A Paixão de Peter Harding

Page 1



w

Pr

ev

ie

A PAIXÃO DE PETER HARDING


Partenon® (Chancela Sítio do Livro) título: A Paixão de Peter Harding autor: André Pinto Bessa revisão:

Liliana Simões Filipa Pestana paginação: Paulo S. Resende 1.ª edição Lisboa, novembro 2019 isbn:

ie

arranjo de capa:

w

edição: Edições

978­‑989-8845-30-6 459267/19

depósito legal:

© André Pinto Bessa

ev

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.

Pr

Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao(s) seu(s) autor(es), a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputadas, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total, nem quaisquer afirmações, declarações, conjeturas, relatos, inexatidões, conotações, interpretações, associações ou implicações constantes ou inerentes a este conteúdo ou dele decorrentes.

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.


w

André Pinto Bessa

Pr

ev

ie

A PAIXÃO DE PETER HARDING


w

ie

ev

Pr


Pr

ev

ie

w

ร memรณria de Pedro Fontes Pereira de Melo


w

ie

ev

Pr


w

AGRADECIMENTOS

Pr

ev

ie

Em primeiro lugar, agradeço ao Fritz Katzenstein que me deu a ideia para este livro, desafiando-me a escrever o guião para um filme de espionagem cuja acção se passasse em Lisboa, durante a Segunda Guerra Mundial. Deu-me também a ideia de juntar o tema do ouro, já bastante explorado, ao das notas falsas fabricadas em Sachsenhausen, este menos conhecido. Um agradecimento também à Teresa que aturou as infindáveis tardes de revisão do guião. Mais tarde, decidi transformá-lo num romance. Agradeço as sugestões, comentários e críticas de vários amigos que fizeram o favor de ler o manuscrito deste livro. António Marta, um querido amigo que aqui lembro com saudade, René Souto, João Cília, Teresa Almeida d’Eça, João Lencastre, Vasco Branco, João Felipe Paço d’Arcos, José Honorato Ferreira, João Pinto Bessa e os meus filhos deram contributos variados e todos muito valiosos que concorreram para melhorar o texto. A minha filha Vera ajudou-me a escolher o título, tarefa sempre difícil. A todos estou imensamente grato. Os erros que possam ser encontrados são da minha exclusiva responsabilidade. Agradeço também aos dedicados e competentes funcionários do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e da Biblioteca Nacional, duas instituições portuguesas cuja excelência nunca é demais salientar. 9


w

ie

ev

Pr


Caro Leitor

w

NOTA DO AUTOR

Pr

ev

ie

Encontra, nas páginas deste livro, duas histórias que se desenrolam em paralelo, separadas no tempo por setenta anos e, apesar disso, com vários pontos de intercepção. Parece confuso mas verá que não é. A primeira é uma história de espionagem que se passa essencialmente entre Lisboa e Londres no ambiente político da Segunda Guerra Mundial e da neutralidade portuguesa. A segunda é uma história de fraude financeira do século XXI. Desde a viragem do milénio, assistimos a uma epidemia de «casos» bancários, fraudes, escândalos financeiros no mundo ocidental e entre nós também. São duas narrativas de ganância, iniquidade e traição mas também de altruísmo, abnegação e serviço desinteressado. Com poucas excepções, são verídicos os acontecimentos de 1942 e 1943. A tensão sobre o Arquipélago dos Açores, e uma eventual invasão pelos Aliados ou pelas potências do Eixo, as remessas de ouro (na verdade ouro português e não alemão), a falsificação de notas de libras, os agentes duplos, a decepção estratégica executada pelo Comité XX, os acordos do volfrâmio e de pagamentos, tudo tem uma base histórica. Por conveniência da narrativa, tomei algumas liberdades com datas 11


Pr

ev

ie

w

de acontecimentos que não são essenciais para a narrativa. É o caso da récita da ópera Tristão e Isolda, da contrafacção em larga escala de notas de libras, conhecida como operação Bernhard, ou da inauguração do Cais Marítimo de Alcântara. Tudo acontecimentos de 1943. Perguntará o leitor por que motivo não passei a narrativa toda para 1943 ou 1944. É que, como verá, era essencial que a acção se desenvolvesse na relação de forças do conflito e no ambiente político que se vivia em 1942 que era muito diferente de 1943. Encontrará também, nas páginas deste romance, várias personagens históricas, umas sobejamente conhecidas, outras secundárias. E também personagens ficcionais, todas coabitando na mesma trama. Para facilitar a leitura, juntei uma lista de personagens com os papéis que representaram na vida real uns, na ficção os outros. Sempre me impressionou a maneira hábil como o Governo Português jogou a cartada da neutralidade no xadrez diplomático da Segunda Guerra Mundial. Um pequeno país periférico, com poder militar limitado e as Forças Armadas assoberbadas e dispersas a proteger um vasto império colonial, tinha realmente poucas opções políticas racionais. Qualquer mudança, por menor que fosse, no equilíbrio de poder na Península Ibérica, teria alterado o curso dos acontecimentos em benefício dos alemães. A linha divisória entre neutralidade e alinhamento forçado era muito estreita. Salazar percorreu essa linha com pragmatismo, sem hesitações ou desvios, enfrentando enormes pressões de ambas as facções em conflito e até dentro de seu próprio Governo. Os últimos capítulos do livro explicam o que aconteceu, no fim e depois da guerra, às personagens históricas e às outras também. Para os leitores desejosos de aumentar os conhecimentos, sobre espionagem durante a Segunda Guerra 12


Pr

ev

ie

w

Mundial em Lisboa, junto no final do livro uma lista de textos de referência e fontes de pesquisa, de fácil acesso. A fraude financeira e bancária que lamentavelmente se generalizou nas últimas décadas tem raízes, causas e contornos que não se afastam muito das que retrato na primeira história. É certo que o ambiente político e social que se viveu nos anos trinta e quarenta do século XX e que permitiu que um grupo adquirisse o poder e o aproveitasse para aniquilar e espoliar os indefesos, nada tem a ver com o ambiente deste milénio. O acesso à informação, à educação, à cultura, a liberdade, a democracia, a mobilidade, a tecnologia, tudo é muito diferente, na sociedade contemporânea. Porém, o egoísmo, o despotismo e a voracidade dos homens pouco mudou. Mudaram as formas e técnicas. A facilidade com que alguns se aproveitam, na primeira oportunidade, dos mais fracos, leva-nos a pensar que, apesar de tudo, a humanidade não evoluiu tanto como por vezes pensamos. Há, no entanto, algumas razões de esperança. Agora, como em 1942, vemos bons exemplos de solidariedade, respeito pela dignidade humana e amor ao próximo. O traço comum das duas narrativas é, afinal, o que de melhor e pior há na natureza humana. Cabe ao leitor, perante o percurso da humanidade nas últimas décadas, tirar as suas conclusões sobre a probabilidade de a História se repetir. Nestes tempos conturbados em que vivemos… Lisboa, Setembro de 2019 O Autor

13


w

ie

ev

Pr


w

PRINCIPAIS PERSONAGENS DESTE ROMANCE, FICCIONAIS E REAIS:

Personagens ficcionais

Pr

ev

ie

Claire van Der Graff - n. 1920. – Refugiada holandesa em Lisboa. Presa com a família em Amestrdão fugiu de um comboio que a transportava para Auschwitz em 1941. Ingrid Lund – n.1897. – Norueguesa refugiada em Lisboa. Companheira de fuga de Claire. Mãe de Ilsa e sogra de Victor Laslo (Casablanca). Peter Harding - n. 1910. – Commander (Posto equivalente a Capitão de Fragata) da Royal Navy. Trabalha para o MI6 e é enviado a Lisboa em 1942 para desvendar o mistério das avultadas remessas de ouro. Nicky Meyer – n. 1970 – Americana, neta de Claire van Der Graff. Jornalista independente casada com Jonathan Meyer. Andrew Ross – n. 1968. – Adido de Imprensa da Embaixada Britânica em Lisboa em 2014. Major Mark Trevor-Lewis – n. 1905. – Oficial da Royal Air Force. Está acreditado como Adido adjunto mas na realidade é oficial de ligação do MI6. Harry – n. 1898. – Agente da OSS (antecessora da CIA) de ligação com os serviços de espionagem britânicos. 15


Pr

ev

ie

w

Alexandra Dobranova – n. 1920. – Filha de um barão russo fugido depois da Revolução de Outubro. Amante de Rodrigo Santiago e agente alemã ou de que pagar melhor. Sir Richard Hallbrook – n. 1909 – Banqueiro português descendente de uma família inglesa há muito em Portugal. Presidente do banco fundado com os lucros do vinho do Porto. Agente alemão ou de quem pagar melhor. Jonathan Meyer – n. 1960. – Marido de Nicky. Analista financeiro da Sygma Capital e protegido de Walter. Mais tarde sucede-lhe no comando dos destinos da Sygma. Syd Carrington – n. 1915. – Sócio e amigo de Walter de longa data. Fundador da Sygma Capital. Mathew Kirsten – n. 1971. – Analista financeiro na Sygma. Colaborador próximo de Jonathan. Anita – n. 1909. – Stripper portuguesa num cabaret e espia dos Aliados com o nome de código de Fadista. José – n. 1901. – Cunhado de Anita. É criado de Amesa na Legação alemã em Lisboa e trabalha para os Aliados. Manuel – n. 1915. – Irmão de José. Trabalha também para os Aliados. Hans – n. 1895. – Agente da SD-Gestapo em Lisboa encarregue da segurança na Legação. Howard Spencer – n. 1890. Adido Cultural na Embaixada Britânica. Lucy Spencer – n. 1898. – Mulher do Adido Cultural. Rodrigo Santiago – n. 1912. – Argentino. Traficante de armas e jogador profissional. Agente dos Alemães. Roy Odell – n. 1905. – Sargento do Exército britânico. Chauffeur e guarda costas de Peter. Obergruppenführer Rudolph von Haussen – n. 1901. – General das SS coordenador das operações Abel E Caim. 16


ie

w

Dr. Otto Strauss – n. 1899 – Director do Reichbank (Banco Central Alemão) Conde Shetanzve – n. 1884 – Ex ministro polaco refugiado em Lisboa Martin Kruger – n. 1902 – Controlador financeiro da Abwehr Walter Brueckman – n. 1908 – Marido de Claire. Financeiro e fundador da Sygma Capital uma gestora de fundos de Nova Iorque. Craig Stetson – 1939 – Gestor de fundos de Connecticut Julia Stetson – mulher de Graig Stetson. Tobias – mordomo de Claire.

Personagens da vida real

Pr

ev

Aliados C - Sir Stewart Menzies – Chefe do MI6 Lt Cor John Bevan – Membro do Comité XX (controlling officer) e do MI5 Sir John Cecil Masterman – Presidente do Comité XX John Nichols – delegado do Ministério da Guerra Económica (MEW) em Lisboa Thomas Argyl Robertson (TAR – Responsável pelas operações do Comité XX) Dusko Popov – agente duplo utilizado pelo Comité XX Juan Pujol Garcia – agente duplo utilizado pelo Comité XX Sir Ronald Campbell – n. 1890 – Embaixador Britânico em Lisboa. Colonel Ralph Jarvis – n. 1894 – Chefe da V secção do MI6 em Lisboa 17


Horace Bass – n. 1906. – Agente do MI6 e proprietário do English Bar em Cascais.

Pr

ev

ie

w

Alemães Almirante Wilhelm Canaris – Chefe da Abwehr, (Serviços do Informação do Exército). General Hans Oster – Subchefe da Abwehr Barão Oswald Von Hueningen-Huene – n. 1897 – Diplomata de carreira com posto de Ministro, colocado como Chefe da Legação alemã em Lisboa entre 1934 e 1944. Colonel Ludovic Von Karsthoff – n. 1895. – Chefe da delegação da Abwehr em Lisboa. O seu nome verdadeiro era Albrecht von Auenrod, um oficial austríaco com o posto de Major. Substituído em Lisboa em 1943 e enviado para a frente Leste onde foi capturado pelos russos e fuzilado. Elizabeth Sahrbach – n. 1899 – Secretária de Von Karsthoff em Lisboa. Major Kammler – Oficial da Abwehr I colocado como Subchefe da Delegação da Abwehr em Lisboa. Também conhecido por Tenente Kammler e Major K. O seu nome verdadeiro era Otto Kürrer. Jogador assíduo no Casino do Estoril. Nazi convicto e fanático, próximo de Himmler. Inimigo de von Karsthoff. O seu destino neste romance não corresponde ao que teve na vida real.

18


Lisboa 2014

w

PRÓLOGO

Pr

ev

ie

«Eu teria talvez uns cinco ou seis anos quando pela primeira vez reparei no número tatuado no braço da minha avó. Estávamos na praia e perguntei-lhe o que era. Respondeu-me que era o número do seu cartão de crédito e que o tinha colocado no braço para não ter de andar com o cartão para todo o lado. Lembro-me de ter pensado “que boa ideia”. Só muito mais tarde é que ela me contou a sua verdadeira história. Ou pelo menos parte dela, porque a história completa só ma revelou há pouco tempo, antes de morrer. Os seus pais eram holandeses. Foram presos em Amsterdão no Verão de 1940, quando se intensificaram as perseguições aos judeus. Foi separada da família e levada para um campo de concentração na Alemanha, onde lhe foi tatuado no braço o número de identificação. Não voltou mais a ver nem os pais nem o irmão.» Nicky falava com entusiasmo, e Andrew ouvia com atenção a narrativa desta rapariga, que além de incrivelmente bonita lhe parecia também determinada e inteligente. Lembrou-se então da frustrada tentativa que fizera na véspera para se esquivar a este encontro. Agora estava contente por a sua manobra não ter surtido efeito. Embora ainda não 19


Pr

ev

ie

w

tivesse percebido bem o que estava em causa, estava fascinado com Nicky, uma rapariga atraente, com personalidade magnética que falava com entusiasmo: «A sorte da minha avó mudou quando a transferiam para Auschwitz com mais umas centenas de amedrontados prisioneiros, todos enfiados numa pestilenta carruagem de transporte de gado. Quando o sobrelotado comboio descarrilou ao atravessar uma pequena ponte, os prisioneiros, na sua maioria mulheres, aproveitaram para fugir das carruagens de madeira que se desintegravam. De imediato, os guardas abriram fogo de metralhadora. Claire correu o mais que pôde com uma outra prisioneira que a seguia. As balas choviam de todos os lados, e muitos fugitivos iam caindo pelo caminho, mas sem nunca desistir nem olhar para trás, elas continuaram a correr. Sob a fraca luz do fim do dia, podia ver-se o rio que corria lá em baixo a umas escassas dezenas de metros. Claire sabia que se conseguisse chegar à água, com a noite a cair, nunca a apanhariam. Quando atingiram a margem do rio, a companheira de Claire estacou, recusando-se a saltar para a água. Não sabia nadar. Ouviam-se vozes de comando em alemão, cada vez mais perto. A minha avó tinha vinte anos e era uma nadadora exímia. A sua nova amiga tinha quarenta e cinco e uns quilos a mais. Claire agarrou-a com força e obrigou-a a saltar consigo para a água. Segurando-a com firmeza, nadou rapidamente até à outra margem e esconderam-se por detrás de uns arbustos. Quando a escuridão se instalou, os tiros pararam. Durante toda a noite caminharam junto à margem do rio e assim conseguiram escapar ao cativeiro. O dia clareou, seguiram por uma estrada que passava junto ao rio e as conduziu a uma pequena aldeia. Logo à entrada da vila havia uma pequena quinta com um celeiro, junto ao qual estavam várias bicicletas e um estendal de roupa. A coberto do lusco-fusco, despiram 20


Pr

ev

ie

w

os seus fatos e trocaram-nos pela roupa roubada. Pegaram em duas bicicletas e começaram a pedalar. Foram até Hamburgo, onde Ingrid, a nova amiga da minha avó, disse ter um amigo advogado que lhes daria guarida. E deu também roupa, documentos falsos e algum dinheiro para continuarem a fuga. Com esta ajuda, seguiram de comboio a caminho de Marselha. Aí, dirigiram-se a um contacto que o advogado lhes facultara. Este contacto, Varian Fry, tinha montado uma rota de fuga para judeus e outros perseguidos pelos nazis. Representava uma organização americana de apoio aos refugiados — The Emergency Rescue Committee — e ajudava-os a chegar a Lisboa. Foi então que elas decidiram separar-se. Ingrid queria ir a Paris procurar a filha, Ilse e o genro; enquanto Claire seguiria de comboio para Lisboa na companhia de um jornalista alemão, fundador de uma organização antinazi, e da sua mulher. Os comboios destinados à Península Ibérica eram sistematicamente revistados e os documentos dos seus passageiros passados a pente fino na fronteira de Irun. Claire receava ser descoberta nesses controlos. Bastaria que suspeitassem dela para a obrigarem a levantar a manga do vestido e estaria em Auschwitz em menos de uma semana. Chegados ao controlo de fronteira, os joelhos de Claire tremiam, pois suspeitava-se que os alemães pudessem estar já alertados para esta rota de fuga. Pouco consolo podiam os seus companheiros de viagem dar-lhe, eles próprios em estado de pânico. Até que todos foram autorizados a entrar para o comboio espanhol a caminho de Lisboa.» — Imagino o alívio, quando se sentiram finalmente em território espanhol… apesar de tudo, Espanha era um país neutro — interrompeu Andrew. 21


Pr

ev

ie

w

— O suplício estava longe de terminado — continuou Nicky, sem esconder o seu desagrado com a interrupção. — Quando o comboio chegou à fronteira com Portugal foi a vez das autoridades espanholas verificarem os documentos. Inspeccionaram minuciosamente os documentos de Claire e da mulher do jornalista, mas quando pegaram nos do marido logo detectaram a falsificação grosseira. Depois pediram de novo os documentos das duas mulheres, e, volvidos apenas alguns minutos de inspecção atenta, concluíram tratar-se também de documentos falsos. Enfiaram os três numa viatura militar a caminho de Madrid e aí foram atirados para uma prisão, onde se amontoavam dissidentes políticos, quase todos desde o tempo da guerra civil. Os espanhóis não perceberam que ela era judia nem se interessavam muito pela questão judaica, obcecados que estavam pelo ódio aos comunistas. Todos os inimigos do nazismo eram por eles considerados comunistas. Os três foram colocados em diferentes celas colectivas já de si muito lotadas. Claire ficou com cinquenta mulheres e mães de activistas republicanos, presas há vários anos sem culpa formada ou julgamento nem qualquer informação sobre o paradeiro dos respectivos maridos e filhos. O ânimo destas mulheres era muito baixo como pode imaginar. A comida era péssima e escassa, tal como as instalações sanitárias: uma bacia e um buraco no chão no canto da cela, sem qualquer privacidade — Nicky falava cada vez mais depressa e entusiasmada. — Nem conseguimos imaginar o que será viver nesse tipo de condições! — arriscou Andrew. — A minha avó não falava espanhol e as suas companheiras de cela não falavam nem compreendiam outra língua — continuou ela, ignorando a interrupção. — Apesar disso, conseguia comunicar com elas e evitar o isolamento. Quando já 22


Pr

ev

ie

w

pensava que, tal como as outras prisioneiras, nunca sairia dali, os guardas vieram buscá-la. Logicamente imaginou que ia ser deportada para a Alemanha. Mas, para grande surpresa sua, foi libertada, deram-lhe documentos provisórios e colocaram a sua bagagem na sala dos guardas junto à entrada do edifício. Pouco depois, aparecia o jornalista com a mulher, tão espantados como Claire. Foram os três encaminhados para o exterior onde lhes estava reservada uma surpresa ainda maior. Ingrid aguardava-os encostada a um pequeno Fiat. Não conseguira encontrar a filha em Paris e regressou a Marselha onde procurou Varian Fry. Este, informado, pela sua rede, da detenção dos três fugitivos, encarregou um colaborador seu de ir com Ingrid a Madrid, subornar os guardas espanhóis, resgatar os prisioneiros e depois conduzir todos até Lisboa. Seguiram por outro caminho, e um posto de fronteira menos vigiado. Varian dera ao motorista instruções e dinheiro para que o negócio com os espanhóis garantisse a entrada em Portugal. Quando o sobrelotado Fiat se apresentou no posto da fronteira e o motorista mostrou os documentos, foi imediatamente mandado avançar sem mais delongas nem revistas ou inspecções. Em Lisboa, Claire e Ingrid instalaram-se num hotel no Rossio. Pouco depois, recebia através de Varian Fry uma transferência com os fundos que o seu pai tinha conseguido esconder na Suíça antes de ser preso. Alugou um apartamento no Estoril e mudou-se para lá com Ingrid, que aguardava entretanto notícias da filha, Ilse. Estava retida em Marrocos, procurando obter documentos que lhe permitissem viajar até Lisboa, e Ingrid decidiu ficar à espera dela. Claire sentia-se agora segura e fez amizade com outros refugiados, diplomatas e homens de negócios que enchiam nesse tempo a cidade, enquanto aguardava o visto para os Estados Unidos. E conheceu Peter Harding. 23


***

Lisboa, Março de 1942

Pr

ev

ie

w

No Cais de Alcântara, em Lisboa, estavam atracados dois navios. O mais pequeno era um velho cargueiro que acabara de chegar e os seus escassos passageiros começavam a desembarcar. O outro, um moderno paquete transatlântico, preparava-se para partir. Os guindastes carregavam lentamente caixotes e carga diversa para os seus porões. No cais, centenas de pessoas em silêncio faziam fila para embarcar pelos portalós. Eram homens e mulheres, novos e velhos, ricos e pobres vindos de vários países ocupados, fugindo da loucura colectiva instigada por um homem. Expressões abatidas, cansadas e desesperadas, mas com uma réstia de esperança no olhar. No interior do terminal de passageiros, um edifício recente de traça neoclássica, a actividade era intensa. A sala de dimensões generosas, com paredes apaineladas de madeira albergava naquele momento apenas uma dúzia de pessoas. Algumas conversavam de pé com passageiros prestes a partir, outras esperavam sentadas por passageiros que estariam para chegar. Era o caso de um homem baixo, de meia-idade, com o seu escasso cabelo impecavelmente penteado e um bigode fino. Sentado numa poltrona castanha de cabedal, lia o Daily Telegraph e fumava cachimbo, quando um homem de trinta e poucos anos, vestindo um casaco de tweed castanho, entrou na sala com uma gabardina no braço e uma pasta na mão. Era alto, elegante, tinha cabelo e olhos castanho-claros e muito boa presença. O homem de bigode dirigiu-se a ele: — Peter Harding? — perguntou. — Sim. 24


Pr

ev

ie

w

— Como está, meu velho? Sou o major Trevis-Lewis, Royal Air Force, o adido adjunto da Força Aérea na embaixada. Que tal a viagem? A monotonia do costume, calculo. Havia companhia feminina a bordo com interesse? — Nada disso. Apenas umas velhotas a jogar bridge o tempo todo. O costume… E você está cá há muito tempo? — Aqui no cais? Cheguei há meia hora. —  Não. Queria dizer aqui no posto — respondeu Peter sorrindo. — Oh! Há quatro anos. Vindo directamente de Berlin. — Bom, então está certamente melhor do que no covil do diabo. — Sem sombra de dúvida. Nem quero lembrar-me do que foram os últimos tempos lá. Meu caro, eu trouxe o sargento Todler para tratar da sua bagagem e formalidades. Se lhe der a sua documentação, ele trata de tudo e podemos ir embora já. Peter entregou a documentação ao sargento e entrou com o major no Austin da embaixada que os aguardava à porta. No caminho para o Estoril, Mark Trevor-Lewis encarregou-se de informar Peter sobre as disposições que a embaixada adoptara para a estadia dele em Lisboa e do programa que tinha preparado para aquele dia. — Esta tarde temos um encontro com o coronel Ralph Jarvis, o chefe da V secção da Estação do MI6, em Lisboa. Conhece-o? — Sim. Bastante bem. — Amanhã, o embaixador oferece um almoço em sua honra. Jack Nichols, do Ministry of Economic Warfare1, e Philip Johns, o chefe da Estação do MI6, estarão presentes. 1 Ministério britânico que se encarregava da Guerra Económica. 25


Pr

ev

ie

w

Pode aproveitar para tratar com ele os pormenores do seu posto de disfarce. Já os conhece? — Não. Mas ouvi falar muito do embaixador Campbell. — Óptimo. Agora vai conhecê-lo. Sir Ronald Campbell é muito simpático e acessível. Chegou aqui há pouco tempo. Tal como o Johns e o Nichols, que veio substituir o Eccles depois daquele assunto da Shell2. Muito desagradável… Passaram junto ao jardim do Casino e dirigiram-se para a entrada do hotel. — Reservámos-lhe quarto no Hotel Palácio. Espero que aprove. — Claro que sim. Já cá fiquei em anteriores estadias. — Então já conhece as redondezas. O Casino, o English Bar, esse tipo de coisa. — O Casino conheço, o English Bar não. — Este rapaz, o Horace Bass, comprou a casa no ano passado. Era uma casa particular que ele transformou em pub. É pessoa de confiança. Ocasionalmente, faz trabalhos para o MI6 e para nós, os militares. Eu passo por lá de vez em quando, e o mesmo faz a maior parte dos membros dos serviços de informações dos Aliados. Aconselho-o a ir lá para ter uma ideia de como isto aqui funciona. O Austin parou à porta do hotel e ambos saíram do carro. Peter foi à recepção tratar do registo. Quando terminou, o empregado, entregando-lhe um pequeno envelope, disse: — Deixaram este envelope para si esta manhã. Peter afastou-se e abriu o envelope. Continha um papel com uma única frase: «Esta noite no Nina depois das três pergunte pelo fadista». 2 Plano dos ingleses para sabotar infra-estruturas e instalações vitais portuguesas, no caso de Portugal ser invadido pelos alemães ou decidir alinhar com as potências do Eixo. 26


***

Berlim, Março de 1942

Pr

ev

ie

w

No quartel-general da Abwehr, o serviço de espionagem das Forças Armadas Alemãs, a actividade era frenética naquele fim de tarde de sexta-feira. A entrada era tão imponente como o próprio edifício: chão de mármore; uma larga escadaria com corrimão também de mármore; um enorme pé-direito; e panos pendurados que ostentavam gigantescas suásticas encarnadas e pretas, cobrindo a maior parte das paredes. No hall, o movimento era intenso. Oficiais e civis entravam e saíam muito apressados com as suas pastas na mão. Cá fora os carros, em fila quase ininterrupta, chegavam, encostavam à escadaria de acesso ao edifício para deixar sair os passageiros e arrancavam de imediato para dar lugar ao próximo. Um Mercedes 230 com a capota aberta encostou. Do lugar da frente, saiu um soldado que abriu a porta traseira pela qual saiu um Obergruppenführer3. Alto, atlético, de queixo quadrado e cabelo preto muito curto, o general era uma figura imponente no seu impecável uniforme preto das SS. A aguardá-lo, ao cimo da escadaria, estava um jovem oficial que, depois das saudações da praxe, atravessando o vestíbulo, conduziu-o pelos corredores até uma sala de reuniões, seguidos pelo soldado que transportava a pasta do general. Na sala estavam quatro homens, três oficiais e um civil, de pé em redor de uma mesa onde tinha sido colocado um mapa da Europa. A sala era pequena e mal iluminada. 3 Posto das SS equivalente a general de três estrelas. 27


Pr

ev

ie

w

Além da mesa com o mapa, havia apenas uma consola com três telefones pretos e duas velhas poltronas com braços de madeira e o estofo já muito puído. O general entrou e saudou os presentes: — Heil Hitler! Ao que todos responderam em uníssono, fazendo a saudação regulamentar: — Heil Hitler! O general, pegando no seu ponteiro, aproximou-se da mesa e disse: — Eu sou o Obergruppenführer von Haussen, comandante das operações Abel e Caim. Estou aqui para fazer o briefing sobre duas operações de transporte. Já receberam os documentos das operações certamente. O Hauptsturmführer4 Schneider comandará a operação Caim e o Sturmbannführer5 Rhein comandará Abel. O oficial de ligação será o coronel Mür, o meu chefe de gabinete. O Dr. Martin Kruger é o controller financeiro da Abwehr e será ele quem vai fornecer o material a transportar pela operação Caim. Os transportes seguirão estas rotas — disse o general assinalando com o ponteiro no mapa as rotas. — Estes são os pontos críticos. Aqui, aqui e aqui.

4 Posto equivalente a capitão das SS. 5 Posto equivalente a major das SS. 28


Lisboa, Maio 2014

w

1

Pr

ev

ie

A Primavera tardava, apesar de o calendário indicar que tinha chegado há mais de um mês. A meio da manhã, sob uma chuva miudinha que caía desde muito cedo, o táxi parou à porta da Embaixada Britânica em Lisboa. A rapariga pagou ao motorista e correu para a porta, colocando a mochila sobre a cabeça para se proteger. Era alta, vestia jeans e um colete bege sem mangas. Na mochila a sua inseparável Leica. Depois de se identificar no balcão da segurança foi conduzida a uma pequena sala de reuniões do primeiro andar. Tinha chegado a Lisboa na véspera para o que seria a sua primeira visita a Portugal. Um mês antes tinha escrito ao embaixador Britânico em Lisboa a pedir esta reunião. Como jornalista independente fora recentemente nomeada para a short list do Prémio Pulitzer, por um ensaio sobre arte contemporânea. Uma proeza invejável aos trinta e cinco anos. Preparava-se agora para abraçar um novo projecto, no qual não sabia se teria o mesmo sucesso. Sentia-se insegura, o que não era característica sua e isso desagradava-lhe profundamente. Lutava interiormente para recuperar a segurança e autoconfiança. Para tanto, seria necessário enfrentar os seus demónios, 29


Pr

ev

ie

w

as circunstâncias da sua história recente e os motivos da sua crescente frustração e desilusão. Quando o embaixador recebeu a carta com o pedido de audiência, mandou transmiti-la ao adido de imprensa. Não propriamente pelo pedido constante da carta, mas pelo simples facto de ser assinada por uma jornalista. Andrew Ross não era diplomata de carreira mas também ele um jornalista, colocado na embaixada por dois anos como adido de imprensa. Tinha trinta e muitos anos, era magro, alto, arruivado, de cabelo encaracolado e olhos verdes. Quando a secretária do embaixador lhe entregou a carta, aceitou naturalmente a incumbência mesmo sem compreender bem a ligação entre o gabinete de imprensa e o pedido da jornalista Nicky Meyer. Agora, ao percorrer o corredor a caminho da sala de reuniões, pensava em várias desculpas ou maneiras hábeis para se descartar rapidamente da visitante e regressar às suas rotineiras tarefas dessa manhã. Ao entrar na sala ficou estarrecido com a beleza desta rapariga elegante com uns bonitos olhos azuis. Depois ficou preso à narrativa dela. Nicky falava cada vez mais depressa e com mais entusiasmo. Quando terminou, entregou-lhe um pequeno dossier com o seu curriculum como jornalista e os pormenores do seu projecto e disse já em tom mais formal: — Obrigado por me receber. Deixo-lhe um breve resumo do meu projecto e do meu trabalho anterior. Como pode ver, trabalhei no New York Times durante vários anos, mas agora trabalho como jornalista independente. Tenho escrito para várias publicações: Washington Post, LA Times, New Yorker, entre outros. Escrevi vários artigos sobre o Afeganistão e o Iraque pós-Sadam e mais recentemente tenho escrito sobre arte contemporânea. 30


Pr

ev

ie

w

— Portanto, tem feito mais reportagens do que jornalismo de investigação e a Segunda Guerra Mundial não é propriamente a sua especialidade! Ou estou a ler mal? — Sim. A sua apreciação está correcta. Como descrevi na minha carta, estou a investigar acontecimentos ocorridos aqui em Lisboa durante a Segunda Guerra Mundial e gostaria de começar por consultar os arquivos da embaixada. Já estive na Embaixada Americana que aceitou deixar-me consultar os seus arquivos. Depois tenciono também ir consultar os arquivos portugueses. — E como pode esta embaixada ajudá-la? — perguntou Andrew. — Como lhe disse, sou jornalista profissional e quero escrever um romance — repetiu Nicky, tentando disfarçar a irritação. — Tenciono tirar um ano para fazer a pesquisa e escrever o livro sobre acontecimentos que se passaram em Lisboa em 1942. Gostaria de começar por consultar os arquivos da embaixada desse ano, depois veremos onde eles me levam. Claire, a minha avó, deixou-me algum dinheiro para financiar este projecto. Prometi-lhe antes de morrer que tiraria um ano e aqui estou para cumprir essa promessa. — Infelizmente, isso não é tão fácil como parece. Os documentos do tempo da guerra foram enviados para o Foreign Office em Londres. É lá que a sua investigação devia começar. A maior parte desses documentos foram já desclassificados e estão por isso acessíveis ao público. Sei que são regularmente consultados por jornalistas, académicos e historiadores. — Passei horas infindas em Londres no MI6, no MI5 e nos arquivos militares, a estudar documentos desclassificados! Infelizmente, não há neles nada que me possa dar alguma pista para aquilo que procuro. Se quer dar-me uma desculpa, diga-me qualquer coisa que eu ainda não sei!… 31


Pr

ev

ie

w

— Desculpe. Expliquei-me mal. Não se trata disso — começou Andrew, embaraçado. — É que o seu pedido é um tanto invulgar… e não estava à espera… não sei como podemos ajudar… — Não estava à espera? Está no primeiro parágrafo da minha carta para o embaixador… — Sim, eu sei. Tenho-a aqui. Não é… isso. Mas estou a lembrar-me que há ainda uns caixotes com documentos dessa época, empilhados numa arrecadação da cave. Nunca foram catalogados, nem enviados para Londres porque nunca se encontrou um diplomata disposto a fazer esse trabalho, e depois a viagem num cargueiro a acompanhá-los é uma missão muito aborrecida, de facto. Ouvi dizer há tempos que seriam finalmente enviados porque o embaixador precisava daquele espaço para fazer uma garrafeira na cave, mas até agora não se fez nada. — Foi isso que me disse uma simpática funcionária do FCO em Londres! Bem, não a parte da garrafeira do embaixador, claro… mas que poderia encontrar alguma coisa de interesse em arquivos velhos desta embaixada ou do Estado Português. Vim cá para consultá-los. Se pudesse, ficava muito grata. — Infelizmente, não tenho poderes para lhe dar essa autorização. Só o embaixador o pode fazer. Mas irei pedi-la e em breve comunicar-lhe-ei a resposta. Em todo o caso, não deixe de visitar os arquivos nacionais aqui em Lisboa que são muito bem organizados e acessíveis. Quanto tempo pensa ficar em Lisboa? — Depende do que conseguir. Em Londres todos prometiam ajuda, mas alegavam que havia muita documentação que foi reclassificada e essas promessas não tiveram resultados práticos. Escrevi longas cartas ao Secretário a explicar o meu 32


Pr

ev

ie

w

pedido e o objectivo do meu projecto. Supliquei pela autorização, mas o melhor que consegui foi um passe para usar a biblioteca do Foreign Office, onde pude consultar o tráfego de telegramas. Porém, não encontrei documentos nem pistas com qualquer interesse para a minha pesquisa. Por sugestão da bibliotecária, fui ainda consultar outros arquivos públicos, onde também não encontrei qualquer documento com interesse para o meu projecto. Francamente, vim para Lisboa com a expectativa de passar aqui algum tempo, encontrar menos burocracia, maior receptividade e alguma pista sobre o melhor caminho para conduzir a pesquisa. Tinha esperança de ter uma conversa com o embaixador e ele me facultasse os documentos que procuro e me disseram que encontraria aqui. Julgo que são arquivos com mais de sessenta anos sem qualquer interesse em matéria de segurança nacional nem segredos de Estado, mas com muita informação de interesse para mim. Mas o embaixador decidiu delegar neste jovem membro do staff da embaixada, sem poder de decisão e pouco familiarizado com o conteúdo dos arquivos, com boa vontade mas um pouco desajeitado. Mais uma vez via frustrados os seus propósitos, pensou Nicky, mas conteve-se e disse apenas: — Agradeço muito o seu empenho e fico a aguardar notícias sobre a decisão do embaixador.

33


***

Lisboa, Março de 1942

Pr

ev

ie

w

Ao princípio da tarde, Peter e Mark entraram no edifício da Rua da Emenda, partilhado pelo Serviço Britânico de Passaportes e o escritório do MI6 em Lisboa. No átrio do rés-do-chão uma ruidosa multidão de candidatos a vistos davam trabalho aos funcionários que tentavam manter a ordem na sala. Quando os dois homens entraram, uma mulher de quarenta e muitos anos, bem vestida, aproximou-se deles e dirigiu-se a Mark: — Major! Não sei se lembra de mim? Estivemos juntos num jantar em casa de Howard Spencer, o adido cultural, há pouco tempo. O meu nome é Ingrid Lund. — Lamento, mas não tenho… compreende eu estou… — Percebo. Deve conhecer muita gente, mas eu estou com um enorme problema com o meu pedido de visto, será que não me pode ajudar? —  Lamento, minha cara senhora, mas eu estou com pressa… — Mas não demora nada, só preciso de explicar a alguém, eu estou realmente desesperada, repare a minha filha… Mark, em pânico, fez sinal ao segurança para que viesse em seu auxílio. — Cara senhora, já estou terrivelmente atrasado para uma reunião no andar de cima. Os funcionários aqui são muito competentes, estou certo que poderão ajudá-la. Quando finalmente se conseguiu desenvencilhar da mulher, Mark agarrou Peter e puxou-o para fora daquele caos, a caminho da escada. No primeiro andar, entraram no 34


Pr

ev

ie

w

gabinete do coronel Ralph Jarvis, um pequeno compartimento parcamente mobilado. Uma secretária, quatro cadeiras de couro verde-escuro e uma estante com portas de vidro constituíam o único mobiliário do responsável pela V secção do MI6 em Lisboa. Este esperava os visitantes. — Então, Peter, o que anda você a tramar por estes dias? O C mandou-o cá para me vigiar? — Provavelmente era o que devia ter feito, mas desta vez você ainda não é o alvo da minha vigilância. São estes movimentos de ouro que os portugueses estão a fazer para os EUA que intrigam Londres. Pensa-se que pode ser ouro alemão enviado a coberto da bandeira portuguesa para um lugar seguro. — Estou a ver. Um acordo de custódia, não vá o diabo tecê-las… — Sim, uma coisa desse género. O C quer que eu me certifique que não há ouro nazi a entrar em Portugal, para ser mais tarde enviado para os EUA como ouro português, pois se for esse o caso tem de se resolver com um embargo. Londres não confia inteiramente nos portugueses e os volumes de ouro exportados ultimamente para os EUA são muito suspeitos. Será mesmo ouro dos portugueses? — Sei das remessas para os EUA, mas nunca tinha ouvido essa explicação. Não é impossível, embora duvide que Salazar fosse nessa conversa dos nazis. Até agora a política de neutralidade tem na realidade sido vantajosa para nós. — Eu sei. Os analistas do MI6 dizem o mesmo. Ralph, você tem alguma ideia por onde devo começar? Alguém com quem deva falar primeiro? — Lamento, meu velho, mas estou muito fora do tema. Talvez Philip Johns, o nosso chefe da estação e oficialmente o adido financeiro da embaixada, possa dar-lhe alguma pista, 35


Pr

ev

ie

w

mas suspeito que ele de matéria financeira saiba menos que eu. Trabalhou num banco durante uns meses, mas isso foi há vinte anos… Desta vez, temo que tenha de se desembrulhar sozinho. E o pior é que não tenho ninguém para destacar para a sua missão, estamos neste momento muito reduzidos de pessoal. Você sabe como é… — Não se preocupe, Ralph. Depois falo com o Johns, mas tenho os meus contactos e tentarei não atrapalhar a vossa actividade. — Em todo o caso, vou dar-lhe um número de telefone e a morada de uma casa segura para usar em situação de emergência. Conhece o exercício. — Certo. — E estarei sempre disponível para falar consigo sobre a sua missão e para lhe dar a ajuda possível. — Não deixarei de o manter ao corrente. Entretanto, no rés-do-chão no serviço de passaportes, chegara finalmente a vez de Ingrid ser chamada ao balcão para ser atendida. Deu a documentação ao funcionário enquanto lhe explicava que pretendia um visto de entrada no Reino Unido para si própria, para a sua filha e para o genro. Com os olhos postos nos papéis e sem sequer olhar para ela, o burocrata perguntou se estava tudo nos documentos. — Sim. Está tudo aí — respondeu Ingrid. — E onde estão as outras pessoas? — Em Casablanca. Está explicado nos documentos. O funcionário inspeccionou lentamente os papéis, escrevendo a lápis pequenos «vs» em certas caixas. Finalmente escolheu um carimbo, pressionou a almofada da tinta encarnada, carimbou com estrondo dois documentos «VISTO RECUSADO» e devolveu-os a Ingrid. Depois escolheu outro carimbo e fez o mesmo no último documento, que carimbou 36


a preto «PARA ANÁLISE» e colocou-o numa pilha atrás de si.

***

w

Berlim, Março de 1942

Pr

ev

ie

— Qual das operações Abel e Caim deve arrancar primeiro? É necessário coordenar as datas de chegada dos dois transportes? — indagou Schneider. — A operação Caim arranca primeiro e tem de chegar pelo menos dois dias antes da operação Abel. Está tudo no plano operacional. Ambas as operações têm de pedir autorização imediatamente antes de partir. O coronel von Karsthoff, chefe da estação da Abwehr, em Lisboa, dispensará todo o apoio local necessário, e eu próprio tal como o Dr. Martin Kruger estaremos em Lisboa quando as duas missões chegarem. O Führer tem altíssimas expectativas para estas operações e cedeu o seu comboio blindado, o Amerika, para a execução da operação Caim. Na fronteira entre a França e a Espanha, por causa da bitola, a carga será transferida para um comboio espanhol. O Amerika regressa, mas a guarnição militar continua a acompanhar a carga até esta ser entregue aos portugueses. A conclusão tardia ou a entrega dos bens deteriorados não serão toleradas! É tudo por agora. Heil Hitler! — concluiu o general em tom ameaçador. E todos responderam: — Heil Hitler! Umas semanas depois, numa pequena estação de caminho-de-ferro a sul de Berlim, perto de Tempelhof, dentro da área 37


Pr

ev

ie

w

protegida por arame farpado, a azáfama era enorme. Dezenas de soldados patrulhavam o alargado perímetro de segurança. Na linha estava estacionada uma composição. Mas não era um comboio normal. A locomotiva blindada era enorme, as minúsculas janelas e cruzes suásticas davam-lhe um aspecto tenebroso. As quatro carruagens que lhe estava atreladas, igualmente blindadas, tinham também uma aparência bélica. Imediatamente atrás da locomotiva e no fim da composição, duas carruagens abertas com metralhadoras e armas antiaéreas, garantiam a segurança da composição durante a viagem. Enquanto os soldados atarefados transportavam caixotes de madeira e contentores metálicos para o interior do comboio, o capitão Schneider, comandante da operação Caim, andava de um lado para o outro dando ordens, inspeccionando tudo. Quando confirmou no manifesto de carga que todos os caixotes tinham sido carregados, chamou um soldado que lhe trouxe o telefone de campanha. Abriu a caixa, deu vigorosamente à manivela e pediu à operadora a ligação. Quando o coronel Mür atendeu, disse: — Hauptsturmführer Schneider, comandante da operação Caim, pedindo autorização para a partida do comboio Amerika. A autorização foi concedida, Schneider saltou para uma carruagem e fez sinal ao maquinista que aguardava na locomotiva. Lentamente, o majestoso e sinistro comboio privativo de Hitler, sem a carruagem do Führer, o Pullman dos convidados nem a carruagem-restaurante, começava a ganhar velocidade. Dias mais tarde, num armazém subterrâneo perto de Potsdam, soldados atarefados carregavam também caixotes, mas estes de cartão, identificados como «Medizinische Versorgung; medical supplies; Medicamentos», para um camião 38


Pr

ev

ie

w

militar. Quando a carga estava completa, o Dr. Martin Kruger e o coronel Mür, que o acompanhava, assinaram um documento e entregaram-no ao major Rhein das SS, o oficial encarregado da operação. O camião com os caixotes posicionou-se no meio da coluna militar. À sua frente, seguiam três veículos de artilharia ligeira e atrás de si um camião com soldados fortemente armados seguido por mais três veículos de artilharia. Na frente da coluna, num Mercedes 170 descapotável, seguia o major Rhein. Estava em marcha a operação Abel.

39


w

ie

ev

Pr


w

2

ie

Lisboa, Março de 1942

Pr

ev

No átrio principal do Teatro Nacional de São Carlos podia ver-se um enorme cartaz anunciando a noite de estreia de Tristão e Isolda pela Staatsoper Berlin (Companhia Estatal de Ópera de Berlim). Os convidados, oficiais em uniforme de gala, civis de smoking e senhoras de fato comprido entravam, levantavam o programa e seguiam apressados para ocupar os seus lugares. Dentro da sala quase cheia, os músicos afinavam os instrumentos, misturando acordes soltos com o bruaá da conversa dos convidados. Num camarote, o barão Oswald von Hoyningen-Huene, chefe da Legação alemã em Lisboa, estava acompanhado por um diplomata e dois militares. Só homens. Ocupando três frisas seguidas no lado oposto da sala estavam o embaixador Britânico, Sir Ronald Campbell, o coronel Ralph Jarvis e o adido cultural Howard Spencer. Noutras frisas e camarotes podiam ver-se vários membros do governo português e o chefe da PVDE, a polícia secreta, capitão Agostinho Lourenço. Num camarote ligeiramente maior, junto ao palco, acompanhado pela mulher, estava 41


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.