Analogia que inferiu com um sorriso escarninho a torcer-lhe timidamente o lábio superior. Fosse como fosse, peça inútil ou peça menor, o seu mundo confinado quase em exclusivo ao espaço laboral havia desabado com estrondo ao escutar as palavras do chefe, assim de chofre, a informá-lo que prescindia dos seus serviços. E agora ali estava, sentado, olhando o televisor desligado tal como se sentia naquele momento. Rompera-se o elo que o ligava aos colegas. Pensou com precoce nostalgia naqueles que mais apreciava, cujos laços de amizade iam para além da simples relação laboral: a Júlia, uma morena reinadia que lhe tornava aprazível o dia pela sua beleza e juventude; a Olga que fazia uma resenha das notícias frescas da manhã, em que nem a meteorologia escapava ao seu manancial 14

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informativo; o Miguel sempre a puxar para a análise económica e política com críticas corrosivas ao poder fosse qual fosse o partido no governo; o Amaral constantemente preocupado com o bom desenrolar dos programas informáticos; o Luís, o galanteador, como era apelidado, diligente e esforçado, mas que não conseguia mascarar o ar cansado e olheirento das manhãs de segunda-feira, fruto das noites perdidas na boémia; e sobretudo a secretária do chefe, a carinhosa Joaninha, com o seu olhar afetuoso. Quis sair do estado taciturno em que havia caído. Desviou o pensamento para aquela gente anónima que estaria por esse mundo numa situação muito pior que a sua. Lembrou-se da declaração de um governante a aconselhar os jovens sem emprego a deixar a sua zona de conforto e a emigrar. Não sabia se todos os jovens iriam seguir a meritória alternativa e saírem do país do presente, sem perspetiva de futuro. Alguns, talvez por serem obedientes e crentes cidadãos assim que puderam, zarparam, dando um excelente contributo para subir a média de idade da população de um país já de si envelhecido. Malta jovem, muito pouco dada ao conforto, não havia dúvida! Não seria o seu caso. Com a sua idade que alternativa teria senão esperar que o desconforto submergisse no exaurir dos anos. E retornou a dúvida que lhe servia de pífio consolo: quantos não estariam em condições semelhantes à sua? Apesar de tudo vinha para casa com indemniza15

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ção, com subsídio de desemprego que duraria cerca de três anos, além de que o valor da reforma perspetivava vida folgada. Isto, se os credores que estrangulavam o país não se lembrassem de gatunar os que, como ele, haviam contribuído em muito, com descontos para a segurança social. Com casa própria, com dinheiro que lhe daria para o seu sustento e algumas saídas, até nem se podia queixar. Contudo a inatividade e sem alguém que lhe fizesse companhia como passaria os dias, os eternos dias… Para espairecer decidiu sair de casa. Levou cerca de dez minutos a percorrer as ruas estreitas da Madragoa até ao café que ficava na rua paralela à avenida vinte e quatro de julho, onde se situava o seu anterior emprego. Local em que se sentira um tipo prestável e do qual havia sido chutado: um gracioso pontapé no traseiro, como coisa descartável, e cuja utilidade se esvaiu, quase num abrir e fechar de olhos. Surpreendido ficou o João do café quando o viu entrar mais tarde do que era habitual. O empregado estranhou aquele ligeiro atraso, pois não tinha memória de tal facto num dia de semana. Simpático, Pedro não lhe regateou um “Bom dia” se bem que menos efusivo como era usual nele. À pergunta colocada pelo moço do café, revelando interesse em saber por que razão ele se encontrava ali àquela hora, Pedro engendrou uma desculpa. Preferiu, assim, reter o lamento da sua recente condição e refugiar-se na mentira inútil 16

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de que nesse dia estava com preguice aguda e apeteceu-lhe dormir um pouco mais. Mal havia dito isto um sentimento de profunda tristeza surdiu-lhe baixinho na consciência ferida pela mentira. E mais. Da vergonha que se apossou dele que o impediu de confessar que havia sido despedido, apesar do seu profissionalismo muitas vezes exaltado pelos colegas e chefia. Incapaz de expor a dura realidade perante terceiros insistiu na mentira e saiu com um “Até amanhã” que soou como um carpido. Alcançada a vinte e quatro de julho, Pedro postou-se no passeio contrário a uns bons cem metros do pretérito emprego. Nostálgico, abstraído da agitação do trânsito e do movimento dos transeuntes, passeou o olhar pela porta de entrada rebuscando memórias ao acaso, de episódios gratos à sua vivência de anos a fio, entre as paredes do edifício que agora lhe era interdito. Porém, um leve toque no ombro, uma voz que logo reconheceu como sendo a do Luís, evocando a sua estranheza por o ver por ali, tirou-o da apatia que o absorvia como espuma que retém a água. Pedro tentou justificar-se, dada a incomodidade do colega ter dado com ele num sítio, onde era suposto não estar àquela hora, num dia útil da semana, se é que há dias inúteis. – Uma obrigação para cumprir me fez passar por aqui. E tu; não devias estar já a trabalhar?

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Questão eivada de segunda intenção dado os intermitentes incumprimentos do horário em que o ex-colega era useiro e vezeiro. Charmoso, atlético, incapaz de resistir ao apelo do desejo, Luís tinha o condão de suscitar nas mulheres o despertar da sensualidade, e as noites propiciadoras de venturosos encontros, por vezes prolongavam-se. A inevitável consequência era chegar atrasado ao escritório. Para Pedro fora sempre um mistério o chefe fazer vista grossa ao comportamento do Luís, em nada consentâneo com a exigência que impunha aos outros, em relação à pontualidade. Circulavam rumores entre os colegas de que haveria uma causa obscura e comprometedora envolvendo o chefe, que seria do conhecimento do Luís. E daí a proteção que lhe era dada, permitindo-lhe pequenos atrasos e inopinadas ausências. O receio de represálias, a ignorância sobre se havia realmente algo entre o Chefe e o Luís ou se era simplesmente uma suposição sem sentido, desencorajava o mais temerário a especular abertamente sobre o motivo por que era dado um tratamento preferencial ao Luís: – Se tu tivesses passado a noite com a loura que me calhou em sorte. Que mulheraça e que fogosidade! Aquilo parecia uma máquina de sexo. Fiquei todo partido. Acordei depois das nove. O que vale é que o chefe Albino é um tipo porreiro.

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– Só se for para ti! Aliás não percebo por que ele te permite coisas que nem mesmo a mim consentia. E já agora, que vem a talhe de foice, é verdade que sabes algo de muito comprometedor sobre ele e que isso te serve como manto protetor para os teus atrasos e faltas ao trabalho? Não é por nada… Tu bem sabes que eu nunca liguei a ditos e mexericos. É só simples curiosidade. Uma certa perturbação sobreveio no rosto de Luís. Porém foi evasivo na resposta. – Um dia conto-te. Trata-se de uma situação embaraçante e mesmo sabendo que posso confiar na tua descrição, preciso de algum tempo e ganhar coragem, para te dizer o que realmente aconteceu. – Então, sempre faz sentido a especulação em relação a vocês dois! – Sim, embora ninguém saiba nada sobre esse assunto. E se te disser o que foi prometes-me, por tua honra, não dizeres a ninguém. O ar grave e sério com que acatou a recomendação sossegou o detentor do segredo, que no entanto se escusou a adiantar pormenores, deixando a revelação do conveniente segredo para outro dia. – É melhor mudarmos de assunto que estou com pressa. Mas antes de me ir, diz-me; Já tens algo com que te ocupares, agora que tens todo o tempo só para ti?

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Pedro não evitou o embaraço que a pergunta feita tão a seco lhe provocou. De voz periclitante disse que ainda estava a pensar no que havia de fazer. Que ainda não tinha pensado nisso. Certo era que de vez em quando iria até a Cascais passar alguns dias na casa da filha, sem deixar a sua moradia da rua das Trinas. Depois haveria de arranjar algo para se entreter, já que tendo sido apanhado de surpresa com a decisão do patrão, ainda não havia pensado numa alternativa para preencher o seu tempo, quando chegasse a idade de se reformar. Patenteava alguma tristeza enquanto se referia à suposta satisfação de ter alguém que lhe valesse. Luís apercebeu-se do semblante infeliz de Pedro, e ofereceu-se para o visitar, sempre que pudesse e ele assim o quisesse. E sugeriu que podia ser ao fim da tarde depois de sair do emprego, ou mesmo para uma saída à noite, a um bar ou mesmo a uma discoteca, ao fim de semana, quem sabe, bem acompanhados… Pedro agradeceu a amabilidade e vendo-o a afastar-se, arrependeu-se do mau juízo de valor que fizera do Luís. Considerara-o sempre um egoísta, nada solidário com a adversidade alheia, e no entanto, fora um dos poucos colegas verdadeiramente interessado em o ajudar, num momento tão difícil. Sem vontade de se encerrar entre quatro paredes vagueou pelas ruas de Lisboa. Caminhou em linha reta até ao Terreiro do Paço, distraiu a vista pelas mon20

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tras que o levaram ao Rossio e encaminhou-se até ao largo do Camões. Aí comprou o jornal e escolheu um lugar num banco do largo. A notícia de primeira página referia mais uma incursão da troica. Havia até a menção a uma afirmação, que lhe pareceu mal-intencionada, de um francês de nome esquisito, que referia: “Portugal como exemplo de um país que gastou mais do que podia”. Isso indispô-lo ainda mais do que já estava. Tal argumento sem qualquer base de justificação racional, parecia concorrer para justificar os cortes nos salários e nas pensões, na contração dos investimentos das empresas e consequente aumento do desemprego, que também o atingira e o arrastara para a inatividade. Achou piada. Ele que não devia nada a ninguém, que sempre fora poupadinho, também engrossava a lista dos que concorrera para o aumento da dívida do estado? Desfolhou o jornal e as medidas gravosas impostas pelos credores internacionais abundavam a par da divulgação de crimes e horrores a que se dava desmesurado destaque. Pareceu-lhe que o avolumar de notícias negativas podia favorecer um certo desinteresse do leitor, mais do que o sensibilizar para a dor alheia. Havia que fomentar as boas novas em vez de se insistir no sensacionalismo da tragédia. Valeu-lhe a página do desporto que leu só para desviar a tristeza e alienar o espírito.

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Sem vontade de tornar a casa, sentindo necessidade de desanuviar aborrecimentos e tédio, foi até à rua do Coliseu de Lisboa, e num restaurante dos muitos que enchem a artéria almoçou um peixe grelhado, regado com vinho branco alentejano. Finda a refeição, passeou-se pelo centro comercial do chiado, decidindo-se depois por ir ao cinema, coisa que não fazia há muito. Anoitecia quando finalmente chegou a casa. O som provindo do telemóvel clamou atenção. Era a filha, a Paula, com a sua voz vibrante, enérgica, calorosa, preocupada com ele, a convidá-lo para ir passar uns dias a Cascais. Disse-lhe que sim embora lhe custasse deixar o bairro, onde fora muito feliz. E isso trouxe-lhe de novo à lembrança os anos áureos vividos com Maria da Graça sob aquele teto, entre aquelas paredes, na primeira e única morada que partilhara com a mulher. Quanto não daria para a ter ali nesse momento de custoso abandono. Ela tinha sempre uma palavra de consolo e de otimismo que o ajudava a mitigar os dias mais cinzentos. À noite, para dominara a insónia relutante, teve de tomar três calmantes. Antes uma certeza tingiu-lhe o ânimo: tinha de reagir. Para isso aceitaria o apelo da filha evitando assim o isolamento se não queria passar-se da cabeça.

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Capítulo Dois

B

em que lhe custava ser um fardo para alguém, quando deu consigo a pensar que fazia, nesse dia, quatro semanas que a casa da filha lhe servia de residência permanente e começava a sentir-se pouco à-vontade. Não era a primeira vez que Pedro passava alguns dias em casa da filha. Todavia a sua permanência mais duradoura suscitava-lhe algum desconforto por pressentir, se não estaria de algum modo a interferir com a vida do casal. Se bem que o genro, piloto numa companhia de navegação aérea, durante esse mês estivera pouco em casa, já que nesse período fora escalado para voos de longa duração. Era certo que havia feito companhia a Paula durante as ausências de Alfredo e isso alegrava-o porque lhe permitira vivenciar um tempo alargado de maior intimidade com a filha. Situação pouco comum desde que ela se casara. Porém, nos dias em que a presença de Alfredo se estendia, se prolongava, a suspeita, talvez infundada, mas que nunca teve a ousadia de suscitar em alta voz, 23

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de que se tornava um empecilho, reavivava. Um inexplicável constrangimento apoderava-se dele. E isso fez renascer a vontade de retornar ao seu domicílio da Madragoa. Ia adiando, no entanto, o dia da partida com receio da sua decisão ser mal interpretada. Até porque nunca houvera da parte, tanto da filha como do genro, um gesto de enfado, uma palavra menos simpática pelo facto de partilharem a casa com ele. Mas não há nada como o nosso cantinho, o perfume das recordações do bairro onde se nasceu. E esse sentimento de pertença era para Pedro um forte apelo a que não conseguia resistir. No seu querido bairro, cada casa, pátio, rua, largo, esquina, passeio, eram o reflexo vivo de muitas memórias, de bastas lembranças do tempo passado desde que tomara consciência de si. Sentia saudade dos sítios em que brincara e crescera. De observar, ao sair de casa, o Tejo ao fundo como se fosse um prolongamento da rua que os olhos percorrem, buscando o azul prateado do rio sob o reflexo faiscante do sol nascente. Fonte de vida em que abunda o peixe, sustento secular das gentes que se dedicam à faina do mar. Veio-lhe de súbito à lembrança a Benvinda das Dores. Uma alma boa, que tantas vezes, em miúdo, lhe valera com um naco de pão quando a fome apertava, enquanto esperava os pais que tardavam em regressar do trabalho. E um sorriso condescendente contraiu-lhe o rosto ao lembrar-se do episódio no pátio que poria 24

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um fim definitivo ao entretenimento de arremesso manual de uma tosca bola, feita de papel de jornal amarrotado, e comprimido numa meia de vidro que ele havia surripiado à mãe. As portas da casa dele e de Maria da Graça, filha de Benvinda, serviam como imaginárias balizas de andebol. Um lançamento desajeitado, desviado, de Pedro, levou o enrolado de papel e meia de senhora a embater na janela de Benvinda estilhaçando o vidro. Benvinda danada com o prejuízo causado pela brincadeira castigou severamente Maria da Graça. Já ele teve de suportar doloroso castigo da progenitora, não só porque obrigara a mãe a aguentar com o prejuízo, mas outrossim por ter estragado o único par de meias guardadas para as ocasiões festivas. Consequência imediata: durante longos e custosos dias foi-lhe interdita a brincadeira na rua. Nesse tempo, os mais velhos contavam que Benvinda, com doze anos, já andava de canastra à cabeça pousada sobre uma espécie de rodilha enrolada, popularmente designada por “sogra”, calcorreando as estreitas ruas de Lisboa, vendendo o peixe fresco que fora buscar à lota. E se lhe roubavam a freguesa que tinha como certa soltava palavrões quase chegando a vias de facto. Porém, passado o momento de exaltação os nervos esfriavam e se fosse preciso ajudava quem antes a havia insultado. Tinham-na como mulher corajosa, desembaraçada e astuta. Se a venda corria mal, 25

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não se eximia de usar certas artimanhas como fazer com um fósforo um buraco na barriga da pescada e soprar para a inchar, de modo a ficar gordinha ou parecer que tinha ovas. Coisa proibida, censurável, mas que convencia a incauta clientela. De rija têmpera, só o Ti Manel, que cantava com voz doce e melosa tristes fados que a faziam chorar, quando o pátio se engalanava em noites de festejo popular, a conseguiria embeiçar a ponto de a levar ao altar. De cantorias também o Almiro não pedia meças a ninguém quando já vinha alegrote e se comprazia a cantar que nem um passarinho. De volta a casa, o crepúsculo anunciando o fim da tarde, vindo da cordoaria nacional, fazia paragem obrigatória nas tabernas que lhe vinham ao caminho para saciar a sede, como costumava dizer. Parecia que ainda o estava a ver a chegar aos ziguezagues, já tocado de vinho, a entoar cançonetas populares e a clamar por beijinho e meiguice de Joaquina, varina de profissão e casada por fidelidade e devoção. Ele alfacinha de gema, ela proveniente de Ovar tal como Benvinda das Dores, com uma catrefada de filhos que Almiro fecundava quando sóbrio. De Joaquina, incontinente parideira, contavam-se onze filhos, quatro raparigas e sete rapazes, fora os que se haviam perdido pelo caminho. E no meio de tanta garotada, Pedro encantou-se por Maria da Graça. Com ela brincou aos maridos e mulheres sem sequer ousar 26

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imaginar, que um dia, a brincadeira de criança se tornaria realidade. Foi no pátio inflamado de vida, junto ao umbral da porta de Almiro, que ele roubou o primeiro beijo a Maria da Graça. Festejava-se a noite de Santo António quando o fugaz roçar de lábios se deu. Contava dezassete anos, mais três que Maria da Graça. Os ânimos tinham aquecido, a noite ia longa, o vinho fervia no sangue exaltado dos foliões e o atrevimento passou despercebido. Momento que coincidiu com o eclodir da pior zaragata de que tinha memória. E nem mesmo a velha Josefa, alcoviteira encartada, que merecera o cognome de Dobradiça, pois se não estava à porta estava à janela, pesquizando tudo em redor, se deu conta do iniciar da contenda que de mansinho se volveu num tumulto quase fero. Tudo aconteceu quando de súbito o ferrete do ciúme tomou conta de Ana Rita, mulher de pelo na venta que se atirou à Alzira, acusando-a de se estar a fazer ao seu homem. A desconfiança de que entre Alzira e o seu Carlitos havia coisa pairava há muito no espírito de Ana Rita como uma severa ameaça. Suspeita que ganhou foros de certeza no espírito perturbado de Ana Rita ao ver o seu marido a roçar a mão direita no rabo de Alzira. Moça de vastas virtudes corporais, que não conteve um olhar insinuante e provocador ao sentir-se apalpada. Gesto arrojado de Carlos, intencional ou não, nunca se veio a provar, provocou acesa peleja 27

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entre ofendida e acusada. Sobressaíram os puxanços de cabelos entre as duas mulheres, perante o olhar atónito de uns poucos e o riso trocista dos demais. Foi Benvinda das Dores que estancou o alvoroço que ameaçava generalizar-se mesmo entre os que não eram tidos nem achados à contenda, mas que tendiam a tomar partido. Com a bravura e decisão que era seu apanágio, Benvinda intrometeu-se entre as duas beligerantes, controlando uma situação que podia descambar em descabida pancadaria. Episódio belicoso que contrastou com o pacífico e saboroso ósculo com que foi brindada Maria da Graça levada pelo encanto e ousadia de Pedro. Destes e doutros desaguisados não se perpetuavam ódios, muito menos rancores. E se Alzira precisasse de ajuda, não era de admirar que fosse a Ana Rita, que antes a mimoseara com obscenos vitupérios, a primeira a socorrê-la. Gente humilde, sincera, que dizia sem pejo, para o bem ou para o mal, o que lhe ia na alma. Outros tempos em que havia muita pobreza e talvez por isso houvesse mais solidariedade. E Pedro, ligado ao lugar e à casa de boas e aprazíveis recordações, mantinha-se no vetusto pátio, firme no seu posto de observador privilegiado, assistindo à gradual degradação das casas e ao esvaziamento do que antes fora um lugar palpitante de vida. Com o passar irreversível dos anos, foram-se rompendo definitivamente os elos de proximidade entre 28

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os antigos moradores. Alguns partindo para uma viagem sem regresso deixando saudade e uma certeza de finitude. Outros por incapacidade de viverem sós a engrossarem os lares ou a recolherem-se em casa dos filhos, netos... Os mais persistentes faziam finca-pé à morte ou insistiam em não dependerem totalmente de ninguém e iam ficando. Era o caso da Ti Maria, mulher de um só homem, alma humilde, bom caráter que não negava esmola mesmo que o dinheiro lhe fizesse falta. Enviuvada, manca no andar, tinha um coração de ouro. E que bom seria volver ao tempo em que se sentava à mesa com os três filhos de Ti Maria, quando o marido, que gostava de mesa farta e de muita gente à sua volta, estendia o repasto a outros que não só os da família. Uma angústia tomou-lhe o pensamento como uma certeza. Madragoa já não tinha o sabor de antigamente. Estava diferente. O consumismo crescente medrava paredes-meias com o avolumar de pedintes e dos sem-abrigo que mancham as ruas de miséria extrema e profunda náusea. As casas mais antigas, tal como a da Ti Maria, sem melhoramentos à vista, mostravam sinais de degradação e o risco de derrocada era enorme. Por sorte a residência dele resistia bem à passagem do tempo. Não, não era contra o progresso desde que fosse benéfico: insistia consigo mesmo como se quisesse banir do pensamento saudosismos bacocos. Porém sentia uma indefinida nostalgia difícil 29

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de expressar em palavras, desse antigo bairrismo com todos defeitos e virtudes, que se havia esfumado. No entanto, continuam-se a celebrar nos becos e ruas dos bairros de Lisboa as festas dos santos populares. Não faltam os restaurantes ou as esplanadas cheias de gente, a imprescindível sardinha, o cheirinho a manjerico, o tinto pintando de rubro copos de plástico, e imensa cerveja. Sobretudo muita cerveja consumida por grupos de jovens em pé, numa vozearia que vai alteando a par da música que abafa as conversas à medida que mais gente se vai juntando. O que falta em divertimento feito de bailaricos de rua a que os passantes aderiam espontaneamente abunda agora em consumidores de álcool, no barulhar indistinto de vozes que se atropelam, e no amontoado de vasilhames e lixo que jazem nas ruas, quando a madrugada quebra os ânimos dos festeiros. Contudo, apesar do reboliço, da animação e do regozijo da festa, faltava aquele gostinho autêntico, castiço, de proximidade entre as pessoas, que durante anos comungaram alegrias e tristezas, desavenças e reconciliações. Ou se calhar é mesmo exagero seu. Não compreender e não querer aceitar de bom grado que tudo está em constante mudança. A falsa noção quase involuntária, um pensar quiçá retrógrado, passadista, de que no seu tempo é que era bom: Talvez seja isso… O ressoar da campainha da porta cortou-lhe o pensamento. Seguiram-se os passos firmes e decididos 30

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de Paula no corredor de acesso à porta que dá para a escada do prédio. Três vozes femininas encheram o espaço momentos antes silencioso. Sentado no sofá da sala, Pedro distinguiu o saudar rouco de Raquel e o aveludado e sensual “Olá! Podemos entrar?”, de Laura. Eram as duas amigas de Paula que com ela haviam frequentado o curso de farmácia. Raquel vinha escandalizada com a notícia que lera no jornal sobre o ato de violência doméstica perpetrado por um polícia na mulher com quem vivia maritalmente há três anos. Se fosse a ela a quem coubesse o poder de condenar o perverso prevaricador, cortava-lhos rentes, disse com veemência. Em contraponto, Laura preferia punição menos drástica. Se tivesse poder para condenar o agressor era cadeia para vinte anos no mínimo: – Que achas Paula? – Laura buscou opinião quando entraram na sala e deram com Pedro às voltas com as páginas do jornal, procurando a notícia sobre o caso da agressão do polícia, espicaçado de súbita curiosidade devido ao que acabara de escutar. Na frente vinha Raquel que estendeu a mão e o cumprimentou com algum vigor. Ele aceitou o cumprimento sem muita efusividade dado o feitio normalmente pouco cordial de Raquel. Já Laura era um doce, a meiguice a sorrir. Saudou-o com gaiatice no olhar, ofereceu-lhe a cara para o cumprimentar. 31

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– Então senhor Pedro, ainda por cá? Sentiu um ligeiro incómodo por Laura se referir à sua permanência na casa da filha. Mas Laura era mesmo assim, atrevida mas não maldosa. Contrariando o anseio que crescia nele, de dizer abertamente que no fundo desejaria voltar ao seu sítio, onde já não punha os pés ia para um mês, iludiu a tristeza e disse: – Enquanto a minha filha não se fartar de mim e me quiser cá… – Ó pai, então! Esta também é a tua casa. Podes estar cá o tempo que quiseres. Mas não interrompas a leitura por nossa causa. E fazendo-se apressada, exclamou: – Meninas à cozinha! Está na hora de preparar o jantar. Deixemos o papá à volta das notícias. Ao vê-las afastarem-se reparou no modo de andar de Raquel com trejeitos de masculinidade escondida ou feminilidade mal assumida. Em profundo contraste, Laura transbordava de sensualidade: saia curta, um palmo acima do joelho mostrando a linha sinuosa das pernas, o jeito lascivo do menear da anca. Uma bênção à vista para quem se compraz com as dádivas benevolentes da natureza. E se não lhe desagradava, antes pelo contrário, a maneira arrojada de vestir da Laura, já em relação à filha isso indispunha-o. A sua maneira recente de usar jeans com rasgões expondo publicamente as coxas causava-lhe repulsa. Mas se era o próprio marido a não se importar porque é que havia de se intrometer no modo dela se vestir. Também não 32

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era assim tão cínico a ponto de pensar que não gostava de apreciar umas boas pernas de mulher. Mas achava mal que fosse a sua filha a fazer essas figuras que considerava impróprias numa mulher casada. Mas estava-lhe no feitio ir atrás de modernices ou ideias vanguardistas. Comportamento e atitudes que assumira desde muito nova. Irreverente, flutuando no limbo entre a convicção e a incerteza, Paula entrava por vezes em rota de colisão com os pais, com as decisões que tomava ao arrepio dos progenitores: saídas noturnas ainda sem idade nem tino para se aventurar em noitadas em discotecas; uso de piercings nos lóbulos das orelhas e cabelo multicolorido, sem sequer pedir autorização para o fazer; namoro com um rapazola de aspeto duvidoso, com tatuagem nos braços e metido numas calças de gancho muito baixo, jocosamente apelidadas, de “calças cagalhão”. Houve um tempo, entre os quinze e os dezoito anos, que Pedro chegou mesmo a temer que a filha se houvesse dado ao consumo de drogas devido às más companhias. Muita zanga, forte discussão, gerada por estas e outras atitudes mais ou menos rebeldes da filha, foram-se acumulando durante a adolescência e só se atenuaram com a entrada na faculdade. Entretanto, no meio destas divagações, deu finalmente com a notícia que elas comentavam, ao chegar à décima terceira página que havia desfolhado sem 33

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querer junto com a página seguinte do jornal. E o que leu chocou-o face à descrição aterradora do jornalista. Tanto que só deu pela presença de Laura quando ela se sentou no sofá de frente para ele, no seu jeito descontraído, a saia subida, o apelo das coxas desnudadas a buscarem-lhe o olhar furtivo. Embaraçado por ter cedido à impensada tentação de afagar com uma fugaz olhadela a pele morena e jovem de Laura, baixou a cabeça. Fixou-se no jornal fingindo ler enquanto mentalmente censurava o seu gesto: “a cobiçar as virtudes físicas da amiga de Paula com idade de ser sua filha. O que não pensariam dele? Também não se podia culpar por não esperar tanta descontração da parte de Laura. Um homem não é de ferro…”. No entanto a compreensão dos novos tempos deu-lhe argumentos para desvalorizar a cobiça, perante a descontração da juventude, no que concerne ao modo de vestir e de estar. Ao fim de quase quarenta anos a viver num país livre, os jovens haviam aprendido a relacionar-se sem as amarras da censura do seu tempo. Isso não o impedia de reconhecer que, por vezes, se exagerava. Mas que bom que eram por vezes esses exageros. – Reparo que o senhor Pedro está a ler sobre o espancamento do polícia. Já viu; em pleno século vinte e um, a mulher continua a ser uma vítima constante de maus tratos? – comentou Laura cortando-lhe o pensamento. 34

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Com receio de não conseguir falar com ela, sem dar de caras com a tentadora visão à sua frente, fixou os olhos num ponto, algures, no cimo da parede em frente, e foi dizendo. – Realmente não se compreende a violência entre casais. Devia imperar o respeito mútuo. Eu vivi quase trinta e cinco anos com Maria da Graça e nunca lhe bati nem com a pontinha de um dedo. Mas não é só com as mulheres que isso acontece… Em menor grau, é certo, mas também há homens que levam tareia das mulheres. Só que quase nunca o admitem em público. Têm vergonha de o dizer… – Acredito que sim. Mas nada se compara à violência exercida sobre as mulheres vítimas de milenar descriminação. Nisto entrou na sala Paula seguida de Raquel. Logo a Laura se apressou a ajustar a saia. Facto que não passou despercebido a Pedro, quase tentado a não resistir ao chamamento libidinoso da nudez, agora menos exposta. – Então Laura. Já contaste a novidade ao paizinho? – Qual novidade? – Eu digo-te. Aquele teu colega, ex-colega mais propriamente, o Luís, é o novo namorado da Laura. Já estão juntos há duas semanas e pelo que ela me diz, dá-me impressão que é coisa séria. Perplexo, Pedro evitou a muito custo uma funda exclamação, só de pensar que ainda não há muito, 35

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o Luís se gabara de andar metido com uma loura. Uma brasa como ele se havia referido à mais recente conquista: – O Luís, a sério! E estão a pensar em casar? – Mas quem é que falou em casar. Isso já não se usa senhor Pedro – elucidou Laura. –, Já me bastou a amarga experiência como a que tive com o meu ex-marido. Vamos viver juntos e talvez um dia, quem sabe... Aquilo soava-lhe a desconfiança, conhecendo a natureza libertina e femeeira de Luís. Não lhe parecia que viesse a ser uma relação duradoura. Ou estaria enganado… E o Luís iria finalmente assentar agora que se aproximava dos quarenta? Dúvida que guardou para si. – Quer dizer que nem casamento pela igreja nem pelo civil? – questionou Pedro, logo acrescentando que talvez fosse melhor assim. – Claro que sim papá. A felicidade depende de nós, não de um simples papel, tenha ele o valor que tiver. E depois sempre se acautela uma possível inadaptação, que pode sempre acontecer quando duas pessoas se juntam. E virando-se para Raquel: – Agora só faltas tu, arranjar companheiro. Não queres ficar para tia, pois não? Pergunta inconveniente, sensível, que imediatamente se arrependeu de fazer. – Isso é coisa que não me preocupa. Tenho muito tempo ainda pela frente. Embora eu prefira ficar só a ter que aturar homem... Antes ficar sozinha do que… 36

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– Não vos cheira a queimado – inquiriu Laura de súbito cortando cerce a lengalenga que se seguiria com Raquel a perorar sobre os malefícios vindos do varonil sexo. A sopa fervera mais do que devia. Teriam de se contentar com o conduto. E enquanto a Laura se dispunha a estender toalha e colocar demais utensílios na mesa, a filha seguida de Raquel, foi aprontar a comida: perna de peru no forno com batatas a murro. A sopa, essa, foi pelo cano abaixo. Pedro atentou no vaivém de Laura da cozinha para a sala de jantar. Foi rolando os olhos ao sabor do menear da anca, do sacudir dos seios que balançavam soltos sob a blusa. Deu consigo a pensar na sorte do Luís e na diferença entre a sensualidade à flor da pele de Laura e a quase ausência de graça de Raquel. Não fosse conhecer a dramática história que a filha lhe havia contado muito recentemente acerca de Raquel e seria levado a pensar que havia nela, uma tendência latente mas não assumida, para o lesbianismo. Todavia, a forma insidiosa como se referia ao sexo masculino, tinha por detrás das aparências, um motivo negativo assaz forte. Numa tarde invernosa, estavam as duas no anfiteatro da faculdade, quando Raquel se abriu com Paula, num momento de fragilidade de que era acometida, de cada vez que acordava de manhã, com a memória atormentada pela terrível provação porque passara. Disse-lhe, então, que havia sido violada, ainda jovem 37

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adolescente, por um familiar próximo. Curiosa e querendo mostrar afeto e compreensão pela dor da amiga, Paula quis saber quem fora o violador. Raquel, apesar da insistência da amiga, não revelou o autor do perverso estupro. Preferia guardar segredo sobre o responsável da sua permanente angústia, e logo se arrependeu de ter aflorado o caso com Paula. Pediu-lhe encarecidamente que não dissesse nada do que havia contado a ninguém. Mas perante a desconfiança do pai quanto à tendência sexual de Raquel, Paula desvendou o segredo exigindo ao pai a mesma descrição, que tinha jurado e não cumprido. Pedro ficou sensibilizado com o que a filha lhe contou. A partir desse dia, Pedro começou a ver Raquel com outros olhos, mais condescendentes, nutrindo alguma indulgência pelo que lhe tinha acontecido ainda jovem, conquanto não gostasse da sua maneira algo ríspida de lhe falar. Para Pedro, a Raquel não lhe era totalmente desconhecida, embora só a conhecesse mais de perto após o seu despedimento, quando se mudou provisoriamente para a casa da filha. Raquel aparecia de vez em quando no escritório para falar com o chefe Albino. Veio a saber pela secretária que era irmã do chefe. Apercebeu-se também que o Luís se dava de intimidades com Raquel assim que a via chegar. Discreto, Pedro nunca lhe perguntou como a conhecera, e Luís também nunca se referiu a ela. 38

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Por vezes, Raquel saía do gabinete do irmão muito submissa, olhos chorosos. Outras vezes trazia o olhar grave, sério, o rosto crispado. Nunca soube o motivo daquele extremar de humores. A curiosidade, a comiseração levou-o a questionar o Luís se sabia qual era a causa que deixava Raquel naquele estado ao deixar o escritório do irmão. Luís limitou-se a um vago encolher de ombros e a sublinhar a sua ignorância. Desinteressou-se em definitivo em saber fosse o que fosse sobre o motivo das questiúnculas entre os dois irmãos. Estava tudo pronto para o jantar. Apenas esperavam pela eminente chegada de Alfredo quando o telemóvel de Pedro tocou. Era o Luís a convidá-lo para uma surtida a um bar/discoteca na noite do próximo sábado. Falou-lhe numa louraça, vastos seios, boa como o milho, que andava a galar. Disse que se ele fosse tomaria a liberdade de convidar também a Olga para lhe fazer companhia. Teve vontade de recusar, mas o amigo tanto insistiu que acabou por anuir. Não querendo dar a entender qual a conversa que estava a ter pelo telefone, sobretudo por causa da Laura, Pedro afastou-se um pouco das três mulheres, e cuidando ser prudente, limitou-se a escutar e a responder em monossílabos. Terminada a ligação a filha quis saber quem era. Mentiu-lhe dizendo que era um amigo que ela não conhecia a convidá-lo para uma festa de anos. Fê-lo para não comprometer o amigo,

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