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António Enes Marques
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COM OS PÉS À BEIRA DO PRECIPÍCIO
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ROMANCE
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FICHA TÉCNICA TÍTULO:
Com os Pés à Beira do Precipício António Enes Marques EDIÇÃO: Edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) REVISÃO:
Gabriela Varino ARRANJO DE CAPA: Paulo Marques PAGINAÇÃO: Alda Teixeira
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1.ª Edição Lisboa, janeiro 2020
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AUTOR:
ISBN:
978-989-8986-14-6 464052/19
DEPÓSITO LEGAL:
© ANTÓNIO ENES MARQUES
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PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
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NOTA DO AUTOR
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Com os Pés à beira do Precipício é um romance baseado num acontecimento real ocorrido no distante ano de 1967. A narração foca-se sobretudo na vila de Queluz, embora os factos reais se tenham estendido à região de Lisboa e aos concelhos contíguos ao Vale do Tejo. As personagens principais referidas no livro são ficcionadas pelo autor. A leiteira e respetiva família, a Cecília, aluna da secção do Liceu Passos Manuel de Queluz, o Serafim e a mulher, as pessoas que habitavam o 221 da Avenida José Elias Garcia, o bombeiro de seu nome Serra são personagens reais, à época mencionadas nos jornais.
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Naquela noite tecemos a teia dos afetos, feita de risos, de gestos, de palavras, de silêncios. O amanhecer foi doloroso.
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O efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco.
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ra a hora de maior aperto. Gracinda abrira o cabeleireiro há apenas seis meses. E ter nesse dia, quase à mesma hora, três clientes para atender era uma situação anómala. Tudo por causa dos atrasos, os malditos atrasos das clientes impontuais, que quando aconteciam estorvavam-lhe o serviço. E já não era a primeira vez que tal sucedia. E havia sempre a hipótese de aparecer mais uma cliente sem hora marcada. Havia mesmo dias, raros, em que por indisponibilidade de tempo não conseguia satisfazer todos os pedidos das senhoras interessadas nos seus préstimos. Facto que a levou a pensar em arranjar alguém que trabalhasse, mesmo que fosse a tempo parcial, só para a ajudar nas horas de maior clientela. Só ela a atender… tornar-se-ia, realmente, deveras insuficiente. Ágil, competente, Gracinda esticava com a escova os cabelos da senhora Amélia e enrolava-os nos rolos. Sentada, com a cabeça metida no secador, a senhora Mariana, palavrosa e maldizente, não se cansava de debitar comentários acintosos sobre a nora. Corrosiva, criticava-a por ser 9
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uma desgovernada, por não saber cozinhar, por não ligar à casa e só querer ir a festas e passear. E fazia-o sem pudor, para quem a quisesse ouvir, dando exemplos, esmiuçando pormenores, para justificar a sua azia. No fim de tanto desancar na nora, acabava a desculpar o filho. «Coitado do meu menino», como carinhosamente o tratava, embora já contasse 32, «nas garras daquela mulher mesquinha.» E acusava-a de ter dado a volta à cabeça do filho. De ele estar sempre do lado da mulher, contra ela, que o havia parido e criado, quando se erguia ríspida desavença entre as duas… Um desfiar de lamentações perante a contida impaciência das ouvintes. Habituada àquela lamúria, Gracinda, de costas voltadas para a senhora Mariana, limitava-se a encolher ombros, a proferir monossílabos do tipo «sim, pois», sem omitir opinião. Assumia uma atitude neutral para não desagradar à sua mais assídua cliente, que fora justamente quem lhe inaugurara o salão. Sujeita difícil de agradar, exigente, mas com a qual tivera a sorte de ser bem-sucedida, quando lhe fez a primeira mise. Todavia, aquela conversa, por ser repetitiva, já lhe cheirava a esturro, a ponto de se começar a sentir incomodada. Não negava gostar de ficar ao corrente de algumas situações por as achar bizarras. No seu salão falava-se e ouvia-se muita coisa. Havia quem desabafasse sobre a vida pessoal, quem se queixasse da vizinhança ou mesmo da vida conjugal. Um verdadeiro confessionário onde só não se focavam assuntos relacionados com política, 10
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consequências da época, mais propícia a se ficar de bico calado. Gracinda seguia à risca este preceito, não tomar partido, para não ensarilhar a conversa ou comprometer-se com o que não lhe dizia respeito. Habituara-se a escutar muito e a calar muito mais, para não espantar a freguesia. Porém, nesse dia, já se sentia enjoada. Um exagero aquele destilar de ódio, sem que a visada estivesse presente para se defender. Teve de se conter para não a mandar calar. E demais, entre nora e sogra, como em assuntos de família, há que não meter o bedelho. Um género de contenda antiga e sempre atual. Aliás, casos similares de disfunção conjugal era coisa que não faltava entre casais, alguns submersos em pudicos silêncios. Situações extensivas a todos os extratos sociais, tendo na sua origem, quase sempre, um conflito de cariz afetivo, envolvendo o marido, a mulher e a sogra. Foi pelo menos isso que leu na Crónica Feminina, na página dedicada ao correio sentimental. Logo na terceira linha constava: «a nora é vista pela sogra como a substituta ilegítima do seu reinado de mãe. O filho tende a ser passivo, a pôr paninhos quentes nos desentendimentos. E se coabitam na mesma casa…» Entretanto, Jacinta esperava pacientemente pela sua vez. Para fazer passar o tempo ou para não dar por ele a passar, folheava um número bastante antigo da revista Plateia, pondo-se a par da vida excêntrica das atrizes e dos atores de que mais gostava. Tão concentrada estava na 11
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leitura, que nem escutava direito as críticas mordazes da senhora Mariana em relação à nora. De repente, contudo, um súbito e inaudito silêncio pairou no salão. Até a senhora Mariana havia interrompido o seu carpir. Coisa rara, já que quando lhe davam corda, ou mesmo sem lha darem, era mulher para não se calar. Se bem que foram escassos os segundos do seu mutismo. Hiato tão súbito e curto a que se sucedeu um tremendo berreiro vindo de um canto do salão. Era a própria da senhora Mariana que gritava, se remexia, gesticulava, afogueada, a deitar os bofes pela boca: — Ai, que me estou a sentir mal! Acudam-me! Acudam-me que eu morro! Dum pulo, Gracinda largou a correr a fim de retirar a cabeça ardente da senhora Mariana debaixo do aparelho de secar. — Oh! Que cabeça a minha! Peço muita desculpa. É a primeira vez que isto me acontece… — E forçando um lamento em jeito de desculpa. — A madame também podia ter-me chamado à atenção assim que se sentiu mal. Não é que queira aligeirar culpa; mas com esse calorão. Não seria de desconfiar que já havia passado tempo demais no secador?! Um amuo, um rancor expresso no semblante predizia uma réplica azeda. Os olhos das outras duas clientes fixaram-se nelas, curiosas, à espera do que viria a seguir. A cabeleireira temeu o pior. Todavia, o pretexto invocado pela vítima do péssimo percalço deixou-as estupefactas: 12
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— A culpa é daquela megera que faz a cabeça do meu menino! Eu fico fora de mim quando falo dela e depois é o que se vê, perco a noção de onde estou! As mulheres entreolharam-se, perplexas, imaginando a raiva que naquela alma grassava tendo como alvo preferencial a mulher do filho. Gracinda tomou a iniciativa de pôr água na fervura no despeito, que não na cabeça da atingida pela caloraça. — Acalme-se, deixe lá a sua nora em paz. Pense noutra coisa. Já reparou que se podia prejudicar não fosse acudir-lhe a tempo? Porque é que não se senta na poltrona e se distrai com uma revista enquanto acabo de atender a madame Amélia? São só mais cinco minutos… E voltou à tarefa que tinha em mãos. Entretanto, à entrada do salão, um rosto de moça espreitava. Pela expressão parecia indecisa se havia de entrar ou não. Não era a primeira vez que Rosana se pasmava a observar a perícia de Gracinda a dar cor e vida aos cabelos das madames. Os seus olhos redondos, intensos, que a natureza colorira de forma diferente — o esquerdo de castanho-claro, o direito de misteriosa negrura —, seguiam os gestos da cabeleireira, de cada vez que assomava à porta do salão. O esmorecimento de luz causado pela presença de Rosana no limiar da porta fez com que Jacinta se desligasse da leitura. Ao desviar os olhos na direção da porta, reconheceu a rapariga que ou se enganava muito ou já era a terceira vez que a via ao meio da tarde à entrada 13
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do cabeleireiro, a observar o que ali se fazia. Aquilo gerava-lhe perplexidade já que a rapariga, assim que se sabia que a haviam visto, zarpava para longe dos olhares inquiridores. — Lá está outra vez a mesma rapariga especada! — exclamou a senhora Jacinta. — É estranho! Que será que ela quer? Gracinda rodou a cabeça, um rolo na mão direita, uma madeixa esticada da cliente na mão esquerda, e lá estava ela. Porém, e ao contrário das outras vezes, a moça não se retirou. Antes pelo contrário. Manteve-se imóvel a observá-la. — Ouve lá, miúda! Ou entras ou te vais embora. Aí é que não podes estar, que eu fico com menos luz para trabalhar. Convite a que não se fez rogada. De passo retraído, semblante humilde e agradecido, Rosana procurou um lugar vago e sentou-se. Sobre o regaço pousou um caderno e um livro com números e figuras geométricas na capa. Curiosa, Gracinda não resistiu a perguntar. — A menina quer alguma coisa? Foi a sua mãezinha que a mandou cá para guardar vez? Se é por isso, não é preciso ficar à espera. Basta a sua mãezinha dizer a que dia e hora quer vir. É que hoje já tenho a agenda preenchida. Rosana não respondeu logo. Limitou-se a abanar a cabeça em negação, as mãos entaladas entre o estofo da cadeira e as coxas, os ombros contraídos. Num quase sussurro disse. 14
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— Eu só quero ficar aqui a ver. Um sentimento de enfado percorreu o pensamento de Gracinda, coisa de pouca monta. Apenas um pequeno mal-estar por causa daquele olhar permanentemente fixo nela que não lhe agradava. Fosse adulta e pensaria que desconfiava da sua perícia profissional. Tolice a sua. Fosse qual fosse o motivo havia que desvendar as intenções da rapariga. E de chofre, fazendo-se irritada, indagou: — A menina faltou à escola e vem para aqui fazer passar o tempo? É que aqui não se acoitam baldas e eu não quero chatices! Ou há outra razão qualquer que não quer dizer… Debalde. Da juvenil boca apenas surdiu «Eu gosto de ver a senhora a arranjar os cabelos das madames. Só isso.» «Talvez fosse gosto precoce pela profissão», pensou Gracinda. Na volta não passaria de um capricho, um sol de pouca dura. Com o decorrer do tempo, não tardaria que aquele interesse se desvanecesse. Disse-lhe, então, que podia ficar, desde que não a incomodasse, e por pouco tempo. E que se aquilo se tornasse a repetir teria de falar com os pais, não tivessem eles em cuidado, sem saber onde estava. Como resposta Rosana jurou a pés juntos que diria em casa qual o motivo por que chegava mais tarde. Os dias foram-se passando e Rosana ia aparecendo, sem que o seu entusiasmo pelo labor da cabeleireira se atenuasse. Ao contrário do que havia pensado fazer, Gracinda foi adiando a ida a casa dos pais da rapariga. Pô-los ao cor15
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rente do peculiar interesse da filha em frequentar o seu salão e confirmar se os pais sabiam realmente onde ela se atardava e porquê. Não que visse algum mal naquele interesse pelo seu trabalho, decerto pouco habitual numa miúda de 15 anos. Só temia que ela andasse a faltar às aulas, e isso era coisa que não queria que sucedesse de modo algum. Prometeu a si mesmo que assim que tivesse um tempo livre, procuraria saber quem eram os pais e onde moravam, para tirar tudo a limpo. Propósito que foi adiando por falta de disponibilidade de tempo ou negligência. Até que, numa conversa com uma cliente, se obrigou a agir. Foi numa terça-feira fria e luminosa de março. O sol declinava, a noite caía célere e Rosana demorava-se no salão mais do que era usual. Atarefada na coloração do cabelo da senhora Joana, Gracinda só deu pelas horas já noite cerrada. Pela primeira vez, um receio cresceu e feriu o espírito de Gracinda. E se os pais ignorassem mesmo o paradeiro da filha? Se Rosana tivesse ocultado a verdadeira razão dos seus atrasos? Se por qualquer denúncia ficassem a saber onde ela passava o tempo, sem que para isso lhe tivessem dado consentimento? Ela não queria chatices… Aflita, indagou: — Ó, Rosana. Tu não achas que já é hora de te ires embora? Devem estar à tua espera para jantar! Mal acabou de pronunciar as últimas palavras, já Rosana pedia desculpa, demonstrando um embaraço invulgar na sua costumada atitude despreocupada e confiante, e saiu a correr. 16
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— Eu conheço os pais da moça — disse a senhora Maria da Purificação, conhecida pelo seu mau feitio, sempre disponível para dizer mal de alguém, mas bem informada, conhecida na vizinhança como agente do SIB. Havia quem, por desconhecimento, julgasse o SIB tratar-se da sigla dum serviço de uma qualquer polícia secreta do Estado. Facto que, por vezes, afugentava os incautos e timoratos, quando Maria da Purificação se aproximava deles. Vinham depois a saber ser apenas uma pessoa bem informada da vida alheia. Daí dizerem em tom de brincadeira, quem a topava bem, ser uma agente dos Serviços Informativos do Bairro. — A mãe é de poucas falas, muito metida em casa — continuou Maria da Purificação a esmiuçar informações. — Correm rumores de que sofre de dissabores com os devaneios do marido. Que por causa disso se mete na pinga. Até a chamam de Pinguça. Tudo porque atrás dele move-se, dizem, um corrupio de amantes. Um exagero… Que eu saiba só lhe conheço uma. Só não digo quem é, que não sou de ouvir e contar! Você deve saber a quem me estou a referir… — Confesso que não estou a ver quem é — disse Gracinda, revelando no seu semblante a máscara sincera da ignorância. — Pois ainda ontem ela esteve aqui a arranjar o cabelo. Uma mulher alta e loura, muito espaventosa, se quer que lhe diga. — Não me diga! A Lídia Mendonça… 17
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— Sim, essa mesma. — E posso saber quem é o felizardo Dom Juan? A Lídia é ainda tão nova e solteira… — É aquele que trabalha em Lisboa como guarda-fiscal. O José Francisco Carraça. Já vi pela sua expressão que sabe de quem estou a falar. É, sem dúvida, um sujeito bonitão, charmoso, nada de se deitar fora considerando a idade. Muita gente gosta dele. Há quem diga haver muito coração feminino a pulsar por ele, embora sabendo-o bem casado com a Deolinda. Conhece-a? — Só de vista. Vi-a algumas vezes, poucas, com ele. Teve ganas de esganar aquele poço fundo onde se aloja tanta maledicência. Um sacrilégio ter-se atribuído um nome tão bondoso a um ser tão viperino. Na realidade, a madame Purificação, como gostava que a tratassem, era pouco recomendável. Quando se preparava para esventrar a vida pessoal de alguém, comprimia os lábios finos, os olhos em fenda faiscavam azedume, e começava a disparar iniquidades sobre quem queria maldizer. Gracinda fez um esforço para se conter. De bom grado já a teria escorraçado do seu estabelecimento, até porque aparecia poucas vezes e sempre para desestabilizar. Receava, no entanto, sérias e dolorosas consequências se corresse com ela. Estava no início, tinha de ter cuidado com a madame Purificação, não fosse ela espalhar mentiras a seu respeito e o negócio ir por água abaixo. Tentou arrefecer os maus instintos com palavras de apaziguamento. 18
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— Eu não acredito nisso. Dizem-se por aí muitas falsidades… — ripostou Gracinda. — Olhe que eu sei o que estou a dizer! — Acredito, a madame é sempre bem informada. Mas isso é o menos importante. O que interessa é eu ficar de consciência tranquila em relação a Rosana. Amanhã, sem falta, fecho o salão mais cedo e vou com ela para esclarecer tudo o que houver para esclarecer. No dia seguinte assim que Rosana fez a sua aparição como já era usual, Gracinda deu-lhe a conhecer a sua decisão. Apesar da relutância demonstrada pela rapariga de não querer que ela a acompanhasse a casa, para falar com a mãe sobre a sua persistente permanência no salão, Gracinda levou em frente o que se propunha fazer. Demoraram alguns minutos a percorrer a pé a Miguel Bombarda. Durante o trajeto Gracinda estranhou a atitude da rapariga. Habitualmente muito expansiva e faladora, manteve-se calada, o rosto fechado, a cabeça baixa, só abrindo a boca para informar da direção a tomar. Chegadas ao prédio, cuja fachada era revestida com azulejos azuis e brancos, subiram ao segundo andar. Ao retinir da campainha da porta sucedeu uma curta espera. Surgiu então uma mulher de média estatura, cabelos em desalinho, expressão sofrida, dir-se-ia que estivera a chorar. A sua voz surdiu triste e melancólica, ao dirigir o olhar para Rosana, quando exclamou:
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— Ah, és tu! Porque é que não abriste a porta?! Esqueceste-te da chave? — E sem esperar por resposta virou-se para Gracinda. — E a senhora quem é, e o que pretende? — Peço muita desculpa de estar a incomodar. Suponho que a senhora é a mãe da Rosana? — Sim, de facto sou a mãe dela. E a senhora, quem é? — O meu nome é Gracinda, sou cabeleireira, tenho o meu salão junto ao largo da estação dos comboios de Queluz. A sua filha há já algum tempo que me aparece quase todos os dias no salão, dizendo que gosta de me ver trabalhar. Eu assenti na sua presença desde que isso não prejudicasse o aproveitamento escolar e que a senhora soubesse onde ela estava. Eu no início achei piada. Até pensei que fosse cisma de menina com tendência a desvanecer-se. Porém, o interesse dela não esmoreceu, bem pelo contrário, até já me disse do seu interesse em aprender a profissão. Então eu decidi falar consigo sobre o caso, não fosse a senhora discordar. Claro que lhe pagaria uma quantia, pequena, claro, se ela me ajudar. Mas preciso que me dê autorização para o fazer. — Bem não sei o que dizer. Toda essa história apanhou-me desprevenida. Eu não sabia de nada do que me acabou de contar. Esta rapariga não para de me surpreender! — Eu bem receei que a senhora… — Maria Deolinda. Trate-me por Deolinda. —… que a senhora Deolinda desconhecesse o que se passava na realidade. Espero que a minha imprudência não lhe tenha causado transtornos. 20
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— Não lhe vou mentir dizendo que não. Da última vez que ela veio mais tarde o pai andou por aí a procurá-la. Mas entre, entre, para falarmos mais à vontade. E tu, menina, vai para o teu quarto que depois falamos. Antes de continuarem a conversa, Maria Deolinda convidou-a a sentar-se no sofá da sala. O semblante antes amargurado tinha agora uma expressão menos carregada. Aos olhos de Gracinda, a mãe da rapariga era uma mulher de porte robusto, os olhos vivos, redondos, perscrutadores, de uma profundidade quase sufocante. Perguntou-lhe se queria beber alguma coisa, propondo-lhe um cálice de conhaque que Gracinda recusou. De copo na mão sentou-se de frente para ela a queixar-se da filha e das suas desobediências. Enquanto desbobinava mais defeitos que virtudes em Rosana, em comparação com a irmã mais velha, Gracinda notou no olhar de Deolinda algo que não conseguia perceber cabalmente. Tinha momentos breves em que parecia ausente, distante dali, conquanto continuasse a conversa sem intermitências. Curiosamente, as palavras saíam dolentes como se a boca que as emitia traduzisse um espírito acossado de angústia. Deolinda bebeu o conhaque de um trago e voltou a encher o cálice. Estaria tocada, ébria? Não saberia discernir se seria mesmo assim… Não havia desconexão no que dizia, embora fizesse curtas paragens para medir bem as palavras. — Faremos então o seguinte — disse por fim Deolinda, sem iludir o enfado com que anunciou a sua deci21
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são. — Estou até capaz de aceder às pretensões da minha filha, após o que me disse. Se bem que penso ser um mero capricho que lhe passará com o tempo. Porém, só o consinto desde que se observem duas condições: não pôr em causa os estudos de modo que tenha aproveitamento escolar e chegar a casa antes do anoitecer. Gracinda acusou o remoque e apressou-se a pedir desculpa por ter permitido que Rosana tenha ficado no cabeleireiro, no dia anterior, até tão tarde. — Não precisa de se desculpar. Desde que observe aquilo que lhe recomendei… — A senhora nem imagina o peso que me acabou de tirar com a sua decisão — disse Gracinda, com um suspiro de alívio pela compreensão manifestada por Deolinda. — Na verdade eu andava preocupada com a Rosana, não fosse a senhora pensar que ela chegava tarde a casa por andar com más companhias. Só me culpo de não o ter feito mais cedo. Sabe, eu gostei da Rosana desde o primeiro dia e acho, talvez me engane, que o seu interesse pela minha profissão é bastante genuíno. —Pois, quem sabe? O futuro a Deus pertence… Por descuido, esquecimento ou desinteresse, Maria Deolinda despediu-se de Gracinda sem a inquirir sobre quanto iria receber a candidata a aprendiz de cabeleireira.
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Sonho e Realidade
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gosto, férias grandes. Rosana tinha tido um aproveitamento escolar com notas a roçar o sofrível. Isso não lhe afetou o ânimo. Estava mais interessada em aprender a profissão de cabeleireira. Ávida por adquirir conhecimento o mais rápido possível, Rosana aproveitou essa altura de ócio estudantil para se dedicar por inteiro à arte de moldar o cabelo das madames. A princípio foi uma tremenda deceção. Julgou, erradamente, que logo, logo, Gracinda a instruiria no ofício. Ao invés dos seus anseios, Gracinda atribuía-lhe tarefas que ela considerava menores e nada consentâneas com os seus desejos: lavar e desinfetar os instrumentos utilizados e velar pela sua conservação; cuidar da limpeza do salão; acolher as clientes procedendo à sua acomodação; lavar o cabelo das madames e informar Gracinda do serviço pretendido pelas mesmas. Já cortes, mises ou coloração eram serviços que, por enquanto, lhe estavam vedados, porque na opinião da mestra havia que começar por baixo e tudo tinha o seu tempo. 23
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De vez em quando, Gracinda interrompia momentaneamente o que estava a fazer para lhe dar explicações sobre a técnica a aplicar ao cabelo duma dada cliente. Foi apenas no início do mês de outubro, após aturadas observações e dicas de Gracinda, que Rosana ensaiou a sua primeira mise. Para espanto de Gracinda, Rosana demonstrou desenvoltura e à-vontade a executar o que lhe foi proposto. Para estreia havia superado com êxito, acima das melhores expetativas, uma das tarefas mais importantes para quem quer singrar na profissão. Estava lançada no ofício que escolhera para começo de entrada no mundo do trabalho. Para compensar o esforço e dedicação de Rosana, Gracinda decidiu dar-lhe um pequeno acrescento no valor que lhe pagava semanalmente. O dinheiro assim ganho dava-lhe uma aura de independência. Autonomia efémera e ilusória porque continuava a depender dos pais. Mas para ela era o bastante para se sentir importante. O ego inchava de contentamento e dilatava a sua autoestima de cada vez que chegava o dia do recebimento. Dinheiro que guardava sigilosamente no fundo do baú há muito esquecido no sótão, entre roupa sem uso, bonecas destroçadas e jornais desportivos antigos que o pai guardava como recordação das grandiloquentes efemérides do seu Benfica. Não era, contudo, suficiente para a sua ambição. Rosana ambicionava ter muito dinheiro. Ser uma mulher rica. Uma cupidez desmedida que fervia no íntimo como fazendo parte integrante do seu ser. Só não sabia como 24
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poderia realizar esse sonho. Dúvida que a levou a perder a timidez e questionar Gracinda, tida para ela como um exemplo de sucesso: — Dona Gracinda! Seria muito atrevimento da minha parte perguntar-lhe como fez para se ter tornado dona do salão? Acha que eu, um dia, também poderei ter um só para mim? Gracinda olhou-a com um sorriso complacente. Não sabia como lhe responder. Cada caso é um caso e saber o que o futuro nos reserva é coisa que ninguém pode prever. Optou por ser cuidadosa. — Porque não? Com dedicação e dinheiro para abrir um salão, nada é impossível. Eu, por exemplo, comecei mais jovem que tu a trabalhar no ramo. Com os anos fui aprendendo e me especializando. Depois tive a sorte de me ter casado com o António, que me deu o dinheiro necessário para montar o salão. Dado esse passo, tem que se trabalhar muito e bem para ganhar clientes. Como podes imaginar não é tarefa fácil. Tudo isto exige muito sacrifício e não só… Aquela explicação arrefeceu-lhe o entusiasmo, face ao que julgava ser uma coisa simples de alcançar. Depois começou pouco a pouco a considerar. Se Gracinda alcançou o seu propósito de ter um salão, por que não podia ela, quem sabe daqui a uns anos, conseguir o mesmo? Só que o que ganhava era muito escasso. Não chegava sequer para montar uma banca no jardim de venda de tremoços e pevides. Veio-lhe de repente uma ideia. E se arranjasse 25
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