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Quando os constituintes de uma sociedade, buscam a realização das suas vontades, ignorando a moral, o civismo e a ética, torna-se difícil identificar os actos ausentes da prática de crimes. A busca pelo poder, atiçado pelo desejo da vingança, faz com que se usa a religião como meio estratégico para omitir os objectivos inconfessos, num mundo onde o jogo da sedução, se confunde nos meandros da política. A mentira, o cinismo e a chantagem, são as estratégias mais usadas por quem, em determinado momento acha que a vida lhe proporciona a oportunidade certa, para alcançar o poder. Concebida num enredo entre várias personagens ficcionadas, o jurista Soares Limbo, encarna o Pastor Sião que passa pelas peripécias do inspector Calibre 55, até a beleza da majestosa Meiga Cortez, num mundo onde o roubo, o dinheiro, os assassinatos, o recurso a fé e a intriga política, materializam os contextos que dão vida ao romance “O ROSTO DO CRIME”. O autor Bento José dos Santos nos leva a uma realidade periférica da modernidade ficcionada da literatura angolana.
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Neste livro o autor faz uma incursão ao nível contextual sobre alguns dos problemas sociais mais candentes da sociedade angolana, apresentando algumas propostas de soluções. Em 2016, o autor publicou a sua segunda obra literária – o livro Comunicação e Opinião Pública – que resultou de um trabalho científico de pesquisa de campo, que buscou avaliar a existência ou não de espaços para participação dos cidadãos durante a emissão dos programas radiofónicos, tendo como pressuposto o facto de os meios de comunicação social serem os formadores da opinião pública. No livro o autor trata de temas, tais como quem é considerado figura pública, o que é a opinião pública, o estado de opinião e comentários, e muitos outros mais. Os livros Pensar Social, Exercer Cidadania e Comunicação e Opinião Pública já contaram com adaptação artística teatral, tendo sido as duas peças levadas a cena pelo grupo Julu nas salas de teatro do vasto repertório angolano.
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Bento José dos Santos
O ROSTO D O C R IM E
Bento José dos Santos é um comunicólogo angolano, especializado em Relações Públicas e Pesquisador de Políticas Sociais. O autor é romancista e funcionário público há mais de 20 anos e tem desempenhado várias funções executivas de âmbito público, institucional e privado, como a de professor, director executivo da empresa de comunicação Emissor, director-geral da empresa SSL. Foi também chefe de imprensa do Comando da Polícia de Guarda Fronteira em 2009 até 2012, tendo sido congratulado com um certificado de Mérito pela sua envolvência profissional na promoção da imagem da Polícia de Guarda Fronteira no contexto nacional e internacional. Foi Assessor para as áreas política e social do município de Samba Caju na província de Cuanza Norte, no ano eleitoral de 2017 e actualmente exerce a mesma função de Assessor no distrito urbano da Ingombota, sendo também editor da Rubrica Comunicar em Sociedade, emitido no programa radiofónico Nas Ondas da LAC, frequência 95.5 em FM. Pensar Social, Exercer Cidadania foi a sua primeira obra literária publicada no ano de 2015, uma obra que aborda temas ligados aos problemas sociais, nomeadamente a criminalidade, a sinistralidade rodoviária e a perda dos valores humanos e sociais. ...//...
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FICHA TÉCNICA O Rosto do Crime AUTOR: Bento José dos Santos EDIÇÃO: Edições Vírgula ® (Chancela do Sítio do Livro) Patrícia Espinha PAGINAÇÃO: Alda Teixeira CAPA: Ângela Espinha 1.a Edição Lisboa, Junho 2019 ISBN:
978-989-8821-85-0 450104/18
DEPÓSITO LEGAL:
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© BENTO JOSÉ DOS SANTOS
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REVISÃO:
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TÍTULO:
Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.
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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
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ÍNDICE
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II – UMA INVESTIGAÇÃO SEM CASO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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III – PROBLEMA E OUTROS PROBLEMAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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IV – CIRCUSTÂNCIAS DA PROMESSA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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I – PRENÚNCIO CRIMINAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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VI – NÃO EXISTEM CASUALIDADES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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VII – REQUISITAR NA FONTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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VIII – CRIANDO FACTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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IX – OUTRAS FORMAS DE VIVER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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X – ENTRE O BEM E O MAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XI – PROFECIA MUNDANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XII – O PRÓXIMO PASSO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XIII – TEIAS DO PODER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XIV – REALIDADES CONVERTIDAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XV – UM GOLPE COM REQUINTE DE LUXO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XVI – A CONSAGRAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XVII – INTELIGÊNCIAS CRIMINOSAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XVIII – VOILÀ CRIME . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XIX – VERDADE PRÓFUGA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XX – PUZZLES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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XXI – TRAMAS NA VERDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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V – MOTIVAÇÕES DISPERSAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Para Ă queles que fazem de tudo para que o mundo esteja livre dos rostos do crime
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CAPÍTULO I
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P R E N Ú N C I O C RIMINAL
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barulho que se ouvia naquela zona habitacional logo pela manhã não constituía propriamente um novo acontecimento. Havia quem defendesse que os habitantes daquele bairro já estavam acostumados àquela situação. Aquela rotina diária geralmente começava entre as quatro horas da manhã, prolongando-se até à madrugada do dia seguinte. Toda aquela confusão era também de difícil adaptação para qualquer pessoa que precisasse de descansar durante a noite. Os moradores daquela localidade já haviam reclamado à administração do bairro, mas a instituição mais parecia um centro de auscultação para a formulação de promessas, pois na prática não fazia absolutamente nada para reverter o cenário vigente. Soares Casimiro Limbo tinha regressado recentemente do exterior do país, depois de um longo período de formação. A sua viagem para o exterior deveu-se a um programa 9
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de atribuição de bolsas de estudos, concedida pelo INABE (Instituto Nacional de Bolsas de Estudo). Foi durante um período de mais de cinco anos que ele ficou ausente da realidade política e social angolana, especificamente da província de Luanda onde vivia. Antes de partir, tinha deixado a cidade tal e qual como a encontrou. No caso, parecendo uma grande desorganização institucionalizada. Em certas zonas da cidade, como, por exemplo, no bairro de São Paulo onde estava localizado o apartamento em que vivia Soares Casimiro Limbo, a partir das quatro horas da manhã tinham de suportar o martírio dos taxistas e os seus trabalhadores, a quem recaía a função de sensibilizar os clientes para se fazerem transportar num dos táxis em detrimento dos outros. A confusão começava de madrugada com a justificação dos taxistas e dos vendedores e vendedeiras de estarem a trabalhar. As palavras que proferiam de madrugada mais pareciam gritos de aflição do que propaganda, e certamente tiravam o sono de qualquer morador daquela área. Aquelas palavras eram pronunciadas em alta voz. Sobre aquilo que diziam só era possível perceber os nomes dos bairros ou das ruas, que se presumia serem os locais por onde os carros passavam enquanto se dirigiam para um outro ponto tido como local da chegada. Naquele dia, Soares Limbo despertou mais uma vez enfurecido, mas não podia fazer absolutamente nada. 10
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Eram inúmeras as viaturas arroladas no tráfego, e entre elas havia também os peões e as vendedeiras que procuravam despachar os seus produtos perante a uma população inadvertida aos riscos. “Era um martírio.”, pensou Soares Limbo, enquanto saía da cama para se pôr em pé, no mesmo instante em que esfregava os olhos com os punhos das mãos cerrados. Soares Limbo sentia-se impotente pois tinha dificuldades para adormecer por causa da falta de condições de habitabilidade que facilitam o surgimento de outras situações ambientais que causavam incómodo, como era o caso das constantes picadas dos mosquitos. Acrescia àquela situação os gritos dos taxistas. Ele pensava o quão difícil seria vir a conseguir adaptar-se àquela dura realidade, depois de ter vivido cinco anos numa das melhores cidades dos Estados Unidos da América. No seu entender, Luanda parecia uma sociedade desgovernada. Ele tinha plena consciência de que devia adaptar-se tendo em conta que em Angola se vivia uma realidade totalmente diferente. Já em pé, caminhou até à janela e levantou a cortina. Por detrás da cortina havia uma janela de vidro que era seguida de uma estrutura de ferro que aumentava o nível de segurança do interior da casa, impossibilitando a entrada de quem tentasse pular pela janela à socapa. Olhou sorrateiramente para o cenário que se vivia àquela hora na rua. Soares Limbo refletia introspectivamente. 11
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Era um movimento tão intenso, que ao verificar as horas no relógio, Soares Limbo chegou a pensar que o mesmo talvez estivesse avariado. Os ponteiros marcavam três horas e vinte minutos da madrugada. – Três e vinte da madrugada e a rua já está cheia de gente. – Reclamou num tom de voz introspectivo. Naquele momento não tinha outra solução. Só lhe restava mesmo manter-se acordado e reflectir sobre a vida. Pensou como a vida lhe estava a ser ingrata. Ele vivia com a sua mãe e quatro irmãos. Só tomou conhecimento de que o seu pai já não vivia com a sua mãe depois de ter regressado ao país. Segundo as informações que lhe foram concedidas pela sua mãe, o seu pai fartou-se de tentar vencer a vida atrelado à sua própria família. E como se de um jogo se tratasse, abandonou-os cada um à sua sorte. Ninguém sabia do paradeiro dele. Soares Limbo pensou que talvez todas aquelas dificuldades que viviam serviram de motivo para o seu pai optar pelo abandono da família e tentar superar os desafios da vida sem grandes responsabilidades. Na realidade, era uma constante a imensidão dos problemas sociais que vivenciavam naquela casa, que mais pareciam precisar da ajuda divina, além de qualquer dedicação e persistência para manter funcional aquela família. Os seus dois irmãos eram famosos, mas só mesmo por maus motivos. Eram líderes de pequenos gangues, 12
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e apesar de serem adolescentes, em inúmeras ocasiões já tinham experimentado o ambiente das cadeias, assim como também já figuravam entre os marginais mais famosos do bairro. As duas irmãs de Soares Limbo eram aquilo que se podia considerar um caso de sobrevivência. Tinham o futuro carregado de incertezas, e as suas actividades limitavam-se à ajuda que davam à mãe, vendendo aquilo que podiam por baixo do prédio. Para elas, a escola era apenas um complemento para as manter ocupadas e não mais do que isso. Soares Limbo olhou para as paredes do quarto e observou que as cores da tinta que as cobria estavam praticamente imperceptíveis. Pensou de forma introspectiva que com um pouco de sorte talvez aquela manhã pudesse ser diferente. Ao longo dos meses, tinha distribuído os seus documentos em várias empresas e instituições na esperança de que surgisse uma oportunidade de emprego. Mas nada tinha surgido até àquele momento. Pensou como para as outras pessoas a esperança podia ser a última coisa a morrer, mas para ele a esperança não ludibriava a fome que sentia diariamente e a esperança era a primeira a despertá-lo para regressar à vida real. Soares Limbo sabia que o realismo social revelava o quão duro era a vida. Pensou em como era possível até 13
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àquele momento de nada lhe valer o inglês e o francês fluentes e os inúmeros diplomas que trouxera resultantes das formações que fez nos Estados Unidos da América. Na realidade, o momento social do país não era o melhor. Angola estava a atravessar um período menos bom em função da crise económica e financeira que se vivia, por sua vez, resultante da crise do petróleo. Muitas empresas tidas como conceituadas do mercado nacional angolano também vivenciavam as consequências da crise económica e financeira, e em função daquela situação procediam a despedimentos de milhares de trabalhadores, o que chegava a aumentar o grau de dificuldade de quem estivesse no mercado à procura de trabalho. Os níveis de carência das condições de vida das populações aumentavam diariamente. Podia-se dizer que quase faltava de tudo um pouco, e quando algo surgia, os preços impossibilitavam que as pessoas obtivessem aquilo que pretendiam, pois os produtos comercializados eram negociados a preços extremamente altos, em função dos elevados índices de inflação que se registavam. Consequentemente, os índices da criminalidade também estavam em alta, e a imagem do país era extremamente confundida entre aquilo que realmente eram os factos constatados e os pseudo-factos e acontecimentos que, muitas vezes, eram difundidos e publicados pelos meios de comunicação social. 14
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Soares Limbo foi à cozinha, onde se deparou com os outros inquilinos da casa, entre ratos e baratas que, pela forma lenta com que se movimentavam para pôr-se em fuga, também evidenciavam que não estavam nada satisfeitos com a falta de restos de alimentos. “A penúria que se vivia naquela casa tinha alcançado níveis de extrema pobreza”, pensou Soares Limbo. Abriu o balde que servia de reservatório para a água, introduzindo a jarra que tinha na mão no interior do balde, e foi retirando a água que em seguida despejava na banheira. Eram exactamente seis horas da manhã quando Soares Limbo desceu as escadas e resolveu ficar parado, encostado ao pilar do edifício, observando o ambiente ao seu redor. O mês de Abril era imprevisível quanto ao clima. Num instante o Sol tanto dava o ar da sua graça como estava a acontecer naquele dia, como também, de forma inadvertida, o sol podia ficar ocultado pelas nuvens carregadas e subitamente podia anunciar-se a probabilidade da ocorrência de chuva. Naquele local predominavam intensas actividades comerciais, fazendo parecer que as pessoas não ligavam à grande confusão em que se envolviam com os carros a transitarem entre as pessoas que vendiam, alimentos que eram confeccionados sem qualquer observância dos princípios básicos de higiene e saúde pública, e tudo aquilo 15
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era feito em áreas onde as pessoas também faziam as suas necessidades fisiológicas. Enfim, era uma grande confusão que mais parecia um Estado sem governo. Os pensamentos de Soares Limbo foram interrompidos por um safanão que levou no ombro. Só assim percebeu que uma viatura de cor branca havia parado em frente à entrada do edifício e dela desembarcaram algumas pessoas, todas do género masculino. Aquele gesto descortês despertou a sua atenção e assim viu que os três senhores que desceram com muita pressa da viatura entraram rapidamente para o interior do prédio. Soares Limbo não se fez de rogado, olhou para aquela cena, e pensou que seria mais uma das vivências do dia-a-dia de uma sociedade onde os seus actores regularmente buscam a sobrevivência em desprimor da vida para o desenvolvimento. Mas os seus pensamentos foram novamente interrompidos pelo som de um barulho que bem conhecia e não lhe dava qualquer dúvida de que algo de ruim se estava passar. Em Angola, o som produzido pelos disparos das armas de fogo eram conhecidos por muitos cidadãos em função do longo período de guerra que o país tinha vivenciado. Ouviu o barulho propagado pelo som dos tiros e pareceu-lhe também ter ouvido alguns gritos, mas foi tudo muito rápido. Quando se voltou rapidamente para o hall da entrada do edifício, novamente deu de caras com os 16
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três senhores que minutos antes entraram apressados para o edifício. Agora saíam ainda com mais pressa, e com armas em punho. Dois deles traziam consigo uma pasta que parecia ser uma mochila. O choque entre os corpos foi violento. Soares Limbo foi arremessado ao chão e viu a sua vida em perigo quando um dos indivíduos lhe apontou uma arma do tipo AKM, mas ouviu o outro comparsa a dizer: – Não vamos perder tempo. Se o matares aqui muita gente vai ver! Deixa este cão! Vamos embora! – Os marginais pronunciaram aquelas palavras sem pararem. Entretanto, Soares Limbo também tinha muita pressa em entrar no edifício, dado o facto de lhe ter parecido ouvir os gritos de uma das suas irmãs aquando da ocorrência dos tiros. Desta vez, ele não conseguiu olhar para o rosto dos indivíduos, pois já estavam encapuçados. Levantou-se e correu pelas escadas. O apartamento estava localizado no segundo andar, mas quando lá chegou, alguém já se tinha antecipado, no caso a vizinha do apartamento em frente que, apercebendo-se da situação, gritava desesperadamente: – Mataram, mataram, mataram! Soares Limbo viu a porta da sua casa aberta, e o choque que teve com as imagens que via acabaria certamente por alterar toda percepção que tinha sobre a vida. Sobre o chão da sala do apartamento jazia o corpo da sua mãe. Correu rapidamente para o interior do quarto onde dor17
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miam as suas duas irmãs, e viu que as meninas que pareciam estar a dormir estavam imersas em poças de sangue. Tinham sido assassinadas friamente, enquanto ainda estavam em pleno sono profundo. Em seguida correu para o compartimento onde dormiam os rapazes, os seus dois irmãos, e deparou-se também com os corpos dos dois estatelados no chão em volta de uma grande quantidade de sangue. Soares Limbo não percebia exactamente o que havia ocorrido. Para ele nada justificava tamanha barbaridade. Estava incrédulo com todos aqueles acontecimentos. E entre o pânico e o desespero reparou que já não tinha privacidade para grandes reflexões. A casa estava agora invadida pela vizinhança e por uma imensidão de curiosos. O barulho era intenso, mas a frase que mais se ouvia era: – Mataram todos! – Mataram toda família dos batuqueiros! – Mataram todos! – Chamem a polícia! Nos primeiros anos do segundo milénio, Angola era um país que experimentava transformações sociais profundas. O alcance da paz por meio da assinatura do Protocolo do Luena, assinado entre o Governo de Angola e a UNITA em 4 de Abril de 2002, terminou com cerca de 27 anos de guerra civil. Angola possuía uma economia que 18
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era fundamentada pela regulação administrativa e requeria uma urgente alteração que consistia na implementação da economia de mercado. Na época, as pesquisas sociais revelavam que a discrepância entre o potencial económico e a realidade social era um dos principais desafios que o país tinha de vencer. Com mais de 68% da população que vivia em condições de pobreza e cerca de 27% em situação de pobreza absoluta, os indicadores revelavam índices sociais muito baixos. Por conseguinte, no país prevalecia uma elevada taxa de analfabetismo entre a população adulta, registando-se também níveis muito baixos na taxa de escolarização das crianças em idade escolar, sendo que as taxas de repetência e de abandono escolar eram altas, e o acesso ao ensino superior universitário era extremamente reduzido. A taxa da mortalidade infantil também era muito alta, e concomitante a prevalência de várias endemias, como a malária, e o aumento da taxa de seropositividade do HIV/ /SIDA era também uma preocupação latente. As consequências daquele cenário económico não se restringiam aos aspectos ligados à saúde ou à educação, por exemplo, o êxodo rural que se identificava foi um factor para a excessiva concentração populacional na cidade capital de Angola, no caso a província de Luanda, e daí emergiam as consequências do excedente populacional. Assim, a falta de qualidade nos processos educativos e 19
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instrutivos podiam regularmente ser diagnosticados na ausência dos princípios éticos e morais por parte de muitos actores sociais, o que com frequência motivava muitas vozes proeminentes da formação da opinião pública a afirmarem, com base no senso comum, que a sociedade angolana estava doente. Todavia, os sinais da mudança que Luanda emitia quanto ao seu desenvolvimento económico tinham como principal desafio o comportamento dos cidadãos que evidenciavam, de forma inequívoca, os atrasos causados pelas carências sociais; e neste particular, a ocorrência de crimes nas suas diversas facetas era também um desafio que a sociedade angolana enfrentava.
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CAPÍTULO II
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uando se chega a um local onde ocorreu um crime, a primeira preocupação é responder à seguinte questão: Por onde se deve começar a investigação? A polícia só apareceu no local onde ocorreram os assassinatos após duas horas. Argumentos como “a falta de viatura” ou “a falta de combustível para se poderem deslocar” eram geralmente apresentados pelos agentes da polícia em serviço para justificarem a ineficiência da sua actuação. Soares Limbo notou que a polícia havia chegado através do som propagado pelas sirenes dos carros que a transportava. Com a chegada da polícia, a multidão de curiosos aumentou e no meio de tanta confusão, houve ainda quem tentasse apoderar-se das pertenças alheias. – Roubaram o meu telemóvel, roubaram o meu telefone… Polícia me ajudem. Ai meu Deus, roubaram o meu telefone novo! – Gritava uma jovem entre a multidão de 21
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curiosos que tinha invadido a casa onde tinham ocorrido os assassinatos, procurando inteirar-se do que havia sucedido. Aqueles apelos de aflição que se ouviam entre a multidão revelavam que no meio de tanta agitação alguém tinha sido vítima de roubo. A polícia teve de fazer recurso das estratégias de intimidação para dispersar as pessoas que, por curiosidade, se tinham mobilizado no local, filmando com telemóveis e alguns gritando perante a tamanha desgraça. Fizeram alguns disparos para o ar, com a intenção de intimidar e dispersar a população. – Afastem-se, afastem-se! Este é o local do crime, vocês não podem estar aqui! Afastem-se imediatamente ou vão todos para a cadeia! – Alertavam os agentes da polícia que tentavam dispersar a população. Foram necessários entre doze a quinze minutos para a polícia conseguir dispersar a população e isolar a área onde tinha ocorrido o crime. O ambiente continuava carregado. Soares Limbo estava em prantos, repudiava-se por não ter percebido atempadamente o que iria ocorrer. Ele estava mesmo ali, a menos de um minuto da sua família e não fez absolutamente nada para os ajudar. Um sentimento de culpa invadia-o, não fez nada para evitar aquela chacina. – Senhor, por favor, queira levantar-se! – Disse a Soares Limbo um dos senhores que minutos antes estava a 22
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orientar os agentes da polícia para dispersarem a multidão do interior do apartamento. Soares Limbo levantou ergueu o rosto e deparou-se com um olhar firme, mas que se perdia pela desconjuntura do resto do corpo. O tamanho da barriga e a forma desarticulada com que se vestia o individuo que estava a sua frente dificultava adivinhar de quem realmente se tratava. – Sim! E posso saber quem é o senhor? – Respondeu Soares Limbo. – Bem, eu sou o Inspector Lavina. Mas pode tratar-me por Calibre55. – Retorquiu o oficial da polícia. – Sim, Inspector Lavina… o que deseja de mim? – Respondeu Soares Limbo. – Senhor Limbo, informaram-me de que o senhor é o único membro desta família que felizmente sobreviveu. – Argumentou o Inspector da polícia. – Pois é, Sr. Inspector Lavina. Talvez aquilo que diz ser felicidade para si não represente o mesmo para mim. Não me sinto feliz por estar vivo, quando sou o primogénito da minha mãe, e no momento que devia defender a minha família, por segundos de distracção acabei por permitir que todos fossem mortos! Todos mortos, todos mortos! – Soares Limbo falava sob prantos. As lágrimas que lhe escorriam pelo rosto reflectiam a dor e o sentimento que o invadiam perante toda aquela situação. 23
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– Lamento, Sr. Soares. Lamento muito, mas fui indigitado para investigar este caso, e tenho de falar com todos os que podem ter qualquer informação sobre o que realmente aconteceu aqui. Preciso de saber o motivo e quem fez isto, para poder levá-los ao tribunal e pagarem pelo que fizeram! O Senhor pode dizer-me onde estava na hora da ocorrência? Porque é que não estava em casa? – Perguntou o Inspector da polícia. Ao ouvir aquelas perguntas, as lágrimas que escorriam sobre o rosto de Soares Limbo intensificaram-se. A emoção foi mais forte e não conseguiu conter a sua emoção. Tinha as mãos sobre a cabeça, representando semioticamente o grau de desespero em que se encontrava. A imagem dos corpos espalhados pela sala depois de reunidos tinha desfeito toda a concentração e controlo que Soares Limbo procurava manter. Tinha de se preparar para enterrar toda a sua família, e ainda tinha de responder as questões de um investigador da polícia que parecia não se importar com os sentimentos dos outros. – Sr. Investigador… Eu não sei exactamente o que se passou. Acordei, tomei banho e desci para ir à procura de trabalho… – Respondeu Soares Limbo. – Ah! O Senhor não trabalha! – Retorquiu o Inspector Calibre55. – Não, não trabalho. Estou à procura de emprego. Eu estive a estudar no exterior do país e… – Soares Limbo 24
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respondia às perguntas do Inspector da polícia quando foi interrompido por este com uma nova pergunta. – Porque é que o Senhor deixou a porta aberta? – Perguntou o Inspector Calibre55. – Sr. Investigador… Eu não estou a perceber? O que é que o Senhor está a querer dizer, fazendo-me estas perguntas? – Retorquiu Soares Limbo, revelando um certo nervosismo perante ao interrogatório do Inspector da polícia. – Sr. Soares… Quem faz as perguntas aqui sou eu! – Disse o Inspector Calibre55. – Oh, Senhor! O Senhor está gozar comigo! Perante o corpo da minha mãe e dos meus irmãos, o Senhor está a insinuar que eu sou suspeito pela morte da minha própria família?! O Senhor está a gozar comigo! – Soares Limbo contestou de forma severa. – Chefe, temos aí a imprensa. – O interrogatório foi interrompido por um outro agente da polícia. – Ok. Estes fofoqueiros da imprensa também não perdem tempo! Parecem abrutes. Bem; Sr. Soares, de momento o interrogatório fica suspenso. Mas saiba que o Senhor terá de ir prestar depoimento na Unidade. Eu vou esperar pelo Senhor amanhã às dez horas. Vá até à vigésima esquadra e quando lá chegar diz que vai ter comigo, é só anunciar o meu nome Inspector Lavina ou Calibre55. Ouviu bem? Inspector Lavina ou Calibre55. 25
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E é melhor ficar calmo porque ainda temos muito que conversar! – Advertiu o Inspector da polícia em tom ameaçador, enquanto se punha em pé para se retirar. Soares Limbo nem sequer prestou atenção às últimas palavras que o Inspector lhe dirigiu. Sentia-se ainda pior do que estava antes da polícia chegar. Olhou em seu redor e percebeu que os corpos já estavam a ser retirados, após um apurado trabalho de perícia policial. Os corpos dos cinco cadáveres estavam agora encobertos no interior de sacos de cor preta, e depositados sobre macas. Com a chegada da imprensa, o apartamento ficou ainda mais pequeno. Depois dos jornalistas ouvirem os pronunciamentos primários da polícia, agora andavam atrás dele. Queriam saber dele o que se tinha passado, qual tinha sido a possível motivação da ocorrência dos crimes. Os vizinhos solidarizaram-se, e marcaram presença em casa do infortúnio, com vista a participarem e, se possível, darem algum alento. Procuravam reduzir as consequências da desgraça que tinha alcançado a família de Soares Limbo. Tão logo a polícia removeu os corpos, a maior parte dos curiosos retirou-se. O crime tinha captado a atenção da opinião pública. Nos meios de Comunicação Social, o assassínio de cinco membros da mesma família tinha mobilizado a atenção de membros da sociedade civil e alguns representantes de instituições públicas que, na 26
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perspectiva de se protagonizarem na esfera pública, providenciaram apoios para a realização das exéquias fúnebres. O assunto dominava as pautas informativas dos meios de comunicação social públicos e privados. A casa estava agora muito mais movimentada, e já apresentava um ambiente de óbito. Sob uma mesa média, localizada logo à entrada da única porta que dava acesso ao interior do apartamento, estavam colocados cinco quadros médios, cada um deles continha a foto de um dos cinco membros que tinham sido assassinados naquele dia, logo ao início da manhã. Assim como ocorre em outras partes do mundo, em Angola, os ambientes fúnebres também têm particularidades muito próprias. E isto podia ficar evidenciado desde os pequenos grupos concentrados nos jogos de cartas, até aos que preferiam interagir com conversas, muitas delas incómodas, pois muitas pessoas achavam que os óbitos eram também lugares propícios para especular, fomentar boatos, principalmente quando se tratava de óbitos cujas causas eram ainda desconhecidas. Entre os grupos de pessoas que tinham ido a casa de Soares, alguns teciam comentários que podiam ser úteis para a investigação que estava a ser desenvolvida pela polícia.
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– Eu vi o carro. Era um Land Cruiser branco, igual ao que os madiés da investigação conduzem. Quando vi, achei estranho a velocidade que eles traziam numa rua tão movimentada como a nossa. – Comentou um dos jovens que participava no jogo de cartas. – Mas, ó Kinito, você viu mesmo os madiés? – Perguntou um outro jovem de nome Pedro, que também participava no jogo de cartas. – Bem! Vi e não vi! – Respondeu o jovem Kinito, demostrando a incerteza dos seus argumentos. – Mas assim então fica como, Kinito…? Viste ou não viste? – Insistiu Pedro. – É assim Pedro: eu vi o carro mas não vi as pessoas. O carro tinha todos os vidros fumados, até o da frente! – Respondeu Kinito com alguma arrogância perante a insistência de Pedro. – Pelo menos tiraste a matrícula? – Insistiu Pedro, indagando o jovem Kinito. – Não, não tirei. Como é que eu podia tirar a matrícula de um carro que não conheço se nem sequer sabia o que tinha acontecido aqui?! – Respondeu novamente o jovem Kinito, demostrando a sua insatisfação perante a insistência de Pedro. – Mas disseste que viste o carro e desconfiaste. Afinal desconfiaste de quê? – Pedro questionou mais vez.
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– Puxa Pedro… Assim também não, ya! Vamos só jogar as nossas cartas. Não me faz falar à toa, aqui deve ter muita bófia. Fica assim tipo nada! Tipo eu não disse nada. Mas vou-te dar uma dica: estes putos que pararam, fizeram bondar a velha deles e as irmãs deles à toa! Aqueles miúdos estavam a mexer muito. Há quem diga que os viu a chegarem com quatro mochilas um dia antes de os apagarem. – O jovem Kinito procurava desviar o assunto para uma nova abordagem. – Será que foi a polícia que os apagou? – Perguntou Pedro. – Não sei. Mas é possível. O carro que os madiés da investigação usam também é igual ao das madres. – Respondeu o jovem Kinito. – Ya. Mas os carros que os madiés dos Serviços de Investigação Criminal usam não são brancos. São castanhos! – Argumentou o jovem Pedro. – Não são castanhos! São de cor creme! Você mesmo com esta idade não sabe distinguir cores. Puxa, granda boelo! – Retorquiu o jovem Kinito perante aos argumentos de Pedro. – Xé, olha o respeito, hã! – Advertiu Pedro. E assim se foi desenvolvendo a conversa pela noite dentro. Os diversos grupos presentes no velório faziam vários comentários que, de algum modo, poderiam ajudar
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os homens dos Serviços de Investigação, que disfarçados se faziam presentes no local do infortúnio. Soares tinha todas razões e motivos para querer dormir e despertar numa outra realidade, como se de um pesadelo se tratasse aquela desgraça que vivenciava. Mas infelizmente nada podia alterar aquela dura realidade. Ao som dos cânticos do grupo das senhoras provenientes da igreja, que a sua falecida mãe e as suas irmãs frequentavam, as vozes entoando a tristeza com louvores a Deus faziam com que aquele ambiente se prolongasse em simetria com o tempo. A manhã do dia seguinte era a ocasião em que as pessoas se retiravam por várias razões, pois algumas tinham de ir ao trabalho, outras tinham de tratar dos seus assuntos pessoais e muito mais. Soares Limbo já tinha tomado o banho e acabava de se preparar. Ao chegar à sala do apartamento onde estavam as pessoas que também velavam, Soares Limbo foi interpelado por um dos dois senhores que, pela imagem e postura, facilmente se identificavam como polícias, pois estavam fardados. – Bom dia, Sr. Soares. Somos efectivos do SIC, e fomos mandatados pelo nosso Chefe, Calibre55, para o vir buscar para ir prestar depoimento na esquadra. Sem qualquer contestação, Soares acompanhou os homens. O trajecto até à vigésima esquadra pareceu uma eternidade. A condução perigosa que era feita pelo moto30
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rista da viatura, agente da polícia, revelava aos transeuntes e demais automobilistas que alguma coisa de grave se passava no interior daquele carro. Soares Limbo deixava-se transportar sem qualquer reparo ou intervenção. Pouco lhe importava a condução perigosa, no seu íntimo desejava que algo ocorresse e talvez pusesse fim ao sofrimento que vivia. A viagem durou cerca de vinte minutos. A vigésima esquadra situava-se no interior do bairro Vitória. Um bairro localizado na periferia, onde a ausência de infra-estruturas, assim como a falta de coordenação arquitectónica das casas punham a descoberto as possíveis carências sociais que viviam os habitantes daquela zona. Soares Limbo saiu da viatura, tendo sido conduzido até um contentor de transporte de mercadorias que havia sido improvisado como escritório. À porta encontrava-se o investigador Calibre55 que, ao constatar a chegada de Soares, rapidamente se dirigiu ao seu encontro e começou o diálogo. – Seja bem-vindo, Sr. Limbo. Queira fazer o favor de entrar e sentar-se. Achei por bem mandá-lo buscar para evitar outros constrangimentos, tendo em conta que, se tentasse vir sozinho, ainda teria de localizar a esquadra, talvez ainda tivesse de arranjar boleia, enfim. Espero que a viagem até aqui tenha sido tranquila. Senta-se por favor! 31
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Soares Limbo sentou-se sem responder e sem manifestar qualquer emoção ou alguma correspondência ao diálogo. O Inspector Calibre55 continuou… – Seremos rápidos e práticos, acredito que tenha outras coisas para fazer. A princípio gostaria que me desse a sua identificação, bilhete de identidade ou passaporte. – Solicitou o Inspector Calibre55. Soares Limbo reagiu, enfiando a mão na algibeira do seu casaco e retirando a sua carteira de documentos. Acto contínuo, retirou o seu bilhete de identidade e entregou-o ao Inspector que, após verificar os dados de forma célere, o entregou a um outro agente da polícia que estava junto deles, tendo-o orientado para fazer as devidas cópias para a constituição do processo. O agente estava a secretariar a sessão da investigação, ele trabalhava sob uma mesa de escritório que continha um computador e, a medida que o Inspector falava com Soares Limbo, o agente fazia o registo digital. – Muito bem, Senhor Soares Limbo. A princípio mais uma vez lhe apresento os meus pêsames, e de toda corporação. O que aconteceu com a sua família Sr. Soares é algo terrível, classificamos inclusive como monstruoso. Infelizmente aqui na nossa sociedade a delinquência parece ter tomado um rumo sanguinário. A prática de crimes ocorridos com actos de extrema violência parece ser o novo modus operandi dos delinquentes. Como dizia, Sr. 32
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Soares… lamentamos imenso o sucedido. Bem, vamos a isso! Pode dizer-me o que é que faz, qual é a sua profissão? – Perguntou o Inspector Calibre55. – Eu sou Licenciado em Direito e em Engenharia informática e sou Mestre em Inteligência Cognitiva. Estive a estudar na América, nos Estados Unidos da América, onde fiz as minhas duas licenciaturas e fiz o mestrado em Inglaterra, especificamente em Londres. – Respondeu Soares Limbo. – Há quanto tempo o Senhor está cá em Angola e o que faz desde que chegou? – Perguntou o Inspector Calibre55. – Cheguei cá há cerca de três meses. E como disse ontem, de momento estou desempregado. As minhas acções diárias geralmente passam pela busca de um emprego. Durante o dia faço contactos em várias empresas e instituições, tenho estado ocupado a distribuir os meus documentos em muitas empresas. – Respondeu Soares Limbo. – Eu não te perguntei quando é que chegaste cá em Angola! E fica já a saber que eu também viajo, está bem?! Então quer dizer que o Senhor não faz nada! Não tem uma ocupação. Durante o dia só anda a distribuir documentos e a submeter-se a entrevistas? – Enfatizou o Inspector Calibre55. – Bem, pelo que estou a perceber, o Senhor entende que na situação em que me encontro, para o Senhor, isto 33
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significa que eu não faço nada! O facto de eu ainda não estar a trabalhar quer dizer que não faço nada. É isso, Senhor Inspector Calibre55? – Perguntou o jovem Soares Limbo. – Mais ou menos isso. Mas aqui quem faz as perguntas sou eu! – Respondeu o Inspector Calibre55. – Como é que uma pessoa que estudou nos Estados Unidos da América e em Londres não tem emprego nesta terra onde faltam profissionais para quase tudo? – É uma boa pergunta, Senhor Inspector, mas garanto-lhe que se a resposta fosse tão fácil certamente há muito que eu já estaria a trabalhar. – Diga-me uma coisa: o que é que a sua mãe fazia? – A minha mãe era vendedeira. A minha mãe vendia produtos diversos, entre bens alimentares e outros. Fazia a sua venda por baixo do prédio. – Era assim que vocês eram sustentados, Senhor Soares Limbo? – Era assim que nós sobrevivíamos, Senhor Inspector. – E os seus irmãos? O que é que faziam? Confirma-me a idade deles? Um tinha dezasseis anos e o outro dezanove, correcto? – Sim. Quanto às idades que mencionou, digo-lhe que os dados estão correctos. Sobre a ocupação dos mesmos, os dois eram estudantes, mas sei que não assistiam às aulas. Quando cheguei cá ao país, tomei conhecimento do 34
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comportamento desviante que os mesmos tinham. Soube que andavam envolvidos em grupos, faziam músicas, enfim, posso afirmar que não estavam com uma boa conduta social. – O Sr. Limbo sabe que eles já tinham estado detidos, não sabe?! – Comentou retoricamente o Inspector Calibre55. – Sei que eles já tinham estado detidos mais de uma vez. – Respondeu Soares Limbo. – Também sabe o porquê? – Insistiu o Inspector Calibre55. – Sei. Assim como o Sr. Inspector, eu também sei que eles estiveram detidos por terem sido acusados de furto. Só que também sei que a acusação que lhes foi imputada acabou por não se provar. – Disse Soares Limbo. – Então o Senhor Soares Limbo acha que os seus irmãos não roubavam? – Contrapôs o seu questionamento o Inspector Calibre55. – Eu acho que os meus irmãos estavam com uma má conduta social. – Disse Soares Limbo. – E as suas irmãs… O que é que faziam? – Perguntou o Inspector Calibre55. – As minhas irmãs eram crianças. Como já deve saber, elas tinham apenas onze e treze anos. As duas estudavam e, por vezes, ajudavam a minha mãe nas vendas, ali mesmo por baixo do prédio. 35
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– Quer dizer, na sua casa todos tinham uma ocupação, apenas o Senhor é que não fazia nada?! – Enfatizou o Inspector Calibre55. Soares Limbo ignorou a provocação do Inspector Calibre 55, limitando-se a olhá-lo com desvaneio. Sabia que o Inspector Calibre 55 tinha algum objectivo com aquelas provocações baratas. – É assim, Sr. Soares Limbo: tudo nos dá a entender que os seus irmãos estiveram envolvidos numa alta rede de crime financeiro e sofreram retaliação de um grupo que eles tentaram enganar. Na tropa nós dizíamos que eles foram vítimas de fogo amigo, afinal eram bandidos e foram mortos por bandidos. Entende? E como tal, devo dizer-lhe que pouco ou nada podemos fazer por enquanto. Este é um daqueles casos sem caso! Entende? – O Senhor Inspector está a dizer-me que a investigação vai parar por aqui? É isso, Inspector Calibre55? De repente, o telefone que estava sobre a secretária começou a tocar, no mesmo instante acabavam de entrar no interior daquele gabinete minúsculo dois agentes da polícia trazendo consigo um cidadão que estava algemado e com alguns sinais de que tinha sido vítima de agressão física. – Chefe, este é o Salada. Até que enfim, conseguimos apanhá-lo, Chefe. Deu muito trabalho, Chefe! Desde as quatro horas da manhã que estamos atrás deste gajo. 36
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– Disse um dos agentes que tinha acabado de entrar no gabinete inadvertidamente. – Ah! É você o Salada?! Pois bem, prepare-se! Hoje vai ser temperado à medida. Vocês não ensaiaram umas apimentadas neste gajo? – Comentou retoricamente o Inspector Calibre55. – Eh Chefe! Já o aquecemos, o Chefe não está a ver como o gajo está inflamado. Mas mesmo assim o gajo está armado em duro. – Disse o agente procurando mostrar as escoriações que o cidadão que estava algemado tinha no corpo. – Ai é? Põe o gajo na cela! Vamos tratar-lhe da saúde daqui a pouco. Anda por aqui a roubar e a violar as pessoas. Foi você que assassinou aquele bari-bari, né? – Disse o Inspector Calibre55. – Não, Chefe Calibre55. – O indivíduo com o nome de Salada estava com mãos algemadas atrás das costas. Quando indagado pelo Inspector Calibre55, tentou responder à pergunta que lhe pareceu direccionada à sua pessoa, quando foi interrompido por uma bofetada no rosto, seguida de dois porretes nas costas. – Ninguém te mandou falar! Operativo, leva já este gajo para a cela. Depois vamos ter que o temperar à medida. Cão de uma figa, gatuno, assassino. Também já quer vir aqui abrir a boca. – Ameaçou o Inspector Calibre55 enquanto voltava para o seu lugar. 37
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Prontamente, os agentes retiraram-se, levando consigo o cidadão suspeito, não deixando de o submeter a mais violência física, dando-lhe alguns porretes na cabeça e bicos nas costas, sob a alegação de ter faltado respeito ao Chefe. – Voltando ao nosso assunto Sr. Soares… Epá! Um momento só, o meu Comandante estava a ligar para mim. É só um minuto, Senhor Soares Limbo. Tenho que retomar a chamada do meu Chefe e já continuamos. Alô Chefe… Sim, Chefe. Sim, Chefe. Sim, Chefe. Ordem, meu Comandante. – Tão logo o Inspector Calibre55 desligou o telefone, olhou para o Soares Limbo e disse: – Bem, Sr. Soares. É tudo por hoje. O senhor pode regressar a sua casa e dar continuidade ao tratamento dos documentos para realizar os funerais. – Não estou a perceber, Senhor Inspector. E como fica a investigação do caso? Aliás, eu vim aqui sem qualquer notificação. Eu preciso que o Senhor me dê um documento que comprove que estive aqui a ser acareado pelo Senhor. Preciso de tomar conhecimento do número do processo do caso e ver a sinopse da investigação e demais procedimentos que um processo de investigação criminal deve ter, Senhor Inspector. – Soares Limbo protestava a atitude tomada pelo Inspector Calibre55. – Sr. Soares Limbo… Já lhe disse e repito mais uma vez, que o polícia aqui sou eu. O Senhor vai assinar o auto 38
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de declarações e o resto do assunto, nós, polícia, vamos dar tratamento. Qualquer coisa, depois nós vamos entrar em contacto com o Senhor. É só deixar ficar o seu número de telefone para o efeito. – Procurou explicar-se o Inspector Calibre55. – Não vou assinar nenhum documento sem antes o Senhor Inspector me entregar a notificação! – Disse Soares Limbo. – Ah… não vai assinar?! Pois, se é assim que quer, pode ir embora. E fica já a saber, que esta investigação deixou de ter factos para continuar! É uma investigação sem caso! – Informou o Inspector Calibre55. – Como assim, esta investigação não tem caso, Senhor Inspector? O Senhor até ao momento nada disse sobre o facto de os suspeitos terem sido os mesmos que passaram por mim na ocasião em que eu estava por baixo do prédio. Sequencialmente, o Senhor nada disse sobre a viatura em que eles se fizeram transportar… e as mochilas que eles levavam… e as armas?! Já fizeram a peritagem das balas que mataram a minha família?! Com todos estes elementos, o Senhor Inspector Calibre55 tem a coragem de dizer que esta é uma investigação sem caso?! – Contestou Soares Limbo. – Sr. Soares Limbo… Saia do meu gabinete! Os aspectos inerentes aos pormenores da investigação por
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