Quirino de Jesus e Outros Estudos

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QUIRINO DE JESUS E OUTROS ESTUDOS

Cecília Barreira


Edição: Edições ex-Libris® (chancela Sítio do Livro) Título: QUIRINO DE JESUS E OUTROS ESTUDOS Autora: Cecília Barreira Revisão: Mafalda Falcão Paginação: Paula Martins Capa: Patrícia Andrade 1.ª edição Lisboa, outubro de 2017 ISBN: 978-989-8867-10-0 Depósito legal: 431666/17 © Cecília Barreira PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

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Índice Quirino de Jesus e Salazar: Alguns apontamentos..

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Referências Bibliográficas..............................................

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Portugal e a I Grande-Guerra: A «Ideia Nacional», um compromisso político............................................. 29 Referências Bibliográficas..............................................

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Quirino de Jesus e Salazar: Alguns apontamentos Se há personagens que, pelo secretismo enigmático das suas ações, mais se adaptam aos bastidores da cena política do que aos palcos de primeiro plano, esgueirando-se sorrateiramente pelos subtis meandros das tramas partidárias e dos centros de decisão económico-governamentais, um deles é, porventura, Quirino de Jesus, ideólogo e autor da «ossatura jurídica» do Estado Novo. Seguir, ainda que superficialmente, esse percurso político, sondar-lhe o que de profundo lhe motiva as posições estratégicas e as formulações teóricas é o propósito que nos leva a fundamentar estas notas de circunstância. Quirino nasceu no Funchal em 1865, tendo concluído a formatura de Direito (Coimbra) no ano de

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1892. Em 1890 fora nomeado chefe de serviço da Caixa Geral de Depósitos, ao mesmo tempo que publicava artigos no órgão do episcopado Correio Nacional. Em 1894 funda o Portugal em África, no rescaldo da crise do Ultimatum, que, a médio prazo, estaria na razão indireta da queda da Monarquia constitucional e da ascensão do republicanismo. Na advertência preliminar ao primeiro número (janeiro de 1894), o corpo redatorial expressava assim os objetivos do periódico: «Se a nova publicação se apresenta com o nome de Portugal em África, é porque, embora a existência do nosso país não dependa essencialmente do nosso domínio colonial, a ressurreição de uma parte das suas grandezas e glórias só é possível pela criação de um novo empório lusitano, no Continente Negro». Mais adiante, sistematizava-se, em três pontos: «1.º A nossa revista será eminentemente prática (...). 2.º A revista Portugal em África, defenderá com entusiasmo e energia as missões religiosas, sobretudo formadas por membros das congregações regulares, na convicção profunda de que esse é o primeiro, mais eficaz e mais económico fator de civilização ultramarina. 3.º A nossa revista será franca e ortoxamente católica» (In Portugal em África, 1891, número I: 1-2 ).

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Quirino de Jesus manter-se-ia fiel, no decurso da sua vida, à ideia de um vasto império colonial cujas receitas de exploração económica do território pudessem reverter em benefício de alguns grupos monopolistas numa cadeia de lucros partilhada pelo Estado, em harmoniosa cumplicidade intervencionista. O catolicismo de base social que lhe é imanente (a este projeto de ocupação efetiva das colónias), inspirado nas encíclicas de Leão XIII, serviria de capa piedosa aos propósitos últimos e menos espiritualistas do colonialismo português e também como arma eficaz de detenção-deteção de presumíveis focos subversivos de cariz independentista. Não se julgue, contudo, que ao longo de quatro décadas (sensivelmente de 1890 a 1930) esse pensamento sofreu substanciais alterações. Pelo contrário. Uma coerência quase obsessiva irradia dos seus escritos sobre finanças, economia, colónias. Autor, pouco original, da teoria dos ciclos imperiais — o do Oriente, o do Brasil e, por último, o de Angola —, apostolando providencialmente em torno das traves mestras do pensamento conservadorista da passagem do século até aos primórdios do Estado Novo — Fé e Império — a ação de Quirino de Jesus orientou-se sobremanei-

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ra para os aspetos-chave da produção económica. Politicamente fez umas breves e apagadas aparições nos parlamentos monárquicos, quer nas fileiras do partido regenerador (1900) quer nos escaparates do partido nacionalista de Jacinto Cândido, incompatibilizando-se com qualquer deles. Após a proclamação da República, refugia-se na Madeira, onde se debruça, com alguma polémica, sobre a questão Hinton — regime de exploração da cana-de-açúcar de que o industrial Henrique Hinton detinha o monopólio. Advogado, durante o período da Monarquia, da casa Hinton, posteriormente seu acérrimo inimigo (tal como o denuncia Cunha Leal in A Obra Intangível do Dr. Oliveira Salazar, Lisboa, Edição do Autor, 1930; vide também Elucidário Madeirense, de Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, 4.ª edição, Funchal, Edição da Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1978, 11.° vol., pp. 117-118), Quirino publica, post 1910, vários folhetos alusivos aos problemas: A questão sacarina da Madeira, Lisboa, 1910; A nova questão Hinton, Lisboa, 1915; Os direitos de W. Hinton & Son, 1918. A partir da década de vinte ressurge nas lides políticas com artigos de fundo em alguns periódicos

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afetos aos meios mais conservadores (O Economista Português, de que era diretor; A Época, com quem entraria em confronto na pessoa do diretor, Fernando de Sousa; A União, órgão oficial do Centro Católico Português). Aposta num estilo literário empolado, apocalítico, onde ressalta, a par de números de balanças de pagamentos, uma leitura sombria do panorama das Finanças nacionais. Figura de segundo plano do Centro Católico Português, onde contracenaria com Oliveira Salazar enquanto ideólogo do mesmo Centro, escoa-se sub-repticiamente para o campo da esquerda democrática não filiada, onde concede um híbrido apoio a governos liderados, por exemplo, por um Álvaro de Castro e por um Domingos dos Santos. A sua passagem pela Seara Nova, como perito em matéria colonial, é um ponto de percurso que necessita de ser concatenado por ex.: com a publicação de A Crise Portuguesa, escrito em colaboração com Ezequiel de Campos. Desta obra consta um interessante e elucidativo «Programa de Reorganização Nacional» de que transcrevemos os dois primeiros pontos: «Organização de um ministério nacional de salvação pública.

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Uso de faculdades excecionais pelo poder executivo, durante o período necessário para se lançarem as bases da reorganização nacional» (Campos; Jesus, 1923: 209). Era a busca de uma solução semiautoritária que pusesse termo à diversificação ideológico-partidária com assento no parlamento republicano. Na secção de Finanças lá se encontravam as teorias de Quirino seguidas, incondicionalmente, por um então jovem professor da Faculdade de Direito de Coimbra, Oliveira Salazar: «Política de reforma financeira, de equilíbrio orçamental, de economia nos gastos gerais, locais e particulares, de saneamento monetário, de reorganização bancária, de regeneração cambial e de baixa progressiva de preços» (Campos; Jesus, 1923: 210).

A teoria financeira de Quirino de Jesus apostava, a uma primeira análise contraditoriamente, na reabsorção através de impostos diretos ou indiretos, de receitas desenvolvidas pela iniciativa privada: uma centralização económico-administrativa permitia, na sua opinião, um intervencionismo lúcido e eficaz do Governo central em todo o País, da metrópole nas colónias.

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Os «homens bem preparados» mantendo «apoios extraordinários» seriam, antes de mais, bons tecnocratas — das finanças, da economia, da agricultura, da indústria — cuja mensagem política e timbre doutrinário fossem suficientemente híbridos para se esboroarem numa aceitação inocente e universal de um conjunto de princípios conducentes a uma «reconstrução nacional». Na realidade, a manutenção de uma política de equilíbrio orçamentário, o corte nas despesas estatais, o reforço do aparelho governativo eram medidas propugnadas à esquerda e à direita, indiferentes aos partidos e às opiniões matizadas, colhendo sobretudo aplausos num cada vez maior número de observadores desiludidos da prática de governação dos vários dirigentes republicanos. Gerara-se rapidamente um clima de concordância emocional a todas as vozes agressivas que alardeassem a agonia do sistema político. Deste embaraço de posições ambíguas, frontalizadas as reações em dois níveis básicos, pró e contra, aproveitavam-se alguns espíritos com vocação para «salvadores» nacionais: Quirino, imperturbável no amontoado de números que lançava gritantemente para o papel em jeito da ameaça e de fatalidade; Oli-

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veira Salazar, que noutras esferas, não tão longínquas de Quirino como a uma primeira visão poderá julgar-se, ia fortalecendo a fama de homem de finanças exímio. Logo nos primeiros dias de 1926, a Seara dedica um número especial ao «Problema Colonial». Quirino, experimentado colunista de temáticas ultramarinas, surge com um artigo polémico — «Portugal e as Colónias, as Ambições Estranhas» — onde desfralda com uma certa habilidade discursiva a verve numérica e a tendência para a interpretação messiânica. A Seara apresenta o articulista aos leitores. Oiçamo-la: «A Seara Nova partilha com o senhor doutor Quirino de Jesus a opinião de que o nosso destino colonial representa um imperativo moral e político e que a mesma grandeza dos sacrifícios despendidos para a realizar nos impõe o dever de o levar até ao fim. Poucas pessoas, como o nosso ilustre colaborador, pela sua larga cultura em assuntos financeiros e económicos e pelo seu conhecimento das finanças coloniais, que em Angola estudou diretamente (*), nos poderiam dar tão palpitante ideia dos dispêndios que nos tem custado a nossa missão colonizante, a traçar

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de seguida um largo plano financeiro de salvação do nosso domínio ultramarino» (Seara Nova, n.º 68-69: 154.).

Com efeito, em 1926, Quirino traça um vasto plano financeiro compreendendo uma «nova estrutura de crédito, com adequada reforma da moeda, justa liquidação das dívidas privadas (...), desafogo das empresas nacionais» (Jesus, 1923), não simulando, no entanto, que, sob a tramóia teórica e a polidez dos objetivos, se articulavam ódios velhos, desentendimentos pessoais, ambições incontidas. O ataque à direção do Banco Nacional Ultramarino, empossada a 23 de novembro de 1925 pelo governo de Domingos Pereira, é propositadamente construído para atingir Francisco da Cunha Leal e Velhinho Correia do Partido Nacionalista. Já no segundo número da revista Homens Livres (Jesus, 1923), com data de 12 de dezembro de 1923, Quirino pusera em xeque Cunha Leal no chamado «caso das 400.000 libras esterlinas», empréstimo pedido pelos bancos Português do Atlântico, Espírito Santo, Colonial Português ao Tesouro, cujo processo irregular de reembolso suscitou comentários e polémica. O dirigente nacionalista não esperaria pela demora. A 29 de abril de 1925, após os acontecimen— 15 —


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tos do 18 de abril, Cunha Leal incriminava publicamente Quirino de ter feito um convite a Raul Esteves, um dos comandantes da revolta, para participar num movimento militar em favor do governo da Esquerda Democrática de José Domingos dos Santos. Voltemos à colaboração de Quirino na Seara Nova. A 15 de abril de 1926 publica um artigo — «A derrocada e a reconstrução só os cegos não veem!» —, onde com as habituais tintas negras traça o panorama das realidades nacionais: «Compreendam finalmente, diante das realidades implacáveis, que não podemos ter por mais tempo nem a governação geral, nem a gestão financeira, nem a economia política, social e colonial que viemos tendo até hoje! Reconheçam isto perante o enorme deficit que persiste sempre, a nova dívida que se amontoa em cada ano e os desastres particulares da Metrópole e do Ultramar!» (Jesus, 1926: 204).

Apostado numa doutrina onde a demagogia e o sentimentalismo se aliavam em cambiantes convictamente «apolíticos», Quirino dava largas à sua imaginação em tiradas de duvidosa qualidade literária:

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«Tenhamos olhos abertos para ver que estamos nesses despenhadeiros! (...) Elevemos muito para cima desta cova o nosso pensamento, o nosso coração, a nossa vontade de homens e de portugueses. A isso é chamado agora todo o escol da ciência, das artes, das letras, do exército, da marinha, do funcionamento civil, do comércio e da indústria, da lavoura e do operariado» (Jesus, 1926: 205).

Mas é sobretudo o constante apelo a uma revolução organizada, agindo com determinação no que respeita a alguns setores da atividade económica que, silenciosamente, subjaz ao discurso do colaborador da Seara. Num último lanço de oratória, Quirino deixa o repto que o 28 de maio retomaria: «E uma poderosa revolução governativa, e logo nacional, em tempos de veloz desorganização e abatimento? Sem dúvida a temos de querer, até porque fora daí seria a morte pior! ( ... )” (Jesus, 1926: 205).

Fora o próprio António Sérgio que na Breve Interpretação da História de Portugal se referira a Quirino de Jesus como o «técnico orientador» (Sérgio,1976: 145) da ditadura do Estado Novo. Como adquirira esta notoriedade o antigo advogado da casa Hinton, — 17 —


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o militante católico, o sidonista, o seareiro híbrido, o mau poeta nacionalista? Em 1932, dera à estampa um livro a que apelidara Nacionalismo Português, onde se assinala coautor do Projeto de Constituição dos Estados da União Nacional e do Ato Colonial, isto é, basicamente, de toda a estrutura jurídica do Estado Novo que consignaria, pela expressão legal, a nova correlação de forças no quadro da ditadura. Em 1930, entrara para a direção do Banco Nacional Ultramarino pela mão do «discípulo» Salazar. E é neste entrecruzamento de atividades que ocorre a segunda fase de um ódio velho e ressentidamente amadurecido entre Quirino e o controverso líder do Partido Nacionalista da República: Cunha Leal. Em nada menos que três das suas obras este último se lhe refere com abundância, deixando antever uma rivalidade sempre reavivada, uma animosidade com causas que se perdiam nas encruzilhadas político-financeiras de início dos anos vinte. Alguns meses antes do 28 de maio, Quirino publicara na Seara Nova uma série de artigos criticando a direção do BNU, ocupada à data por Cunha Leal e Velhinho Correia, de entre outros elementos. No volume 111 das Memórias de Cunha Leal faz-se o

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formulário do diferendo que opunha ambos os contendores; em causa, ainda uma política que, na conceção salazarista, passaria por uma dirigismo económico que pudesse favorecer alguns grandes interesses creditados na Metrópole. Cunha Leal pinta Salazar com cores brandas, suaves — conquanto perturbadas e enegrecidas pelo maquiavélico Quirino... —, retirando-lhe simultaneamente espírito de decisão e de iniciativa. O futuro ditador surge sempre um dócil e obediente executor dos conselhos do mestre. Exemplifiquemos com algumas passagens mais significativas: «Quando por degenerescência da nobre virtude do orgulho, resolveu investir contra mim, o Dr. Oliveira Salazar, como disse, asseverou aos vice-governadores do Banco de Angola que não tinha a menor dúvida de que, com a sua atitude, se tomaria passivo, ele próprio e consigo a Situação, do pior inimigo que se lhes poderia suscitar. (...) Foi então que a Quirino de Jesus se possibilitou varrer do espírito do ministro das Finanças os últimos resquícios de perplexidade, empurrando-o, definitivamente, para a tese da rápida improvisação

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