Oriente Perdido

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ISABEL VIEIRA DA LUZ

ISABEL VIEIRA DA LUZ

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O romance histórico inspira-se na vida de José Valeriano Soares, um antigo oficial da marinha portuguesa que viveu entre 1828 e 1912. Entrou muito jovem na Escola Naval para prosseguir a carreira do oficial da Marinha, como era desejo de seu pai. Embarcou em diversas missões para o Oriente (Timor e China) numa época em que a decadência do Império português era irreversível. A sua missão mais importante deu-se por volta de 1855 quando partiu a bordo do Brigue S. Vicente (nome fictício) e permaneceu cinco anos em serviço passando por cenários como Macau, Hong-Kong, Xangai, Cantão, e o antigo Sião. Eram anos muito conturbados no Oriente. A China imperial via-se sob a agressão militar de potências europeias, enfrentava as guerras do ópio, e a abertura dos portos chineses aos estrangeiros enquanto a pirataria litoral que sempre existira, desenvolvia-se cada vez mais. O brigue da Marinha portuguesa era enviado para o Oriente para atuar contra a pirataria que prejudicava o comércio português na região, e para estabelecer acordos diplomáticos favoráveis à política de Lisboa. Dentro desta conjuntura, o governador de Macau visita o Sião para celebrar um novo tratado de amizade, comércio e navegação entre os dois países. Valeriano Soares sendo um dos oficiais da tripulação do brigue em missão ao Sião, terá oportunidade de assistir ao cerimonial da corte siamesa na receção ao embaixador e emissários portugueses, conhecer o palácio real, e os costumes culturais do antigo Sião. A missão termina e a embarcação inicia a sua viagem de regresso a Lisboa, mas no entanto na travessia do Índico, o brigue sofre um temporal e o naufrágio, salvando-se apenas parte da tripulação que foi socorrida por uma galera que fazia o mesmo percurso. Esta terrível experiência irá alterar a vida dos oficiais da tripulação, nomeadamente a de Valeriano Soares porque serão levados ao Conselho de Marinha para justificar o incidente e sujeitos à calúnia pública numa altura em que o confronto político estava muito aceso e resultaria tempos depois na mudança de regime político.

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Isabel Vieira da Luz nasceu em Coimbra em 1963 e fez o ensino secundário em Santarém, por ter mudado com a família para essa região. Em 1981 inicia o curso superior de Antropologia Social em Lisboa que termina em 1985. Prossegue estudos nessa área, e realizou trabalhos e investigação sobre História local em comunidades rurais. Iniciou a sua carreira de docente em 1983. Fez uma Pós-graduação na área de Educação Especial em 2000, e exerceu funções nessa área dando formação a docentes durante anos. Integrou uma equipa de projetos nessa área, na Direção Geral de Educação de Lisboa. Trabalha como Professora Bibliotecária, área em que se especializou em 2015. O gosto pela escrita acompanhou-a toda a vida. Este é o seu segundo livro de ficção.


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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

Edições Vírgula ® (Chancela do Sítio do Livro) Oriente Perdido AUTORA: Isabel Vieira da Luz TÍTULO:

REVISÃO:

Patrícia Espinha Ângela Espinha PAGINAÇÃO: Alda Teixeira CAPA:

1.ª Edição Lisboa, Junho 2018 ISBN:

978-989-8821-72-0 441616/18

DEPÓSITO LEGAL:

© ISABEL VIEIRA DA LUZ

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt.

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… Contar-te longamente as perigosas Cousas do mar, que os homens não entendem, Súbitas trovoadas temerosas, Relâmpados, que o ar em fogo acendem, Negros chuveiros, noites tenebrosas, Bramidos de trovões que o mundo fendem (…) … Em tempo de tormenta e vento esquivo, De tempestade escura e triste pranto. Não menos foi a todos excessivo Milagre, e cousa, certo, de alto espanto, Ver as nuvens do mar com largo cano Sorver as altas águas do Oceano (…) LUÍS DE CAMÕES

Os Lusíadas, Canto V

“De todos os espetáculos, que a indústria humana tem dado ao mundo nenhum mais admirável do que a navegação. Entes fracos e mortaes, filhos da terra ousaram transportar-se sobre elemento instável e perigoso, levantar edifícios em cima das aguas, dominar os ventos, e voar às extremidades do mundo por baixo de Ceos desconhecidos.” JOSÉ IGNACIO ANDRADE

(1935)

In Memória dos feitos macaenses contra os piratas da China e da entrada violenta dos inglezes na cidade de Macao

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A João Paulo Soares e à Rita Pedroso, companheiros de longa caminhada, pela amizade, e por me terem desafiado a escrever esta história. Este livro é vos dedicado. A José Valeriano Soares, exemplo de muitos homens da Marinha que foram injustiçados ou deram a vida na defesa do Império Português.

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PREFÁCIO

Cada vida merece um romance. O manancial de riqueza que cada vida encerra, com as suas próprias idiossincrasias, constitui matéria-prima singular para os dotados de uma sensibilidade única que detêm o poder de transmutar a realidade numa obra literária. Será este o caso do Oriente Perdido, assim dirão os seus leitores. Esta obra nasce numa conversa de serão onde a autora, perante os factos relatados, se deixa apaixonar por um personagem, podemos afirmá-lo, injustiçado pela vida, e onde só esta dita transmutação poderia constituir um ato de justiça. Para Ortega Y Gasset, o homem na sua dimensão individual só poderá ser entendido se levarmos em consideração o ser, tudo o que o circunda e o próprio contexto histórico. O personagem principal só pode ser entendido neste enquadramento e a obra proporciona a narrativa para o fazer. O Oriente Perdido, suportado por uma adequada pesquisa histórica e por uma coletânea de testemunhos familiares fornece o enredo necessário para entendermos esta vida. Passado no decurso de todo o século XIX, a ação decorre na Lisboa das Guerras Liberais até ao fim da monarquia, passando por terras do Oriente e centrando-se o momento crucial da obra no ano de 1860, mais concretamente no dia vinte e dois de Janeiro. 9

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O personagem principal, ao ingressar na Marinha com treze anos, inicia, sem o saber e de forma indelével, o percurso da sua vida. Todos os seus sonhos, projetos e aspirações ficaram desde logo condicionados a esta escolha. Com trinta e um anos, vivencia o que pode ser considerado o apogeu da sua carreira militar ao integrar a embaixada portuguesa recebida pelo rei do Sião em ambiente luxuriante, tão típico das cortes orientais. Neste empreendimento, marcante para um homem da sua idade, tem como camaradas de armas e companheiros desta aventura, homens que seriam referências na história portuguesa deste período. As circunstâncias pareciam favoráveis para que o percurso da personagem, José Valeriano, correspondesse às expectativas que delineara para a sua vida. Não foi o que aconteceu. O dia vinte e dois de janeiro de 1860 iria alterar todo o seu percurso, obrigando-o a uma nova vida. Tudo foi questionado a partir deste momento, expectativas, valores, paixões, fé e sonhos. Marcado pela adversidade, seria o homem superior às suas circunstâncias? É isto o que o Oriente Perdido relata numa ficção que poderá ser, muito provavelmente, sobreponível à realidade. Ao ler-se a obra percorreremos factos históricos documentados, testemunhos familiares exatos mas sobretudo, emergiremos na dimensão ficcional de contornos queirosianos onde a criação literária fez justiça ao dar um romance a uma vida. JOÃO SOARES

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INTRODUÇÃO

Iniciou-se esta história na casa do João, na sala onde entramos num cenário em que a luz difusa e a decoração criam um ambiente cómodo, repleto de objetos que fascinam pela sua extinta utilidade, os quadros retratam a inspiração de outras épocas, e as fotografias emolduradas da família parecem observar-nos. Imagens velhíssimas retiradas dos álbuns, herança de um passado familiar, acumulado por gosto e acaso. Despertado o meu interesse pelos fotografados, conheci a narrativa da memória familiar sobre os seus bisavós. Naquela sala que reúne o passado e o presente, numa conversa entre amigos, surgiu a ideia de reinventar a biografia de José Valeriano Soares. A sua personalidade suscitou-me uma enorme curiosidade, e um exigente desafio porque tendo vivido José Valeriano Soares no final do século XIX, teríamos de o enquadrar na época, na Lisboa do tempo, conhecer a sua carreira na Marinha e as missões navais que realizou. A história inspirada na pesquisa documental que realizámos foi-se construindo. Assim se criou a narrativa ficcionada dos lugares e ambientes onde passou, das palavras e pensamentos possíveis, fundamentada numa memória familiar escassa.

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Esta não é a biografia de José Valeriano, mas uma história sobre a sua vida e desculpamo-nos perante a eventualidade de que terá sido uma personalidade melhor do que o descrito. Fizemo-lo sem a intenção de o julgar, usando da liberdade criativa, e da vontade de lembrar o papel de homens que ficaram esquecidos nas páginas da História mas contribuíram com o seu desempenho para a desenhar. O mais importante é que esta obra constitui a homenagem a José Valeriano Soares, prestada pelo bisneto João Soares. ISABEL VIEIRA DA LUZ

Lisboa, 2018

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isboa, janeiro de 1912 A noite de janeiro estava muito fria e as ruas de Lisboa despovoadas e escuras. As vinte e duas horas batiam pesadamente no sino de uma igreja do Chiado, quando a caleche parou, junto à porta da casa, na Rua Nova da Trindade, e José João desceu. Sentia o frio a entranhar-se no corpo, envolveu-se mais na capa, e levou a mão enluvada ao batente da porta. Minutos depois, o velho criado abriu a vigia da porta e levantou a lanterna que tinha na mão. Logo que o identificou, Jerónimo rodou a chave na fechadura, empurrou o ferrolho velho e desengonçado para o deixar entrar prontamente. João José permaneceu no átrio da casa com a capa posta, à espera que encerrasse a porta, e lhe desse atenção: – Jerónimo, o meu pai acaba de falecer... Avisa a senhora e entrega-lhe isto da minha parte! – E enquanto falava, levantava a capa, e entregava-lhe um embrulho envolvido num pano negro. Entretanto, no cimo da larga escadaria de madeira de carvalho, Maria Cecília que assistia ao que se passava, estremeceu. Acordara com o som do batente, segurava na mão, com dificuldade o pequeno candelabro de luz trémula. João José pressentiu a sua presença no cimo da escadaria, mas preferiu não a perturbar:

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– Diz à senhora minha mãe, que um dia virei buscar o que lhe entrego! Boa noite, Jerónimo! E abatido, entreabriu a porta e saiu. Perdida a esperança de lhe falar, Maria Cecília retornou ao quarto, sentindo-se amargurada. Jerónimo subira vagarosamente as escadas de madeira, que rangiam a cada passo e batera na porta do quarto. – Entra e deixa o que trazes em cima da mesa! Não te perguntou por mim? – Não, minha senhora! – Muito bem! – falava num tom alto, mas sem se virar para não o encarar. Mal a porta se fechou, dirigiu-se à mesa, pegou no embrulho de pano e dele retirou um conjunto de cartas atadas cuidadosamente. Sentou-se na borda da cama, perto da vela que colocara na mesa de cabeceira. – Ah! Deixou-lhe um conjunto de cartas. Que herança preciosa! – exclamou desalentada. Levantou-se, encaminhou-se para a pequena escrivaninha que estava encostada a uma das paredes do quarto, abriu-a, e guardou o maço das cartas lá dentro, fechando-a novamente. O frio apertava-lhe o corpo, esfregou as mãos uma na outra, e decidiu recolher-se à cama, para tentar dormir novamente. Porém, aquela noite fria parecia interminável, a cabeça latejava e uma má disposição não a deixava repousar. Às seis da manhã, sem ter conseguido repousar, agasalhou-se pondo uma capa de lã pelas costas, entreabriu a portada de madeira de um dos janelões do quarto. Com o espírito confundido pela mensagem recente e as memórias que não conseguia apagar, sentia o corpo dorido.

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CAPÍTULO 1

A noite passara, os candeeiros lá fora, ainda projetavam sombras nas lajes da rua, mas a luz já começava a despontar. Sobre os ramos de uma árvore, observou dois pássaros pequenos que tiritavam no frio da manhã de janeiro, agitando as penas. Maria Cecília ficou por momentos apreciando a absoluta quietação, o silêncio que invadia a rua inclinada que se perdia na encosta. A cidade, lá em baixo, ainda estava mergulhada na bruma do rio. Voltou-se e poisou o olhar na escrevaninha. Demorara horas, sim, persistira na ideia que não leria nem uma palavra escrita por ele. Principalmente porque relembraria tudo de novo e era disso que se defendia com todas as forças. Como pudera o filho deixar-lhe aquelas cartas? De que lhe serviam as palavras de José Valeriano? Acendeu uma luz ténue, e decidida abriu a primeira carta. A letra manuscrita era trémula mas legível. “As cartas que vou deixar aos meus descendentes são o relato das desventuras que vivi e que marcaram a minha existência. Através delas pretendo que saibam a verdade sobre os factos que me arrastaram para a indignidade e para a ruína. Passou tanto tempo desde que escrevi os meus primeiros diários durante as longas viagens que fiz, e não consigo rever-me no homem válido, de espírito vivo e disposto a servir o reino que era então.” Fez uma pausa e hesitou em retomar a leitura. Mas de novo, a curiosidade levou-a a recomeçar noutra folha. “Relembro bem a casa em Oeiras onde nasci, cujas janelas davam para o mar. Delas avistávamos o forte de S. Julião. Nessa casa, meus 15

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pais, Maria Amélia e João José Soares tiveram três filhos. Fui o segundo de três irmãos. Desde pequeno que o meu entretimento era pegar em varas, e espadeirá-las no ar, imitando os heróis que conhecia dos livros como o valente Viriato, o primeiro rei Afonso Henriques ou o Condestável Nuno Álvares Pereira. Tal como os meus irmãos, segui o rumo que o meu pai quis, o meu irmão mais velho foi oficial do exército, eu ingressei na Marinha e o meu irmão mais novo Tomás, tornou-se médico. O meu pai, rigoroso oficial do exército, traçou o meu destino numa idade em que eu não sabia bem o que me aguardava pela frente. Criei-me na Marinha, e fiz o possível para evitar a indignidade e a cobardia em todas as missões... Apesar do rigor da minha instrução, não me livrei da indignidade, nem de vícios costumeiros. Por vezes, fui tentado a desprezar a fé em Deus, se bem que me tivesse de socorrer do conforto da oração, nos momentos em que a minha esperança já estava abalada. Quando se perdem os aliados em terra, que mais nos resta se não for o divino? Pedi a Deus que me levasse mas fez-me viver até velho. De que vale viver para assistir à sua própria miséria? Não procuro desculpar as minhas ações, mas decidi partilhar com os meus filhos estas cartas, que são também a minha única herança, no desejo que venham a ser lidas, pelos que amei…” Parou de ler, intrigada: Que queria José Valeriano dizer com aquelas palavras? Teria José Valeriano tentado alguma vez pôr fim à sua vida? Olhou pela janela, surgia mais um dia frio e cinzento. Que pretendia João José ao entregar-lhe aquele maço de cartas? Para que vinha relembrar a sua vida passada, quando mais desejava esquecê-la? 16

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CAPÍTULO 1

Cada interrogação que fazia, perturbava-a mais, deixando-a mais confusa. Intrigada com a atitude do filho, estava agora decidida a ler cuidadosamente as cartas.

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eiras, ano de 1841 – Corram com as costas direitas! – gritava, por detrás da página do jornal, o pai que vigiava atentamente o treino físico que faziam no quintal da casa, entre os arbustos verdes. Os rapazes aprumaram-se de imediato, esticando os troncos nus. Oriundo de uma linhagem de homens valentes, que contava nos seus pergaminhos com feitos notáveis, o oficial Soares não consentia aos filhos a falta de coragem e de resistência física. Intimamente, culpava a mãe, que nos primeiros anos os tratara com excessivo desvelo e lhes amolecera os corações, enquanto ele se ausentara em missões longínquas. No seu entender, a falta de prática física, e a inexperiência na luta pessoal enfezara-os, e dera-lhes uma índole madraça, e delicada. Determinado a endurecer o seu carácter, para encaminhá-los para a carreira militar, exigia que despertassem às seis horas da manhã para o treino físico, seguido de banho de água fria, cumprindo as suas ordens sem protestos. Dos três rapazes, José Valeriano, o segundo filho era o mais resistente, embora fosse o mais magriço. Rapazito baixo, entroncado, de olhar curioso, e retraído, preferia isolar-se dos irmãos para desenhar objetos que esboçava com lápis de carvão em cadernos que cuidadosamente escondia.

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Aos treze anos, tal como o irmão mais velho, foi inscrito na Escola Politécnica para frequentar um curso preparatório. Dois anos depois sujeitou-se a uma inspeção médica exigente, e cuidadosa para ser admitido na Escola Naval onde entrou sem entusiasmo. A Escola Naval ocupava à época, dois pisos da ala do edifício da Marinha, na Rua do Arsenal à Praça do Comércio. O espaço era exíguo. Num primeiro piso situavam-se as salas de aula, a biblioteca, os gabinetes de professores, a secretaria, e no espaço superior, as camaratas, o refeitório e arrecadações. Os alunos reuniam na Sala do Risco, divisão ampla e polivalente que servia de salão nobre, de ginásio e de museu. Era ali, num modelo de uma corveta que aprendiam os nomes do aparelho, e simulavam verdadeiras batalhas navais, sob os olhares dos instrutores. José Valeriano desabituado a comodidades, depressa se conformou com as horas diárias de estudo, sentado em bancos de madeira rija, sem encosto, ao cheiro fétido que as salas fechadas e envelhecidas conservavam e ao desconforto dos dormitórios escuros, e dos corredores estreitos, alumiados a petróleo, demasiado morrinhentos. No primeiro ano, a exigência do estudo e a rigidez das rotinas do internato custaram-lhe como a qualquer outro caloiro. O programa incluía cadeiras de estudo intenso como a mecânica, a astronomia, a ótica, a artilharia, a arquitetura e a tática naval. Praticava a ginástica e a esgrima. Os desportos marítimos não faziam parte do currículo, e o ensino da natação era essencialmente teórico. A sua preparação académica completava-a com dias a velejar com outros guarda-marinhas, em pleno estuário do Tejo, durante os períodos de férias. 20

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CAPÍTULO 2

Escapando aos instrutores que os ensinavam a navegar na Sala do Risco, e imitando os alunos mais velhos que o desafiavam a usar a porta da Rua do Arsenal, na tentação de umas horas de liberdade, sentia-se livre como nunca. Durante a rígida existência em casa dos pais nunca experienciara o desafio das normas. De natureza humilde e verdadeira, ganhava a confiança dos mestres, disfarçava a sua timidez, com expressões gestuais e sabia enfrentar a dureza da camaradagem numa escola de rapazes. Naquele ambiente de mancebos, rivais e audaciosos, em que assistia a pequenos conflitos diários, José Valeriano mostrava uma temeridade que ninguém ousava desprezar. Só na viagem de instrução que fez no último ano pode experimentar o gosto pela navegação, vivendo a sensação inebriante da ondulação forte logo à passagem do Cabo de São Vicente. Dias depois as ilhas atlânticas surgiram-lhe num misto de deslumbramento e inefável beleza e o entusiasmo que sentiu conduziu à certeza de que tinha alma de navegador. Desejoso de conhecer mundo, procurava a companhia do primeiro capitão-tenente, seu instrutor, para o ouvir partilhar as histórias das missões marítimas que vivera. Anos mais tarde José Valeriano compreendeu que o tempo passado na Escola fora o período mais enriquecedor da sua mocidade. Apesar de ter vontade de embarcar, ao terminar o curso, aceitou de bom grado o convite para ficar na Escola Naval como auxiliar na instrução da classe de guarda marinhas.

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Renovou um sentimento de pertença àquela escola de paredes frias e sólidas, nunca sentido na casa dos pais, em que a austeridade do pai e a resignação da mãe tinham criado um lar penoso, e escasso em afetos. Junto dos oficiais instrutores, homens agrestes no trato e de modos espartanos, José Valeriano conhecia as minudências da alma, e aprendia com as suas experiências. Entretanto percebia como estavam ultrapassadas as embarcações da Marinha, que eram cada vez mais reduzidas e antiquadas. O país atravessava dificuldades financeiras e suspendera a construção de novas embarcações. Os recursos navais escasseavam para defender um vasto império. A substituição dos navios à vela pela propulsão a vapor piorara a situação, existindo poucos navios a vapor na frota portuguesa. Como bom oficial, José Valeriano almejava que a Marinha ganhasse de novo a importância que tivera no passado, ansiava ter uma carreira digna e orgulhosamente exibia a sua farda nas praças públicas da cidade. Quando o nomearam para uma das viagens de instrução dos jovens guarda-marinhas, José Valeriano aceitou com agrado a missão. Estava desejoso de habituar o corpo e o espírito ao sofrimento do dia a dia numa embarcação. De facto, começava a recear ter um sentimento de desdém pela vida marítima, ao simular tormentas num salão fechado como a sala do Risco, tal como acontecera com os seus instrutores. O primeiro-tenente resignou-se à sua partida: – Não esperava outra coisa de si! Aqui estacionados na Escola Naval navegamos em valentias passadas! 22

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CAPÍTULO 2

José Valeriano contava vinte anos, e jamais esqueceria a missão de treino da classe de guarda-marinhas, já que seria a sua primeira desventura no mar.

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viagem na corveta Lealdade durara um mês, até chegarem ao largo dos Açores. Meses da vida a bordo, cumprindo com rigor os regulamentos tornavam a experiência muito dura. Os guarda-marinhas, educados em famílias de nome e fortuna, revelavam cansaço pelas condições desconfortáveis em que viviam no mar. Dormiam, lavavam-se e comiam no mesmo alojamento, cerca de trinta mancebos. O mal-estar em alto-mar punha à prova a vontade de alguns jovens de permanecerem na Marinha. Entre eles, um rapaz vivo e forte que parecia pouco à vontade dentro do barco, cativara a atenção de José Valeriano. Embora tivessem uma diferença de idades de quase dez anos, e uma certa formalidade na convivência, Afonso Boaventura procurava o seu apoio com regularidade, o que originou entre eles uma maior familiaridade. Ao terceiro dia, afastados de terra, envoltos numa neblina matinal, a angústia trespassava nos rostos dos mais jovens, que se mantinham apreensivos perante a sensação de desorientação em pleno mar. Na falta de visibilidade, os navios usavam apitos para conseguirem navegar com segurança, porém sabiam que o perigo surgia quando menos se esperava. O capitão teimava em gracejar com os rapazes, sempre que podia:

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– Ó Soares, você aprecie o ar destes rapazes! Não há nada melhor do que o nevoeiro para os pôr sem cor! José Valeriano esboçara um sorriso, mas estremeceu de imediato ao ouvir um apito que lhe soara demasiado perto. Olhou para a lateral da corveta, onde a névoa se abria como cortada por uma faca, e viu nitidamente a proa de um vapor a avançar rapidamente naquela direção. – Caramba, como é que ninguém nos viu? – gritou o capitão parecendo surpreendido. Dentro da cabina de pilotagem, um homem fardado colocara a cabeça de fora para tentar retificar a trajetória, mas era demasiado tarde... O capitão da corveta também se aproximara da borda do navio para observar. Naquela proximidade nada podiam fazer, iam embater e esperavam friamente o desenrolar do choque. Trocou um olhar breve com o imediato, que provavelmente já calculava o ponto da colisão… – Vamos embater, não se atrevam a gritar como se fossem mulheres! Agarrem-se! – ordenou o capitão. Os rapazes, antes de interiorizarem o que lhes tinham ordenado, sentiram as embarcações a chocar. Abalroados numa lateral da corveta, ouviam o estrondo das madeiras que rangiam ao partirem-se. Mesmo agarrados, alguns foram subitamente arremessados para o convés que se inclinava um pouco. Ao mesmo tempo que se levantavam, perturbados com os ruídos de pânico dos companheiros, tentavam num tropel caótico correr para as boias de salvação e pô-las em torno da cintura... Embora a rapaziada se contivesse em demonstrar o seu pavor, um ou outro dos mais novos perguntavam se estavam em perigo, mas não obtinham qualquer resposta cordata. 26

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CAPÍTULO 3

– Calem-se e sejam homens! – diziam os guarda-marinhas mais velhos. José Valeriano estava próximo de Afonso Boaventura e fixou-o por um instante. De face lívida, o corpo a tremer-lhe, incapaz de reagir, afloravam-lhe aos lábios as orações que mal sabia ou esquecera por completo com o susto. – Afonso, deixe-se estar por perto! – recomendou José Valeriano. De uma forma pouco treinada e inexperiente, a tripulação corria para arriar os escalares. O capitão gritava aos rapazes para que procedessem ao lançamento dos escaleres. Porém, nada parecia funcionar de acordo com o desejado. As roldanas emperravam, um dos escaleres ficara suspenso, era deixado como inútil, outro ao ser arriado parecia não estar em condições de suportar muitas pessoas, rangia, e dava mostras de meter água, por uma fenda do fundo... Entretanto com a inclinação, parte da corveta “Lealdade” inundava-se, lentamente. Alguns marinheiros mais experientes decidiram saltar borda fora, com a água muito próxima, numa ondulação assustadora. Esta situação, que por breves instantes provocou um riso nervoso em Afonso, só serviu para irritar o imediato. – Ó Boaventura, você despache-se! Diga aos outros para saltarem! De novo envoltos em nevoeiro, deixavam de avistar o vapor. Alguns dos que tinham saltado pela borda fora já gritavam de aflição para que os socorressem. Sem alternativa, José Valeriano decidiu também saltar para a água e rezou para que os escaleres do vapor os viessem ajudar, pensando que sem salvamento estariam perdidos e ocultos pelo nevoeiro.

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Ao entrar na água fria, sentiu uma sensação que lhe queimava o corpo, e entendeu porque outros gritavam por socorro. A dor fora tão brusca e cortante, que lhe deixara os movimentos cada vez mais pesados e dormentes. Aspirava com dificuldade tal era o choque térmico que sofria. A água estava gélida. A boia que agarrava obrigava-o a estar à superfície e lutava esbracejando para não enregelar totalmente. Ouvia súplicas dos outros, e apesar de estarem todos próximos, não conseguiam enxergar-se, envoltos no nevoeiro cerrado. – Aguenta-te, aguenta-te! – dizia para si, concentrando-se nos movimentos das suas mãos cujos dedos já não sentia... Quanto tempo conseguiria mais estar à tona da água, sem imobilizar-se com o frio? E rezava, rezava sem perceber porque o fazia, ele que arranjava todas as desculpas para não cumprir os preceitos religiosos. Envergonhava-se do que estava a acontecer. Jamais seu pai lhe perdoaria, se não sobrevivesse àquela dura provação! Então, ouviu claramente a voz de Afonso Boaventura, mesmo a seu lado, dizer: – Tenente, se me acontecer o pior, se o senhor se salvar, diga à minha família que pensei neles até ao fim! Virou-se naquela direção, embora não o conseguindo ver por causa do nevoeiro que os envolvia, e arranjou forças para lhe gritar: – Afonso, não ouve os remos? Estamos praticamente a salvo, não diga que não aguenta… Seja forte e mexa-se! – Remos? Não ouço nada... já nem consigo mexer-me... Provavelmente estou a perder os sentidos… – Estenda-me a sua mão, eu ajudo-o... 28

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CAPÍTULO 3

Poucos segundos depois, encontrou a mão de Afonso, que vagueava no ar. Apertou-a, e manteve-se junto dele. Notava os seus movimentos mais lentos, mais pesados, mais difíceis... E espantava-se por ainda se achar vivo, a pensar, enquanto a dormência atingia os seus membros inferiores! Envolto no nevoeiro, deixara de ver a corveta, a ondulação entrava-lhe pelas narinas, sentia a boca, a garganta a saber a sal, e num súbito ataque de desespero, gritou com força: – Socorro! Estamos aqui! Não ouviu qualquer resposta mas apenas o seu próprio ruído. Um silêncio aterrador o rodeava. Onde estavam os outros? Afonso deixara de lhe responder, e mal o sentia. Talvez fosse mais fácil deixar de lutar, caindo no adormecimento. Acordou um tempo depois, com homens fardados à volta que o observavam, enquanto um deles lhe esfregava o tórax. Ouvia-os a falaram sobre si, mas não conseguia ainda articular uma palavra! – Soares, você não diz nada? Ficou sem fala? – Era o seu comandante, que usava o tom habitual. – Senhor? – respondeu atordoado, a tentar sentar-se, surpreendido de poder a falar e ter sido salvo! Tentava lembrar-se do que acontecera, ou teria sido tudo um sonho? Onde se encontrava? Ainda nauseado, foi obrigado a beber um líquido quente, e forte para se reanimar... – Onde estou? – perguntou vagarosamente. – Ora cum raio, você não percebeu que foi recolhido... Fomos ajudados pela outra embarcação que nos abalroou, uns franceses que estavam de passagem... Que situação desagradável! 29

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– Você, vai para o convés e mude-se! – ordenou o primeiro tenente. – Está demasiado fresco para se manter molhado. Levantou-se a custo, e seguiu por entre caras desconhecidas, para o convés para lhe facilitarem uma muda de roupa. Só quando se recompôs, lembrou o rapaz Boaventura, e o que tinham passado. Afonso, fora levado para a camarata, para se restabelecer devido ao seu estado físico abalado, mas soube que estava vivo, o que o deixou aliviado. Semanas depois, ao desembarcarem no porto de Lisboa, pôde finalmente revê-lo são embora de aspeto abatido: – Sabe, tenente José Valeriano, tomei para mim uma decisão que não mudarei. Vou deixar a Marinha e dedicar-me ao negócio de cambista de meu pai. Só de pensar que numa destas viagens posso nunca mais rever a minha família. – Como? O que está a dizer, Afonso? Não posso crer que abandone esta carreira, depois de ter desperdiçado anos da sua vida! – É possível que um homem vocacionado para a Marinha não entenda a minha decisão, mas, na verdade, não nasci para ter este destino. Eu sei que lhe devo a vida! Nunca me conseguiria aguentar sem a sua mão, sem as suas palavras! Afonso falava num tom embargado, num reconhecimento que o surpreendia porque mais não fizera, do que conversar com ele, e rezar para que se salvassem... – Tenente José Valeriano, tem em mim um amigo para todo o sempre! Nada o preocupará desde que eu o possa evitar! – prometeu solenemente. José Valeriano olhou-o sem palavras, perante tal promessa.

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CAPÍTULO 4

E

xcerto da carta de José Valeriano a sua mãe Singapura, ano de 1849

“A minha primeira grande missão ao serviço do brigue S. Vicente tem o comando do capitão-de-mar-e-guerra, António Lemos. Este é um brigue de tombadilho de 98 pés de comprimento, 28 pés de boca que abriga vinte peças, com cerca de 130 homens, e pode velejar a oito nós à bolina. Saímos de Lisboa a 9 de novembro, com destino a Timor. Navegámos em direção à Madeira, e levando vários passageiros, entre eles o bispo. Chegámos ao Funchal sete dias depois. Foi a primeira vez que desembarquei na Madeira. Porém, nos quatro dias que ali permanecemos, explorei apenas o Funchal. Partimos depois em direção a Cabo Verde, e avistámos as primeiras ilhas, ao largo. Fizemos paragem em Santiago, debaixo da chuva que não parava de cair. Três dias depois, com bom tempo mas com o mar um pouco mais alterado, deu-se pelo estrago no mastro do traquete. Depois de se verificarem os outros mastros, notou-se que o mastro grande estava ainda mais danificado. Por esse motivo, foi ouvido o conselho de oficiais que decidiu arribar ao Rio de Janeiro para reparar a avaria. Estivemos quase um mês no Rio de Janeiro para se fazer a substituição de dois mastros. Rumámos em direção ao Cabo da Boa Esperança para se refazer a aguada, o que aconteceu um mês mais tarde. 31

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Saímos duas semanas depois, navegando pelo Oceano Índico, até ao Estreito de Malaca. Ao entardecer, avistámos Malaca. Pelo óculo pude observar um grande amontoado de edifícios que se agrupavam junto da baía. Junto à costa, a verdura era densa e de cores vivas. Acabámos de aportar em Singapura de onde vos escrevo…” Singapura era local de grande movimento de comércio e de gente, devido à passagem das rotas do comércio da Índia, Oriente e Oceânia. Rodeada de vegetação natural, o seu clima tropical era propício ao florescimento de plantas exuberantes, ambiência de aves raras e de animais selvagens. Aproveitando a paragem para dar a volta pela ilha, os oficiais do São Vicente surpreenderam-se por circularem por estradas macadamizadas, bordejadas de vegetação fresca e densa. A arquitetura inglesa marcava os edifícios vitorianos, rodeados de jardins e arvoredos bem tratados, e ainda as grandes lojas e armazéns no centro da cidade. Como era habitual, os oficiais visitaram o cônsul de Portugal, cavalheiro amável, de origem malaia, descendente dos primeiros portugueses que se tinham fixado naquele longínquo território. Homem abastado, fizera fortuna através do comércio e da exploração agrícola e amavelmente quis ser o guia do grupo e mostrar uma das suas maiores plantações. Enveredaram por uma estrada de terra avermelhada, até chegarem à plantação. Os pomares de noz-moscada, de arecas, e de bananeiras substituíam as árvores de grande porte, que jaziam derrubadas com as raízes volumosas e seculares à vista.

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CAPÍTULO 4

– Para aumentar a produção derrubei uma floresta inteira! – contou com vaidade. Percorreram depois outras plantações da ilha, e observaram que estas eram trabalhadas por chineses. – Os malaios não são suficientes para assegurar a mão de obra das plantações. – explicou o cônsul. A tarde caía, um pôr do sol dourado anunciava o fim da jornada, quando o cônsul os convidou para jantar em sua casa, no dia seguinte. O jantar em casa do cônsul de Singapura, constituía um momento descontraído de convívio entre os oficiais, e de encontro de pessoas de diversas origens. Os oficiais apresentaram-se dignamente aos restantes convidados, trocando impressões breves. O comandante aparecera acompanhado da mulher, Maria do Carmo, que brilhava no seu traje de noite, num vestido verde lustroso, decotado e um colar de pedras verdes a imitar jade. Mulher de formas bastante arredondadas, e gestos determinados, exibia-se com confiança. Triunfante, esboçava um belo sorriso ao circular, agradecendo os elogios que recebia, e aproximara-se de José Valeriano: – Não acha que os seus companheiros exageram, tenente Soares? José Valeriano distraíra-se a apreciar o ambiente do salão, mas apressou-se a afirmar timidamente: – Claro que não! A Maria do Carmo está muito elegante! O comandante sorriu ao ouvi-lo apreciar a elegância da sua mulher, e ficara bem disposto com a impressão que ela

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causara. Orgulhava-se de ter uma mulher mais nova, arrojada e segura. Na ociosidade da vida de mulher de comandante, Maria do Carmo aprendera a ser paciente, e a cativar os olhares dos jovens oficiais. Acostumada a viver em ambientes masculinos, retirava daí algumas vantagens. O casamento com Lemos fora para si uma forma de elevação social e embora houvesse alguma diferença de idade, Maria do Carmo entendia-se bem com o marido, e mimava-o excessivamente. Por seu lado, o comandante Lemos deleitava-se a observar a mulher, e convencia-se da sua infinita generosidade e compaixão para com os jovens oficiais. Não deixava de ser divertido assistir como um homem austero e irascível como Lemos, se amansava perante a Carminho. Homem de face rude e de tom avermelhado, costumava falar em tom muito alto, porém perante a mulher moderava muito a severidade. Versátil e perspicaz, Carminho era capaz de acompanhar qualquer entretenimento, ou conversa masculina, dando palpites como se fosse um dos oficiais. Por hábito não deixava esmorecer a conversa que fazia à mesa, e apreciava pedir a opinião dos outros. Tinha também a capacidade de manter uma conversa interessante, e saltar para outro tema, quando o primeiro parecia estar esgotado. – À minha mulher nunca lhe falta assunto! – comentava o comandante com agrado. Na verdade, a mulher do comandante, ocupava-se a tornar as vidas dos oficiais menos monótonas e tristes. Ao serão, cantava melodias, que o comandante acompanhava com uma voz retumbante numa pronúncia italiana que 34

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CAPÍTULO 4

pasmava os outros oficiais. Interpretava a solo, várias árias famosas, e comovia a mulher que o aplaudia entusiasmada. Carminho era muito prestável. Durante as viagens oferecia-se para ajudar a escrever cartas para as noivas ou mulheres dos oficiais. Sabia de cor uma série de frases românticas que lhes cedia com garantia de sucesso. Era capaz de dirigir uma carta a uma mãe extremosa de forma respeitosa e afetuosa. Os seus conselhos eram bastante apreciados pelos oficiais mais tímidos, e menos capazes de dominarem a escrita. Muitos aprendiam com ela a compor pequenas quadras de amor, decoradas com ilustrações de pétalas de flores ou folhas, que ela reservara numa caixa perfumada. Em épocas como o Natal, entrava numa azáfama total, já que todos se lembravam da família, tão longe de casa. Em cada viagem escolhia secretamente um dos oficiais como preferido da sua atenção. Em pouco tempo tornava-se numa protetora infatigável. Através das palavras, conseguia convencer o jovem da sua afeição, e tinha a convicção de que o eleito lhe dedicava igual apreço. Apreciava abordar os cavalheiros mais apagados e discretos, que considerava mais infelizes ou mais sós. José Valeriano Soares fora o alvo da sua atenção nessa viagem. Ele, porém, amável e inexperiente, não suspeitara da loquacidade exagerada de Maria do Carmo na sua presença, nem da insistência em ajudá-lo a escrever à família. Nessa noite, após o jantar no consulado, o cirurgião da tripulação aproximou-se dele no momento em que se encontravam a sós no jardim, para onde tinham escapado alguns oficiais, a fim de se refrescarem. – Noite fantástica, não acha?

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– Muito agradável… – observou José Valeriano, que admirava, distraidamente, o céu. – Estes momentos de convívio são uma lufada de ar, no nosso ofício! Soares, você notou a amabilidade de Maria do Carmo? – Sim. Parece muito bem disposta esta noite! – Não é a isso que me refiro! – Desculpe, não estou a entender! – escusou-se José Valeriano. – Maria do Carmo quis impressioná-lo hoje… – A mim? Porquê? – perguntou, fazendo-se escarlate. – Ora porquê?! Ainda não notou que Maria do Carmo tem um “fraquinho” por si? E consultava o relógio de bolso que tinha na mão, encostando-o ao ouvido com o ar mais descontraído possível. José Valeriano desconfiou se o cirurgião não estaria a divertir-se à sua custa. – Está porventura a gracejar comigo, doutor? – Não estou, não. Apenas a aconselhá-lo… Com tantos dias de viagem, muito pode acontecer! – declarou num sorriso matreiro. – Que quer dizer com isso? Sou incapaz de olhar com qualquer intenção para a senhora Maria do Carmo Lemos… – Ora, apenas se pede que haja galanteria da sua parte! Não se ofenda com as minhas palavras. Encare isso como parte da nossa missão. – sussurrou-lhe o médico, ironicamente. José Valeriano afastou-se do cirurgião, incomodado, e a matutar no que acabara de ouvir! Estava habituado ao sarcasmo do cirurgião, um homem conversador, muito prático e sagaz. Após a conversa, José Valeriano redobrou a sua atenção para provar a veracidade do que ouvira.

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C A P Í T U LO 5

À

medida que se aproximavam do mar de Timor, o comandante Lemos ficava mais apreensivo. Na sua mente mantinha a desconfiança, e uma certa irritação por o terem nomeado para a missão de defender um território que desconhecia, e que era longínquo. – No fim do mundo. – resmungava para consigo. Para Maria do Carmo, a nomeação do marido na defesa de Timor era mais um passo em frente na sua carreira. Enfrentara anos no mar, cansava-se da rotina enfadonha e pouco festiva de uma vida passada no brigue, dos maus cheiros que se entranhavam nos vestidos, e do sabor a sal que se misturava com a humidade do camarim. Aquele lugar, nos confins do mundo, podia não corresponder à mudança sonhada no seu quotidiano, mas era uma residência fixa por algum tempo, e a possibilidade de conviver nem que fosse com os oficiais dos navios que ali passassem, era desafiante. Visivelmente contrariado por ter de abandonar o brigue, o comandante informou o conselho de oficiais qual seria a sua missão em Timor. – Fui nomeado para ficar em Timor por ordem de el-rei, para organizar uma pequena marinha de guerra! A costa deste arquipélago tem sido infestada por piratas, que não favorecem os nossos movimentos! É preciso mostrar-lhes quem governa este território! – O senhor conseguirá impor a defesa com tão poucos meios? 37

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– Espero que me cheguem reforços, mas pretendo defender muito bem o que é nosso! É pelo dever para com o país que deixo o brigue. A partir desse momento, o comando do São Vicente passa a ser do oficial imediato Nogueira, se não tiver nenhum impedimento! O oficial levantou-se e declarou: – Não senhor, é uma honra servir a Marinha Portuguesa. Tinham chegado à costa de Laga. Na tranquilidade do mar cristalino avistavam-se dois pangaios ancorados com bandeira holandesa, já muito perto de terra. O comandante avisou: – Todas as cautelas são poucas, nesta costa! Vigiem bem os barcos que nos rodeiam. A informação que me deram é que andam sob disfarce, usando embarcações que parecem as costumeiras... – Nesse caso, será melhor começarmos por vigiar as que estão por perto! – sugeriu o imediato. – Muito bem. Organize essa tarefa! À noite, dois escaleres armados saíram para vigiar as embarcações atracadas. Ao regressarem ao brigue, o guarda-marinha do escaler da ronda informou o segundo tenente ter visto movimento dentro de um barco, e algumas manobras de carregamento das peças. Desconfiava tratar-se de piratas. Como já não se via o horizonte com clareza, o comandante Lemos combinou o ataque para o romper da luz. E assim, pelo amanhecer, a guarnição do brigue preparou-se para o combate, içando a bandeira portuguesa. – Fogo! Diabo os carregue! – gritou o imediato. Despertando com o estrondo, os ocupantes dos barcos iniciaram o fogo, apoiados pela tranqueira instalada em terra. O fogo durou cerca de meia hora, quando os piratas deixaram de responder ao ataque cessando a defesa. – Enviamos escaleres até lá, meu comandante? 38

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CAPÍTULO 5

O comandante franziu o sobrolho, hesitando na decisão que ia tomar. – Você acha que eles esgotaram as munições? – Creio que sim. O segundo-tenente António Alves pode preparar os escaleres? – Esperamos mais meia hora, e vigiem-nos com muita atenção! Passado o tempo planeado, os escaleres avançaram sem haver novidade. No primeiro escaler comandava o segundo-tenente Alves, e no outro o guarda-marinha Passos. No brigue observava-se atentamente os escaleres. O movimento nos pangaios parecia ter terminado, porém, quando o primeiro escaler encostou junto a um deles, ouviram logo, uma saraivada de balas naquela direção. Nos escaleres, os homens alvejados caíam, enquanto outros se agachavam com receio. – O segundo-tenente Alves foi atingido! – gritou um grumete. Alves fora atingido com uma bala que o atravessara e o fizera desfalecer agarrando-se ao peito. – Valha-me São Vicente! Perco um oficial às mãos dos piratas!!! – bufou o comandante, dando um murro na borda do navio. Reagindo à surpresa, o segundo escaler resolveu ripostar contra outra embarcação, de novo ao ataque. – Bem me cheirava que havia manha! Não se pode confiar em piratas! – gritou o comandante enraivecido. E queria saber o que conseguia ver José Valeriano através do binóculo. – No primeiro escaler há vários feridos! – respondeu José Valeriano, que vigiava atentamente a operação pelo óculo. – Mantenham o fogo! – declarou o comandante, derrotado. O fogo continuou para obrigar a render os barcos piratas. Em terra, viam o movimento de homens emboscados e armados. 39

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