Arquitectura, especialidade Desenho,
espreitamos essa descoberta. Este prazer é também o da tentativa de
pela Universidade de Lisboa. Investiga
desenhar o belo associando-a à verdade como sugeria Platão. A história da
os mecanismos cognitivos envolvidos
arte ocidental da representação do nu multiplica a questão da beleza como
de observação. É Docente de Desenho
e categoriza estas subjetividades da identidade do corpo que o desenhador
e Desenho Arquitectónico na Faculda-
regista, e que fazem sublimar o contorno físico do desenho, para o situar como
Lisboa. É colaborador no CIAUD,
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característica autónoma e imaterial da representação. Tal como refere
Centro de Investigação em Arquitectu-
Fernando Pessoa (1888-1935), no Livro do Desassossego, a nudez é um
ra, Urbanismo e Design da FAUL. A
fenómeno da alma (Pessoa, 1914, 2013).
suas áreas de estudo são: desenhador,
Do movimento musculado dos homens eternos e intocáveis dos desenhos de
desenho
de
observação,
atenção
visual, experiência do gesto, cognição
Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564), à exposição explícita do corpo pelos
humana. Publica com regularidade em
desenhos eróticos de Degas (1834-1917) ou Picasso (1881-1973), as
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revistas de especialidade nacionais e
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metodologias, técnicas e materiais do desenho de nu alteraram-se
internacionais.
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substancialmente através do tempo e da cultura (Pignatti, 2004). Neste quadro
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de circunstâncias, Cutileiro é um desenhador da aceleração contemporânea,
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porque minimiza os recursos gráficos para chegar à simplicidade do desenho urgente. Um desenho que se ajusta ao sublime Kantiano pela experiência emocional (Chalumeau, 1997) e à vocação supra-sensível da imaginação defendida por Deleuze (…)”
Shakil Y. Rahim
de de Arquitectura da Universidade de
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uma variável que ultrapassa o corpo (Berger et al., 2002). A estética organiza
O DESENHADOR
Estudos Cognitivos, Artísticos e Fenomenológicos www.sitiodolivro.pt
Shakil Y. Rahim Prefácio de Ana Leonor Madeira Rodrigues Posfácio de Eduardo Salavisa
Estudos Cognitivos, Artísticos e Fenomenológicos
desenhador no fenómeno de desenho
O Desenhador
nos processos de atenção visual do
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o corpo; e para nós, que vemos o resultado da sua observação e com isso
Shakil Y. Rahim
dade Técnica de Lisboa. É Doutor em
“O desenho de nu em Cutileiro é um prazer. Para ele, que desenha e descobre
Estudos Cognitivos, Artísticos e Fenomenológicos
Faculdade de Arquitectura da Universi-
O Desenhador
Shakil Y. Rahim é arquitecto pela
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O DESENHADOR
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Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) título: O Desenhador: Estudos Cognitivos, Artísticos e Fenomenológicos autor: Shakil Y. Rahim Ângela Espinha Shakil Y. Rahim paginação: Paulo S. Resende capa:
desenho na capa:
Pr
1.ª edição Lisboa, novembro 2018 isbn:
978‑989-8867-38-4 443726/18
depósito legal:
© Shakil Y. Rahim
publicação e comercialização
www.sitiodolivro.pt
Shakil Y. Rahim
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O DESENHADOR
Estudos Cognitivos, Artísticos e Fenomenológicos
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Prefácio de Ana Leonor Madeira Rodrigues
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Posfácio de Eduardo Salavisa
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Agradecimentos
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Estou grato às pessoas individuais e colectivas que de alguma forma contribuíram para que esta reunião de trabalhos se formalizasse num livro. O meu agradecimento estende-se ao centro de acolhimento da minha investigação de doutoramento, o CIAUD – Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, pelo enquadramento científico dentro das suas linhas de investigação. À FCT – Fundação para a Ciencia e Tecnologia que financiou a pesquisa e disponibilizou as verbas necessárias para a prossecução dos trabalhos. À orientadora Professora Doutora Ana Leonor Madeira Rodrigues pela qualidade do saber humanísta e capacidade de estimular e acreditar neste projeto. Dirigo ainda uma palavra de agradecimento, à minha família, amigos e alunos, pelo apoio.
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Índice Introdução Prefácio - Ana Leonor Madeira Rodrigues
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1. A Identidade da Mão e as Anatomias do Nu no Desenho e no Desenhar de João Cutileiro. 23 23
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1.1 - Introdução 1.2 - João Cutileiro e a Liberdade 1.3 - O Desenho de Nu Artístico e a Fenomenologia de Olhar Variável 1.3.1 - A Temática e a Figura 1.3.2 - A Técnica e o Grafismo 1.3.3 - O Volume e a Pose 1.4 - Da Identidade do Desenhar: o Aqui, o Agora e o Devir 1.5 - Conclusão Referências
24 26 27 29 30 31 32
2. Desenho, Memória e Simplicidade Visual: O Painel de Desenhos de Siza Vieira sobre S. Pedro e S. Paulo, na Basílica da Santíssima Trindade do Santuário de Fátima.
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2.1 - Introdução 2.2 - O Santuário de Fátima e a Galilé dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo 2.3 - O Desejo do Desenho entre a Memória e a Iconografia 2.4 - A Linha de Contorno e a Simplicidade Visual 2.5 - A Parede como Suporte de Desenho 2.6 - A Morfologia do Espaço e o Desenho de Luz na Organização Visual 2.6.1 - A Forma e a Proporção Espacial 2.6.2 - A Iluminação e o Peso Visual 2.7 - Conclusão Referências
39 40 41 42 44 45 45 46 47 48
3. A Portuguese Draughtsman: Francisco de Holanda’s Drawing Theory and the case of De Aetatibus Mundi Imagines.
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3.1 - Introduction 59 3.2 - Visual Thinking and Francisco de Holanda’s Drawing Theory 60 3.2.1 - The Autonomy of Drawing 60 3.2.2 - The Neo-Platonism and the New Uses of Natural Drawing 61 3.3 - De Aetatibus Mundi Imagines 63 3.3.1 - The Structure of Album and the Chronicle of the World 63 3.3.2 - The Narrative References and the Technical Aspects of Graphic Accuracy 65 3.3.3 - Drawing Under Suspicion 66 3.4 - Conclusion 67 References 68
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4. O Álbum de Desenhos de Villard de Honnecourt: Uma Articulação entre o Desenho de Observação e o Desenho Arquitectónico.
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4.1 - Introdução 4.2 - Villard de Honnecourt: O Desenhador 4.3 - O Álbum de Desenhos 4.3.1 - Estrutura, Formato e Organização 4.3.2 - Natureza, Tema e Análise Gráfica 4.4 - Conclusão Referências
71 72 76 76 78 85 87
5. ‘Sem Título’, 2014 - Hoje s/ pintura: Modelos de Visão para a Percepção nas Transformações da Janela Visual. 5.1 - Introdução 5.2 - A Ruptura com a Legenda: Sentido e Significado 5.3 - As Alterações Físicas da Pintura
95 96 97
5.4 - As Alterações Culturais do Pintor 5.5 - A Morte da Janela Visual 5.6 - Que Janela? - Os Modelos de Visão para a Percepção 5.7 - Conclusão Referências
100 104 109 117 118
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6. Mónica Cid e o(s) iDesenho(s) de Observação no iPad/ Tablet: as heterodoxias intencionais do olhar e do gesto para lá da janela de Alberti.
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6.1 - Introdução 6.2 - A App e o Hiperdesenho 6.3 - A Divisão Parâmetrica do Riscador 6.4 - O Ecrã de Alberti e as Lentes Zoom in/Zoom out 6.5 - Os iDesenhos de Observação 6.6 - A Intencionalidade da Acção: O Olhar e o Gesto do Desenhador 6.7 - Conclusão Referências
125 126 127 128 129 130 132 133
7. Atenção Visual, Precisão e Deformação do Perspectógrafo de Dürer no Desenho de Observação: Metodologias de Coordenação Visual-Motora na Sala de Aula.
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7.1 - Introdução 7.2 - A Atenção Visual: o Filtro como Selecção e Hierarquia de Informação 7.3 - Os Movimentos Oculares Sacádicos e as Fixações Visuais: o Desenho de Contorno Orientado ao Objecto e Orientado ao Espaço 7.4 - A Perspectiva no Desenho: o Perspectógrafo como Medida de Desvio da Atenção Visual 7.5 - A Deformação da Grelha de Dürer: uma Metodologia para a Coordenação Visual-Motora no Estudo da Precisão do Desenho
143 144
145 148
150
7.6 - Conclusão Referências
153 154
8. Canaletto’s Visual Cone (1697-1768): The Observational Drawing through the Filter of Kepler’s Retinal Optics.
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8.1 - Introduction 163 8.2 - Kepler and the Geometrical Optics through the Functional Map of the Retina 164 8.2.1 - The Retina and the Optic, Geometric and Physiological Description of the Image 164 8.2.2 - Kepler’s “Pictura” between Linear Perspective and the Visual Double Cone Theory 167 8.3 - The Visual Cone and the Geometry of Observation as a Probability of Drawing 170 8.3.1 - The Camera Obscura and the Uniformly Varied Observation Phenomenom 170 8.3.2 - Mimesis, Drawing and Visual Selection mediated by Projection and Geometric Optics 172 8.4 - Canaletto and the Draughtsperson’s Visual Cone in the Transformation of the Visible 174 8.4.1 - Canaletto in Eighteenth-Century Landscape 174 8.4.2 - The Multiplication of the Visual Cone: the Temporal Cut in Canaletto’s Observational Drawing 175 179 8.5 - Conclusion References 181
9. Eduardo Salavisa: um Desenhador do Quotidiano. 9.1 - Introdução 9.2 - O Desenhador: Uma Entrevista de Citações 9.3 - O Caderno de Desenhos: O Caso da Cidade de Braga 9.4 - Conclusão Referências
185 186 192 194 194
10. O Belo e o Simples: O Poder na Liberdade dos Desenhos de Niemeyer. 201 202 203 204 206 207
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10.1 - Introdução 10.2 - A Cultura Visual e Arquitectónica 10.3 - A Sedução da Linha Curva e do Desenho 10.4 - Desenhar com a Luz entre a Rigidez do Betão e a Transparência do Vidro 10.5 - Conclusão Referências
11. New Media and Tradicional Cognition Process in Observational Drawing Methodology: The Case of David Hockney’s Visual Experience in iPhone Drawings.
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11.1 - Introduction 11.2 - New iMedia and Drawing Process 11.3 - iPhone and Hockney’s Visual Experience 11.4 - After Old Masters “Secret Knowledge” 11.5 - Conclusion References
209 209 210 210 211 211
12. A Consciência Visual: A Arte através da Neurobiologia da Visão.
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12.1 - Introdução 12.2 - As Classificações entre a História da Arte e a Ciência da Percepção Visual 12.3 - A Fisiologia da Visão e a Experiência Artística 12.4 - A Consciência, a Fenomenologia e os Sentidos Cognitivos do Ver 12.5 - Conclusão
215 215 216 217 221
13. Álvaro Siza: O Olhar Enche o Espaço. A Esferográfica do Arquiteto. 223 224 224 226 230 231
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13.1 - Introdução 13.2 - O Desenhar do Arquiteto 13.3 - O Caderno e a Esferográfica 13.4 - A Fantasia da Perspectiva e o Desenho na Cidade 13.5 - Conclusão Referências
14. A Figueira do Pomar.
235 236 237 238 238 239 240 240 242 243 245 245
Posfácio - Eduardo Salavisa
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14.1 - Introdução 14.2 - Pomar Desenhador 14.3 - O ‘Caderno de Figueiras’ (s/d, anos 60, séc. XX) 14.4 - A Elegância e a Simplicidade da Economia Visual 14.4.1 - Rede de Linhas e Densidade Gráfica 14.4.2 - Gestualidade da Curva e Medição de Variações 14.4.3 - Linearidade do Riscador e Pincelada Sobreposta 14.4.4 - Abertura do Contorno e Composição dos Vazios 14.4.5 - Fluidez Espacial e Expressão Visual 14.5 - A Temporalidade da Observação e a Geometria do Instante 14.6 - Conclusão Referências
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Aos meus professores e aos meus alunos
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Introdução
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O Desenho é a minha área de investigação e nela tenho estudado principalmente os aspectos cognitivos do acto de desenhar, nas relações entre os mecanismos da atenção visual e a prática do desenho de observação. Quando estava a rever os trabalhos escritos e publicados nos últimos anos apercebi-me que a maioria da minha investigação se focou em desenhadores e seus processos visuais, mentais e gestuais. Tornou-se assim óbvio colocar o nome “O Desenhador” a este livro que é um agregador destes estudos. Aqui reúnem-se artigos e resenhas que se encontram distribuídos por publicações nacionais e internacionais, como actas de congresso e revistas de especialidade (físicas e digitais), muitos deles realizados durante os trabalhos de doutoramento na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. A maioria foram publicados com a confiança científica e inclusão bibliográfica da orientadora, a Professora Doutora Ana Leonor Madeira Rodrigues, que tendo sido minha professora de desenho no curso de Arquitectura despertou-me o interesse do desenhar como apropriação fenomenológica e como forma de contornar a verbalidade. Não foi só minha orientadora e professora, foi quem me ensinou a pensar. A sequência agora escolhida não tem nenhum alinhamento específico; os textos podem ser lidos individualmente. A publicação pretende apenas cruzar desenhadores nacionais e estrangeiros, de tradição histórica como Villard de Honnecourt, Francisco de Holanda ou Canaletto com desenhadores contemporâneos como Hockney, Siza, Pomar ou Cutileiro. Entre biologia e cultura ou física e filosofia, aqui e ali surgem reflexões globais sobre pensamento e representação visual, circuitos neurofisiológicos e processos mentais, temas da paisagem e do nu, apontamentos sobre
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Shakil Y. Rahim
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riscadores e suportes, análises de parâmetros, problematização da perspectiva e da janela, as novidades dos média digital, os desvios da criatividade da mão, as intencionalidades do Belo, a simplicidade da expressão gráfica e a temporalidade da consciência visual. Optou-se por manter a língua, o respectivo acordo ortográfico, a formatação e as referências de citação (Chicago ou APA), para não desvirtuar a fonte original. A investigação que evoluiu em direcções inesperadas e que partiu da dúvida geral “Porque é que Desenhamos?”, fica agora reunida numa mesma publicação, em sistema aberto, de modo a servir novas leituras e hipóteses de trabalho. Lisboa, Maio de 2018.
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Shakil Y. Rahim
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Prefácio
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Os textos que agora se publicam nesta antologia são o resultado de quem mantêm uma reflexão organizada e profunda sobre os fenómenos do desenho, mas também um olhar de quem desenha a pensar sobre o desenhar e as diversas maneiras de o fazer. Podemos dizer que é um conhecimento de dentro para fora, do eu que desenha para o outro e os outros que desenham. Assim, ao escolher como título O Desenhador Shakil Yussuf Rahim desloca a sua reflexão do desenhar, do desenho para se focar em quem desenha. O desenhador é aquele que desenha, que é capaz de desenhar ou aquele que gosta de desenhar, que sabe desenhar. O sufixo nominal –dor transforma o substantivo desenho deslocando a definição do resultado para a ação e particularmente para o agente da ação. Assim, ao assumir como título o termo desenhador, fica escolhido e apresentado o âmbito dos textos da presente antologia. Desenho, é um substantivo cuja amplitude compreende quer o objecto desenhado, a ação de desenhar ou até uma estrutura de pensamento, mas na sua asserção mais simples remete sempre para o gesto da mão e para o vestígio que esse gesto deixa sobre uma superfície, não sendo um resultado indireto mas literal desse movimento. O vestígio em traços do meu gesto irá conter níveis variados de informação que incluem a minha intenção de desenhador na expressão desenhada, mas também, tudo o que me define até à própria fisicalidade do meu corpo. Desenho, contém também toda a amplitude do sujeito quer
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como observador numa variedade de possibilidades de observação direta, indireta, codificada, quer como desenhador. Porém, ao contrário de Desenho que por extrapolação e até por associação remete para assuntos longe do desenhar, desenhador define uma quantidade de possibilidades profissionais remetendo sempre para a própria ação de desenhar e de usar um processo seja de registo seja de comunicação que privilegia as imagens em detrimento do código, ou em que o código é simplesmente elemento esclarecedor das imagens. O termo desenhador, no dicionário, e em diversas línguas convoca essa variedade grande de profissões e ações das quais a prática artística é apenas uma delas. O desenhador é frequentemente um intermediário que transforma em imagens um pensamento qualquer que se tem que tornar forma, sendo este o significado mais comum do termo. Nos chamados desenhadores técnicos, a expressão artística é diminuta, podendo mesmo estar ausente, e o código cresce em importância esclarecedora e potenciadora da informação veiculada. No caso do desenho como expressão artística, o desenhador tanto pode ser autor de modo próprio, autónomo, como pode manter a antes referida situação intermediária entre obras. Enquanto autor, artista, e mesmo que utilize o desenho de modos experimentais, a sua ação refere sempre ao conceito mais simples e elementar de desenho, isto é: Que existe num plano ou equivalente, que existe maioritariamente na bidimensionalidade do plano e que todo o registo refere a transposições e abstratizações da pluridimensionalidade do mundo para a bidimensionalidade do plano; Que remete para o desenhador como sujeito da ação e assim todo o código do sujeito, direta ou indiretamente esta contido no desenho;
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Que contorna a verbalização estabelecendo um âmbito de pensamento próprio. Embora o entendimento do termo e do conceito Desenho tenha uma amplitude imensa, quando referimos desenhador essa extensão restringe-se imediatamente ao ato de desenhar. Porque o desenhador é aquele que desenha, se não cumpre essa ação não é desenhador, não existe um desenhador potencial. Porque tem a capacidade de desenhar isto é pega num lápis ou equivalente e risca sobre uma superfície, mas também que praticou esse gesto e o controla de modo a conseguir os resultados que intende. Porque privilegia todo o seu sistema viso-motor nessa ação de desenhar. Em alguns dicionários o desenhador é: aquele que gosta de desenhar. Neste livro, Rahim faz uma reflexão crítica sobre autores tão variados quanto João Cutileiro, Siza Vieira, Francisco de Holanda Villard de Honnecourt, Mónica Cid, Canaletto, Oscar Niemeyer, David Hockney ou Júlio Pomar, enquanto desenhadores, o que lhe permite continuar o assunto principal da sua investigação desencadeada pela pergunta “Porque é que desenhamos”. Lisboa, 14 de Outubro de 2018.
Ana Leonor M. Madeira Rodrigues
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1. A Identidade da Mão e as Anatomias do Nu no Desenho e no Desenhar de João Cutileiro.1
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1.1 - Introdução
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O artigo investiga a identidade gráfica do escultor português João Pires Cutileiro (1937- ), focado nos seus desenhos de nu feminino como objecto de estudo. A identidade do desenho e do desenhar, como materialização da mão em movimento, é estudada através de uma metodologia de três pares de factores: i) temática e figura, ii) técnica e grafismo e iii) volume e pose. A partir das relações entre estes factores constrói-se uma unidade gráfica resultado da operacionalização visual e cognitiva do desenhador.
1.2 - João Cutileiro e a Liberdade
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João Cutileiro tem um percurso marcado pelo trabalho de escultura em pedra, com forte marca ideológica e política, na defesa da autenticidade e da liberdade da expressão artística portuguesa contemporânea (Chicó, 1982). Extremista nas opiniões que cria no público e na crítica, Cutileiro recria personagens históricas, alegóricas e religiosas, com enquadramentos 1 artigo publicado com referência: Rahim, Shakil e Rodrigues, Ana Leonor Madeira (2016). “A Identidade da Mão e as Anatomias do Nu no Desenho e no Desenhar de João Cutileiro”. Estúdio, vol. 7, nº 13, pp. 47-59. Lisboa: Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. ISBN 978-989-8771-34-6, ISSN 16476158, e-ISSN 1647-7316.
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Shakil Y. Rahim
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em episódios da literatura e história de Portugal (Wohl, 1979), como o 25 de Abril, as Tágides, reis, guerreiros, poetas, entre outros. O seu trabalho é reconhecido através de encomendas públicas e particulares, muitas de âmbito comemorativo e monumental que ocupam o espaço da cidade. Através das origens do seu mármore alentejano, Cutileiro ultrapassa a estatuária académica para se situar nas fronteiras do novo experimentalismo (Pinharanda, 1995), onde introduz a sensualidade do corpo feminino, a expressividade da matéria e a ambiguidade do erotismo na agregação do desejo. É neste quadro sensorial, que surge o seu portfólio de desenhos, como escultor do corpo, que encontra na linha os trajectos da forma para investigar as seduções da expressão humana.
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Para o escultor, o desenho é uma fotografia, no sentido em que esta é um registo, que mais tarde poderá dar lugar para outra coisa ainda, e essa coisa é que é linda (fruindo aqui das palavras de Fernando Pessoa). Nesse sentido, o escultor não cessa de desenhar, descobrindo no ser feminino, com o seu olhar de artista, o carácter, a verdade interior que transparece da sua forma (Mega, 2008: 285).
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1.3 - O Desenho de Nu Artístico e a Fenomenologia de Olhar Variável
O desenho de nu em Cutileiro é um prazer. Para ele, que desenha e descobre o corpo; e para nós, que vemos o resultado da sua observação e com isso espreitamos essa descoberta. Este prazer é também o da tentativa de desenhar o belo associando-a à verdade como sugeria Platão. A história da arte ocidental da representação do nu multiplica a questão da beleza como uma variável que ultrapassa o corpo (Berger et al., 2002). A estética organiza
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e categoriza estas subjectividades da identidade do corpo que o desenhador regista, e que fazem sublimar o contorno físico do desenho, para o situar como característica autónoma e imaterial da representação. Tal como refere Fernando Pessoa (18881935), no Livro do Desassossego, a nudez é um fenómeno da alma (Pessoa, 1914, 2013). Do movimento musculado dos homens eternos e intocáveis dos desenhos de Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564), à exposição explícita do corpo pelos desenhos eróticos de Degas (18341917) ou Picasso (1881-1973), as metodologias, técnicas e materiais do desenho de nu alteraram-se substancialmente através do tempo e da cultura (Pignatti, 2004). Neste quadro de circunstâncias, Cutileiro é um desenhador da aceleração contemporânea, porque minimiza os recursos gráficos para chegar à simplicidade do desenho urgente. Um desenho que se ajusta ao sublime Kantiano pela experiência emocional (Chalumeau, 1997) e à vocação supra-sensível da imaginação defendida por Deleuze. Cutileiro devolve ao observador o poder de completar o sentido do sensível para além da razão objectiva do registo:
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Tal é o acordo – discordante – da imaginação e da razão: não é apenas a razão que tem uma “destinação supra-sensível” mas também a imaginação. Neste acordo, a alma é sentida como unidade supra-sensível indeterminada de todas as faculdades; somos nós próprios referidos a um foco, como a um “ponto de concentração” no supra-sensível (Deleuze, 2000a: 58).
Longe dos dualismos conceptuais, o desenhar como acto é uma fenomenologia de olhar variável, que não opõe consciência e mundo, o para si e o em si. Adopta uma relação de intencionalidade
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Shakil Y. Rahim
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significante (Cerbone, 2006) e de cognição integrada, numa consciência perceptiva encarnada de corpo vivido (Merleau-Ponty, 1945, 1994), que se torna num riscador e contorna a forma e o espaço no plano. Esta textura do corpo inteiro de Merleau-Ponty duplica o noema quando se trata do caso específico de desenhar o corpo, e intensifica-se quando esse corpo é do outro. Por isso também para Cutileiro, o deslocamento do olhar e da mão divide-se em várias partes; combina-se em muitas outras com diferentes quantidades. Para delimitar estes desdobramentos, estuda-se de seguida três pares de factores motrizes nas possibilidades que Cutileiro associa à expressão física e significativa do desenhar.
1.3.1 - A Temática e a Figura
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Um dos principais temas que Cutileiro trabalha no desenho é a figura humana e as suas extensões do nu. O feminino surge no desenhador como fonte de voluptuosidade e transgressão (Alvim, 1981). As “meninas e mulheres de Cutileiro” são um corpo conjunto unido pelo género e pelo autor, ainda que separadas por páginas. A maioria está isolada, mas não parecem estar sozinhas. Porque dá-nos a sensação de pertencerem ao espaço que ocupam. À semelhança das Sources e de outros desenhos de Ingres (1780-1867), a expressão combinada de carne, inocência e acaso produz tensão e atracção no observador (Guégan, 2006). No desenho de Cutileiro a pele é macia e o corpo desbastado (Figura 1). O rosto é gracioso, e os olhos amendoados adicionam juventude e curiosidade (Figura 2). Outras vezes a atitude é desencontrada e esquiva, e o olhar é distante. São mulheres temperamentais (França, 1966), que por vezes parecem estar ao espelho. Mostram-se e deixam-se desenhar: umas olham para o desenhador (Figura 3), outras escondem o rosto para se protegerem
O Desenhador
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da intimidade. Mas todas juntam-se à Vénus de Botticelli (c. 1485) na encenação de que as deusas podem ultrapassar o pudor:
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A Vénus de Botticelli é, do ponto de vista anatómico, uma caricatura disforme, que nenhuma estrutura óssea ou tensão muscular, mantém em pé. O corpo é um apêndice desamparado de um rosto melancólico que olha para o exterior (...) É por isso que a pintura é tão assombrosa. Esta mulher que é fruto do desejo está além do que o desejo, tal como sempre conhecemos, pode alcançar (Scruton, 2009: 137).
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Como refere Kenneth Clark, em The Nude: A Study in Ideal Form, o corpo humano não é um tema da arte, mas uma forma de arte (Clark, 1972). Para Cutileiro, o desenho do nu feminino é a confirmação da importância da silhueta nos processos de visualização dos limites do corpo e da sedução táctil da sua obra escultórica, através de figuras bífidas, daphenes e torsos (Rafeiro, 2000). Ainda que estes desenhos detenham autonomia e não pertençam às fases preparatórias da sua actividade projectual, estão na mesma direcção porque a figura é o centro da sua procura tridimensional.
1.3.2 - A Técnica e o Grafismo
Cutileiro desenha a silhueta, através de linhas orgânicas, enérgicas e em movimento (Wohl, 1979). Uma técnica que faz uso da geometria de contorno, que define a massa do corpo pelas diferentes medidas dos vazios. O vazio constrói a extensão do desenho, como muitas vezes fez Rodin (1840-1917) nos seus estudos de nu quando os preencheu com aguadas (Normand-Romain e Buley-Uribe, 2006). Mas se Cutileiro herda essa continuidade
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Shakil Y. Rahim
de gestão de massas, afasta-se de Rodin na mancha, porque não a substitui pelo suporte. É através da linha e pela sobreposição de pequenos traços ou de um gesto único, que desenha ora com densidade gráfica ora com simplicidade linear (Figura 4), na procura do sublime contorno da pele humana:
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O que fica inacabado, como os riscos que se sobrepõem, como a insistência num detalhe, são já prefigurações do movimento da mão rasgando o espaço, procurando o vazio no denso seio das matérias. Os desenhos de João Cutileiro, variando entre as linhas subtilíssimas e as marcadas incisões; entre os suaves contornos ou os abruptos cortes com que se estanca um corpo, são já instantâneos fugazes desse gesto que o habita e que procura (...) (Almeida, 1988: 3).
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O escopro e martelo do escultor são substituídos por aparos, pinceis e tintas. Ao longo da figura, a mão do desenhador desdobra-se num riscador, que adquire espessuras e intensidades alternadas, que criam vibrações de luz (Figura 5). Uma estimulação bipolar dos campos receptivos da imagem retiniana, em áreas de contraste (Livingstone, 2002). O cabelo, por exemplo, é uma marca do autor, definido por uma trama densa, rebelde e ondulada (Figura 6). Neste sentido material, o desenho gestual é para Cutileiro uma técnica que desperta a criatividade, pelo domínio da velocidade do traço (tempo) e pela selecção de marcas visuais (informação): ‘Selection’, however, shows its limitations as an interpretative concept when we enlarge our view of drawing to take in the drawing of all known traditions. We are then bound
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to adopt a more generally valid standpoint, and treat visual ontology under a complex heading of structure, method, symbolism and visual analogy (...) At certain points the structure rests on a foundation of visual analogies between human perceptual experience both of graphic forms and of realities (Rawson, 1987: 24).
1.3.3 - O Volume e a Pose
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A rigidez do cânone clássico e das tradições idealizadas da proporção humana fogem ao paradigma de Cutileiro (Chicó, 1982). A proporção detecta desvios e alongamentos na fisionomia. As cinturas afunilam. Os glúteos aumentam como nos desenhos de Rubens (1577-1640). Os seios e a púbis tornam-se salientes (Figura 7). A pernas afastam-se (Almeida, 1988). E é nestas diferenças que se estabelece um modelo biométrico de relação entre cintura e quadril, onde o desenho acentua os pontos de inflexão e o corpo se deforma. Esta é a “imperfeição harmoniosa” do que parece estar inacabado, característica a que se refere o Nobel José Saramago (1922-2010) nas referências à obra de Cutileiro (Saramago, 1987). Mas esta deformação continua a ser uma resposta à formatação da anatomia da mulher com funções reprodutivas (Scruton, 2009) sob o desejo voyeurista do olhar masculino, que vem desde a Vénus de Willendorf (c. 20.000 a. C.). Nisso, Cutileiro encontra-se com a História. Nos nus da pintura a óleo europeia em geral, o principal protagonista nunca é pintado: é o espectador em frente ao quadro, e pressupõem-se ser um homem. Tudo se dirige a ele. Tudo deve apresentar-se como resultado da sua presença ali. Foi para ele que as figuras assumiram a sua