A Guerra dos Sapos e dos Ratos

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Pr e Traduções e apresentação de Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão

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FICHA TÉCNICA A Guerra dos Sapos e dos Ratos (Batrocomiomaquia) Homero EDIÇÃO GRÁFICA: edições Virgula® (Chancela do Sítio do Livro) AUTOR:

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TÍTULO:

PAGINAÇÃO GRÁFICA: ARRANJO DE CAPA:

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1.a edição, Lisboa Agosto, 2019

Alda Teixeira Ângela Espinha

ISBN:

978-989-8821-98-0 459089/19

DEPÓSITO LEGAL:

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© Gonçalo Mello Mourão

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

PUBLICAÇÃO:

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Apresentação

Desde pelo menos o século III antes de Cristo uma parte dos autores da antiguidade lia esta “Guerra dos Sapos e dos Ratos” como sendo obra de Homero ou a ele atribuída. Hoje, poucos insistiriam em que a tenha composto o Poeta – sem falarmos nos tolos que sustentam que ele não teria nem mesmo existido – e discute-se uma data qualquer para sua criação entre os séculos V e III antes de Cristo. Aristóteles – que floresceu por volta de 340 antes de Cristo – na Poética, ao se referir à obra burlesca de Homero, fala apenas no Margites e não cita a Batracomiomaquia; esse silêncio pode significar que em sua época o poemeto ainda não existia. Em seu “Discurso sobre a Batracomiomaquia”, Giacomo Leopardi (1798 – 1837), que a 7

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traduziu três vêzes para o italiano, relata a intuição que teve de que uma passagem do poema se teria inspirado diretamente de um trecho do segundo idílio do poeta Moscus sobre o rapto de Europa; como Moscus viveu por volta de 150 antes de Cristo, a Batracomiomaquia, seguindo-se a intuição de Leopardi, seria contemporânea ou posterior àquela data. Marcial ( 40 – 140 ), Plutarco ( 50 – 125 ) e Fulgêncio ( 467 – 533 ), por exemplo, já a conhecem famosa e a ela se referem como obra de Homero. Outros, entretanto, atribuíram-lhe autorias várias e o autor mais citado neste caso tem sido Pigres de Halicarnasso, grego da Cária, tido como irmão da rainha Artemísia, a famosa irmã e mulher do rei Mausolo (morto em 353 a.C.). Digladiar-se-ão ainda muito os especialistas sobre o verdadeiro autor da Batracomiomaquia; o fato é que o nome de Homero ficou desde sempre ligado ao pequeno poema e um ao outro não se desmerecem. A Batracomiomaquia é um divertimento, uma paródia. A exemplo das lutas dos heróis homéricos, propõe-se a cantar a guerra que tiveram entre si os sapos e os ratos usando, para tanto, dicção, vocabulário e imagística heróicos, entremeados de situações e nomes cômicos e da intervenção risonha dos deuses. A história é simples: um príncipe dos ratos, escapando da perseguição de um gato, vai se refrescar nas águas de um charco onde encontra o rei dos sapos que o convida para visitar seus domínios montado em suas costas. O rato aceita mas durante o passeio aquático surge à tona uma cobra d’água e o sapo, assustado, mergulha no charco deixando cair o rato que se afoga. Sabendo os ratos do acontecido, declaram guerra aos sapos e anunciam que os atacarão na manhã seguinte. Armamse os ratos enquanto os sapos discutem sobre a melhor maneira de enfrentar a situação. Ao fim e ao cabo armam-se também e a guerra começa cruel, tendo os deuses resolvido não intervir para não serem feridos pelos contendores. Desenrola-se a luta de maneira equilibrada até que um jovem e valoroso rato surge 8

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no campo de batalha e começa a dizimar os sapos. Zeus, desde o céu, se apiada da sorte dos sapos e para evitar seu aniquilamento manda em seu socorro aliados poderosos que põem os ratos em debandada. Ao mesmo tempo o sol se põe e se acaba essa guerra de um dia. A graça do poema, assim, está em tratar epicamente o embate dos sapos com os ratos e em dar a uns e a outros nomes pomposos como Papapresuntos, Roiqueijo, Inchabochechas, Chafurdanalama, e assim por diante. Tem o poema também a comicidade literária de imitar detalhes e situações da epopéia homérica. Assim, descreve o armamento de sapos e ratos com detalhes de louvor pelo material com que eram feitos: como Homero louva as camadas de couro e bronze do escudo de Ajax, por exemplo, louva a Batracomiomaquia as várias camadas de folhas de couve nos escudos bem lavrados dos sapos. Um dos traços característicos da Ilíada, que é a descrição às vezes minuciosa de como são feridos e morrem os heróis, é retomado pela Batracomiomaquia e vemos morrerem uns e outros com o fígado atravessado, com o cérebro saindo pelas narinas, com a perna estraçalhada por uma pedra. Aqui e ali plantam-se apodos aos nomes dos heróis, também à maneira de Homero. E até para a intervenção dos deuses encontra espaço o autor da Batracomiomaquia, apresentando-os com perfil burlesco, ainda que respeitoso, e refletindo a generosa omnipotência de Zeus sobre os deuses e homens, tal qual em Homero. Todas essas paródias literárias serão, naturalmente, pouco apreciadas pelo leitor sem intimidade com a épica homérica. Mas esta Batracomiomaquia tem o grande interesse, que lhe deram as vicissitudes da história, de ser hoje um dos mais antigos exemplos remanescente de obra literária propositadamente cômica do Ocidente, talvez a mais antiga, se exceptuarmos as comédias de Aristófanes. Pois, embora alguns críticos tenham procurado na Batracomiomaquia intenções morais – e Leopardi, naquele seu 9

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Discurso a que me referi, elenca alguns deles – elas se mostram antes intenções dos próprios críticos que as propuseram, voltados para as mazelas humanas de suas respectivas épocas – muitas das quais comuns a muitas outras épocas, das quais não escapa a nossa – do que inerentes ao poemeto. De fato, uma simples e desarmada leitura mostra apenas e simplesmente uma brincadeira. E como tal tem sobrevivido, ajudada, naturalmente, pelo prestígio que lhe emprestou desde o início o nome de Homero.

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O texto grego utilizado para esta edição baseou-se no estabelecido por Yann Migoubert para acompanhar a tradução do “Discurso sobre a Batracomiomaquia” de Leopardi (La Batrachomyomachie d’Homère précédée de Discours sur la Batrachomyomachie par Giacomo Leopardi et suivie de Le Goût de la parodie par Philippe Brunet – Editions Allia – Paris, 1998), confrontado com o texto estabelecido por Hugh G. Evelyn-White para a edição da Loeb Classical Library (Hesiod, the Homeric Hymns and Homerica – Heinemann, Londres e Harvard University Press, Cambridge, 1914): algumas leituras desse último foram aceitas em lugar de outras do primeiro, a maioria delas apenas detalhes linguísticos ou gramaticais, salvo três ou quatro versos inteiros e a sequência dos versos 251 a 252B e 282 a 284. De qualquer maneira, é conhecido, para os que têm abordado a Batracomiomaquia, o estado precário do texto em diversas passagens, devido à má conservação dos pergaminhos e papiros pelos quais nos chegou a obra até hoje, e as muitas divergências entre uma e outra edição refletem sobretudo dificuldades de leitura ou reinterpretações e correções, antes que variedade significativa do conteúdo literário propriamente dito. Apresento aqui quatro versões da tradução, que acredito serem as primeiras publicadas em português. A primeira, em prosa, se pretende fidelíssima ao texto, ao vocabulário e ao ritmo 10

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frasal do original, procurando guardar, entretanto, o máximo de fluidez na prosódia portuguesa: é um texto que se quer, ademais, lido sem afetação, quase coloquialmente. A segunda versão pretende cantar em tom grandioso o combate dos sapos e ratos, em espécies de hexâmetros portugueses baseados em valores tônicos e átonos, de acordo com a experiência bemsucedida de Carlos Alberto Nunes em suas traduções da Ilíada e da Odisséia. A terceira quer se filiar à forma épica camoniana tradicional, sendo-lhe amputados, entretanto, os sextos versos de cada estrofe, que não são mais, assim, oitavas, mas sétimas, pretendendo com isso fazer claudicar aquela forma épica na expressão desta paródia. A quarta, finalmente, é uma versão não tão presa ao texto original quanto as outras três e que se pretende de leitura mais ligeira. Divirta-se o leitor com a versão que mais lhe parecer, que com as quatro muito me diverti eu. Ficou faltando aqui uma quinta versão, infantil, para divertimento das crianças, mas esta necessitaria também, para ser completa em sua intenção, de ilustrações e até lá não chegam meus já parcos recursos.

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(tradução em prosa cingindo-se à letra do original)

Ao começar, peço primeiro ao coro das Musas que desça do Helicom até meu coração para que eu cante o que acabo de escrever nas tabuinhas sobre os meus joelhos: a luta interminável, obra de Ares que excita o tumulto da guerra – e peço aos mortais que abram bem as orelhas – como foi que os ratos se distinguiram marchando contra os sapos, imitando as façanhas dos gigantes, homens nascidos da Terra, conforme a história foi contada entre os mortais. Seu começo foi assim. Certo dia um rato sedento, tendo escapado de um gato perigoso, mergulhou o ávido focinho em um charco ali perto e 13

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estava se saciando na doce corrente quando o avistou um tagarela amante do lago que lhe falou assim: – “Estrangeiro, quem é você ? De onde veio até estas margens? Quem são seus pais ? Diga toda a verdade, não venha eu a perceber que está mentindo. Se o achar digno de ser meu amigo, levarei você a minha casa e lhe darei muitos e preciosos presentes por hospitalidade. Eu sou o rei Inchabochechas, honrado neste charco pelos sapos que eu comando em todos os momentos. Fui criado por meu pai, Lodoso, que se uniu amorosamente a Rainha-das-águas nas margens abruptas do Eridano. Você me parece belo e robusto e superior aos demais, será talvez um rei que porta cetro e belicoso nas batalhas. Mas vamos, diga logo sua linhagem.” E então Furtamigalhas respondeu dizendo: – “Por que você quer saber de minha linhagem ? Ela é conhecida de todos os homens e deuses e pássaros do céu. Eu me chamo Furtamigalhas, sou filho do magnânimo rei Roimigalhas e de minha mãe, Lambemós, filha do rei Roipresuntos. Ela me pariu numa choça e me alimentou com figos e nozes e comidas variadas. Por que quer ser meu amigo, se sou de natureza tão diferente ? Pois sua vida está nas águas, ao passo que eu estou habituado a todas as coisas que os homens comem; não me escapa a migalha de farinha bem fina no cesto bem arredondado, nem o biscoito coberto de queijo e sésamo, nem o pedaço de presunto, nem o fígado envolto na gordura branca, nem o queijo do mais doce leite recém-qualhado, nem a boa torta de mel, que até os bem-aventurados desejam e nem o que os cozinheiros preparam para os banquetes dos mortais, guarnecendo as panelas com os temperos mais variados. Jamais fugi da horrenda gritaria das batalhas, pelo contrário, vou logo marchando para o meio da luta, juntando-me aos que combatem na linha de frente. Não tenho medo do homem, ainda que grande de corpo, mas me enfio no fundo de sua cama e roo-lhe o dedo e vou até o calcanhar e 14

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ele não sente dor nem o abandona o sono profundo enquanto o mordo. Mas de duas coisas eu tenho muito medo dentre todas as da terra: do gavião e do gato, que me causam grandes aflições, e da ratoeira funesta, onde se encontra a morte pérfida; mas mais que tudo eu tenho medo do gato, que é afoitíssimo; quando me escondo num buraco, no buraco ele vai me buscar. Não como nabos, nem couves, nem abóboras, nem me alimento de verdes alfaces, nem de salsa, pois esses são alimentos de vocês, gente do charco.” A isso, com um sorriso, respondeu por sua vez Inchabochechas: – “Forasteiro, você se jacta demais das coisas da barriga. Também entre nós existem muitas coisas nas águas e na terra que são motivo de admiração. Pois uma dupla vida nos deu em lote, a nós batráquios, o Cronida: saltamos sobre a terra, escondemos o corpo nas águas e em dois elementos moramos. Se quiser conhecer isso tudo, é fácil: suba nas minhas costas, agarre-se a mim, para não escorregar, e assim alegre chegará a minha casa.” Assim ele falou e ofereceu as costas. O outro, montando rapidamente, agarrou com um laço suave das patas dianteiras o brando pescoço e no começo se deleitava olhando as margens próximas, encantado com o nado de Inchabochechas. Mas quando se molhou com as ondas purpúreas, esbravejou muito, proferiu lamentos inúteis, arrancou os pelos e com os pés apertava a barriga do sapo; o coração palpitava por causa do inusitado e desejava voltar para a terra. Gemeu terrivelmente com medo glacial do destino. Usou primeiro, então, o rabo como um remo na água, agitando-o, e rezava aos deuses para voltar para a terra; e se molhava com as águas purpúreas e gritava muito. E proferiu estas palavras sua boca: – “Não foi desta maneira que transportou nas costas o fardo amoroso o touro, quando conduziu Europa pelas ondas até

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Creta, como a mim sobre suas costas conduz nadando até sua casa este sapo, levantando o corpo pálido pela onda branca.” De repente, uma cobra d’água apareceu, espetáculo pavoroso para ambos. Mantinha o pescoço erguido sobre a água. Logo que a viu, Inchabochechas mergulhou, nem de longe pensando em quem era o companheiro que estava a ponto de abandonar à morte: mergulhou para o fundo do charco e afastou a negra morte. O outro, assim jogado, cai todo de costas sobre a água e agita as mãos e agonizando soltava gritos agudos. Muitas vezes afundou e muitas vezes esperneando voltou à tona; mas não pode escapar do destino. Encharcada a maior parte do pelo, mais aumentava o próprio peso. Afinal, sucumbindo, pronunciou estas palavras: – “Não ficará esquecido, Inchabochechas, seu pérfido proceder; você me jogou náufrago de seu corpo como de um promontório. Você não seria melhor do que eu sobre a terra, covarde, no pugilato ou na luta ou na corrida. Mas você me jogou na água traiçoeiramente. A divindade tem um olhar vingador, você vai pagar a pena ao exército dos ratos, sem escapatória.” Assim falando, morreu dentro d’água. Viu-o, entretanto, Lambepratos, que se encontrava na margem macia e com guinchos terríveis foi correndo levar a notícia aos ratos. Sabendo da desgraça, mergulharam todos em terrível cólera. Ordenaram logo aos arautos que convocassem para a manhã bem cedo uma assembléia na casa de Roimigalhas, pai do infeliz Furtamigalhas, cujo corpo estendido de costas no charco já não estava mais perto da margem mas boiava no meio das águas. Quando chegaram excitados ao romper da aurora, levantou-se primeiro Roimigalhas, irritado por seu filho, e disse estas palavras: – “Ó amigos, ainda que apenas eu tenha sofrido tantos males por causa dos sapos, a todos toca este infortúnio. Sou 16

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agora um desgraçado pois três filhos perdi aniquilados. O primeiro morreu presa do odiosíssimo gato, capturado fora do buraco; o segundo, os homens cruéis atraíram à morte com técnicas extraordinárias, inventando uma armadilha de madeira a que chamam ratoeira e que liquida os ratos; o terceiro, que era amado por mim e por sua venerável mãe, Inchabochechas o afogou levando-o ao fundo das águas. Vamos, então, armem-se e marchemos contra eles, com os corpos protegidos por armaduras artisticamente lavradas.” Assim falando, convenceu todos a que se armassem. E Ares que gosta da guerra tomou conta deles. Primeiro, ajustaram as perneiras nas pernas, favas verdes partidas que as envolviam e que eles mesmos durante a noite haviam roído habilmente. Vestiram couraças de peles montadas em juncos – peles de gato esfolado – feitas com habilidade. O escudo era uma placa central de candeeiro; e a lança uma agulha comprida de bronze, trabalho de Ares. O elmo era uma casca de grão-de-bico sobre a cabeça. Assim se armaram os ratos. Ao saberem daquilo os sapos saíram para fora da água e foram a um lugar deliberar sobre a guerra funesta. E perguntavam uns aos outros a razão daquela agitação e daquele clamor, quando um arauto chegou perto levando na mão uma varinha: era Entrempanelas, o filho do magnânimo Mordequeijo, que levou a notícia funesta da guerra, falando assim: – “Ó sapos, os ratos vão atacar vocês e me mandam dizer que se preparem para a luta e para a guerra. Pois viram Furtamigalhas sobre as águas, assassinado pelo rei de vocês, Inchabochechas. Lutem, então, os que forem os melhores entre vocês sapos.” Suas palavras foram claras. O discurso irrepreensível entrou nos ouvidos e desconcertou os corações dos sapos orgulhosos. Como censurassem Inchabochechas, ele se ergueu e disse: 17

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– “Ó amigos, eu não matei o rato nem o vi morrer; seguramente se afogou brincando na beira da água, imitando o nado dos sapos. E agora esses infames acusam a mim, que sou inocente. Mas vamos decidir juntos e buscar como destruir os pérfidos ratos. Vou dizer, então, o que me parece melhor. Vamos ficar armados imóveis, fortificados na parte mais alta, no lugar que for mais escarpado; quando, então, eles se lançarem contra nós nos atacando, agarraremos pelos elmos os que chegarem mais perto e os lançaremos todos no charco, lá em baixo. Desse modo se afogarão nas águas, eles que não sabem nadar, e nós ergueremos contentes um troféu pelo raticídio.” Assim ele falou e convenceu todos a se armarem. Com folhas de malva cobriram as pernas ; vestiram, como couraças, folhas belas e verdes de beterraba ; com folhas de couve fizeram habilmente os escudos ; cada um se armou de um junco pontiagudo e comprido como lança ; e como elmo cobriram a cabeça com uma concha fina. Puseram-se em fileiras cerradas no alto da margem, brandindo as lanças, todos cheios de coragem. Zeus, então, convocou os deuses ao céu estrelado e lhes mostrou a multidão pronta para a guerra, valentes, belicosos, numerosos e robustos, armados de lanças compridas, marchando como o exército dos centauros ou o dos gigantes; e com um sorriso alegre perguntou: – “Quais deuses vão ajudar os sapos e quais os ratos ?” E disse a Atena: – “Ó filha, você vai socorrer os ratos ? Pois saltitam constantemente pelo seu templo, deleitando-se com o cheiro da gordura tostada e com comidas de toda espécie.” Assim falou o Cronida. Mas Atena respondeu: – “Ó pai, jamais defenderei os ratos em apuros, porque muitos males me causaram estragando minhas grinaldas e os candeeiros para beberem o azeite. E uma coisa fizeram que feriu demais meu coração: furaram toda minha túnica, tecida por mim 18

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mesma a duras penas numa trama sutil e de urdidura delicada, esburacaram toda; e o alfaiate me persegue e está me cobrando juros – coisa terrível para os imortais ! – pois peguei a linha fiado e não tenho como pagar. Mas, mesmo assim, não vou ajudar os sapos. Eles tampouco têm consideração, pois, recentemente, quando voltei de um combate e estava muito cansada, precisava dormir, eles não deixaram, com seu barulho, que eu fechasse o olho nem um instante e fiquei deitada sem poder dormir, com dor de cabeça, até o galo cantar. Vamos nos abster, nós Deuses, de ajudá-los; não venha qualquer um de vocês a ser ferido por uma lança aguda, pois lutam corpo a corpo, mesmo se um deus for contra eles. Vamos todos nos divertir, daqui do céu, contemplando o combate.” Foi o que ela disse e os outros deuses concordaram, indo todos juntos se reunir em um certo lugar. Naquele instante, então, uns mosquitos munidos de grandes trombetas anunciaram o estrépito formidável do combate; o Cronida Zeus trovejou dos céus, sinal da batalha funesta. Em primeiro lugar Coaxaforte feriu com a lança a Lambehomens, que estava entre os da frente, traspassando-lhe o ventre e cravando o fígado; caiu de rosto no chão cobrindo de pó a macia pelugem. Caiu com estrépito, retumbando suas armas sobre o corpo. Moremburacos, depois dele, atacou a Lodoso e cravou-lhe o peito com a dura lança; apoderou-se do caído a negra morte e a alma saiu voando pela boca. Em seguida Papalface mata a Entrempanelas, atingindolhe o coração. Comepão acerta Coaxador na barriga: ele tomba para a frente e sua alma voa embora dos seus membros. Gostadopântano, ao ver Coaxador perecendo, foi à frente e partiu o pescoço tenro de Moremburacos com uma pedra 19

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em forma de mó; e as trevas envolveram seus olhos. A dor se apoderou de Papamanjericão e afundou o junco aguçado e não retirou a lança: vendo aquilo, Lambehomens apontou contra ele uma lança brilhante e arremessou e não errou, atravessando o fígado; vendo que Comecouves fugia, saltou aos pés da margem abrupta e nem por isto parou de lutar, antes o feriu e o outro caiu não levantando mais a cabeça da água, tingindo-se o charco do sangue purpúreo, ficando na margem estirado, atravessadas as tripas e os costados brilhantes. A Comequeijo também matou na margem (.....) Junqueiro, ao ver Mordefiambres, foi tomado pelo medo e fugiu saltando no charco e largando o escudo. A Papatortas matou o irrepreensível Rolanolodo. E Gostadágua matou o rei Papapresuntos, ferindo-o com uma pedra no alto da testa; o cérebro escorreu pelo nariz, a terra se manchou de sangue. A Lambepratos, então, matou o irrepreensível Rolanolodo, atirando-lhe a lança: e as trevas cobriram seus olhos. Papalhoporró, vendo o que acontecia, o arrastou pelo pé, embora estivesse morto, e o afogou no charco segurando pelo pescoço. Furtamigalhas foi vingar seus amigos que morriam e feriu Papalhoporró antes que voltasse à margem; ele caiu na sua frente e sua alma baixou ao Hades. Andentrecouves, vendo isso, jogoulhe nos olhos um punhado de lama que bateu no rosto e quase o cegou. Enraiveceu-se ele, então, e agarrou com a mão forte uma pedra enorme que jazia no chão, fardo da terra, e com ela acertou Andentrecouves abaixo do joelho; partiu-se toda a perna direita e ele caiu de costas na areia. Gritamuito foi defendê-lo e marchou contra o outro, golpeando-o em cheio no ventre; e o junco pontudo afundou todo inteiro lá dentro, derramando-selhe as tripas pelo chão ao arrancar a lança com mão firme.

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Moremburacos vendo aquilo do alto da margem e retirando-se do combate coxeando, extremamente abatido, saltou dentro de um fosso para fugir da morte abrupta. Roimigalhas atingiu Inchabochechas na ponta do pé; rapidamente, com terrível aflição, fugiu saltando no charco. Papalhoporró quando o viu, entretanto, ofegante e caído, avançou por entre os da primeira fileira e arremessou sua lança de junco aguçado; mas o escudo não se rompeu e nele ficou cravada a ponta da lança. Mas seu capacete irrepreensível, feito de quatro cascas de figo, foi atingido pelo divino Oregânico, imitando o próprio Ares, o único dos sapos que sobressaía dentre os demais. Mas investiram contra ele e ao vê-lo não ousou enfrentar os heróis valorosos mas mergulhou no fundo do charco. Havia, entretanto, entre os ratos o jovem Paparrestos, que se assinalava dentre os outros, filho querido do irrepreensível Roedor, o farejador de pão, que foi à casa do filho dizer-lhe que fosse participar do combate, ficando ele próprio na beira do charco imponente. O outro ameaçou exterminar a tribo dos sapos. Aproximou-se, ansioso por combater valorosamente e partiu em duas partes uma noz pelo meio, colocando cada parte numa pata, como armadura. Os sapos, com medo, rapidamente saltaram para o charco. E ele certamente teria realizado seu propósito, pois sua força era grande, se o pai dos homens e dos deuses não o tivesse percebido logo. Porque naquele instante o Cronida se compadeceu dos sapos que morriam e meneando a cabeça adiantou-se e falou assim: – “Ó deuses, que grande façanha meus olhos vão ver; muito me espanta Paparrestos, que ameaça matar os sapos junto do charco; vamos mandar rapidamente Palas, que provoca a guerra, ou Ares ; eles o afastarão da luta, por mais forte que ele seja.” Assim falou o Cronida. Hera respondeu com essas palavras: 21

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– “Nem a força de Atena, Cronida, nem a de Ares, serão bastantes para livrar os sapos da abrupta morte. Mas vamos ir todos juntos socorrê-los, ou que sua arma se solte, a grande e terrível matadora de titãs, como no dia em que você matou Capaneu, o homem violento, e o grande Encelado e a raça selvagem dos gigantes. Sacode a sua arma, que assim sucumbirão os melhores.” Assim falou. O Cronida lançou, então, um raio deslumbrante: primeiro trovejou, estremecendo o grande Olimpo, depois lançou o raio, arma aterrorizante de Zeus, que caiu serpenteando, saindo voando da mão soberana. A todos causou medo a queda do raio, aos sapos e aos ratos. Mas mesmo assim não arrefeceu o exército dos ratos, e confiaram mais ainda em destruir a raça dos sapos belicosos. Mas do Olimpo Zeus se apiedou dos sapos, enviando imediatamente um auxílio para eles. Rapidamente chegaram uns costas-grossas, garras-curvas, de andar oblíquo, retorcidos, bocas-de-tesoura, testáceos, ossudos, espadaúdos, de ombros reluzentes, pernas tortas, patas largas, olhando pelo peito, octópodos, bicornes, sem mãos, que são chamados caranguejos e que, então, morderam os ratos nos rabos, nos pés e nas patas: quebravam-se as lanças. Tiveram medo deles os ratos, então, e não ficaram, deram meia-volta e fugiram. O sol se punha naquele momento e terminou esse combate que só durou um dia.

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(tradução em tentativa de hexâmetros portugueses regulares em : – ∪ ∪ – ∪ ∪ – ∪ ∪ – ∪ ∪ – ∪ ∪ – ∪ )

Peço primeiro que o coro das Musas me venha do alto lá do Helicom até o meu coração e que eu possa cantar isto, que acabo de por nas tabuinhas sobre os meus joelhos – e peço a todos mortais que abram bem as orelhas – : a luta interminável – criação de Ares que arma o tumulto da guerra – como é que os ratos marcharam e se assinalaram no ataque que contra os sapos fizeram, os feitos buscando imitar dos que gigantes nasceram da Terra, conforme se conta entre os mortais. Foi assim seu começo : houve um dia em que um rato, tendo escapado, sedento, do grande perigo de um gato, 23

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nas doces águas de um charco ali perto molhando o focinho se saciava, quando um tagarela que gosta do charco viu-o e assim lhe falou : – “ Estrangeiro, você de onde veio, quem é você, quem deu vida a você, diga toda a verdade, não venha eu perceber que você está mentindo. Se digno me parecer você de que sejamos amigos, à casa o levarei e presentes de hospitalidade darei, muitos e bons. Quanto a mim, sou o rei Inchabochechas, sou em todo o charco dos sapos honrado e a todos comando. Meu pai criou-me, Lodoso, que às margens abruptas do rio Eridano se juntou com amor a Rainha-das-águas. Vejo você belo e forte, aos demais superior deve ser, rei que usa cetro e guerreiro feroz nas batalhas. Mas, vamos, diga qual é sua linhagem. ” E Furtamigalhas, então, disse em resposta : – “ Por que quer saber qual a minha linhagem ? Sabem-na os homens e os deuses e os pássaros todos do céu. Chamo-me Furtamigalhas, sou filho do rei Roimigalhas, forte e magnânimo e foi minha mãe Lambemós, que foi filha de Roipresuntos, o rei ; numa choça eu nasci e ali ela me alimentou com comidas variadas e figos e nozes. Por que quer ser meu amigo, se somos de espécies diversas ? Pois sua vida é nas águas, ao passo que eu sou habituado às coisas todas que comem os homens ; a mim não escapa nem a migalha pequena no fundo do cesto redondo, nem o biscoito coberto de queijo e de sésamo e nem qualquer pedaço de fiambre ou de fígado, envolto em gordura, e nem o queijo coalhado há bem pouco do leite mais doce ; tampouco a torta de mel que até os Deuses desejam, tampouco nada do que os cozinheiros preparam para ser comido pelos mortais nos banquetes, com os mais variados temperos bem preparado. Jamais desertei da gritaria horrenda da guerra, pelo contrário, vou logo correndo para onde lutam aqueles que estão nas fileiras da frente. Não temo 24

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homem nenhum, por maior que seu corpo se mostre, mas entro lá bem no fundo da cama onde dorme e o dedo lhe rôo e vou descendo até seu calcanhar e ele não sente dor, nem o abandona seu sono profundo, enquanto eu vou mordendo. Mas entre as coisas da terra, de duas eu tenho pavor : do gavião e do gato, que grande aflição me provocam e da ratoeira funesta, onde a morte traiçoeira se esconde ; mas é do gato que eu tenho mais medo : ele é ágil e quando vou me esconder num buraco profundo, ele vai me buscar lá no profundo buraco. Eu não como nem nabos nem couves, nem como abóboras, nem me alimento de alface ou de salsa, pois estas são as comidas que comem vocês lá do charco.” Disse, sorrindo, em resposta a isso tudo, então, Inchabochechas : – “ Você de jacta demais, forasteiro, das coisas do ventre. Muito também entre nós há nas águas e em cima da terra digno de ver e admirar, pois a nós, os batráquios, nos deu dúplice vida o Cronida : saltamos na terra e escondemos dentro das águas o corpo ; dividem-se em dois elementos nossas moradas. Se quer conhecer isso tudo é bem fácil : nas minhas costas se instale e se agarre a mim bem, com cuidado, de modo a não deslizar e contente irá até minha casa. ” Assim, pois, ele falou e lhe virou as costas. O outro, rapidamente montando, agarrou num enlace suave de suas patas dianteiras o brando pescoço e a princípio se deleitava, admirando as ribeiras mais próximas, vendo com muito encanto a maneira como Inchabochechas nadava. Mas quando as ondas purpúreas molharam seu corpo, gritou e gritou muito e lamentos inúteis soltou e arrancou muitos dos pelos e o ventre do sapo apertou com os pés ; o coração palpitava, por causa do insólito estado e desejava voltar para a terra. Gemeu de terror, com frio medo da fatalidade. Usou, então, o rabo como se um remo ele fosse e agitando-o na água rezava, 25

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