B. Maria Umbral
Psique no seu quarto, ao espelho
As flores de Psique
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As Flores de Psique
TÍTULO: Psique no Seu Quarto, ao Espelho - As Flores de Psique AUTORA: B. Maria Umbral EDIÇÃO GRÁFICA: edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)
1.ª EDIÇÃO, Lisboa janeiro, 2020
© B. Maria Umbral
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ISBN: 978-989-8986-15-3 DEPÓSITO LEGAL: 464498/19
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PAGINAÇÃO: Susana Soares CAPA: Ângela Espinha IMAGEM DE CAPA: Pintura “Psyche” de Arthur Bowen Davies
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Caminhou através do bosque com uns pés que não tinha e internou-se no quarto:
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– Que lugar extraordinário é um quarto com suas paredes, suas vastas paredes amarelas, quase esverdeadas de tão sujas, de nunca terem sido limpas, hum… digo antes «lavadas» contra as transparências dos espelhos, mas, assim, imaculadas. Oh, um espelho aqui em frente que se abre em três, em seis e em nove – como ondas se propalam e explodem mansamente no clímax da espuma. Neste derramamento dos espelhos um mar de luz apaga-se e acende-se a melancolia de todas as imagens de mim por mim sonhadas. Apenas uma cintila como sombra mergulhada na parede ou dela despedida, sim, nasce da parede a sombra como chama que cisma ao ainda extinto espelho: «paredes são sonhos de que maneira? Que são paredes, indago: belas mulheres despidas enfeitando-se de pedra. Corações adormecidos, sonham a água e o coração, pois, pulsa. Paredes são lama. Lama pura adoecida das pedras. Lama onde o ser se desmancha e cai e quebra. Paredes sustêm o ser. Paredes são remos batendo a direcção na água dos lagos esquecidos. O chão é um lago. Um lago morto e dolente – doente? Um agitado sonho triste. Ah, ah…! Outro espelho 9
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vejo, cobre aquela parede toda, talvez os espelhos escondam o ser atrás. A matéria das paredes é sangue e luz, alma e sonho. A intemporal matéria das paredes. Espelhos enferrujados, paredes como muros, as quatro paredes do ser, espelhos incrustados nas paredes como conchas nas rochas.
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A parede vê-se ao espelho e o espelho julga-se opaco, expande-se e nada nessa opacidade: já pode ser à vontade pois não sabe que é observado, sequer se é olhado com distracção. – «Parede, tu estás muito triste?» – «Muito.»
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(Eu preferia não interferir nem interromper, mas de soslaio a afundada nas paredes observa a que a interrompe. E a que a interrompe, leitor, necessita de ti como a boca de um hálito) «Que contas tu?»
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«Conto-me como uma recordação de mim ao mundo.» «E assim contas, sem embuste?»
«Conto e desconto. Sou sincera.»
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(Leitor, do que mais gosto em ti é dos teus ouvidos. Sim, como gosto deles. Os teus ouvidos são para mim como o mar, a lisura do mar, mesmo que vagamente atentos eles escutam silenciosos, fazem-me lembrar as paredes nuas e brancas do meu quarto. Sou humorística porque sou pura. – e a parede mira o seu vestido, a parede. … Desculpa nem sempre lembrar-me de ti…, leitor, por vezes hei-de abraçar-te, por vezes deixar-te. Eu sou meiguinha, meiguinha e adormecer assim no teu peito é bom, felizmente não tens género e por causa disso eu mesma contraio a minha neutralidade. Gosto de brilhar com as palavras do meu quarto às 10
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escuras. Deixa-me prender-te com o meu sangue como cimento e com a minha carne como pedra. Bom, deixa-me retomar a narrativa.)
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O meu quarto sente-se triste, como uma pessoa infeliz, em tormento de alma, num suplício reflectido. Um leque, um leque de espelhos – que lua tão feminina – mil meninas saltam, saindo desse movimento. Mil desgraçazinhas. Mil desgraçadinhas. Fecho o leque. Um bolor de séculos, o pó cobre o espelho e a ferrugem dá-lhe um ar de faca inútil, de um crime por praticar – por único estrondo o canto de uma cigarra, assinalando que voa no silêncio que está vivo como o deus de todas as vozes.
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O quarto está triste (eu já tinha anunciado a animalização do espelho e a vida escondida das paredes). Sombrio e lúgubre, é um homem contemplativo, talvez chorando, e desanimado. Sonha em ser um bosque. O bosque onde assisto à minha decomposição, gravando a minha morte na nas suas paredes como película para a memória das cidades (filme). Na realidade, ele é uma flor de cal na tumba do seu espaço interior. Todos os sonhos de vida e de morte estão dentro dessa flor. Está deitado sobre a minha cama (como ela sobre o bosque). A minha cama é de madeira velha e o colchão está podre e é mole da humidade. Dele sai o medo. Sempre pensei que dentro dele o mundo se movia em mistério. O princípio da criação. Por vezes deslizei para dentro do colchão e lá permaneci horas ou dias, conforme. O meu quarto está deitado sobre a minha cama como um homem. Ele cruza as pernas. Põe uma por cima da outra. (Repetir como num ensaio teatral.) E fuma um cigarro. Acende a luz do candeeiro pequenino, o que está em cima da mesinha de cabeceira. (Repetir.) Que está na mesa-de-cabeceira. E tem insónias sempre, insónias totais e lê três ou quatro obras ao 11
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mesmo tempo todas as noites. Ele chora vagamente enquanto lê. Aponta num caderninho seus pensamentos. Atormenta-se. A leitura é também um espelho de si mas o mundo não reflecte a sua imagem. Olha as suas paredes e sente-se feliz, melancolicamente feliz. Por vezes levanta-se. De madrugada volta a esconder-se nas paredes para se ser à mostra de todos sem que alguém, a não ser eu, sua habitante-filha, o testemunhe. Prende-se outra vez às suas paredes como aranha estranha que se aprisionasse nos fios da sua teia dura babada. Ele cria um espaço vazio para eu poder habitá-lo. Minha alma inteira produz pressão, transborda e o quarto parece aumentar, ele sustém essa elasticidade (tem algo de feminino e de obsceno). Só eu e ele habitamos aqui. Apenas nós. Os estores caídos, a janela-porta da varanda ou porta-janela – uma abrindo o espaço e outra o fechando – partida, as cortinas cheias de sebo. O meu amor doentio pelos espaços sujos iluminame. Fico em êxtase. Como dizer-vos que a cortina velha e rota em várias partes, húmida e densa produz um sonho de amor em mim? Essa cortina estática e mística, que por vezes a brisa da tarde ou da noite empurra como um véu de luz tão suave a penetrar no espaço inteiro, dançando e se rompendo no arame farpado do pó, com a lentidão lúbrica da eternidade, a imóvel bailarina anciã, esfarpando-se e esfarrapando-se, avó do Tempo – que sabe tudo tão bem: tecer e destecer como coisa semelhante, mesmo igual. Como cintilam a sujidade, os espaços negros desta casa, saliva e pó: deuses comezinhos que amo, o entulho, as coisas, a desagregação que de repente define e distinta as coisas como astros no céu do chão. Como resplandecem as paredes sujas, lembram o espelho onde convoco todas as penumbras que me dão claridade. Afundar-me nesta sujidade, na lama impura das coisas (a humilhação como uma graça e a ascensão como agonia). 12
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(A sujidade como forma de tapar, cobrir a infelicidade, a sujidade era um afecto, um coração, um sorrir, um cobertor, corpo de mãe dócil, uma forma de impedir a estagnação – mais tarde criar imagens mentais para isto, o ser funda-se porque se sonha), o meu quarto, o lugar do meu coração. Por favor, casa, paredes da minha carne e do meu espírito, não faleças, não ganhes asas nos pés do teu tecto, não te vás embora, tapete voador levado sob o peso dum deus gordo que se alimenta de pedras, fazendo das casas o túmulo e dos vivos emparedados, fantasmas expostos à vida da morte, a rua. Eu, abandonada nos braços do meu quarto como S. João da Cruz se entrega a Deus. A casa, esta casa cheia de sombras e de lâmpadas nocturnas que alumiam o espaço interior do nosso ser. O meu quarto ajoelha e ora. Avé Maria cheia de graça o senhor é convosco… e pai-nosso que estais no céu no espelho no espelho no mar e na luz. E Deus? Minha alma, meu leque, alma que… (em que pensas? – vivi em estranhos palácios, limpos, arrumados e frescos mas nenhum me deu o abrigo do lar que a minha casa sombria sempre me deu. Canta no silêncio o pó em hino à sua própria tragédia de coisa desagregada. O universo desmancha-se. O pó húmido é representação da agonia e o seco mumificação da dor. Segredos profundos do ser e da alma estão, entranham-se na obscuridade negra, tão negra destas paredes. A superfície que tu vês, cómico observador, o tremor do coração e eu sou o farrapo com que limpo o chão da minha existência. Não. Com que a sujo…) E ei-la em pé, estática, tão benévola, ei-la descendo como um vestido de renda puída pelo corpo expectante da bailarinaanciã, um vestido de noiva amarelecido, o tempo sem as horas, e vetusto, sacrificado ao altar da espera, ela desdentada com os lábios pintados, sombria, triste, comovente e ela, a cortina, tem 13
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as negras opacidades do desejo que a porosidade do tecido deixa evolar sobre as três portas-janelas que separam o quarto da varanda. Mas a varanda faz parte do quarto. Esta janela-vidro apodrecida na madeira (narração da cortina) como dentes na raiz é íntima do quarto, dir-se-ia que é para ele que olha quando ele olha a rua.
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Da rua projectam-se no tecto (no texto? – lapso que quero que conste) a luz dos faróis dos carros através das ripas entreabertas dos estores. Hipnotiza-me. Adormeço acordada nessa luz, sei que o mundo se move aí no meu tecto e Deus entra pelo meu quarto dessa maneira. Os olhos de Deus miram-me com um sorriso. Tem um olhar plangente e o seu sorriso (que não vem dos lábios) estatela-se em mim como se cuspo caísse sem querer da sua boca. Ou por querer. Não me interpretem mal. Deus também é uma aranha. Mas esse cuspo não me molha. Sinto mesmo que me lava. É o sabão cósmico das estrelas, um pó em forma de luzes e sonhos dissolvido na humidade suja do meu quarto, nas nódoas de origem da minha alma. Essas luzes não param de se mover no meu tecto, parecem estar sempre a partir e a regressar. Talvez sejam táxis e transportem estranhos viajantes apressados ou desses que nunca têm pressa, que apenas andam nos transportes públicos, atravessando a cidade de lés a lés. São muito importantes estes seres pois asseguram-se das fronteiras da cidade, mantêm intactas suas linhas de paredes e a cidade não vem abaixo por causa disso, já não é um prédio a ruir. Dirigem-se numa partida e numa chegada tais luzes intermitentes. Elas fluem. Apagam-se e acendem-se. Não há choques. Tudo ri mansamente no meu tecto. Tudo é gentil e sem agressão. (As luzes dos anúncios e dos cartazes e das lojas estão fixas no tecto e dão a ideia de um conflito com as que movem. São uma resistência. 14
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Felizmente a meio da noite estão todas apagadas, embora não se apaguem todas ao mesmo tempo.) Tudo é doído mas é amado. São carícias dos dedos de Deus. Deus lança a sua bondade dessas cordas de luz que vai babando e nela faz balouçar a minha almamemória (e se atentares bem nos meus cabelos verás que são feitos de sonhos de criança). Eles dão-me toda a leveza que necessito para transportar o peso imponderável da minha alma cheia de coisas (atafulhada) e para esquecer o mundo. Quarto, quarto, quartinho. A suavidade densa do ar como uma noite de Verão muito quente. Eu pairo na densidade como o mais lento ser e não sei defender-me do mundo. Meu lento ser é um animal voando sem pecado. Sou pesada como uma preguiça. Um dia reflectirei sobre a tragédia das preguiças: como todas as almas sonhadoras e melancólicas estão nelas presas. Como nunca conseguiram agir nem mesmo se pudessem. Nem mesmo se quisessem. Como são trágicas na sua aparente inacção pois são os mais agitados dos seres, são enervados e contraídos e a isso não podem dar expressão.
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Existem duas mesas-de-cabeceira de onde também se vomita o mundo escuro. Derramam subterrâneos quando se abre a porta. Na gaveta (em cima) guardam-se os segredos mostráveis do piso inferior. Narro estas mesas-de-cabeceira e descrevo-as como se fossem um prédio abandonado, uma fábrica velha com chaminé. Lá dentro serezinhos de pó riem em risinhos silenciosos, tenebrosos e ingénuos. Estão nus e eles sabem que estão nus. Têm vergonha – como Adão e Eva. E mais se acumulam de pó. Mas não cometeram ainda nenhum pecado. «Ainda» é uma promessa de rotura em última instância, em primeira, tudo permanecerá como agora está. Portanto, habitam seu jardim e o seu deus está contente. Pedem-me que os deixe entrar dentro de mim e por 15
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