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FICHA TÉCNICA Direito e Democracia em Rousseau AUTOR: Manuel João Matos EDIÇÃO: edições Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) REVISÃO:
Patrícia Espinha CAPA: Ângela Espinha PAGINAÇÃO: Alda Teixeira
ISBN:
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1.a Edição Lisboa, novembro 2020
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TÍTULO:
978-989-9028-03-6 472552/20
DEPÓSITO LEGAL:
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© MANUEL JOÃO MATOS
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Índice
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Edições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAPÍTULO I
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O DIREITO POLÍTICO E A TEORIA DA DEMOCRACIA . . . 19 CAPÍTULO II
SOBERANIA E GOVERNO: A TEORIA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES EM DEMOCRACIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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CAPÍTULO III
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O LEGADO DO CONTRATO SOCIAL.
PROBLEMAS DE INTERPRETAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Conclusão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 Bibliografia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 Índice Onomástico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
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Agradecimentos
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Os meus agradecimentos ao Professor Doutor Michel Renaud, Professor Catedrático aposentado da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, à Professora Isabel Renaud, Professora Catedrática aposentada da FCSH da Universidade Nova de Lisboa e ao Professor Doutor Francisco Caramelo, Director da FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Os meus agradecimentos à minha mulher Sílvia, ao meu filho João e à minha irmã Ana Matos.
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Edições
ROUSSEAU, J.-J., Œuvres complètes, edição de Bernard Gagnebin e Marcel 5 vols.
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Raymond. Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1959-1995, ROUSSEAU, J.-J., Lettres philosophiques, edição de Henri Gouhier. Paris, Vrin, 1974.
ROUSSEAU, J.-J., Correspondence complète de Jean-Jacques Rousseau, edição crí-
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tica de Ralph A. Leigh, Genève e Oxford, Droz, 1965-1982, 40 vols. ROUSSEAU, J.-J., Correspondence générale de J.-J. Rousseau, edição de Théophile Dufour e P.-P. Plan. Paris, Armand Colin, 1924-1934, 24 vols.
ROUSSEAU, J.-J., The political writings of Jean-Jacques Rousseau, edição dos manuscritos originais de C. E. Vaughan. Oxford, Blackwell, New York, Wiley, 1962, 2.ª ed., 2 vols. (Cambridge, Cambridge University
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Press, 1915).
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INTRODUÇÃO
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Rousseau não defendeu apenas que a soberania residia originariamente no povo, como Grotius, Jurieu, Pufendorf, Burlamaqui, ou mesmo Hobbes, pois em tal caso o Contrato social não teria tanta importância na história do pensamento político ocidental. Todos os teóricos do direito natural moderno defendiam que o povo se podia despojar dos seus direitos de soberania a favor de um terceiro, que é o soberano de facto, quer através de um pactum unionis, como em Hobbes, quer de um pactum subiectionis, como para a maioria dos autores da escola do direito natural moderno. A grande novidade da doutrina política de Rousseau é a de que a soberania reside sempre no povo porque a «autoridade soberana é a mesma em todo lado»1. Rousseau funda, simultaneamente, um novo conceito de soberania e um novo conceito de democracia, em ruptura com o conceito moderno da alienação da soberania que foi defendida pelos teóricos do direito natural e a concepção antiga da democracia. Rousseau incorpora a lógica moderna da soberania com a democracia, criando uma «forma» simbólica, «um ser de razão»2
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ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, III, 4, O. C., III, p. 405. ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, I, 7, O. C., III, p. 363. 13
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tendo uma existência «ideal e convencional»3, até então inédita no mundo ocidental: a soberania democrática estabelecida no Contrato social mediante o conceito de «vontade geral». A teoria da vontade geral, articulando o princípio da soberania popular com a ideia de autonomia individual, é a contribuição mais notável de Rousseau para a fundação da democracia moderna: «Rousseau foi um daqueles que, pela sua teoria da soberania da vontade geral, mais merecem ser tidos em conta como tendo contribuído para fundar a modernidade política»4. A Soberania do Estado corresponde ao conceito político de Estado caracterizado na sua estrutura constitucional «fundamental». A Soberania do Estado não depende de uma escolha política particular, que seria a de um partido ou campo político, pois designa a estrutura política do Estado conexa aos «direitos fundamentais» e à organização dos poderes que caracterizam as modernas democracias constitucionais regidas por «leis fundamentais»5 que estruturam o Estado democrático: «Para ordenar o todo, ou dar a melhor forma possível à coisa pública, há diversas relações a considerar. Primeiramente, a acção do corpo inteiro agindo sobre si próprio, quer dizer, a relação do todo ao todo, ou do Soberano ao Estado, e esta relação é composta dos termos intermediários»6 ou a estrutura intermediária do «Governo». A Soberania democrática e a teoria das «formas de governo», assim como as relações que interagem entre
ROUSSEAU, J.-J., Écrits sur l’Abbé de Saint-Pierre, O. C., III, p. 608. RENAUT, A., MESURE, S., Alter Ego, Les paradoxes de l’identité démocratique. Paris, Flammarion, 1999, p. 163. 5 ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, II, 12, O. C., III, p. 393. 6 ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, II, 12, O. C., III, p. 393. 3 4
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ambas, formam «os princípios do direito político» e o sistema das «leis fundamentais» ou «políticas»7 do Contrato social. A divisão de funções entre a soberania e o governo, que Rousseau considera não ter sido executada de forma adequada antes dele, exerceu uma profunda influência sobre a filosofia política e jurídica dos séculos sucessivos, e funda o princípio constitucional da democracia moderna da separação dos poderes executivo e legislativo8. Tal distinção é capital na economia do pensamento de Rousseau e conduz à defesa da dupla tese da Soberania democrática e do Governo representativo. Quanto à representação do povo, «basta conceber como o Governo representa o Soberano. A Lei que não é senão a declaração da vontade geral, no poder Legislativo o Povo não pode ser representado, mas pode e deve sê-lo no poder executivo que não é senão a força aplicada à Lei»9. A intuição genial de Rousseau foi a substituição da teoria moderna do direito natural pelo «direito político», fundando a soberania popular como a única forma legítima da autoridade política. Rousseau é um dos leaders da escola democrática; e porventura, o primeiro dos teóricos da soberania popular. Ninguém antes dele defendeu com tanta força os princípios da liberdade humana individual e do autogoverno popular; ninguém deduziu com tanto rigor lógico os «princípios» que norteiam a doutrina da «soberania
ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, II, 12, O. C., III, p. 393. Segundo A. Esmein, é graças à terminologia própria a Rousseau que nos habituamos «à voir dans le gouvernement le pouvoir tout seul» («La maxime Princeps legisbus solutus est dans l’ancien droit public français», in P. Vinogradoff (ed.), Essays in Legal History, Oxford, 1913, p. 202). 9 ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, III, 15, O. C., III, p. 430. 7 8
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popular». Todas as formas de governo que existem na história ou têm a sua própria legitimidade na soberania popular ou são ilegítimas. No «princípio» da soberania popular encarna-se a majestas ou a plenitudo potestatis e, como tal, o direito de controlar os ramos do governo, em particular, o executivo e o judicial sob o império da Lei. A tradição filosófica anterior definiu as «diversas espécies ou formas de governo pelo número dos membros que as compõem»10. A teoria das formas de governo (ratio imperandi) é um problema importante, mas secundário, em relação à «forma da República» (status respublica) que é necessariamente democrática. A democracia deixa de ser uma das formas possíveis de governo e torna-se o único regime político legítimo e racionalmente fundado. Na problemática que Rousseau formula e examina no Contrato social, a soberania do povo é o fundamento de todo o regime político e não o critério do governo democrático. Segundo Rousseau, a teoria da soberania popular é inatacável em todo o Estado bem constituído e tal tese funda os princípios normativos da democracia qualquer que seja a forma de governo. Rousseau afirma que «todo o Governo legítimo é republicano» e «para ser legítimo, não é necessário que o Governo se confunda com o Soberano, mas que ele seja o ministro: então a própria monarquia é república»11. A «república» designa todo o regime democrático que se rege por leis em conformidade às máximas do Estado de Direito, sob qualquer forma de «administração» (Governo). A concepção da «vontade geral», bem como a distinção entre a soberania e o governo, são as teses essenciais do pensa10 11
ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, III, 3, O. C., III, p. 402. ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, II, 6, O. C., III, pp. 379-380, nota*. 16
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mento político de Rousseau. Estas duas teses indissociáveis formam os dois termos de uma «proporção contínua», cujo termo médio proporcional é o governo (principium executionis) e a vontade geral o principium diiudicationis do Estado.
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CAPÍTULO I
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O DIREITO POLÍTICO E A TEORIA DA SOBERANIA
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A teoria da democracia, cujas bases foram lançadas por J.-J. Rousseau, apoia-se no direito e na ideia de que a sociedade democrática actua sobre si própria através de meios políticos, pois os destinatários das leis são os seus autores. Rousseau e Kant transformaram a intuição do ethos democrático no conceito de autonomia. Em matéria de filosofia política, Hans Kelsen, um dos mais importantes teóricos do direito da actualidade e autor da Teoria pura do Direito, considera Rousseau «o mais eminente analista da democracia»12. Kelsen inscreve explicitamente a sua teoria da democracia sob o patrocínio de Rousseau. Segundo Lord Acton, Rousseau «produziu um efeito maior com a sua pena do que Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino ou de qualquer outro homem que alguma vez tenha existido»13. Lord Acton afirmou que Rousseau é «o autor que dispõe da teoria política mais poderosa KELSEN, H., La Démocratie, sa nature, sa valeur, trad. C. Eisenmann. Paris, Economica, 1988, p. 24. 13 Acton cit. in BERLIN, I., Rousseau e os outros cinco inimigos da liberdade, trad. T. Araújo, org. e notas H. Hardy. Viseu, Gradiva Publicações, 2005, p. 49. 12
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que jamais existiu entre os homens»14. Esta teoria política é exposta no Contrato social onde Rousseau consumou uma tarefa inédita na história do pensamento ocidental: a fundação dos princípios teóricos da democracia moderna, quaisquer que sejam as vicissitudes da sua realização histórica. A democracia não é um regime político entre outros, mas o ideal normativo de todos os Estados existentes e o «direito político» é a «escala» pela qual se devem reger: «Antes de observar, é necessário fazer-se uma escala para se lhe referir as medidas que se tomam. Os nossos princípios do direito político são esta escala»15. O poder político em democracia é distribuído através da discussão e votação. O voto representa uma espécie de poder, distribuído de acordo com a regra da igualdade numérica. Segundo Rousseau, um voto representa uma fracção 1/n da soberania16. «Um cidadão/um voto» é o equivalente, no campo político, da regra que proíbe a exclusão na esfera da previdência quanto aos cargos e às competências do poder e do princípio da «igualdade de direito»17. A democracia, segundo Rousseau, é a forma de atribuição do poder e da legitimação do seu uso, ou melhor, é a forma política da distribuição do poder. O ensinamento da «grande empresa»18 de Rousseau é o de que, em democracia, realiza-se integralmente a autonomia do
ACTON, J. E., Essays in Liberal Interpretation of History: Selected Papers, edição W. H. MacNeill. Chicago, University of Chicago Press, 1967, pp. 374-375. 15 ROUSSEAU, J.-J., Émile, V, O. C., IV, p. 837. 16 ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, III, 1, O. C., III, p. 398. 17 ROUSSEAU, J.-J., Contrat social, II, 4, O. C., III, p. 373. 18 ROUSSEAU, J.-J., Fragments Politiques, O. C., III, p. 480. 14
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ser humano e é à fundação dessa «verdade»19 política que consagra o seu pensamento e a sua vida. Segundo John Dunn, «o triunfo da democracia foi, em primeiro lugar, o triunfo de uma palavra. Os triunfos ligados a esta palavra são um particular modo de pensar (e de recusar pensar) acerca da autoridade para governar, e de um leque de instituições para seleccionar e restringir os governos que clamam seguir este modo de pensar. O modo de pensar não é sempre convincente, pois equaciona o governante com o governado, onde em todo o lado, como notou Joseph de Maistre, governante e governado mantêm-se inflexivelmente à parte: “o povo que comanda não é o povo que obedece”20. Mas da sua total insubstancialidade resulta frequentemente a sua vulgar implausibilidade, que serve admiravelmente para definir a mudança estrutural nos governantes num mundo que o capitalismo refez a uma nova luz»21. Contudo, a democracia não é, como afirmava Marx, «o enigma não resolvido de todas as constituições»22. O desaparecimento da dominação totalitária permitiu à sociedade manifestar-se com todas as suas contradições, mas a força da democracia revelou-se como uma ameaça a toda a ordem estabelecida em bases não democráticas. O desaparecimento do totalitarismo conduz ao reconhecimento de que a democracia funda-se pondo em questão toda ROUSSEAU, J.-J., Lettre à D’Alembert, O. C., V, p. 120. MAISTRE, J., Works, ed. & tr. J. Lively. New York, Macmillan, 1964, p. 93. 21 DUNN, J., Setting the People Free. The Story of Democracy. London, Atlantic Books, 2005, pp. 141-142. 22 MARX, K., «Introduction à la critique de la Philosophie du droit de Hegel», Œuvres, Philosophie, edição M. Rubel. Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, t. III, 1982, p. 901. 19 20
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a visão de uma estabilidade permanente ou de um fim da história. Como a teoria de Marx se guia pela necessidade de tornar manifestas as necessidades materiais e históricas, cai aquém do conceito simbólico da democracia. A teoria marxista cometeu um erro semelhante àquele que Kant denunciou no argumento ontológico e que Marx reprovava a Hegel, fundando a sua teoria num erro análogo, pois opera um «salto mortal» da existência em teoria à existência prática ou, segundo as palavras de Marx, «das coisas da lógica à lógica das coisas». Paradoxalmente, Marx — que, mais do que qualquer outro teórico, usou e abusou do efeito da teoria, efeito propriamente político que consiste em dar a ver (theorein) uma «realidade» que não existe completamente senão enquanto é conhecida e reconhecida em teoria — omitiu inscrever este efeito na sua teoria e manifestou total impotência na compreensão do significado simbólico da democracia. Se o futuro democrático não pode ser compreendido segundo uma visão mundial da História que postula a superação de toda a luta social, qual é a essência da democracia? Como situá-la historicamente, depois de fundada filosoficamente? Não advém ela senão com a modernidade? Em que é que reside a sua novidade e a sua radicalidade inédita? A democracia não é, enquanto tal, uma política; ela permanece a condição de possibilidade de toda a política capaz de fazer face aos dilemas da modernidade. Politicamente, depois de Rousseau e Kant até aos nossos dias, só tem sentido fundar a dignidade humana no quadro do Estado de Direito democrático — e não afirmá-la contra ele —, pelo que há necessidade de fundamentar a «integridade» e a «autonomia» da pessoa perante a «organização», o «comando» ou o «ordenamento», em suma, postulando a superação da «pura relação 22
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de poder», sem qualquer referente de validade normativa. Tal é a «relação de poder» característica dos regimes autocráticos. A democracia, pelo contrário, obriga ao reconhecimento da diferença de pessoas iguais em direitos e dignidade. A «igualdade de direito», formalmente inaugurada por Rousseau, diz respeito à dignidade da pessoa e tem a sua exclusiva precipitação jurídico-estadualmente significativa nos estados democráticos. «A partir de Locke, Rousseau e Kant, uma concepção do direito impôs-se não somente na filosofia, mas a pouco e pouco também na realidade constitucional das sociedades ocidentais, que tem em conta simultaneamente o carácter positivo do direito coercivo e o facto de que garante as nossas liberdades. Depois de Rousseau e Kant, existe do ponto de vista normativo não simplesmente um laço histórico e contingente, mas um laço conceptual e interno entre a teoria do direito e a teoria da democracia»23. A teoria moderna da democracia toma os «direitos fundamentais» consubstanciais ao direito, quer dizer, fundados na própria raiz do direito, embora aferidos de um ponto de vista ético. Sob este ponto de vista, a perspectiva do «direito autopoiético», fundado na origem da sociedade, individualiza a passagem do «direito natural» racionalista a um «direito positivo estruturalmente variável», isto é, decidido no âmbito da própria sociedade. Daí a relação recíproca entre o «direito» e a «política» que Rousseau designa como o «direito político» e que se substitui ao direito natural tradicional. A «justiça» é o ideal normativo que é a condição de possibilidade do direito judicial e legislativo actuar sobre o poder executivo como a HABERMAS, J., L’Intégration Républicaine, Essais de théorie politique (1996), trad. R. Rochlitz. Paris, Fayard, 1998, p. 276. 23
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