“Reflectir a Barca é um livro ousado, mas lúcido, que esboça uma sociologia e uma psicanálise do concelho de Ponte da Barca. Trata-se de uma obra original, com um estilo peculiar de análise e apresentação de uma comunidade, que conjuga ciência e sentimento, rigor e musicalidade. (…) O diagnóstico traçado por Pedro Costa é inequívoco: Ponte da Barca vive sob o signo da passagem, congregando atributos que se cristalizam numa espécie de síndroma que, para além da segurança, da estabilidade e da previsibilidade, concita, ainda, a pequenez, a lentidão e a resignação. Uma atmosfera estremecida pela intriga, pela inveja, pela artimanha e pela superstição, focos de ressonância interna com escasso eco externo. (…) Mas este diagnóstico não se aplica apenas a Ponte da Barca. Apesar das diferenças recenseadas no livro, assenta também a Arcos de Valdevez, a Ponte de Lima, ao Alto Minho e à generalidade dos concelhos do interior. Na linguagem de Pedro Costa, diria que lhes falta oxigénio: oportunidades de investimento lucrativo com perspectivas de futuro; juventude e população activa; redes de relações conectadas aos pólos de poder relevantes; modalidades diversificadas e atractivas de capacitação pessoal e profissional. Sem oxigénio, o ar torna-se rarefeito. Os pulmões não enchem, evita-se a agitação, vive-se pausadamente. (…) Parte do livro afina-se, precisamente, por este estilo snob, próprio de um Eça de Queirós. Mas esta inspiração coexiste com outra, próxima de um Miguel Torga. Pedro Costa convidanos a Reflectir a Barca com a prosa de um Eça e a senti-la com a poesia de um Torga. (…) Este livro abala-nos, com a sua frontalidade e inteligência, mas também nos embala com o brio e a excelência da escrita. Há livros assim, fadados a crescer dentro de nós.” Do prefácio de Albertino Gonçalves
Pedro Rodrigues Costa
do imaginário social
reflectir a
Pedro Daniel Rodrigues da Costa é natural do Alto-Minho. Licenciou-se em Sociologia e é Mestre em Sociologia das Organizações e Trabalho. Actualmente é investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho, através da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Investiga em áreas ligadas à Sociologia da Informação e da Comunicação, à Cibercultura e à Sociologia da Juventude. É autor de “Predisposições e Condicionantes para a formação nos jovens do Alto-Minho”, da tese “Esboços de uma Percepção Cyborg. Jovens, Individuação e Tecnologia”, integrou o projecto “Imagens da Infância - Discursos Mediáticos sobre as Crianças em Risco”, é co-autor do livro “Uma Eco(Socio)logia da Individuação” e persegue presentemente a tese de doutoramento “Entre o Ver e o Olhar: Ecos e Ressonâncias Ecrãnicas”. É membro do Observalícia (Observatório Social de Tecnologia, Ambiente e Alimentação), escreve para a revista científica Medio Paraíba (brasil) e é formador em diversas áreas (Mundo Actual, Desenvolvimento Pessoal e Social, Organizações e Trabalho, Juventude e Grupo de Pares, Inteligência Social, Organizações Comunitárias, entre outras).
Pedro Rodrigues Costa
2
Reflectir a Barca Do Imaginรกrio Social
Pedro Rodrigues Costa
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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Pedro Daniel Rodrigues da Costa TÍTULO: Reflectir a Barca - Do imaginário Social AUTOR: Pedro Daniel Rodrigues da Costa REVISÃO EDITORIAL / FORMATAÇÃO GRÁFICA: Pedro Daniel Rodrigues da Costa IMAGEM DA CAPA: Fotografia sobre a vila de Ponte da Barca. Autoria de: Adega Cooperativa de Ponte da Barca - http://loja.vinhoverde.pt. DESIGN CAPA: Nuno Ferreira 1.ª EDIÇÃO LISBOA, 2011 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Agapex
ISBN: 978-989-97263-0-7 DEPÓSITO LEGAL: 324755/11
© Pedro Daniel Rodrigues da Costa PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, Porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt
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Índice Notas do Autor
9
Prefácio
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Introdução
19 Parte I
Do imaginário social do espaço e do tempo 1. Da passagem
25
2. Da pequenez
49
3. Da velocidade da lentidão
71
Parte II Do imaginário social do Poder 1. Do poder político
93
2. Entre o imaginário do religioso e do mágico
115
3. Do poder do povo
131 Parte III
Do imaginário social da Ruralidade 1. Dos media locais
143
2. Do rural e do urbano
153
3. Da simbologia do concelho
167
Reflectir a Barca para 2020
173
Considerações finais
183
Bibliografia
189
7
8
Notas de autor
Pretendo, com este pequeno livro, erguer uma discussão séria sobre o desenvolvimento cultural e social em Ponte da Barca e em todo o Minho. Para isso, é fundamental que este livro chegue à maioria dos barquenses em particular e minhotos em geral, e seja lido e compreendido não como uma realidade fatalista mas sim como um sinal de optimismo e esperança, permitindo a auto-reflexão para que se melhorem alguns aspectos sociais e culturais locais. Todos os livros têm o seu propósito. O propósito deste é o de tentar mostrar o lado mais subtil da vida na sociedade barquense, o imaginário que povoa estas terras do Minho e que não deixa ninguém incólume. Portanto, o assunto deste livro diz respeito a todos os minhotos. Os dados analisados, sejam estatísticos ou exemplos do quotidiano, pretendem mostrar a dinâmica social daqui, uma dinâmica que caracteriza o barquense em particular, e o minhoto em geral, e de certa forma o diferencia dos indivíduos dos outros locais. Procurei, por isso, traços da identidade barquense,
tentando
manter
sempre
uma
certa
«distância de observação» (Levi-Strauss) para não enviesar a análise.
9
Uma das grandes razões que me levou a fazer este livro prende-se com a necessidade de inscrever o real, escavar o que normalmente está enterrado e apenas
emerge
em
conversas
subterrâneas.
É
fundamental, em Ponte da Barca, encerrar um capítulo, uma história que parece mostrar mais coisas más do que coisas boas. Pretendo por isso gerar um conjunto de
ressonâncias
internas
nos
barquenses,
possibilitando a emergência de um novo «estado nascente», uma historicização que permita uma nova perspectiva para encarar as novas realidades da vida contemporânea. Pretendo assim dar o mote para a entrada num espaço democrático que se pretende renovado, mais plural, mais aberto, mais activo, menos passivo. Pretendo expor o real para mostrar que não vale a pena ter medo de o enfrentar à superfície. Afinal de contas, só quando percebemos claramente o real é que se torna possível aceitar os erros, as críticas e a necessidade de mudança. Este livro deriva de um conjunto de estudos feitos sobre Ponte da Barca, quer elaborados em meu nome ou elaborados por outros investigadores sociais. Não foi encomendado por nenhuma força ou grupo de poder. Partiu da minha vontade individual oferecer este livro aos barquenses, para que este chegue ao maior número possível de leitores. No máximo, poderia dizer-
10
se que este livro resulta do interesse da maioria dos locais, mas uma maioria que raramente tem voz, que raramente é ouvida, mas que aqui reconhece o seu eco. Quero também
acrescentar algo sobre a
dificuldade de um trabalho desta natureza. Ser, ao mesmo tempo, investigador e participante do objecto de estudo implica constrangimentos complexos. Sou membro e ao mesmo tempo devo afastar-me para não ser influenciado por nenhum grupo de poder. É uma tarefa complexa, e por isso quero acrescentar que tentei ser o mais objectivo e concreto possível, sempre sem o objectivo de colocar em causa a integridade individual
dos
agentes
envolvidos.
Evitei
a
individualização na análise, abordando o real sempre sob uma perspectiva social e nunca individual. Leiam, reflictam e tentem observar novamente a partir desta análise. A evolução humana faz-se disto mesmo: encaixar o real, assimilar as virtudes e as críticas através da espiral da humildade e da honra, deixar ressoar internamente o que capturamos sobre os assuntos, e libertar o nosso verdadeiro «eu» rumo à confrontação com o futuro. Assim é possível aumentar a harmonia social. Pedro Costa, Novembro de 2010
11
12
Prefácio
A PONTE E A BARCA “Não mostramos nossa grandeza ficando numa extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo e enchendo todo o intervalo.” (Pascal, Pensamentos)
Reflectir a Barca é um livro ousado, mas lúcido, que esboça uma sociologia e uma psicanálise do concelho de Ponte da Barca. Trata-se de uma obra original,
com
um
estilo
peculiar
de
análise
e
apresentação de uma comunidade, que conjuga ciência e sentimento, rigor e musicalidade. Como sustentava Pascal, “conhecemos a verdade, não somente pela razão, mas ainda pelo coração”. Paira sobre o livro um espírito de missão, que visa desvelar e dizer a Barca para a despertar e mobilizar. Com dedicação e coragem. Numa escrita dada a imagens, o confronto, caro a Moisés de Lemos Martins, entre as noções de passagem e de travessia manifesta-se nevrálgico. A passagem presta-se a um andar que segue o caminho, balizado, previsível, seguro, com destino marcado; a travessia implica um andar que faz o caminho, errante, incerto, assumindo riscos, incluindo o de não chegar ao
13
destino. O diagnóstico traçado por Pedro Costa é inequívoco: Ponte da Barca vive sob o signo da passagem, congregando atributos que se cristalizam numa espécie de síndroma que, para além da segurança, da estabilidade e da previsibilidade, concita, ainda, a pequenez, a lentidão e a resignação. Uma atmosfera estremecida pela intriga, pela inveja, pela artimanha e pela superstição, focos de ressonância interna com escasso eco externo. A ponte, ao substituir a barca, proporciona a segurança e a previsibilidade da passagem em detrimento do risco, da abertura e da vertigem da travessia. Enredada nos pequenos deuses e
vícios
caseiros,
Ponte
da
Barca
como
que
entorpeceu: a vila, as freguesias, o povo e as elites. Escassos são os momentos em que o concelho se mobiliza, acelera e se agiganta. Concentram-se na efervescência do verão com um pico durante a Romaria de São Bartolomeu. E pouco mais. Mas este diagnóstico não se aplica apenas a Ponte da Barca. Apesar das diferenças recenseadas no livro, assenta também a Arcos de Valdevez, a Ponte de Lima, ao Alto Minho e à generalidade dos concelhos do interior. Na linguagem de Pedro Costa, diria que lhes falta oxigénio: oportunidades de investimento lucrativo com perspectivas de futuro; juventude e população activa; redes de relações conectadas aos pólos de
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poder
relevantes;
modalidades
diversificadas
e
atractivas de capacitação pessoal e profissional. Sem oxigénio, o ar torna-se rarefeito. Os pulmões não enchem, evita-se a agitação, vive-se pausadamente. Importa, mesmo assim, ver grande, inovar e acelerar, afiança Pedro Costa. Mas com cautela. É certo que o ditado “não dar um passo maior do que a Passada” tem funcionado mais como travão do que como
auxiliar
de
iniciativas,
mas
convém
não
menosprezar a sabedoria popular. Presume-se urgente enxergar para além da própria sombra, mas tal projecção deve caber no regaço das nossas forças. Cumpre-nos querer, poder e saber abraçá-la. A grandeza por si só não basta. Pode até revelar-se perversa, tornar-nos mais pequenos e com menos alento para respirar. Ocorre-me a este propósito uma parábola. Era uma vez um pastor que queria um cão grande, maior do que um Castro Laboreiro. Conseguiu um elefante. Sem cão, ficou com uma ovelha trombuda, que, só ela, pastava tanto quanto o resto do rebanho. Há muitos pastores com elefantes no Alto Minho e no país inteiro. Importa pensar grande! Mas mesmo quando se pensa grande não deixa de ser preciso pensar. Pedro Costa impacienta-se com a pequenez, a lentidão e o conservadorismo reinantes em Ponte da
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Barca. O mesmo me ocorre em relação a Melgaço. São terras em que o movimento mais marcante parece ser a rotação das ventoinhas eólicas. Mas os fenómenos comportam várias faces. Ponte da Barca e Melgaço são, ambos, concelhos resistentes. Regiões inteiras de Espanha e de França, outrora habitadas, estão agora desertas. Em Portugal, há povoações cuja vida se reduz às residências secundárias propriedade de gente da cidade. Os concelhos do Alto Minho resistiram ao fim
da
exploração
do
volfrâmio,
à quebra do
contrabando, à vaga da emigração, à crise da agricultura e à proximidade das auto-estradas. Quem resiste assim não é pequeno nem mole. Para isso, tem contribuído a atracção exercida sobre os filhos da terra. Poucas regiões alcançaram taxas de regresso de emigrantes tão elevadas como o Alto Minho. Segundo um inquérito realizado em 2003, 72,9% dos homens residentes no concelho de Melgaço com mais de sessenta anos foram emigrantes. Este valor sobe para 90,5% no caso das freguesias do Alto Mouro. O regresso dos emigrantes representou um balão de oxigénio apreciável. Está, porém, a esvaziar-se. Estes
reparos
permitem-nos
concluir
o
seguinte: uma comunidade aparentemente parada pode estar embarcada numa travessia. Creio ser o caso de
16
muitos concelhos, e Ponte de Barca não foge muito a esta regra. Ver grande, acelerar, repercutir... Ressalvese, no entanto, que mais importante do que o tamanho da visão é o tamanho do olhar. Acrescente-se que uma iniciativa pequena pode ter efeitos multiplicadores e desenvolver-se sem se tornar elefante. Ocorre-me o caso do grupo teatral Comédias do Minho, uma semente
em
território
inter-concelhio
(os
cinco
municípios do Vale do Minho) que cresceu em actividade, contactos e notoriedade. Importa estar atento a este género de iniciativas: pequenas, mas com potencialidades de expansão, efeitos multiplicadores e capacidade de articulação com outras actividades. Em termos de velocidade, é certo que hoje praticamente tudo acelera. De qualquer modo, nem pasmosamente
devagar,
nem
alucinantemente
depressa. Pascal observava o seguinte: “Quando se lê depressa demais ou devagar demais, não se entende nada”. Preserve-se, pois, o entendimento, sabendo que o ritmo raramente se oferece uniforme: ora acelera, ora abranda. Ao conservadorismo rural, Pedro Costa contrapõe a figura do snob, típica, segundo Georg Simmel,
da
vida
urbana,
da
aceleração,
da
heterogeneidade e da profusão da informação. Parte do
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livro afina-se, precisamente, por este estilo snob, próprio de um Eça de Queirós. Mas esta inspiração coexiste com outra, próxima de um Miguel Torga. Pedro Costa convida-nos a Reflectir a Barca com a prosa de um Eça e a senti-la com a poesia de um Torga. Nas duas artes, sempre com um arreigamento trágico ao berço, o tal “ninho de pedras” a que se está sempre a regressar sem nunca se ter partido. Este livro abalanos, com a sua frontalidade e inteligência, mas também nos embala com o brio e a excelência da escrita. Há livros assim, fadados a crescer dentro de nós. Albertino Gonçalves
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Introdução
Portugal foi, até ao final dos anos sessenta, o mais antigo e durável império colonial ultramarino, a mais longa ditadura pessoal moderna, o país onde eram mais elevadas as taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil. Era também o país com a mais jovem população da Europa, e com a mais baixa esperança
de
vida
à
nascença.
Registavam-se
negativamente dados como: o menor número de médicos e enfermeiros por habitante; o mais baixo rendimento por habitante; a menor produtividade por trabalhador; a menor taxa de industrialização; o menor número de alunos no ensino básico e de estudantes superiores; o menor número de pessoas abrangidas pelos sistemas de segurança social. Há cerca de 50 anos, Portugal era um país de ‘terceiro mundo’. Porém, em apenas 50 anos passamos do terceiro mundo para o ‘primeiro mundo’. Hoje, em quase todos os indicadores atrás referidos, estamos entre os dez primeiros da Europa. A capacidade de desenvolvimento
foi
notável
numa
tão
jovem
democracia, graças sobretudo à abertura ao exterior (emigração,
comércio
livre,
turismo,
integração
europeia). Essa abertura esteve na base das grandes transformações sociais e económicas do país.
19
No entanto, dada a rapidez da mudança e a pobreza de recursos, Portugal ainda vive hoje com muitos desequilíbrios. Ainda existem correntes que nos prendem às heranças do passado salazarista. Ainda subsiste a baixa produtividade, a falta de capital e de organização empresarial e a escassez nos recursos financeiros públicos. A distância entre aquilo que hoje os portugueses aspiram e as capacidades nacionais de satisfazer essas aspirações ainda é muita (Barreto e Pontes, 2007: 10-11). Tal como em Portugal, também Ponte da Barca sofreu todas estas mudanças bruscas. As taxas de analfabetismo dos barquenses passaram de 60% para 16,7% (censos 2001). A taxa quinquenal de mortalidade infantil baixou para 0,5 %; a esperança de vida à nascença é hoje de 79 anos para o homem e de 83 para a mulher; o número de médicos e de enfermeiros por habitante subiu consideravelmente; os rendimentos familiares subiram em flecha com a entrada da mulher no mercado de trabalho; o número de barquenses estudantes no ensino quadruplicou; todos podem estar no sistema de segurança social. Há, no entanto, muitas coisas para melhorar em Ponte da Barca. A taxa de industrialização é muito baixa, o emprego é reduzido, mas é sobretudo nas atitudes sociais que as coisas precisam de ser
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alteradas. Reina ainda a cultura do chico-espertismo, a cultura da intriga anónima, a atmosfera da passividade, um ritmo lento na evolução. Vive-se ainda dentro de um regime bastante normalizado pelas regras e normas tradicionais de poder e de legitimidade, normalização esta que inibe a criatividade, a inovação e o despertar para uma nova realidade contemporânea. Vive-se sobretudo à procura de uma identidade barquense perdida, que se perdeu quando Ponte da Barca não acompanhou o ritmo compassado pelos desígnios da globalização. Urge, por isso, a necessidade de reflectir sobre a cultura e a sociedade barquense, e como é que estas podem ser encaradas para o futuro. Este livro pretende mostrar, de forma não exaustiva,
o
imaginário
social
dos
barquenses,
imaginário que deriva das culturas locais e nacionais. Na primeira parte do livro, Do Imaginário Social do Espaço e do Tempo, são traçadas três atmosferas que constituem o cenário «imaginal» dos barquenses: atmosfera da passagem, atmosfera da pequenez e atmosfera da lentidão. Na segunda parte, Do Imaginário Social do Poder, faz-se uma análise às formas existentes de poder em Ponte da Barca, desde o poder político passando
pelo poder das práticas mágico-
religiosas e finalizando com o poder do povo. Na última parte, Do Imaginário Social da Ruralidade, assinala-se
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a distância entre rural
e urbano barquense, a
importância
locais
dos
media
na
formação
de
subjectividades colectivas sobre o concelho e finalizase com uma reflexão sobre os valores que sustentam a história de Ponte da Barca.
22
Parte I
Do Imaginรกrio Social do Espaรงo e do Tempo
23
24
1.
Da passagem
“O que a coisa social, como a coisa vital, deseja acima de tudo é propagarse e não organizar-se.” Gabriel Tarde
Suponhamos que, em Ponte da Barca, esta ponte representa uma boa parte da estrutura do imaginário das suas gentes. Suponhamos que desta edificação
antiga,
e
num
complexo
jogo
de
identificações entre história e identidade social, uma parte do imaginário barquense extrai deste ícone partes da sua estrutura básica de identidade. Dentro deste quadro de análise, quais os meandros imaginários dos
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barquenses?
Quais
as
estruturas
básicas
do
inconsciente colectivo das gentes da Barca? Todas as pontes remetem para o universo da travessia. A travessia nunca é uma experiência controlada, dominada. Nela se inscreve o mistério, a magia e a poesia (Martins, 2010: 10). Ao contrário daquilo que muitos pensam, uma travessia não é o mesmo que uma passagem. É que as passagens têm destinos
programados,
controlados,
seleccionados
previamente. Já as travessias assentam num certo risco, numa ausência clara de rotina, no risco da imprevisibilidade. É óbvio que “podemos fazer a passagem de um rio de uma para outra margem. Essa será todavia uma experiência sem sobressaltos, tranquila [como parece aparentar a fotografia], por não serem de esperar grandes obstáculos a transpor. Nas passagens existe, com efeito, a habitualidade de um caminho conhecido” (Ibid.: 10). Porém, embora a passagem sobre a ponte seja normalmente tranquila, sem sobressaltos, o processo de passagem sobre qualquer ponte dá sempre a possibilidade de entrada na atmosfera da travessia, pois esta pode conter um certo risco, ser uma tal experiência não controlada e não dominada. É para este imaginário que o significado das pontes nos poderá remeter.
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Ponte da Barca é um lugar histórico que assinala um local de antigas travessias. O barqueiro do passado transportava pessoas e coisas para uma travessia sem destino pré-concebido, sem tempo de retorno ou sem espaço definido. Era para além que o barqueiro transportava, para além onde fica o destino das travessias, esse lugar e tempo sem lugar e sem tempo concreto, sem estrutura ou domínio definido. Para onde nos levará, afinal, a travessia? O que está por detrás daquele universo que a travessia é capaz de transpor? Quais são os mundos que iremos encontrar depois de passarmos a ponte? Entre a atmosfera da travessia e a atmosfera da passagem existem diferenças claras. Aqueles que são invadidos pela sombra que a travessia comporta, dada a ausência de certezas, vivem sob o medo; aqueles que
são
preenchidos
pela
luz
que
geralmente
caracteriza a passagem, pela calma e previsibilidade do destino, vivem aparentemente com maior segurança. Porém, em todas as travessias existem passagens para completar, e em todas as passagens existem travessias para desbravar. Aqueles que interiorizaram que as passagens contém também travessias estarão prontos para a viagem; já aqueles que apenas vivem sob a influência negativa que emana da atmosfera sombria e imprevisível da travessia não se encontram próximos
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do risco, das possibilidades conferidas pelo universo do imprevisível. O medo de existir dos portugueses, que José Gil (2005) analisou, remete, de certa forma, para esta lógica. O medo de existir está naqueles que vivem assombrados
pelas
travessias
sem
destino
pré-
definido, com ou sem passagens incluídas. Ter medo de existir é ter medo da travessia, aquela que nos levará para o desconhecido. É nesta proposição que reside essencialmente a diferença entre o conservador e o radical: o conservador detesta travessias; o radical detesta passagens. Temos portanto duas essências que tendem a constituir dois tipos diferentes de imaginários: o imaginário da travessia; e o imaginário das passagens. Contudo, embora este pensamento binário possa constituir parte do método de análise dos imaginários de Ponte da Barca, importa relançar um tipo intermédio que reúne partes destes dois extremos. Aliás, nunca é apenas um tipo intermédio. São vários tipos intermédios que variam consoante as intensidades que sofrem dos pólos extremos. O conservador e o radical constituem esses pólos extremos. É que na realidade, ninguém é completamente conservador ou completamente radical. O tipo intermédio é aquele que está entre um e outro pólo, e que difere essencialmente na intensidade da
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ligação a um ou a outro. Por outras palavras, poderíamos dizer que há sempre, em todos os lugares, o excessivamente conservador, o muito conservador, o conservador ligeiro e o excessivamente radical, o muito radical e o radical ligeiro. Todos estes derivam do tipo intermédio, pois ambos sentem também a influência do pólo contrário. Ponte da Barca era, no passado medieval, um lugar atravessado pelo imaginário da travessia. Era um lugar onde ocorriam sobretudo trocas comerciais, trocas essas que acalentavam um certo risco. Nas margens do Rio Lima, a vinte e poucos quilómetros de uma das colectividades mais antigas do país (a vila de Ponte de Lima), instalou-se um ponto comercial, lugar de ajuntamentos, num local que oferecia maior facilidade de travessia sobre o rio. Daí nasceu a ponte. É certo que todas as pontes fizeram das travessias sobre os rios passagens. Isto é, facilitaram o processo de atravessamento reduzindo os riscos e a imprevisibilidade. Ponte da barca passou, com esta ponte, a ser mais um local de passagens do que de travessias. Mesmo que as transações comerciais acalentassem sempre riscos e indefinições (até porque todos os ajuntamentos acarretam sempre riscos de conflito), com a ponte diminuiu-se o risco e facilitou-se a travessia. Essa transição simbólica, da travessia à
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