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Tábula é um conto quase amargurado com um rasgão estrutural de aventura e acaso. Daí a hipótese do seu interesse. Ao texto falta um monge para lhe endossar o hábito, embora dê a ver alguns outros lindos trajos, como acontece em todas as histórias de viagens e de fantasia. E como em todas elas tem um lindo fim feliz, com música dos anjos e turbilhões de nuvens.
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Tábula Alberto Bravo
Tábula
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Um moribundo de muitas mortes que teima em não morrer, leccionador epiléptico, dizimador de palavras, cria um suspense pouco usual, e aspira a uma forma de liderança oculta. Num casulo de pedras, labora por sua vez um enigmático mação, tão obstinado quanto modesto, sonhando uma ideia de catedral minimalista que se guarde na palma de uma mão de criança. Vítimas duma bifurcação originária indocumentada, o homem de trapo e o comandante convergem no mesmo desejo de unificação através da narração pública duma biografia inventada, o que lhes possibilitaria, no seu entender, uma forma de existência social como outra qualquer. O visitante, suspeito de ser um autor, não se sente autorizado a nada, nem a uma só palavra. Nestas condições, o estatuto de estagiário assentar-lhe-ia como uma luva. Mas nada indica que esse estatuto exista. Em consequência, nada lhe poderá ser imputado, muito menos um resumo do que nunca lhe foi dado a ler. O que tiver aprendido ficará com ele.
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TÁBUL A
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ALBERTO BRAVO
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EDIÇÃO: edições Vírgula® (Chancela Sítio do Livro) TÍTULO: Tábula AUTOR: Alberto Bravo CAPA: Ângela Espinha PAGINAÇÃO: Susana Soares 1.ª EDIÇÃO Lisboa, novembro 2018
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ISBN: 978-989-8821-82-9 DEPÓSITO LEGAL: 447267/18 © Alberto Bravo
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
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UMA DOENÇA MORTAL
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A porta e as duas janelas da sala estavam completamente abertas. A vida não aspira a tanto. O ar não põe entraves à sua passagem, nem se embaraça com limites. Tal como a morte. Mas outros elementos ou forças existem, como o ser humano, que não põem entraves nem se embaraçam com limites. Os seus raciocínios eram raciocínios de moribundo.
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Um vulto cruzou as duas janelas. Depois, um homem entrou. Tentou erguer-se na cama e o visitante, célere, correu em sua ajuda. A primeira vez que o vi, disse o visitante, foi ao cruzar aquela porta. Mas tenho a certeza de que não foi a primeira vez. Como apreender um instante? Só assim poderia prová-lo. Eu vi-o um pouco antes, quando cruzou as janelas, respondeu o moribundo, prontamente. Não era mais do que um vulto, mas pode dizer-se que o vi primeiro. Escusado será dizer que tudo se passou no passado actual ou no presente futuro. 7
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A escolha é apenas de ordem estética. Como já o conheço, é desnecessário neste caso apresentarmonos com os pormenores efusivos do romance. Sou um moribundo e todos os moribundos são iguais, aos olhos do grande público. Mas o senhor não está aqui em nome do grande público, suponho eu.
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- Não saberia dizê-lo.
O rosto do visitante tornou-se triste, uma tristeza que quase o desfigurou.
- Nós pertencemos ao pequeno público, disse o moribundo. Temos o direito de estar tristes, se assim o entendermos.
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O recém-chegado decidiu acomodar melhor a almofada onde repousava a cabeça do moribundo. Ao querer fazê-lo, o peso era tanto que foi obrigado a desistir. Limitou-se a alisar os bordos da fronha.
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Numa parede, estava pendurada uma imponente moldura de madeira, espessa, em tons dourados e negros. Simples, sem qualquer ornamento. A moldura enquadrava um rectângulo da parede um pouco mais claro, que se distinguia mal do conjunto, pretendendo talvez, por esse meio, obter um efeito estético indeterminável. Mas que efeito estético é determinável? O que nós dizemos sem pensar! Num dos cantos do quadro havia uma inscrição. Aproximouse para ver. Estava escrito: Anónimo. O moribundo tinha retirado o braço direito de baixo da cobertura e mostrava na mão um pequeno caderno com uma capa vermelha. Os olhos pareciam faltar no rosto reduzido. 8
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- Escrevo quando me sinto vivo, se assim se pode dizer, confessou. Porém, tudo aquilo que escrevo desaparece. Meça a amplidão do meu drama! Sou fonte de vazio. Folhas e folhas em branco. Uma vida. Em consequência, evito sentir que estou vivo. O que me põe a falar o estritamente desnecessário sem ter em conta o meu interlocutor. - E se fosse eu a escrever?
- Não deve ter vindo para isso.
O visitante escreveu a palavra Deus. A palavra desapareceu. - Chegou a vê-la?
- Apenas quando a perdi.
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- Aí está, é como se houvesse uma intenção. Tentei a gravação sonora mais avançada, bem entendido, a pós-numérica, qualquer espírito prático pensaria no mesmo, mas veja o que se passou: na reprodução, o eco da última palavra anulava a anterior. Posso dizer que tentei tudo. Os meus colaboradores, dos mais leais aos mais voluntariosos, a fina flor da investigação, os altruístas e os fiéis amadores, todos me abandonaram no limiar da loucura. Recebi ameaças de morte as mais requintadas. Daí o meu estado. Morro a instantes de remorsos, com uma exactidão de segundos, sem ter obrigado ninguém a nada, em perfeita inocência, pode dizer-se. Eu limitei-me a pedir ajuda e fiquei com o sentimento de ser um assassino. E não me venham dizer que ninguém é inocente! Primeira lição a reter: nunca pedir ajuda sem ter à mão uma segunda alternativa. A culpa é a minha doença mortal. Não 9
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me cite em situação alguma. É para seu bem. Acha que me contradigo ou me repito? Que me distribuo por diversos palcos? Que sofro de auto compaixão? Duma sinistrose de exílio? Antes de responder, pense duas vezes. Por que razão entrou?
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O visitante procurava onde sentar-se e não respondeu. Os lugares possíveis, tanto como os prováveis, estavam ocupados por montanhas de livros e cadernos cuja remoção seria impraticavelmente longa. Disse: “Entrei por curiosidade.” Mas existia algo mais do que a curiosidade, ou que não tinha a ver com ela, posterior à curiosidade, talvez. Reformulou a resposta, ajustando-a o mais possível à verdade, e disse que não sabia. Mas intimamente acusou-se de ter agravado ainda mais o mal do acamado.
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- O melhor é sentar-se, aconselhou o moribundo. Aí aos pés da cama, há-de encontrar um pequeno estrado, tão baixo que mal se dá por ele, onde costumavam sentar-se os meus alunos e as visitas casuais. Se ainda lá estiver. Está a vê-lo? - O senhor é professor?
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- De modo nenhum! Nunca teria essa falta de escrúpulos. Mas, como o senhor não deve ignorar, uma legenda tenaz obriga-nos a ter uma vida de acordo com essa tenacidade. Não podemos ser fracos. Exactamente como as formigas, as abelhas, os golfinhos, e outros seres de excepção. O mesmo acontece com a sua, pode ter a certeza. Nada autentifica uma vida de maneira a impedir as falsificações, eis a conclusão a que cheguei, mais pela evidência do que pelo
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estudo. Quero dizer com isto que me inventaram uma autobiografia tão convincente em todos os pormenores, que admiti confundi-la com a minha própria vida. Mas será assim? Tudo me leva a crer que apenas morto terei uma vida própria, talvez uma vida real, ao abrigo da interpretação. Como me vejo já a borboletear pelo universo! Nada de tudo isto é por acaso, ouso esperar. Eu tento reunir os fios, maneira de falar. Com sinceridade e desespero. Como o marionetista que se enredou a meio do espectáculo, está a ver? Vergonha e ansiedade, a paredes meias com a desonra e o ridículo. Mas, como lhe disse, as palavras da minha argumentação apagamse, talvez para o meu bem. Ou escreve-as acaso uma tinta invisível… Esta seria a hipótese mais esperançosa. Como ter fé na ciência. Está a ouvir-me?
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O visitante tinha-se sentado aos pés da cama. Não via o homem deitado. A cama estava uns dois metros acima, parecendo erguer-se de uma superfície de bruma azulada. A voz saía dessa bruma. Curiosamente, a situação não lhe causava qualquer incómodo nem o mais ligeiro embaraço. Tudo era tão natural como na vida diária, e na vida diurna, porquanto o sonho… A posição em que se encontrava era invulgarmente confortável. Não tinha onde apoiar as costas; no entanto, elas estavam sustidas como nunca o conseguiria o mais engenhosamente ergonómico dos sofás, e as pernas levantadas, estendidas em frente, pareciam flutuar no espaço. “São jogos de vã dialéctica ou de palavras e eu detesto uns e outros”, pensou. Achou o comentário adequado à situação, mas considerou-o absurdo por cansaço. Atribuiu 11
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tudo à maneira como estava sentado ou a uma boa intenção inegável. O corpo elevou-se do solo até ser visível o moribundo deitado na cama.
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- É assim que deve ser, disse o homem deitado. Que seja a vida a içar-se à morte e não a morte a descer à vida. Sinto-me perfeitamente, assegurou o visitante, pelo menos tão bem como o senhor decerto desejaria. Não poderia estar melhor, com efeito, comentou o moribundo.
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- E no entanto, tal qual um escritor minucioso, prosseguiu o homem deitado, faço tudo aquilo que se esperaria que um desses maníacos dos alfabetos fizesse. O meu trabalho é sério, mas não há nada que o prove; não existe o mais pequeno sinal da sua existência, quanto mais da sua seriedade. As máslínguas diriam que nem sei escrever o meu nome. Com efeito, deitado dia e noite, como um grande inválido, a quem poderia eu assemelhar-me senão a um moribundo ou a um grande preguiçoso, ao olhar da vulgata? Mas por que não seria eu um pensador a pensar continuamente o mesmo pensamento não atestado, uma espécie de ocioso recalcitrante de uma ideia? O experimentador torturado duma visão holográfica do Grande Adiamento? Um mergulhador lastrado pelo infundado? O que me impediria de os ser, e tantos outros, no infinito mundo das hipóteses? Vê como as pessoas são mal-intencionadas? O moribundo surpreendeu no visitante um gesto de contrariedade. - A sua irritação é compreensível, comentou. Com efeito, o visitante acalentara por um instante a intenção de perguntar ao seu interlocutor se contava 12
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com ele para obter um relato da conversa que estavam a travar, e de outras que eventualmente poderiam seguir-se. Tratar-se-ia de um contrato? De uma entrevista à socapa? Teria havido um anúncio não comunicado? A sua atenção limitara-se, até este momento, achava ele, a uma relação intrigante com o facto de esquecer cada palavra. Era como uma desatenção anterior às palavras, uma memória inutilizável mas insistente. Ou seriam apenas pensamentos de invenção em lugar da invenção habitual de pensamentos? Ou uma crise de conhecimento contraída à entrada como uma doença viral? O moribundo sorriu abertamente, desvendando uma dentição branca e sem falha, uma dentadura falsa, portanto. Por uma razão que tanto podia ser essa como outra, mas que compreenderia o sorriso do acamado, o visitante concluiu, por instinto, que a inscrição do pensamento nas palavras era aleatória. Além disso, nem era seguro sequer que as palavras correspondessem aos pensamentos. Talvez fosse esse o sentido da alegoria sem grandeza das palavras invisíveis. Não havia nada para desaparecer.
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Por uma das janelas, assomaram as caras faceciosas de dois miúdos. As faces estavam pintalgadas de pontos de várias cores. Um deles tirou a língua para fora, e o outro, mais enérgico, pegou numa pedra e arremessou-a. A pedra entrou para dentro do quarto e pousou exactamente no local onde muitas outras se encontravam acumuladas, obrigando o recémchegado a desviar os olhos para uma pequena pedreira que não notara ainda. Eram pedras muito pequenas e, à primeira vista, seriam pouco mais do 13
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que algumas centenas. Porém, quando as fixava durante um determinado tempo, passavam a ocupar misteriosamente muito mais espaço do que aquele que ocupavam nos limites do seu espaço de visão e pareciam estar por toda a parte. Não se ter apercebido deste facto apenas confirmava a sua distracção quase permanente em relação às horas do dia, sucessão de espaços e a outros acontecimentos menores. Ou melhor, o seu alheamento da realidade, a qual adquiria assim uma dimensão irreal. Seja como for, as pedras indicavam, logicamente, uma actividade em curso, isto é, deviam servir para qualquer coisa, e seria legítimo supor, nesse caso, que os miúdos fossem uma espécie de fornecedores pouco convencionais mas nunca inocentes de uma qualquer actividade em curso que as incluiria. Apesar da boa lógica das suas conclusões, ou hipótese de conclusões, e da redacção correcta e clara, incessantemente revista, tinha uma consciência obscura de que a existência das pedras ultrapassava a simples questão da contagem, do fornecimento e da utilidade.
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O moribundo não se mexera.
O visitante reconsiderou o monte de pedras, agora com um olhar mais contemporâneo, a rasar a realidade, e concluiu que tinham sido necessários muitos meses, talvez anos, para erguê-lo. Uma média diária seria no entanto indispensável para ter uma ideia aproximada, um elemento que não tencionava obter. E por que tencionaria obtê-lo? Para que fim? Até que um fulgor crepuscular invadiu completamente a sala, permitindo que o visitante visse objectos que ainda não vira e 14
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deixasse de ver outros que pensara ter visto. Donde irrompera esse fulgor foi uma questão condicional com que se debateu longamente, dilacerado que estava, desde longa data, pela indefinição epistemológica, por assim dizer, da origem exacta do que é exterior e do que é interior, dos respectivos territórios e limites, e da complexidade inacessível dos conteúdos. E depois, numa segunda fase, pelas interacções dinâmicas ocultas e pelas dialécticas escorregadias do conjunto. E, por fim, entender-se o uso da serventia poria um ponto final num discurso não iniciado.
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A CONTAGEM
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Quando o tédio começava a tornar-se quase insuportável, a indefinida luz que chegava do exterior foi interceptada por um homem, que parou no limiar da porta. Ouviu-o dizer numa voz metálica muito bem timbrada:
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- Esta porta devia estar fechada. Um dia, vamos ter problemas. É verdade que nem todos os problemas decorrem de portas abertas. Feitas as contas, as portas fechadas comportariam mesmo mais problemas. Mas existe o efeito dissuasor, embora este efeito se reparta numa proporcionalidade dialéctica entre as portas abertas e as portas fechadas. Nada do que digo foi ainda estudado e documentado com exactidão através de estatísticas incontestáveis. Falta encontrar o algoritmo. Até que isso aconteça, se alguma vez acontecer, tomemos as precauções habituais, inclusive repetir o que não está comprovado. No entanto, apesar de tudo o que acabei de dizer, não estou a 17
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avisá-lo. Nunca me permitiria fazê-lo. Quem nos avisa só procura recompensa. Em conclusão: pense em fechar a porta.
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Enquanto falara, o homem tinha avançado quase até ao meio da sala, sem aparentemente se dar conta da presença do visitante, o qual, para tornar as coisas mais difíceis, e sem ter qualquer responsabilidade nesse facto, pairava a cerca de cinco metros do solo como um pássaro pintado numa tela – a sala era invulgarmente alta, o que não facilitava a percepção habitual. Por isso, pigarreou com discrição, esperando que o outro desse por ele. Mas o recém-chegado não se mexeu, ocupado a olhar o monte de pedras erguido em face dele. O visitante teve o sentimento angustiante de ser invisível. É uma hipótese que nunca encaramos, mas que tem o seu lugar no mundo das hipóteses matemáticas. Quando se preparava para reflectir devidamente nesta possibilidade, o homem levantou a cabeça e viu-o. Resmungou qualquer coisa e interpelou directamente o moribundo:
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- Faça-me um favor. Quando vai deixar de ter a sua porta aberta a toda a espécie de gente? O senhor corre sérios riscos. Este era o tipo que esperava? Do alto dos seus cinco metros de altura, o visitante balbuciou: - Eu também lhe disse…
Mal-humorado, o outro nem lhe respondeu. O acamado, consciente enfim da conjuntura, fez descer o visitante até ao palco normal dos acontecimentos. E acrescentou depois:
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- Este senhor não é qualquer um.
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Quando ouviu este comentário, o visitante teve um sentimento de orgulho misturado com a certeza inefável de se encontrar no lugar certo. Foi um instante de felicidade. Mas um lugar certo pode converter-se inesperadamente num sítio indesejável donde não se pode sair, como toda a gente sabe, na condição de ter feito as leituras adequadas, pensou. A dúvida reinstalou-se. Entretanto, o recém-chegado observava o aposento como se estivesse a avaliá-lo com uma intenção precisa.
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O seu olhar, concentrado, não manifestava qualquer sentimento, embora o visitante estivesse demasiado longe para o poder afirmar. O visitante também não ignorava que uma visão próxima pode ser uma fonte de enganos e tentara, por esta mesma razão, ao longo da sua vida, alcançar uma visão próxima da ideal, isto é, equidistante de dois ângulos incompatíveis. Mas não estava ali para falar de si, pelo menos naquele momento em que o desejável seria obter do recém-chegado um informação mínima sobre as suas intenções, impossíveis de extrair a título razoável de uma consulta discreta, de soslaio, ao fundo do seu olhar. Entretanto, o recém-chegado deslocara-se lentamente até ao monte de pedras, que ultrapassava a sua altura de cerca de três metros, e como era invulgarmente alto, muito acima de dois metros, o visitante fez uma estimativa de sete para o conjunto, tendo em conta uma folga razoável que compreendesse as mudanças de temperatura e de estado de espírito. Um cálculo que lhe não servia para 19
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nada, reconheceu, determinado pela ansiedade cuja empresa leva às obras mais absurdas. Por outro lado, o ideal era ganhar tempo para dar tempo e via larga ao que tinha de suceder. O outro observava agora o aposento como se tivesse uma intenção precisa. Rodou três vezes sobre o calcanhar. Fez depois sair do bolso do casaco demasiado grande (tanto o casaco como o bolso eram demasiado grandes, para sermos exactos) uma fita métrica vermelha e de grandes proporções, apoiou no botão do enrolador, e disparou-a como se fosse um revólver na direcção do tecto. A fita metálica lançou-se em frente com um silvo jovial e um ímpeto tal que o recém-chegado teve dificuldade em retê-la nas mãos. Pediu o concurso do visitante e tentaram ambos, com as mãos firmemente apertadas à volta do enrolador, e ao ritmo agitado duma valsa, conter a fúria desencadeada. Conseguido isso, tratava-se agora de trazer para baixo a fita métrica de modo a fazer a leitura, o que não seria realizável senão estendendo-a pela rua através da porta aberta, visto o descontrole evidente que se apoderara do enrolador. Os dois homens tentaram então levar a cabo esse intento, batendo-se valorosamente contra a fita de metal, que rodopiava ruidosamente ao redor da sala, e lograram enfim expulsá-la do aposento. A ponta do impetuoso objecto desapareceu na distância. As mãos dos dois homens, cerradas e solidariamente apertadas, aguentaram-lhe as contorções imponentes até estas se acalmarem, permitindo assim um momento de repouso no combate. A leitura do resultado tornarase possível. O visitante, exausto, libertou então a mão 20
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dolorida, e a parte cerebral do conjunto (a inteligência artificial, poderíamos dizer) pulou de imediato pela porta fora para se reunir à parte evadida. O silêncio voltou. O homem foi sentar-se em frente do monte de pedras com as imensas pernas cruzadas. Não parecia resignado ou infeliz. Com uma das mãos, retirava pedras do enorme monte de pedras enquanto a outra mão prendia entre o indicador e o médio uma longa pena de pavão (imaginava o observador). Tudo fazia supor que se tratava de uma contagem meticulosa. O moribundo soergueu-se no leito.
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- É uma tarefa inútil e que nada tem de livresco, disse, com uma voz doce retocada de tristeza, dirigindose ao visitante. Ninguém lhe pede que faça aquilo, é uma devoção voluntária, um acto que decorre da livre motivação. Mas quem o vê entrar todas as manhãs conclui forçosamente que vem prestar-me um serviço. Segundo todas as aparências, eu sou um moribundo. Devo então necessitar de cuidados. Assim, gerou-se consenso quanto à ideia de que viria prestarme os cuidados necessitados pelo meu estado. Um enfermeiro ou algo do género, é o que as pessoas presumem, ou presumo eu que presumam. E na base dessa presunção, que ninguém verificou ainda, dão um sentido ao homem e uma razão para as suas vindas. Justificam-no. E ficam tranquilos como se a vida fosse assim tão simples. Mas, como vê, o que ele faz é contar pedras, sem que se saiba para que fim, quantas contou até agora, ou se está consciente do facto de que o número de pedras há-de ser sempre superior ao prejuízo eventual que lhes ocasionará a contagem. 21
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Parece a colheita dos dias, sem ofensa aos bons dos Latinos, e ao sentido elevado que lhe conferiram. É um trabalho, à primeira vista, absolutamente vão, repito.
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- Ele não está apenas a contar pedras, aventou o visitante, apercebendo-se de não poder apresentar qualquer prova que confirmasse a sua afirmação. São contas e medidas, dá a impressão, mas não quaisquer umas. Tenha a certeza de que teremos uma explicação convincente na devida altura. O acamado riu.
Mais algumas pedras foram lançadas pela janela e caíram exactamente no topo do monte de pedras.
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- Eu estou convencido de que a conclusão está tirada e que o homem, muito simplesmente, de facto um bom amigo, é um banal excêntrico, disse o moribundo. A certa altura considerei-o um louco, mas como ser louco não significa nada, desisti de outras atribuições, dada ser esta a mais adequada. Aproveito para dizer considerar indispensável uma severa revisão da generalidade dos conceitos. Mas há-de haver outras opiniões. E esta nem sequer é a minha. Existem momentos em que estou em representação de outro, não se esqueça disso. De uma espécie de grande hábito doente, como ter existência própria.
O visitante foi apanhado de surpresa e não soube o que responder. O estranho assento que ocupava, embora cómodo, não lhe permitia mover-se. Tudo levaria a concluir que o moribundo o aprisionara e que estava à sua mercê, segundo todas as probabilidades. Pôs-se por isso a pensar - quando se esperaria um
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plano de evasão - nos destinos de todos aqueles que se tinham sentado no mesmo lugar e decidiu que se teriam saldado por uma tragédia. Não tinha provas, é verdade, mas quantas suposições não se confirmam neste mundo, sobretudo as piores? Dispôsse então a exigir as explicações que justificariam a sua permanência naquela casa. Mas os motivos e as razões que os outros nos apresentam são quase sempre compatíveis com os nossos, e perante isto achou por bem desistir. Se estava em cena e não pretendia actuar, era conveniente então que adoptasse uma personagem já abolida. Ora, a revelação de muitas indiscrições indicava que tinha futuro no teatro, por instinto e sem precisão de se evidenciar.
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Um rectângulo cinzento recortava-se em cada uma das janelas, idêntico a um céu de inverno tão uniforme, raso e limpo como uma rua alcatroada na perfeição pelas mãos apaixonadas de um voluntário a prazo. Por toda a parte, a marca do trabalhador competindo com as obras da Natureza era a regra. As crianças passavam a caminho da escola, alegres e barulhentas com costumam e devem ser as crianças. Algumas delas, ao cruzarem a casa, lançavam pedras em direcção às janelas e aplaudiam quando as viam entrar. Sim, era um belo dia. Não havia nada a dizer. E foi quando pensou que não havia nada a dizer que ouviu a voz do moribundo a desculpar-se por tê-lo interrompido quando, na verdade, estivera calado. Nesse exacto momento, sentiu a necessidade de recorrer a um nome que o identificasse para pôr tudo a claro e tentar evitar semelhantes incidentes. Com um 23
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nome, faria a sua apresentação e, automaticamente, invocaria o motivo da sua visita porque um nome é como um disco duro que despeja todas as informações. E sobretudo seria respeitado. Enfim, e não menos importante, saberia quem era. Ou teria ao menos acesso a sabê-lo. Sofreria ele de uma amnésia traumática? Ou, dito de outra maneira, de uma versão de memória perdida para outro que a poderia usar sem culpa? Esta ideia sempre o apaixonara. A paixão de um homem fiel era outra dessas ideias. Títulos não faltavam. Ao pensar nisso, olhou para o contador de pedras, quase totalmente coberto pelas pedras que se supunha estar a contar. Ali estava um homem fiel. Desconhecer o grau da sua fidelidade e a que coisa ou quem a dedicava tornava-o ainda maior no seu feito, glorificava-o ao olhar do observador.
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A vida escreve o epílogo onde bem entende, tudo nos é retirado, e apenas a insensata persistência humana se ilude com a eternidade. Perante o alto sol desatento, a nossa existência vale uma chama de vela curta. No provisório, insistimos em traçar um nome; no rio que passa, uma inscrição que dure.
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As pedras amontoam-se, mas o visitante procura um nome. Um nome qualquer. Considera que não pode ser de outra maneira. Um nome sem antepassados, sem genealogia, sem grão de cultura, sem terreno identificável. Sem narrativa no horizonte, portanto. Ora, enquanto se desenrolavam estes acontecimentos, a cidade seguia o seu curso. O moribundo achou a afirmação arriscada. - Vamos, disse, puxando o braço do visitante. Jazigos de variadas formas erguiam-se de todo o lado. Alguns situavam-se lateralmente de um lado 25