Tratado de Versificação Portuguesa

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e terminologia actualizada: Amorim de Carvalho é o grande especialista do ritmo verbal. O : Problemas da (1981), (7ª ed., 2018), Teoria Geral (2 vols., 1987).

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A Obra Poética de Amorim de Carvalho, uma das mais originais e belas realizações do génio poético de expressão portuguesa, foi selectivamente reunida pelo Poeta em 6 volumes (indicam-se as datas das últimas edições): I - Elegia heróica e outros poemas (2013), II - A Erotíada e outros poemas (2004), III - A Comédia da Morte e outros poemas (1979), IV - Il Poverello e outros poemas, V - Com Deus ou sem Deus e outros poemas, VI - O Apóstolo e outros poemas.

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AMORIM DE CARVALHO

TRATADO DE VERSIFICAÇÃO PORTUGUESA

AMORIM DE CARVALHO (1904-1976) é a maior compleição crítica portuguesa. Meticuloso na análise, sua inteligência apresenta-se igualmente preparada para as largas sínteses marcadas por incontestável espírito elitista e, portanto, humanista. Muito atento aos resultados das diversas ciências, sua obra abarca os múltiplos domínios do conhecimento apresentando inovantes teorias interpretativas da realidade. Vasta e originalíssima é a obra de criação poética, na continuidade da grande poesia de pensamento, superiormente representada, na língua portuguesa, por Camões, Antero, Junqueiro, Pascoaes e Amorim.

AMORIM DE CARVALHO

TRATADO DE VERSIFICAÇÃO PORTUGUESA 7.ª Edição



Amorim de Carvalho

TRATADO DE VERSIFICAÇÃO PORTUGUESA 7.ª edição


edição: Edições

Ex-Libris® (chancela Sítio do Livro) título: Tratado de Versificação Portuguesa autor: Amorim de Carvalho A utoretrato de Amorim de Carvalho (original no arquivo da Casa Amorim de Carvalho) grafismo e paginação: E duarda Falcão eduardafsousa@gmail.com ilustração da capa:

Júlio Amorim de Carvalho C asa Amorim de Carvalho casa@amorimdecarvalho.com

organização, revisão, notas: promotor da edição:

7.ª edição Agosto, 2018 isbn:

978­‑989-8867-37-7 443245/18

depósito legal:

© Júlio Amorim de Carvalho

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt


TRATADO DE VERSIFICAÇÃO PORTUGUESA1



Algumas Palavras Do Autor[2] A ideia de publicar um Tratado de Versificação de largas proporções, já pronto e que cheguei a anunciar, substituí‑a por outra ideia: publicar um Tratado de matéria mais reduzida, de intentos mais pedagógicos, que é o presente trabalho, e reservar o estudo de aprofundamento para outro volu‑ me que se intitulará Os Problemas da Versificação. É convicção minha que as obras literárias em verso nunca podem ser perfeitamente compreendidas (no que elas são, antes de mais, como pro‑ dutos de actividade artística, destinadas a provocar emoções estéticas) sem o claro conhecimento da sua técnica, e, portanto, de modo especial, da sua versificação. Para isso, seria útil um estudo essencialmente prático, que des‑ pertasse a curiosidade dos alunos: deformação experimental dos versos, para a obtenção de ritmos diferentes ou para a verificação das leis; análise da prosa rítmica e sua mudança para versos perfeitos pela eliminação das sí‑ labas excrescentes ou intervenção das sílabas integrantes do ritmo; efeitos musicais; etc. Alguns elementos da versificação se ministram no ensino liceal; pelo menos consta isso dos programas; porém, não falando já da sua exígua ex‑ tensão (lamentável em face de uma tão rica literatura em verso como a nos‑ sa), esses elementos continuam a fundamentar‑se numa concepção anacró‑ nica. Tal concepção, pelo seu afastamento do estudo científico, apresenta‑se ao espírito do aluno (perturbado pela corrente moderna do versilivrismo, e não dispondo ainda, por via de regra, da capacidade crítica suficiente) como um conjunto de preconceitos ou convenções. Daí o descrédito em que vai caindo a versificação. Ora a versificação contemporânea demonstra precisamente que as regras dos versos não são preconceitos ou convenções, porque assentam em leis e

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no acordo dessas leis com a natureza psicológica. Simplesmente o seu estudo objectivo, que os tratadistas estrangeiros têm aprofundado, está por fazer no nosso país. Lançando a público este Tratado é meu intento contribuir para mais exacta noção do verso e da sua técnica, visto que ainda não existe nenhum tratado de versificação portuguesa actualizado. Será possível que a quantidade de matéria contida no meu livro ul‑ trapasse o que se tem ensinado nos liceus; mas embora o que se tem ensi‑ nado continue a ser quantitativamente o mesmo, impõe‑se situá‑lo numa compreensão verdadeira cientìficamente dentro do ângulo da sua realidade humana e eterna. O meu Tratado, portanto, não obriga a ampliar o estudo da versificação (embora não deixasse de ser isso útil, creio); liberta‑o, apenas, da sua feição anacrónica, permitindo, ou, antes, comportando a sua ampliação eventual. Para complemento do Tratado dou, em apêndice, um resumo da his‑ tória do verso na poesia portuguesa (extracto de um desenvolvido trabalho ainda inédito) desde o período pré‑trovadoresco até à época contemporânea, o que, além de me parecer de grande utilidade, constitui, salvo erro, a pri‑ meira coisa que, no género, se faz entre nós. Assim, depois de se conhecer a técnica do verso através do meu Tratado, encontrar‑se‑á, em apêndice, essa técnica, històricamente comprovada, verificando‑se o seu desenvolvimento no decurso dos diferentes períodos literários. Resta‑me deixar o cômputo da sua utilidade à imparcial apreciação dos Srs. Professores, ao proveito que na sua leitura os alunos possam colher e, em geral, ao público que conserva ainda o gosto do verso. A. de C.

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Ao Leitor[3] Escrevi, à guisa de prefácio, na 1.a edição deste Tratado: «… É convicção minha que as obras literárias em verso nunca podem ser perfeitamente compreendidas (no que elas são, antes de mais, como produtos de actividade artística, destinadas a provocar emoções estéticas) sem o claro conhecimento da sua técnica, e, portanto, de modo especial, da sua versificação. Para isso, seria útil um estudo essencialmente prático, que despertasse a curiosidade dos alunos: deformação experimental dos versos, para a obtenção de ritmos diferentes ou para a verificação das leis; análise da prosa rítmica e sua mudança para versos perfeitos pela eliminação das sílabas excrescentes ou intervenção das sílabas integrantes do ritmo; efeitos musicais; etc. Alguns elementos da versificação se ministram no ensino liceal; pelo menos consta isso dos programas; porém, não falando já da sua exígua ex‑ tensão (lamentável em face de uma tão rica literatura em verso como a nos‑ sa), esses elementos continuam a fundamentar‑se numa concepção anacró‑ nica. Tal concepção, pelo seu afastamento do estudo científico, apresenta‑se ao espírito do aluno (perturbado pela corrente moderna do versilivrismo, e não dispondo ainda, por via de regra, da capacidade crítica suficiente) como um conjunto de preconceitos ou convenções. Daí o descrédito em que vai caindo a versificação. Ora a versificação contemporânea demonstra precisamente que as regras dos versos não são preconceitos ou convenções, porque assentam em leis e no acordo dessas leis com a natureza psicológica. Simplesmente o seu estudo objectivo, que os tratadistas estrangeiros têm aprofundado, está por fazer no nosso país.

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Lançando a público este Tratado é meu intento contribuir para mais exacta noção do verso e da sua técnica, visto que ainda não existe nenhum tratado de versificação portuguesa actualizado. Será possível que a quantidade de matéria contida no meu livro ul‑ trapasse o que se tem ensinado nos liceus; mas embora o que se tem ensi‑ nado continue a ser quantitativamente o mesmo, impõe‑se situá‑lo numa compreensão verdadeira cientìficamente dentro do ângulo da sua realidade humana e eterna. O meu Tratado, portanto, não obriga a ampliar o estudo da versificação (embora não deixasse de ser isso útil, creio); liberta‑o, apenas, da sua feição anacrónica, permitindo, ou, antes, comportando a sua ampliação eventual. Para complemento do Tratado dou, em apêndice, um resumo da his‑ tória do verso na poesia portuguesa (extracto de um desenvolvido trabalho ainda inédito) desde o período pré‑trovadoresco até à época contemporânea, o que, além de me parecer de grande utilidade, constitui, salvo erro, a pri‑ meira coisa que, no género, se faz entre nós. Assim, depois de se conhecer a técnica do verso através do meu Tratado, encontrar‑se‑á, em apêndice, essa técnica, històricamente comprovada, verificando‑se o seu desenvolvimento no decurso dos diferentes períodos literários. Resta‑me deixar o cômputo da sua utilidade à imparcial apreciação dos Srs. Professores, ao proveito que na sua leitura os alunos possam colher e, em geral, ao público que conserva ainda o gosto do verso». * Habituados, nas escolas do ensino secundário, ao reduzido estudo ana‑ crónico e convencional da versificação, os nossos estudantes, sem qualquer interesse vivo por ela, ingressam nas Faculdades de Letras completamente desprotegidos, na verdade, contra um vanguardismo versilivrista tão igno‑ rante como pretensioso. Nas nossas Faculdades de Letras o estudo da versi‑ ficação e da poética devia ter, pois, a maior amplitude e seriedade, em bases modernas, objectivamente estéticas, psicológicas e científicas. O presente trabalho é também uma contribuição para isso. Com várias alterações ou ampliações nalguns passos, mantém‑se, em sua reedição, no que constitui uma teoria moderna da versificação. O que, pois, já neste livro se afirma afoitamente é o esforço, pela primei‑ ra vez na língua portuguesa, creio, de apresentar a versificação como uma ciência com as suas leis – desprezando, em muitos casos, o fardo penoso e antiquado da terminologia tradicional, adaptando‑a noutros casos, e ainda

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criando nova terminologia. E tudo isso se apresenta com uma sistematização de conjunto e de pormenores que me parece ainda não ter sido feita pelos tratadistas de outros países. Estou a aprontar um tratado da versificação francesa e outro quero aprontar da versificação espanhola, e outro, ainda, possìvelmente, da versi‑ ficação italiana, como trabalhos preparatórios para um estudo comparativo das versificações novilatinas, fundamentadas nas mesmas leis. Julgo, até, que essas leis – pelo menos as principais – se aplicam aos versos de todas as línguas. E agora, para terminar, a recordação de um facto que se reporta aos tem‑ pos da minha iniciação poética. Pelos catorze ou treze anos eu escrevia ver‑ sos sem nunca ter lido um tratado; e como eu não tinha deles outra noção técnica para além de um grosseiro isossilabismo, os maus versos saíam‑me – ou aconteciam‑me, como agora se diz – à mistura com os bons em que, ao acaso, eu acertava. O meu irmão mais velho, vendo o meu gosto pelas mu‑ sas, ofereceu‑me uma Poética que continha alguns rudimentos de métrica, e logo no dia seguinte comecei a escrever versos impecáveis, numa criação poética que me acontecia muito melhorada. É certo que os tratados de ver‑ sificação não fazem poetas, mas podem ensinar os poetas a fazer versos. A. de C.

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PRIMEIRA PARTE

Da metrificação e das leis do verso



CAPÍTULO I O verso

1. Poesia e verso 2. A contagem das sílabas e a sinalefa

1. POESIA E VERSO. – Poesia e verso são dois conceitos fundamental‑ mente diferentes. O verso é a expressão rítmica da linguagem verbal. Pode haver poesia sem verso e pode haver verso sem poesia. Esta nasce de um sentimento de idealidade que nos faz ver as coisas através do aspecto mais ou menos elevado ou sobrenatural. Quando o senso geral (para tomarmos um exemplo elucidativo na sua singeleza) diz que tal paisagem é poética, pretende significar que a sua contemplação suscita o devaneio e o sonho. Mas este devaneio e este sonho ganham em idealidade se o poeta os traduz numa linguagem rítmica ou musical. O mais que se poderia dizer, com relação ao verso, é que este é poetizante pela idealidade que, através do ritmo, já confere ao pensamento verbal, mas é neste pensamento que, fundamentalmente, está ou não está a Poesia. 2. A CONTAGEM DAS SÍLABAS E A SINALEFA. – Ao estudo das regras que se referem pròpriamente à medição musical do verso, ou metro (como também é designado), chama‑se metrificação. Constitui a versificação o estudo do verso em todos os seus aspectos. O verso designa‑se, vulgarmente, pelo seu número de sílabas: monossíla‑ bo, dissílabo, trissílabo, tetrassílabo, pentassílabo, hexassílabo, heptassílabo, oc‑ tossílabo, eneassílabo, decassílabo, hendecassílabo, dodecassílabo – designações que abrangem os versos de uma a doze sílabas. Na contagem das sílabas fundem‑se estas conforme a pronúncia corrente (o que constitui a sinalefa, que indicamos com o sinal ), de modo que só se contam as emissões de voz individualmente bem distintas, e cada emissão chama‑se sílaba métrica ou prosódica:

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3. Contagem das sílabas até ao último acento tónico Deu / si/nal / a / trom/be/ta / cas/te/lha/na, ho/rren/do, / fe/ro, in/gen/te, e / te/me/ro/so. (Camões)

Por motivos musicais, que oportunamente estudaremos (n.° 27), certas palavras podem ter número variável de sílabas métricas; exemplos: luar ou lu/ar, sea/ra ou se/a/ra, etc., assim como se podem deixar de fazer certas sinalefas, por exemplo: no / ar, a / instabilidade, etc. 3. CONTAGEM DAS SÍLABAS ATÉ AO ÚLTIMO ACENTO TÓNICO. – Mètricamente, a contagem das sílabas apenas se faz até ao úl‑ timo acento tónico, inclusive, pelo que diremos que os dois versos com que exemplificámos têm dez sílabas, em vez de onze: 10(1) Deu sinal a trombeta castelhana, 10(1) horrendo, fero, ingente, e temeroso; (Camões) 10 Descansou afinal meu coração; (Antero de Quental) 10(2) Nessa própria mudez dei‑te o mais cândido; (A. Pinheiro Caldas)

em que os algarismos entre parêntesis significam as sílabas não contadas: (1) nos versos terminados com palavras graves; (2) nos versos terminados com palavras esdrúxulas. Este processo de contagem das sílabas, que suprime as átonas finais do verso, não deve ser tomado por mera convenção, pois assenta no facto de, na pausa terminal do verso, a sílaba ou sílabas átonas (sem acento tónico) não terem interferência rítmica. Equivalem a sílabas de transição, de descaimen‑ to suave da voz para o silêncio. Tanto que os versos terminados com palavra aguda prolongam‑se, quando cantados, num som paragógico que substitui a sílaba átona final:

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4. Acentos rítmicos. Noção e definição de verso. Valor posicional dos acentos. Ritmo efectivo e ritmo proposto. Os meus olhos, coitaditos, foram feitos a pedire; irão a todas as portas, só à tua não hão‑de ire. (Popular)

(pedir) (ir)

4. ACENTOS RÍTMICOS. NOÇÃO E DEFINIÇÃO DE VERSO. VALOR POSICIONAL DOS ACENTOS. RITMO EFECTIVO E RITMO PROPOSTO. – Todos os versos lidos naturalmente, mesmo que nós lhes dê‑ mos a disposição gráfica da prosa, distinguem‑se desta por uma toada própria fixável nas regras ou leis que a determinam. A toada própria de um verso é o seu ritmo. Quando as regras ou leis só estão imprecisamente esboçadas, ou existem latentes, não temos mais do que prosa rítmica ou ritmo interior, apenas com fácil tendência para verso, como neste trecho de Alexandre Herculano: «A aragem do norte encrespava suavemente a superfície das águas: as ondas vinham espraiar‑se preguiçosas no areal da baía». (Eurico)

Há neste trecho uma musicalidade contrafeita pelas sílabas excrescentes (ritmos hipertróficos) que o nosso ouvido corrigiria com prazer, e na qual começa por verificar uma tendência interna para a regularidade: A aragem do norte encrespava suavemente a superfície das águas: as ondas vinham espraiar‑se preguiçosas no areal da baía.

Se (não nos importando, agora, o sentido das palavras) desprezarmos todas as sílabas excrescentes, isto é, se desprezarmos as sílabas sònicamente menos representativas, para ficarem aquelas que mais cantam ao nosso ou‑ vido, o que era apenas tendência realiza‑se em verdadeiros versos sistemati‑ záveis, como veremos: ’ragem do nor’ ’crespava suavemente as’perfície das águas: ’sondas vinh’ espraiar‑se preguiçosas no are‑al da baía.

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O último verso estende‑se frouxamente, na medição, para não ficar um ritmo curto ou atrófico em relação ao ritmo do segundo, a cujo tipo se força a pertencer. Se analisarmos agora o resultado, encontramos dois tipos métricos – o decassílabo, com a seguinte regra: acento fixo na 6.a sílaba, além do acento terminal na 10.a: 6.a 10.a ’ragem do nor’ ’crespava suavemente; ’sondas vinh’ espraiar‑se preguiçosas;

e o hexassílabo, com acento na 3.a sílaba, além do acento terminal na 6.a: 3.a 6.a as’perfície das águas; no are‑al da baía.

Chamam‑se acentos rítmicos pròpriamente ditos os acentos internos que, colocados em determinados lugares ou sílabas, marcam a fisionomia musical dos diferentes tipos métricos. Aos acentos rítmicos e ao acento terminal cabe o papel de objectivar o ritmo, apoiando‑o, e os acentos rítmicos articulando os grupos silábicos que formam esse ritmo:

1.° grupo

2.° grupo

’sondas vinh’ espraiar + ‑se preguiçosas;

1.° grupo

2.° grupo

no are‑al + da baía.

Em cada palavra o valor acentual é o da última sílaba (em palavra aguda como, por exemplo, implicitar), ou da penúltima sílaba (em palavra grave como implicitava) ou da antepenúltima sílaba (em palavra esdrúxula como implícito), porque essas sílabas se fazem distinguir das anteriores em razão de se lhes suceder ou o silêncio (na palavra aguda), ou uma sílaba branda (na palavra grave) ou duas sílabas brandas (em palavra esdrúxula). E não porque as sílabas anteriores (im‑pli‑ci em implicitar e implicitava; im em implícito) não possam ter na dicção uma certa força tónica; simplesmente, essa força não se diferencia sensìvelmente na sucessão de sílabas de intensidade mais ou menos igual ou igualizável. O que chamamos acento de uma palavra é,

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5. Terminação falsa do verso. Corte rítmico.

pois, primeiro, o valor tónico de posição nessa palavra (aguda, grave ou es‑ drúxula), que, depois, toma um valor tónico‑rítmico de posição na estrutura métrica geral. E é só por isso que diremos (e assim se dirá no decurso deste Tratado) que todas as demais sílabas da palavra são átonas ou brandas4. Além dos acentos rítmicos principais, que nos dão as articulações basi‑ lares, temos os acentos rítmicos secundários – os que não são indispensáveis, mas que realçam ou imprimem mais movimento ao verso. O verso pode, pois, ser assim definido: Expressão verbal identificada com um ritmo reproduzível pela simples sujeição a determinadas regras. O conceito de ritmo é um conceito de repetição. Nos exemplos acima temos um verso em que o ritmo, batido pelos acentos, é realmente uma repetição tónica de três em três sílabas:

1 2 3 1 2 3 no are‑al + da baía.

A qualquer verso nestas condições de isocronicidade chamaremos de ritmo efectivo. Quando, como no outro exemplo, a repetição se dá apenas no con‑ junto de uma sequência de versos do mesmo tipo, temos o ritmo proposto, que naquela sequência ganha isocronicidade ou efectividade; por exemplo, um poema em decassílabos do mesmo tipo métrico. Mas, de modo geral, quando não quisermos particularizar qualquer dos dois casos, diremos que o verso é ritmo, seja efectivo, seja proposto. 5. TERMINAÇÃO FALSA DO VERSO. CORTE RÍTMICO. – Nos versos perfeitos, modelares, a ideia solidariza‑se de tal modo com o ritmo que à terminação de cada verso corresponde uma pausa lógica, embora o pensamento se desenvolva e se complete no verso ou versos seguintes, como sucede quase sempre. Quando as duas pausas, de ritmo e de ideia, não exis‑ tem no fim de um verso, não se percebendo a separação musical e lógica entre esse verso e o imediato, a terminação do primeiro é apenas gráfica e convencional. Diremos que há terminação falsa5: Ver‑te‑ei, mansão dos justos! O sepulcro não é jazigo, é estrada. Convenceste a minh’alma (A. Garrett)

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6. Acento terminal. Classificação dos versos quanto à palavra do acento terminal.

A terminação falsa só se justifica se com a destruição das pausas finais resultarem novos equilíbrios rítmicos, como no exemplo acima, de que re‑ sultou, musicalmente, a seguinte volta: Ver‑te‑ei, mansão dos justos! O sepulcro não é jazigo, é estrada. Convenceste a minh’alma

6 sílabas 10 sílabas 6 sílabas

Nos outros casos, destrói o verso, reduzindo‑o, grosseiramente, à con‑ dição da prosa. Quando uma pausa lógica parece interceptar o todo musical do verso, chamar‑lhe‑emos corte rítmico, como, no exemplo de Garrett, as pausas ló‑ gicas depois das palavras justos e estrada. 6. ACENTO TERMINAL. CLASSIFICAÇÃO DOS VERSOS QUANTO À PALAVRA DO ACENTO TERMINAL. – Simples limite do verso, o acento terminal (n.° 3) não interfere na sua toada própria ou ritmo. É costume classificar os versos portugueses, quanto à palavra em que está o acento terminal, em versos agudos, graves e esdrúxulos, conforme acabam com palavra aguda, grave ou esdrúxula. Exemplos com versos de dez sílabas métricas, isto é, contadas até ao úl‑ timo acento tónico ou acento terminal (n.° 3): Temeu tanto perdê‑la quem a dá; (agudo) 10 Deu sinal a trombeta castelhana; (grave) 10(1) Se nos mostra no ar robusta e válida. (esdrúxulo) 10(2) (Camões)

Muitos poetas combinam os versos agudos, graves e esdrúxulos com intencional regularidade:

Sumiu‑se o Sol esplêndido esdrúxulo nas vagas rumorosas! grave Em trevas o crepúsculo esdrúxulo vai desfolhando as rosas! grave Pela ampla terra alarga‑se esdrúxulo calada solidão! agudo

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Parece o mundo um túmulo esdrúxulo sob estrelado manto! grave Alabastrina lâmpada, esdrúxulo lá sobe a Lua! Entanto grave gemidos d’aves lúgubres esdrúxulo soando a espaços vão! agudo (Castilho)

Esta ordem repete‑se em toda a poesia de que extraímos o exemplo.

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CAPÍTULO II

A lei da elisão rítmica 7. Versos compostos e a cesura.

7. VERSOS COMPOSTOS E A CESURA. – O ouvido dá conta per‑ feitamente da estrutura composta destes dois versos: 6 6 Que faz florir as vinhas | e faz nascer o trigo; 6 4 Continuaste os sonhos | interrompidos.

No primeiro verso: um hexassílabo + um hexassílabo separados pela barra de cadência | ; no segundo verso: um hexassílabo + um tetrassílabo, se‑ parados pela mesma barra de cadência, cujas respectivas fórmulas numéricas serão: 6(1)+6; 6(1)+4. O primeiro verso é um composto regular ou cíclico, de ritmo efectivo (n.° 4), porque nos dá a repetição do mesmo ritmo de seis sílabas; o segundo verso é um composto irregular, de ritmo proposto, porque nos dá a transição de um ritmo (de seis sílabas) para outro diferente (de quatro sílabas). Quando os versos compostos têm só dois membros, como nos dois exemplos apresentados, podemos designá‑los por dímetros ou versos dimétri‑ cos; e se os membros são iguais, designaremos cada membro por hemistíquio. Os compostos com três membros chamam‑se trímetros; com quatro, chamam‑se tetrâmetros, etc. Quando o verso composto é formado de componentes muito longos, ou é formado de muitos componentes, chamar‑lhe‑emos hipérmetro. A pausa que corta o verso composto, separando os membros em partes musicalmente bem distintas, chama‑se cesura.

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8. A elisão rítmica e os versos simples. Notação musical.

É preciso distinguir entre a cesura (fenómeno essencialmente rítmico) e os diferentes cortes rítmicos (n.° 5) resultantes da natureza lógica do pensamento, embora, nos bons casos técnicos, uma pausa lógica deva coincidir com a cesura. 8. A ELISÃO RÍTMICA E OS VERSOS SIMPLES. NOTAÇÃO MUSICAL. – Nos dois exemplos acima os membros de cada um salientam‑se, espontâneamente, como versos autónomos, com nítidas fronteiras marcadas por cesuras átonas (assim chamadas porque se seguem a sílabas átonas; nos dois exemplos as cesuras seguem‑se, respectivamente, às átonas nhas de vinhas e nhos de sonhos). Ora se destruirmos as cesuras átonas, provocando a sinalefa ou elisão (n.° 2) dos primeiros membros nos membros imediatos, o ouvido nota, no primeiro exemplo (cuja fórmula mudou de 6(1)+6 para 6+6), que a cesura passou a ser tónica (em sílaba acentuada, que assinalaremos com a barra de cadência | ), pelo facto de a última sílaba de vinha se englobar no segundo : hemistíquio, dando‑se uma elisão rítmica, que assinalamos com o sinal

Que faz florir a vinha | e faz nascer o trigo; (G. Junqueiro)

e percebe, por isso, certa continuidade musical tendente a estabelecer um todo rítmico, sem, todavia, anular ainda a configuração composta (um hexassílabo + um hexassílabo); mas, no segundo exemplo, «Continuaste o so/nho interrompido», já nota que a configuração composta, 6(1)+4, foi anulada porque se realizou uma continuidade musical mais pronunciada, e tão pronunciada que a impressão dos membros (6+4) se desvaneceu. Obtivemos agora, portanto, um só todo musical (verso simples) com nova feição rítmica, tendo no lugar onde deveria cair a cesura tónica (6.a sílaba) apenas a sílaba longa de um acento, em que a cesura se abreviou:

6.a Continuaste o sonho interrompido. (Antero de Quental)

É um verso de dez sílabas com acento rítmico na 6.a sílaba. Podemos, pois, concluir: 1.° Todo o verso simples, reproduzível pela mera sujeição à regra dos acentos, comporta‑se, teòricamente, como um conjunto de grupos silábicos rìtmicamente elididos;

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sílaba tónica

sílaba átona cesura átona (pausa)

2.° Os acentos rítmicos marcam as articulações dos grupos silábicos, equiva‑ lendo, teòricamente, a cesuras tónicas abreviadas; 3.° Toda a sílaba que se segue a um acento rítmico, traduz, musicalmente, uma elisão, haja ou não sinalefa. Em notação musical esquematizada teríamos, para o verso composto 6(1)+6 sem elisão rítmica, isto é, com cesura átona (n.° 7):

♩ ♪♪ ♪ ♪ │♩⋅ ♪

Que faz flo - rir as

│♩ ♪ ♪ ♪ ♪ │ ⋅

vi - nhas ....

e faz nas - cer o

tri(go)

Vai entre parêntesis a sílaba átona final do verso, a qual se dispensa numa notação paradigmática aplicável tanto aos versos agudos como graves e esdrúxulos (n.° 6). Com cesura tónica, 6+6, isto é, com uma cesura resultante da elisão rítmica, será:

Que faz flo - rir a

vii-

Silaba de elisão

♩ ♪♪ ♪ ♪ │♩ ♩

Amplitude tonizável

Tonização

Sílaba tónica

Elisão rítmica Cesura tónica

│♩ ♪ ♪ ♪ ♪ │ ⋅

.... nha e faz nas-cer

Elisão rítmica

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o

tri(go)


As durações, quer da cesura átona, quer da cesura tónica, e nesta o pre‑ enchimento da amplitude tonizável indicada no segundo esquema, a prece‑ der a elisão (tonização da cesura pelo prolongamento tímbrico da tónica), dependem da dicção, com uma grande margem subjectiva de emoção pes‑ soal. Mais dois exemplos, a comparar com o anterior, para a elisão rítmica e consequente cesura tónica:

Silaba de elisão

Amplitude tonizável (menor)

Tonização

Sílaba tónica

Elisão rítmica Cesura tónica

♩ ♪♪ ♪ ♪ │♩ ♩ ♪ �│♩ ♪ ♪ ♪ ♪ │ ⋅

Que faz flo - rir a

viii -

...

nha e faz nas - cer o

tri(go)

Elisão rítmica

Tonização

Sílaba tónica

Cesura tónica

Silaba de elisão

Elisão rítmica

♩ ♪ ♪ ♪ ♪ │♩ ♩ ♩ │♩ ♪ ♪ ♪ ♪│ ⋅

Que faz flo - rir

a

viii -

nha e faz nas - cer o

tri(go)

Elisão rítmica

No último caso temos a tonização total da cesura, pelo máximo prolon‑ gamento tímbrico da tónica.

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9. Lei da elisão rítmica. Ritmos fortes.

Acento rítmico Tonização Silaba de elisão rítmica

Todos os esquemas apresentados de notação musical dão o rigor teórico para um fenómeno que, tendo certo âmbito de impessoal objectividade, depende, em grande parte – insistimos –, da dicção pessoal, que alonga ou abrevia quer a cesura átona, quer a cesura tónica com a sua tonização. E, devendo considerar‑se o acento rítmico dos versos simples como uma cesura tónica abreviada, teremos a seguinte notação musical esquematizada para o exemplo que já demos acima de verso simples (um verso de dez sílabas acentuado na 6.a sílaba):

♩ ♪ ♪ ♪ ♪ │♩⋅ ♪ ♪ ♪ │ ⋅

Con - ti - nu - as - te o

so - nho in-te - rrom - pi[do] 6.ª síl.

Embora também aqui a dicção pessoal possa tornar mais ampla ou me‑ nos ampla a tonização do acento rítmico (6.a sílaba), o esquema que aca‑ bámos de dar explica a significação dos acentos rítmicos e mostra que o fenómeno da acentuação é o mesmo em todos os versos simples: o acento rítmico, em qualquer verso, comporta‑se, teòricamente, como cesura tónica abreviada seguida de uma elisão rítmica. 9. LEI DA ELISÃO RÍTMICA. RITMOS FORTES. – O motivo por que a elisão rítmica destruíu, no último exemplo, a forma composta, para dar um todo de feição musical nova:

Continuaste o sonho interrompido

6 4

e já não destruíu a forma composta no exemplo anterior:

Que faz florir a vinha | e faz nascer o trigo,

6 6

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10. Distinção entre elisão rítmica e sinalefa. Fórmulas sintética e analítica.

explica‑se pela seguinte lei: Os versos (ou ritmos) ligados com elisão tendem a formar um só e novo rit‑ mo, na razão inversa da musicalidade que eles possuam. Por exemplo, o verso de sete sílabas e, depois, o de cinco (para citar os menores), que têm ritmos muito vincados (ritmos fortes), oferecem nítida resistência à elisão rítmica. Depois daqueles dois versos a resistência à elisão decresce na ordem seguinte: seis sílabas, quatro, três, duas e uma. Nas duas formas que apresentámos acima, a combinação 6+6 ofereceu, pois, mais resistência à elisão rítmica do que a combinação 6+4. 10. DISTINÇÃO ENTRE ELISÃO RÍTMICA E SINALEFA. FÓRMULAS SINTÉTICA E ANALÍTICA. – Se lermos com naturalidade estes dois versos compostos:

Que faz florir a vi|nha e faz nascer o trigo; (G. Junqueiro)

Fazendo abrir ao sol | as vossas esperanças; (Guilherme Braga)

notamos que, musicalmente, tanto vale dizer que, em ambos, os primeiros hemistíquios são agudos, como dizer que são graves com elisão nos segundos hemistíquios, pois o efeito sónico é o mesmo. Musicalmente, para o ouvido, que não vê, a sílaba as do verso de Guilherme Braga está nas mesmas con‑ dições da sílaba nha e do verso de Junqueiro – que são as condições musicais que se seguem a uma cesura tónica: Quefazfloriravi|nhefaznascerotrigo; Fazendabriraosol|asvossasesperanças.

A elisão rítmica (n.° 8) transcende, portanto, a sinalefa (n.° 2), com a qual, muitas vezes, pode coincidir, mas com que não deve ser confundida. Já vimos que nos versos simples o acento rítmico se comporta como cesura tónica abreviada, pela formação de uma continuidade musical mais perfeita (n.° 8); por isso também dissemos que toda a sílaba que se segue a um acento rítmico traduz, musicalmente, uma elisão. Logo, a decomposição

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de qualquer verso pelos seus acentos equivale à sua decomposição em for‑ mas elementares6 ou componentes. No capítulo seguinte vamos dar a colocação dos acentos rítmicos (acen‑ tos internos) nos principais versos simples e a decomposição destes pelos acentos, em grupos de determinado número de sílabas; e tudo isto acompa‑ nhado de fórmulas matemáticas que exprimem os números dominantes das estruturas métricas dos ritmos. À notação numérica que indica o total das sílabas de um verso simples (n.os 3, 5 e 6) chamaremos fórmula sintética, que pode ser enriquecida indi‑ cando‑se em expoente a sílaba ou sílabas da acentuação rítmica; exemplos: 106 = decassílabo acentuado na 6.a sílaba; 1048 = decassílabo acentuado na 4.a e 8.a sílabas.

À notação numérica que dá o desdobramento estrutural do verso sim‑ ples (n.° 8) chamaremos fórmula analítica, com que assim indicaríamos a estrutura íntima dos dois casos acima apresentados:

6+4 = decassílabo acentuado na 6.a sílaba; 4+4+2 = decassílabo acentuado na 4.a e 8.a sílabas.

Para indicarmos que certo tipo métrico tem uma acentuação incerta, mantendo o ritmo fundamental, empregaremos o expoente ∞ ; exemplo: 7∞ para o heptassílabo. Cada verso simples tem a sua toada própria (n.° 4), que assinalaremos, embora a força do pensamento traduzido nas palavras possa alterar‑lhe essa toada própria, imprimir‑lhe novos movimentos emocionais e sugestões musicais novas, como há exemplos nos grandes poetas. Junqueiro, na sua Marcha do Ódio, dá ao lânguido octossílabo (n.° 14) um vigor ao mesmo tempo trágico e épico.

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