Alba Minha

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Alba Minha


edição: Edições Vírgula® título: Alba

Minha autora: Preta E. Santo

(chancela Sítio do Livro)

Patrícia Espinha Patrícia Andrade paginação: Paulo S. Resende revisão: capa:

1.ª edição Lisboa, setembro 2017 isbn:

978­‑989-8821-46-1 423797/17

depósito legal:

© Preta E. Santo

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt


Preta E. Santo

Alba Minha



1. A Minha Sina Desço do táxi, pago com algumas notas de dois mil kwanzas e não recebo o troco, meus longos membros inferiores levam-me pela rua onde moro, em minha algibeira meu aparelho de fazer chamadas volta e meia vibra desde a noite passada, são dez da manhã... nem sequer o tiro do seu casulo, poderia pô-lo completamente no modo silencioso mas é óptimo sentir que alguém me quer vivo apesar do sentimento não ser retribuído... sei quem é, minha progenitora, a minha querida, alcoólatra e boémia mãe. A passo exageradamente lento, ando de globos oculares presos em minhas Dr. Martens pretas já bastante riscados dos anos de massacre... sorrio, memórias da minha ida a Londres onde as adquiri e das aventuras feitas por lá borbulham-me na mente, enfio a mão no outro bolso das minhas jeans pretas e tiro um maço de cigarros, ponho um cigarro na ponta dos lábios, acendo-o e puxo com toda a força para dentro do peito, fecho os olhos e viro a minha moleira em direcção ao céu enquanto desengato alguma nicotina para fora, guardo o isqueiro, continuo a andar... ouço crianças gritando e cantando músicas de folclore infantil, riem-se alto, não olho para elas, ouço-as somente, tenho o cérebro vazio e todos os sons ecoam dentro dele, cães latem, um carro passa fazendo com que as crianças subam mais um tom na gritaria... quase a chegar ao meu portão, uma voz feminina, sensual chama por mim euforicamente. – Ivan, Ivan!!!

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Viro-me e lá está ela, Erine, sempre atenta aos meus passos, mulata linda de cabelo cacheado quase até ao rabo, um traseiro lindo, bem torneado que combina com o resto da perfeição física que possui, gira de rosto, com uns 16 anos... não fosse tão oferecida talvez já tivesse tentado alguma coisa com ela. Saltita da varanda do seu quarto para cima e para baixo como um coelho, acenando com a mão e expondo o formato dos seus seios num top curto de alças. Atira-me um beijo ao longe, sorrio com o canto do lábio e ignoro-a. No bairro do Alvalade inteiro, cheio de vivendas lindas e imponentes, enormes e bem cuidadas, a minha, ou direi, a da minha mãe é uma delas e está sempre de portão aberto, o guarda que temos não passa de um homenzinho comum sem qualquer aptidão para tal, temos uma empregada, uma lavadeira, uma cozinheira e um jardineiro que vai lá tratar do jardim duas vezes por semana. Mal entro para o quintal, Toy, o guarda dos seus trinta e poucos anos tenta chamar-me à atenção pelo horário de chegada, lanço-lhe um olhar fulminante e cala-se. Os cães presos nas casotas latem ao ver-me, achego-me a eles e agacho-me, deixo-os lamberem-me os dedos das mãos, começam a ficar aflitos com o cheiro forte a tabaco, sorrio e afasto-me. Continuo a subir a pequena ladeira do estacionamento para os carros e chego ao quintal principal, uma das serviçais está a estender roupa, saúda-me e respondo baixinho, ao passar pela cozinha, Filomena, Meninha, que está conosco desde que eu tinha cinco, seis anos está a mexer num panelão de feijoada cujo cheiro inunda a atmosfera toda. Olho para cima e começo a subir o primeiro lanço de dezoito degraus e a empregada mais nova delas todas sorri para mim acanhada enquanto balbucia um bom dia, mas

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não respondo... lanço fumo na sua direcção e ela foge de mim descendo as escadas a tossir. Faço uma pausa no primeiro andar, o meu telemóvel volta e meia ainda vai estremecendo os músculos da minha coxa, olho em volta, o corredor está sujíssimo, com copos descartáveis, latas de bebida, serpentinas, guardanapos, comida e até preservativos, a minha querida progenitora não perde uma oportunidade para dar uma festa, jantar ou algo que inclua bebida, comida ou sexo, ou ainda as três. A visão já não me choca, não como antes, só me incomoda o barulho, sou obrigado a ouvir aquela cacofonia, e música estrepitante quando tudo o que quero é o silêncio e descanso que esperamos ao chegar a casa depois de um dia mau, e eu estava sempre cheio de dias assim... por isso volta e meia me desassomo de casa por dias seguidos como agora, soube que ela iria organizar uma festa de carnaval no sábado, então sexta-feira desapareci e hoje... é já o primeiro dia de semana laboral. As noitadas pândegas começaram há quase três anos atrás quando se divorciou do meu pai, a pressão da morte do meu irmão afastou-os, causou imensos problemas, viraram-se um contra o outro, acusando-se do sucedido e eu tornei-me praticamente invisível por aqui, já nem sequer à escola vou há um ano e meio e ela nem reparou. Parado no corredor em frente a uma chaise longue francesa enorme de cor creme, madeira castanha-escura, estofo liso e encosto capitoné com apliques dourados na madeira, almofada em rolo com manchas de líquido derramado e pedaços de papel colado... directamente por cima dele na parede um quadro enorme com uma foto da minha progenitora deitada no mesmo móvel abaixo semi-nua com

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28 anos na altura em que fora tirado o retrato, linda, muito linda, mulata bem feita de corpo, 1 metro e 80, cabelo cacheado arrussado e entrançado em filas para trás com as pontas caindo-lhe para o peito tapando um e expondo metade do outro, sardas no rosto, seus lindos olhos cor de mel fixos na câmara, uma mão por trás da cabeça e outra tapando a zona púbica... Gabriela, o meu pai ama-a ainda hoje mas... ela é uma mulher complicada e moderna demais para a sua idade seja ela qual for... sim... ela muda-a conforme o dia do ano. Aproximo-me calmamente do quarto dela e ouço-a falar em tom baixo, o maldito aparelho vibra novamente, ouço-a falar mais alto agora... – Porra pá! Qué que lhe custa atender e mandar-me à merda ao menos!? Abro a porta do quarto e ela está deitada com a cabeça sobre as pernas de um dos seus cães bípedes, não o conheço, ele acaricia o cabelo desgrenhado dela, pára ao ver-me, é jovem, não parece passar da casa dos trinta, pelo menos uma década mais novo que ela, esboço instintivamente uma careta breve, ela levanta-se e vem na minha direcção de robe de seda preto com motivos florais, vejo-lhe os seios, está nua debaixo do pano esvoaçante, volto a olhar para o homem e depois para ela. – Ivan, caramba! Quando é que vais parar com essa merda de desapareceres assim, onde estavas? – Foi boa a festa? Puxo fumo do cigarro e travo-o nos pulmões, ela agarra-me no rosto. – Está tudo bem contigo?

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Atiro o fumo para o alto e olho-a nos olhos, está com um aspecto horrível, nada a ver com a jovem do retrato na parede, tem olheiras, leves bicos de papagaio, sulcos à volta dos lábios e está magra, só as ancas ainda permanecem. Puxo-lhe o robe para tapar os seios e viro-lhe as costas. – Vou dormir. – Ivan!?... – Atende o teu amigo. Saio da gruta da perdição dela e começo a subir para o segundo andar e ela segue-me ficando no primeiro degrau agarrada ao corrimão. – Devias ter ficado... dantes gostavas de festas... Continuo a subir ignorando-a e atravesso o pequeno corredor que vai dar ao meu quarto, tiro as chaves do bolso de trás das calças e entro para o único lugar no mundo que é um pouco meu, intocado pelas centenas de mãos e pés que circundam por esta casa durante os malditos convívios dela. A varanda do meu quarto dá para a rua principal, abro a porta de acesso e apago o cigarro no cinzeiro de vidro pousado na mesa de ferro trabalhado em espirais, descalço as botas e sento-me numa das cadeiras de ferro com assentos almofadados, dispo a t-shirt e oscilo entre ir dormir ou ficar ali a olhar para nenhures, passei três dias fora de casa sem dormir em condições, sonecas de minutos em bancos de esplanadas mas preciso de fazer algo da minha vida, estou farto disto... está a dar comigo em doido. Cansado acabo por adormecer ali mesmo e por volta das 15 horas tenho o torso a arder da exposição ao sol. – Merda!

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Sinto a pele do rosto a querer rebentar, levanto-me mais vermelho que um lagostim cozido do Namíbe e deito-me na cama. Um par de horas a seguir batem à porta. – Não quero nada! – Come um lanchinho, sai daí... – Tou bem aqui, deixa-me Gabi. – Quero falar contigo Ivan... filho... – Por favor Gabi... mais logo, ao jantar, pode ser? – Prometes? –  ... Prometo. Levanto-me e olho para o relógio, 19:38, tiro as calças jeans e amarro uma toalha à cintura, atravesso o corredor até à casa de banho fazendo figas para que já tenham vindo arranjar o problema do termoacumulador pois apesar de estar calor gosto de tomar banho de água quente... mas não, tudo na mesma. A água do tanque é quase gelada mas lá me lavo todo e volto para o quarto, quero fumar um cigarro na varanda mas tenho que espreitar primeiro, a esta hora normalmente Erine está à varanda e se repara que estou também vai começar o espectáculo ridículo de se despir e ficar a experimentar roupas de cortina corrida, que miúda mais... mete-me pena, desesperada, quer que eu a coma à força. Mas felizmente não está, consumo a minha nicotina à vontade e decido descer para forrar o estômago. Apesar de umas manchas teimosas aqui e ali, a casa está com muito melhor aspecto agora, ouço a voz dela vindo do rés-do-chão, na cozinha, gargalhadas joviais e voz sensualizada desnecessariamente, típico de quando anda enrolada com um macho.

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O paspalho que vi no quarto ainda cá está... estou de calções jeans e em tronco nu, de chinelos. Entro para a cozinha e estão envolvidos um no outro num beijo ordinário e ele tem os seus tentáculos a amassarem-lhe uma nádega, propositadamente pontapeio a porta e alarmam-se ambos, ela vira-se para mim, reparo que está bêbeda pelo brilho nos seus favos de mel alojados no rosto que usa para me fitar de cima a baixo com um sorriso nos lábios, além disso tem uma taça de vinho espumante na mão e ele bebe cerveja pela lata. – Olá meu amor, tens fome? Ignoro-a e olho para ele de rosto emburrado. – Pensei que íamos conversar ao jantar... – Oh, podes falar em frente ao Paulo, não há problema. – A sério Gabi!!? – A sério, ele sabe de tudo, não há problemas. – Tudo o quê? – Eh rapaz, não levantes a voz à tua mãe! – Não se meta nisto ó palhaço, faça a sua própria família e desapareça! – Cuidado com a língua... – Mas quem se julga o senhor?! Chega aqui, fornica a dona da casa e quer dar uma de padrasto em algumas horas... eu tenho pai, ok!?! – Ivan, não te admito! – Não admites o quê, que diga que o fornicaste? Mas admites que ele o faça... ele sabe do fornicador da festa de Ano Novo, ou aquele já passou à história? Sabe que isto só vai durar este fim-de-semana ou acha que o vai ter aqui para a vida?! É que nem como gigolo nem

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a bancar despesas, não lhe vai dar tempo para nenhum dos dois cargos! – Ivan!!! Dá passos rápidos na minha direcção e deixo-a dar-me um valente tabefe no rosto, já sabia que o faria, não é a primeira vez, em seguida abraça-me e chora com a cabeça no meu ombro, afasto-a lentamente e volto para cima. Felizmente este é daqueles que não dá uma de príncipe encantado, defensor da pátria, não volta a dirigir-se a mim, subo e atiro com a porta de tal maneira que alguns objectos no quarto saem do lugar. Que merda, estou mesmo esfomeado, se quiser sair tenho que passar pela cozinha, não quero ter de lutar com mais um dos amantes da tipa, oxalá ao menos o merdas a impeça de vir ao meu quarto, chega por hoje. Merda, agora a Erine está na varanda, confinado ao quarto, ligo a aparelhagem mas não quero realmente ouvir nada por isso sintonizo uma estação de rádio qualquer, apago as luzes do tecto e candeeiro e deito-me na minha cama a fumar... Sinto-me tentado a ligar para o meu pai, mas... ele sabe que não tenho ido à escola e quer que eu volte, não tem ideia do que tenho passado aqui e que isso não me ajuda em nada a concentrar-me nos estudos... quero sair daqui, preciso de sair daqui... Ah merda para isto tudo! Já nem me dou com os outros jovens do bairro, lutei com mais de metade deles e deixei um em estado grave um pouco depois da morte do meu irmão e outro por insultar a minha mãe... o meu mano... nem depois de morto o deixam em paz. As cinzas do cigarro soltam-se e caem-me para o peito, algumas ainda quentes, mas nem as esquivo, as suas queimadelas nada são

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comparadas com o brasão do inferno em que meu espírito é atormentado diariamente. Acordo cedo, 6:30 desço e aqueço a feijoada no microondas, subo com o prato e ouço-os gemerem, ferve-me o sangue, tenho vontade de rebentar a porta e matar o tipo, morder-lhe o pescoço como um animal selvagem... porque é que que ela faz isto? É tão linda, podia ter um homem em condições mas só se quer apanhar com desempregados, farreiros, crápulas, laia do piorio, e fornica-os a todos... que cabra... cai-me uma lágrima... detesto chorar, detesto mariquices, vou-me embora, hoje mesmo!!! Está decidido. Atiro o prato ao chão, num estardalhaço parte-se e espalha todo o seu conteúdo, avanço contra a porta do quarto e pontapeio-a com o pé esquerdo sentindo-me já completamente endemoniado, estão ambos nus, ela deitada de costas de pernas escancaradas ao alto e ele entre elas. – LEVANTA-TE DAÍ AGORA!!! – Qué que tu queres, seu merdinhas? Salto para a cama com toda a raiva concentrada em meu corpo querendo explodir e dou-lhe uma joelhada no rosto, ela começa a gritar como uma louca. – DEIXA-O! PORRA IVAN, OUTRA VEZ ESSAS TUAS MERDAS, CONTROLA-TE!!! Ele cai para o lado e rola como um saco para fora da cama, vou atrás dele e acerto-lhe com dois bolos de punho cerrado com ele ainda no chão, um deles bem no meio do olho que já sangrava, levanto-o pelos cabelos e faço-lhe provar outro joelho mas este nas partes

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baixas, ela salta para as minhas costas nua, arranha-me os ombros e grita-me ao ouvido. – PORRA IVAN, PÁRA, VAIS MATÁ-LO... PÁRA!!! Largo o tipo que desfalece como uma pluma e atiro-a para a cama. – LARGA-ME... SUA PUTA! Vou-me embora, chega disto... fode-os a todos... e quando já não houver quem te queira, tens aí os meus cães também! Ao sair do quarto arranco da parede um quadro médio com a nossa fotografia de família e atiro-o ao chão quebrando a armação e o vidro. Chamo um táxi privado, levo só uma sacola desportiva com meia dúzia de farrapos de que necessito. – Para a Avenida Lenine, por favor, na descida do Liceu Nacional Salvador Correia. – Mutu Ya Kevela certo?! – Isso. Passo um dia calmo em casa do meu pai enquanto ele está fora na labuta, trabalha no Gabinete do Primeiro Ministro e chega tarde a casa quase todos os dias, não voltou a casar, não tem namorada, dedicou-se somente ao trabalho como aliás de certo modo sempre fora. Não sei ao certo qual a função dele por lá mas tem um quarto em casa com ficheiros e computadores que está sempre trancado. É um bom homem, honesto, calmo, simples... Senhor José Pedro Álvaro Melo. Eu quis ficar com a Gabi durante a separação porque ela deixava-me à vontade, o meu pai sempre quis que eu ficasse na linha... mas agora já não era opção, não aguentava mais, acabaria na

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cadeia um destes dias ou pendurado no terraço como o meu mano... não, não posso, tenho a certeza de que seja lá onde for que ele esteja agora está a dar-me força para eu seguir em frente. Não conto os pormenores mais chocantes ao meu velho, digo-lhe somente que nos desentendemos. No fim-de-semana a seguir ela aparece por lá. Abraça-me e beija-me o rosto, não retribuo o abraço, passo-lhe os olhos de cima a baixo rapidamente e sento-me a olhar para o chão, está linda como quase sempre, elegante, com um fato social, tecido leve, calça e casaco de cor preta com um top branco por dentro, maquilhada não se evidenciam tanto as rugas, parece não ter nenhumas, de saltos altos, e é alta para a maior parte das mulheres angolanas, o meu pai também é alto, como eu, temos 1,96 cm mas é mais magro, mestiço claro, quase branco, de cabelo e bigode castanho escuro, homem normal, nem feio nem bonito, foi um sortudo por ter casado com uma mulher tão linda como a Gabi... eu gostava tanto dela, meu Deus, hoje parece que não a conheço. O meu pai tenta ser breve e nota-se que não quer ter conhecimento do verdadeiro motivo para a minha mudança de escolha, e matreira como é a Gabi repara que meu pai não sabia de nada, ambos baixam a guarda e depois de alguns copos de whisky decidem enviar-me para Portugal, Lisboa, para estudar, ficaria em casa da irmã do meu pai, não é o que eu quero mas estarei longe dela, daquele maldito antro e de todos os acontecimentos recentes e passados.

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2. Vida Nova Sete horas e alguns minutos de voo, estou aflito para fumar um cigarro e farto de estar confinado ao mesmo espaço que toda esta gente estranha. Tossem, riem-se, roçam em meu ombro, vasculham-me com seus olhares, para o diado todos vocês com as vossas famílias, vidas felizes, filhinhos inocentes e queridos. Primeiro cigarro em solo português, compro um maço logo ao chegar ao terminal do aeroporto, em frente à porta uma fila enorme de passageiros à espera de táxi, fico de lado a gozar o meu tabaco, não sei se é da privação, cai-me bem, muito bem, bem ouvia os comparsas do meu velho dizerem que os produtos enviados para África sofriam alterações, as condições a que eram expostos nos contentores realmente faziam diferença à qualidade... fumo-o como se fosse o último na terra. Encostado ao varão apetece-me sorrir por estar finalmente longe dela mas a verdade é que me preoucupo com o que lhe pode acontecer, vai continuar com as farras, dormir com Luanda inteira!? O meu humor altera-se imediatamente, que vontade que tenho de desaparecer. Meto-me finalmente na fila do táxi como todos os outros humanos, tentando ser normal e só então entediado me apercebo de quão frio está ao ver a temperatura no painel do lado de fora do aeroporto. O taxista tenta meter conversa comigo, respondo com monossílabos e finalmente cala-se após algumas tentativas. A viagem é relativamente longa até ao Zambujal, Parede... uma vivenda de dois andares com cinco quartos no segundo andar

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e apesar de dois deles estarem vagos eu escolho o quarto da cave ao lado da garagem, quero sossego, continuar a ser invisível. O meu tio Saul recebe-me bem, não o via desde garoto e ele acha que eu ainda o sou apesar de se ter surpreendido com a minha estatura. Os meus primos, não sei bem se percebo o que sentem em relação à minha presença mas não lhes vou dar tempo de se sentirem desconfortáveis. Só estão o Mário e o Tiago, a Carla vive de momento em Coimbra, casou-se e ficou por lá depois de se formar em Medicina e o Pedro está no Porto enquanto termina o curso de Jornalismo. Estive nesta casa de férias durante dois meses há exactamente uma década atrás, o meu irmão mais velho, Yuri, ainda estava vivo. Lembro-me de brincarmos bastante por cá mas agora com 18, 19, 20 anos, muita coisa mudou, para começar eu não sou propriamente o ser mais social no mundo e parece que toda a gente que sabe o que aconteceu com Yuri decidiu tratar-me como se eu fosse igual a ele, como se eu fosse de porcelana, não sei bem qual é a mensagem subliminar que passo mas ninguém, absolutamente ninguém conseguiu afastar esse espisódio, já lá vão quase cinco anos mas os olhares na minha direcção continuam como se tivesse sido há somente um mês ou assim. Não obstante, Márcio e Tiago dão-me um aperto de mão e ainda um olhar solidário, descem comigo até à cave que até não necessita de grandes modificações e, para quebrar o gelo, sentam-se comigo a fazer perguntas sobre Luanda, não tenho muito a contar, calor, praia, escola, nada de mais, não me meto em política e estou tão desligado da realidade que se me dissessem que mudaram o nome do

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país e a cor da bandeira eu acreditaria. Prometem levar-me a sair com eles e conhecer humanos como eles... não neguei apesar de não estar interessado, eram quase dez da manhã, a tia Marisa chama-nos para o pequeno-almoço, tinha-o feito ela mesma, torradas com manteiga, doce de morango, queijo e fiambre à escolha, leite achocolatado, sumo de laranja e sumo de miscelânia de frutos, nem me lembro da última vez que tinha visto uma mesa de pequeno-almoço tão recheada, e não era por falta de dinheiro, a Gabi ultimamente ia sempre para a cama afogada em etanol e nunca estava a pé antes das 12 p.m. e se estivesse era acompanhada, portanto o pequeno almoço era para o amante, não para mim... nunca me passou pela cabeça que ela pudesse não gostar de mim mas o desespero dela em encontrar alguém que a cativasse era incontrolável, já nada lhe interessava, nem eu, talvez porque, ao contrário de Yuri, eu era independente e não me abria com ela como ele o fazia integralmente, mas... acho que ficou mais do que claro por que razão era assim... – Gostas das torradas assim ou preferes mais castanhas Ivan? –... hum?! Estão óptimas, obrigado. – Ainda bem. Meninos, levam o vosso primo a passear hoje? – Claro! Merda, vamos começar, sei que fazem isso por bem mas não quero... – Tia... estou cansado, talvez outro dia, desculpem-me. – Ok, ok. O quarto, gostaste ou queres que mude algumas coisas? – É perfeito, muito obrigado... hum... posso fumar lá dentro? – ... Ok, se fumas, podes... afinal, já tens dezoito anos.

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– Anda lá dar uma volta ao centro comercial aqui perto em Oeiras ou aqui ao bar abaixo, jogar dardos e snooker, algo assim... – Outro dia Mário, a sério, um outro dia, hoje vou só descansar mesmo. A tia Marisa pousa a sua mão na Mário e olham um para o outro, ele pára de insistir e ocupa a boca com uma avantajada dentada de torrada, doce e queijo e mastiga olhando para mim, olho para a minha tia... é linda, não como a Gabi mas é linda, branca, cabelos negros e algumas madeixas grisalhas em espirais como ondas do mar à beira-mar numa noite de lua nova, lábios bem desenhados, nariz pequeno e arrebitado, olhos castanho-escuros, cílios enormes... muito chique, bem vestida apesar de estar em casa, reparo nas ancas e no traseiro protuberante quando se levanta para ir buscar mais guardanapos... ancas... não páro de pensar na Gabi, quase me arrependo de ter vindo, terei feito a escolha certa?! Abandonei-a fisicamente da mesma forma como ela o fez a mim psicologicamente há algum tempo. Começo a explorar a área, mais abaixo, São Domingos de Rana, Carcavelos, Oeiras... ando a pé por ali memorizando caminhos, vias de acesso rápido. O meu pai deixa o meu dinheiro nas mãos do tio Saul, mas o meu tio, assim como meu pai, está sempre atarefado e chega tarde a casa, é advogado, acaba por passar a tarefa à tia Marisa que é doméstica. São 50 euros diários de segunda a quinta-feira e sexta-feira 100 euros para o fim-de-semana inteiro. Ao fim de duas semanas de investidas, Mário e Tiago desistem de tentar urbanizar-me, ficam no lado de cima da casa e eu no meu. Comprei um fogão eléctrico e passo a cozinhar as minhas próprias

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refeições. Não me inscrevem em escola alguma, ainda temos de esperar pelo certificado de habilitações da última classe em que andei, por isso rondando por ali a perguntar nas imediações consegui um emprego como ajudante de chef de restaurante, o que eu sempre quis era ser chef mas sem curso teria de começar por baixo. O meu pai vai aos arames quando fica a saber mas consigo convencê-lo a deixar-me fazer algo que me dá prazer pelo menos por 365 dias. O restaurante serve comida tradicional portuguesa, muitas batatas descasco eu, milhares... digo sempre a mim mesmo ao início do meu turno que vou contar quantas malditas descasco mas a dada altura o cansaço faz-me esquecer tudo e só me resta sorrir e tentar novamente no dia a seguir. Somos dois ajudantes e trabalhamos em turnos diferentes, alternamos, numa semana de segunda a sexta-feira das 10 às 17 h e na semana a seguir das 17 às 24 h e o fim-de-semana inteiro para cada um de 15 em 15 dias. É, sem dúvida, aquilo que quero e gosto de fazer, apesar de extenuado saio do restaurante de sorriso estampado no rosto e, às vezes, até cantarolo aquelas lamechas portuguesas que tocam por lá o dia todo. Cortar e trinchar, preparar vinhas de alho, amanhar, esquartejar, preparar molhos, caldos, consomés, cortar legumes em juliana, picar cebola, alho, salsa e coentros, manter a bancada limpa, e igualmente o material utilizado, embalar sobras de forma higiénica, bem rotulada e no lugar certo. O chefe Ludovico da Rosa, Vico, felizmente para mim é um tipo espectacular e tabagista também, por isso compreende perfeitamente a minha necessidade de, volta e meia, ir encher o meu sangue com nicotina. Fazemos uma dupla óptima, não

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sei como ele se dá com o outro ajudante, o Kikas, mas entre nós o trabalho decorre sempre de forma perfeita. O Kikas também é descendente de africanos, negro, estatura média, um pouco acima do peso, face coberta de penugem acima e abaixo dos lábios e bochechas, 25 anos... não simpatizo muito com ele, é guineense, na realidade não me esforço por simpatizar principalmente porque não percebo mais de metade do que ele diz, felizmente quase nunca nos vemos por mais de 30 minutos, tempo necessário para passarmos o trabalho um ao outro e às vezes nem há necessidade para isso, já que como os pratos servidos raramente mudam, a rotina faz-nos conhecer as quantidades que temos de deixar preparadas para o turno seguinte. O restaurante é perto da estação de comboios de Carcavelos e do Centro Comercial, tem uma boa afluência de gente principlamente das 15 às 21 h. O salário não é mau, 320 euros por mês como principiante. O meu pai não consegue disfarçar o descontentamento, contudo aceita e continua a dar-me a mesada de sempre. Como ansiei por esta paz. Na semana em que saio às 17 h vou dar uma volta pelas redondezas, normalmente começando pelo centro comercial de Carcavelos, que é minúsculo mas é uma voltinha que ajuda a relaxar além de ser caminho para comprar ingredientes para o meu comer. E estou eu a andar calmamente lá por dentro, atirando uma e outra uva verde para a boca, quando avisto numa loja de artigos ortopédicos uma rapariga que me chama a atenção... não sei o que é, ela está por trás do enorme balcão de ferro e vidro, não lhe vejo as pernas mas... podia bem ser uma sereia, tem uns cabelos dourados lindos, lisos até aos dois montes em seu peito, uns montes enormes e redondos, claro

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que já a estou a comparar à Gabi, hábito meu... tenho de parar com isso, é doentio. Hesito o passo, ela olha e sorri, paro na vitrine por alguns segundos, penso em entrar mas desisto, continuo a andar e vou até ao café perto da saída, peço uma queijada de Tomar, sento-me e vou mordendo as bordas tostadas e polvilhadas de açúcar de confeiteiro e de repente a imagem que me vem à mente é dos mamilos da rapariga da loja e sorrio como um palerma por alguns segundos, outra dentada e atinjo o recheio de doce de ovos, perfeito, saboroso, não consigo deixar de pensar que quem inventou os bolos da pastelaria portuguesa devia ser alguém apaixonado buscando recriar os seus sentimentos. Recosto-me ao assento a sorrir, penso em voltar à loja, gostaria muito que ela quisesse falar comigo mas se não quiser vou sentir-me horrível, por isso tiro essa ideia da cabeça. Contudo, passa a fazer parte do meu programa passar pela loja de ortopedia e apanhá-la distraída a atender clientes, fico na vitrine a beber da sua beleza e cedo notei que tinha um “defeito”, não tinha nada atrás, era rasa nas nádegas que nem biafrense e uma divisão enorme entre as pernas que também não me atraía nada mas era linda de rosto e aquele cabelo dourado prendia-me o olhar, só quero sentir o cheiro daqueles fios de ovos colados a ela e experimentar aquela boca de lábios finos e rosados. Como se chamará ela?! Parece-me ter uma placa com o seu nome ao peito mas estou longe demais, não consigo entrar, o que pergutaria eu?! Não preciso de nada do que lá há à venda... desisto uma vez mais e limito-me a continuar o meu caminho, vou para casa e atiro-me pesadamente para a cama, sonhar é a única opção e aguentar a maldita erecção cada vez que penso nela até que se decida a passar.

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Dois meses passam a voar e eu contino no meu canto embora volta e meia os meus tios façam questão de que eu participe em almoços entre eles com outros familiares. Como uma sombra, via-os entreterem-se, Mário e Tiago sempre agindo o mais normal possível comigo apesar de ser tudo muito superficial, o bom é que quando decido abandonar seja qual for o evento faço-o sem que me enfastiem. Domingo, 3 de Maio, 2015 Aniversário da tia Marisa, o quintal atrás da casa está cheio de gente de 40, 50 anos, e uma dúzia de jovens se tanto, Mário e Tiago comentam o facto de serem festas aborrecidas por só haver velhotes e os jovens presentes serem, na sua maioria, do sexo masculino, as três ou quatro raparigas são tímidas demais e assim vamos todos lá para fora, uns a fumar outros a contar idiotices do quotidiano, sentados no muro lateral da casa, falam sobre colegas vadias que lhes fazem sexo oral nos balneários da escola, tipas que conhecem na Internet e assim. Limito-me a ouvi-los, um deles, a dada altura, faz um comentário acerca da homossexualidade e Tiago manda-o calar, o rapaz indaga-o acerca da sua orientação sexual e eu discretamente volto para a minha gruta, não quero ter de estragar a festa da minha tia por isso recolher-me é a melhor opção. Alguns minutos depois, Tiago bate à porta, um convite a ir fumar canábis com eles, nego sem pensar e volto a fechar a porta. Não tenho interesse algum em fazer uso de drogas recreacionais e muito menos com essa cambada de cães. 23 h – ouço-os no quintal a cantarem os parabéns. Uma das janelas do quarto em que estou tem vista para o quintal, e naquele

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dia não é nada má, as quarentonas portuguesas gostam de usar fio dental... quem diria, queria poder passar a mão naqueles rabiosques. Sorrio e deito-me. Que estará ela a fazer agora, a Gabi?! Se penso em sexo, em mulheres, penso nela, por isso afastei de mim durante uns bons anos tudo o que envolvia o meu ser nisso, mas já não me sinto tão enojado como antigamente. E a loira da loja? Que fará a esta hora?! Pego no meu telemóvel... «– Alô?!» «– ... alô Gabi...» «– Lembraste-te de mim...» «– ...tu não.» «– ...estou ocupada Ivan... ligo-te depois.» «– ...Ok!» Porque é que que essa mulher me detesta tanto assim, meu Deus, que mal lhe fiz eu?! Será por bater nos cães que ela leva lá à casa? Não, já me ignorava bem antes disso começar. Em Junho tive duas semanas cheias, turno inteiro de segunda a segunda e depois seria a vez de Kikas e eu ficaria as minhas duas semanas em casa também, é trabalhoso realmente, admiro Vico por estar ali dias e dias a fio, espantoso. O dono do restaurante é irmão dele e os empregados de mesas quase todos pertencem à família, por vezes há um outro primo, o Gonzaga, que também cozinha... e eu não consigo nem harmonia com a minha própria mãe... eu achava que Yuri comunicava bem com ela mas se assim fosse não teria tirado a sua própria vida, das duas uma, ou falavam pouco do que realmente interessava ou ela é uma péssima mãe e nunca o

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compreendeu, ou então as duas. Passo milhares de horas dizendo a mim mesmo que tenho de arrumar esse assunto, esquecê-los, são inúteis e só me deixam cabisbaixo mas não é fácil. Faço tudo para chegar ao centro comercial na hora do fecho das lojas... ela está com uns collants turquesa e uma blusa estampada de alças, tem um casaco pendurado no braço e agacha-se para trancar a porta, ficam-lhe mal os collants, é mesmo lisa atrás, que fiasco... cumprimento-a e continuo a andar... chamou-me... – Olha, espera... – Sim?! Luta com o casaco, a chave, a carteira e tem ainda um saco da pastelaria. – Queres ajuda? Sorri encambulada e exibe a sua dentição, tem a separação entre os incisivos e vêm-me à cabeça Madonna, Brigitte Bardot e Claudia Schiffer, mas infelizmente uma versão extremamente magra de todas elas. – Sim, mas não foi por isso que te chamei. – Ah não?! Então, ajudo-te ainda assim ou consegues carregar tudo? – Eu... pega-me aqui nas chaves por favor... andaste desaparecido, há muito que não passavas por aqui. Não consigo conter um sorriso, é bom ouvi-la dizer aquilo, ela repara em mim. – Estou de férias...

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Baixo o rosto, ela veste o casaco, estico a mão e entrego-lhe as chaves, não quero ser apanhado a vislumbrar aquelas malditas saliências na sua blusa. – Então... vês-me quando passo? – Claro! És enorme e... tens um ar simpático, um pouco tímido infelizmente. – Infelizmente? – Sim. Fico sempre à espera que entres e nunca o fizeste até hoje. A tipa é atrevida, merda... e agora, o que faço? – Bom... não preciso de nada dessa loja, felizmente... – Podias entrar para falar comigo por exemplo, como estamos a fazer agora. Moras aqui perto? Ela começa a andar e não tenho alternativa senão segui-la. – Mais ou menos. Trabalho aqui ao lado no “Manjares da Rosa”. – Mesmo aqui ao lado, costumo lá ir com os meus pais e amigos mas nunca te vi por lá, há quanto tempo lá estás? – Nunca me hás-de ver, sou ajudante de cozinheiro, fico sempre lá dentro, somos os invisíveis, mas estamos em cada prato que é servido. – E a comida lá é muito muito boa por acaso... sou a Ivone. – Ivone, nome... – Vais dizer que é lindo?! Não precisas de mentir, é um pouco pesado, nome de quarentona brasileira. Não aguento e solto uma leve mas longa gargalhada de rosto para o ar e mão no abdómen, rio-me como nunca mais me tinha rido, por nervosismo e por ser uma ideia estúpida, teria muito mais interesse

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se assim fosse, uma quarentona brasileira, cheia de curvas... mas não, nem por sombras, aquele traseiro ridículo... lá me acalmo e só então reparo que ela já não se ri e está a olhar para mim com um ar intrigado. – Desculpa, não te zangues. – Não... mas porquê que foi tão engraçado? – Nada, desculpa. Posso saber a quantos anos estás de ser uma quarentona se não for muito indiscreto? – Tenho 22. – Ok, e és portuguesa, certo? – Sim, e tu? – Bem, tenho dupla nacionalidade, português e angolano. – E...? – E...? – A tua idade? – ... 22 também. Se lhe digo que tenho somente 18 a conversa azeda de certeza, benditos 1,96 cm. Sorrimos e continuamos a andar em direcção à saída. – Moro aqui nestes edifícios perto da estação de Carcavelos, este ano estou a estudar à noite, estou no último ano de Relações Públicas, ainda não sei bem o que farei no ano que vem. E tu, estudas? – Não, este ano não. – Posso ter o teu número de telefone? – És... despachada... – Ei... não queres dar compreendo. Não precisas de insultar.

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Sorrio e ela acabou por sorrir também, dou-lhe o número e despeço-me começando a andar na direcção oposta, ela fala em voz alta. – Espera! Não sei o teu nome. – Ivan. Inclinou a cabeça para o lado. – Não tem piada. Diz lá. – Há alguma ironia nisso? – Ivone, Ivan???!!! Sorrio e ela faz um ar de quem acha toda aquela situação ridícula. – É coincidência, mera coincidência, esse é o meu verdadeiro nome, não dês muita importância a isso, são só nomes... podes chamar-me outro qualquer só precisas de me avisar para eu responder quando o ouvir. Desta vez fica ela parada a gargalhadar como uma parva, aceno e vou-me embora. Quarentona brasileira, penso eu enquanto subo até à Parede... ainda tenho de voltar alguns quarteirões pois passo o supermercado e preciso de comida para o meu jantar. Durante a última semana de férias vou ter com a Ivone à loja duas vezes, ela convida-me a ir ao cinema com mais alguns amigos seus, a ideia não me agrada nada inicialmente e pior é quando lá chego, estão à minha espera numa pizzaria. São quatro, ela duas amigas e um tipo, quando me aproximo e começam as apresentações. A primeira coisa de que me apercebo é que o tipo é homossexual, começa a tirar-me as medidas descaradamente e senta-se ao meu lado. Vão conversando enquanto esperamos pelas bebidas, e lentamente uma náusea e desconforto se apoderam de mim, merda... ele vai fazer alguma coisa e vou estragar tudo, tenho de me ir embora... calma Ivan, calma...

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desde que ele não me toque, vou ignorá-lo. As duas miúdas ao lado de Ivone são engraçadas, parecem ter feito com que me sentasse ao lado deste tipo propositadamente, noto um sorriso de escárnio em seus lábios, está bem longe de mim, quase que grito por socorro com o meu olhar e ela apercebe-se de que não estou bem apesar de estarem todo o tempo a tagarelar. – Ivan, então, estás tão calado hoje... E o tal rapaz, põe a mão na minha coxa, falando debruçado na minha direcção. – Está acanhado, que fofo, com esse tamanho todo e não passa de um garotinho. Empurro-o no peito e levanto-me, fazendo cair para trás a minha cadeira e começo a andar a passo rápido em direcção às escadas rolantes, ela corre atrás de mim a chamar-me, ignoro-a e continuo até que me alcança já no corredor do rés-do-chão, puxa-me o blusão. – Ei, Ivan, calma, que foi? – Ele tocou-me na coxa! Ela sorri com a maior naturalidade. – Sim, por vezes tocamos uns aos outros quando conversamos, não?! És preconceituoso? – Não sei... não. – És gay? Sinto uma vontade enorme de lhe dar uma valente bofetada naquele rosto angelical, não fossem os ensinamentos de meu pai e o tamanhito dela... viro-lhe as costas e continuo a andar. – Ivan!?... Ivan!?...

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O trabalho reinicia e deixo de passar pelo centro comercial de Carcavelos, nem respondo às mensagens ou chamadas de Ivone, não tenho pachorra para esse tipo de episódios. Volta e meia ainda me vejo de telefone na mão a pensar em ligar para a Gabi mas ela nunca retornou a minha chamada e isso diz tudo. O meu pai liga umas duas vezes por mês, o que é aceitável, está menos descontente por ouvir o meu tio dizer como me tenho comportado, parece até inclinado a ajudar-me a encontrar uma escola de hotelaria embora não fosse esse o plano inicial, mas eu queria ser chef, custava-lhe crer que eu quisesse ficar ali nas cozinhas, no calor, em pé de um lado para o outro, mas era ali o meu lugar, o meu ambiente. Apesar de sermos seis na cozinha do “Manjares da Rosa”, eu praticamente só comunico com Vico, com o resto restrinjo ao máximo qualquer palavreado supérfluo. Somos só homens ali, o que facilita, apesar de haver um bastante tagarela, um clandestino espanhol, o Valerio, mas é bom tipo, faz-nos rir e isso de vez em quando ajuda a baixar o nível de stress na cozinha. Três semanas se passam desde a maldita cena com a Ivone e ela aparece, num sábado à noite na minha pausa para o cigarro na parte de trás do restaurante, prega-me um susto vê-la aqui, pouca gente conhece aquele canto, apago o cigarro e viro-lhe as costas para entrar mas ela chama-me num tom triste, viro-me de lado e olho para ela. – O que queres agora? – Que voltes a ser meu amigo... podemos começar do zero? –...não estou interessado, não temos nada em comum e não tenho tempo.

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– Nem sequer tempo para passar na loja...? Aproxima-se de mim, demais, põe as mãos à volta da minha cintura e a cabeça em meu peito, tento afastá-la com as mãos pelos ombros mas alapa-se a mim. – Ouve Ivone, pára... não vai dar certo, eu... não sou lá muito sociável e, se queres que te diga a verdade, não me sinto confortável à volta de homossexuais, tenho aversão a eles, não sou contra eles mas não os quero ao pé de mim. – Podes ser homossexual, não me importo. -JÁ TE DISSE QUE NÃO SOU!!! Olha, tenho de entrar, fica bem... Puxa-me pela gola do uniforme, obrigando-me a curvar-me e beija-me os lábios de olhos fechados, larga-me e toca-me no rosto. – Desculpa, Ivan. Merda, e agora?! Gostei do cheiro dela, quero beijá-la mas não faço a mínima ideia de como é e não quero que ela goze novamente comigo... – Ivone, por favor... é melhor ires embora. – Não me vais procurar mais? – Não sei... tenho que ir... adeus. Volto para dentro, lavo as mãos, ponho a touca e começo a cortar couve em juliana, chouriço às rodelas e a picar cebola para caldo verde. Encho as tochas com gás para queimar o creme bruleé, dou a volta ao fogão a controlar a caldeirada de cabrito e Vico pede-me para cortar mais couve, quase corto uma posta do meu dedo perdido na lembrança da sensação dos lábios dela nos meus, era o que me faltava agora, gostar daquela, aquela... nem sequer faz o meu estilo,

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gosto de mulheres maduras, muito mais velhas que eu... não passa de uma miúda apesar de ser três anos mais velha do que eu, e aquele traseiro ridículo... esquece essa parva e controla os dedos Ivan, esses, sim, são importantes e fazem falta. Hora da saída: 00:20 a.m.. Vou subindo a passo moderado, estou cansado e ainda tenho uma longa caminhada pela frente, pelo menos 30 minutos. Encontro mensagens no telemóvel quando chego a casa, Ivone quer ver-me segunda-feira depois do fim do turno dela. Esta tipa, pá! Domingo, à hora do almoço, Tiago desce à cave, almoço com o tio Saul e os restantes de casa, convocatória obrigatória. Subo e estão os meus primos e o tio Saul à mesa, dou-lhes um aperto de mão começando pelo meu tio, a tia Marisa está em pé a acabar de colocar os últimos itens na mesa, beijo-a no rosto e sento-me. O clima não está bom, passa-se alguma coisa mas não tem nada a ver comigo por isso não me deixo afectar, a tia Marisa começa a servir o churrasco, linguiça, febras e entrecosto na travessa, abre a caixa com o feijão preto e os sacos de batatas fritas caseiras, é tudo da churrasqueira ali perto. A tia Marisa faz como a Gabi fazia, ao domingo não encosta no fogão nem para aquecer água... hoje em dia a Gabi não encosta nele para absolutamente nada. A minha tia vai servindo cada um de nós e só no fim serve o meu tio que esconde mal o desagrado por essa atitude. Algumas garfadas depois ele parece estar mais calmo, beberica o seu vinho tinto e conversa com os seus rapazes, a minha tia concentra a atenção na novela que passa na televisão da cozinha.

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– Ivan... os teus primos combinaram ir à Costa da Caparica ou ao Algarve durante o Verão, já estamos em a entrar em Agosto, vais com eles? Paro de comer e olho para todos eles rapidamente. – ... Não posso tio, tive férias ainda há algumas semanas, mas muito obrigada pelo convite. – Aquilo é estupendo, sol, mar, festas e miúdas, primo! Tens de vir, pá. O meu tio ri-se e eu baixo a cabeça em direcção ao prato – Aqui também há sol, em Carcavelos há mar, não sou amigo de festas... prefiro mesmo ficar, rapazes. Noto o silêncio estranho, arranjei desculpa para tudo menos para as miúdas, já devem estar a tirar conclusões baseadas na orientação sexual de Yuri, não me livro disso... mas também não vou tentar explicar nada. A minha tia continua calada, o que é estranho. – Bom, eles partem na terça-feira, vão de comboio, podes decidir até lá... – Eu não vou! – Ok. Acabo de comer e fico a ouvir o tio Saul a contar como era quando o casal levava todos à praia e a dinâmica familiar com os quatro filhos presentes, começo a levantar a mesa, arrumando os pratos no lava-loiça e a minha tia levanta-se também e vai colocando-os dentro da máquina enquanto me lança um breve sorriso solidário. O tio Saul prepara um café na máquina e eu despeço-me, vou descansar um pouco antes do meu turno começar no restaurante.

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Segunda-feira saio às 17 h e não passo no centro comercial como Ivone me tinha pedido para fazer, vou antes para casa. Às 20 h Ivone liga, está de férias também, ficou à minha espera à saída... não lhe prometi nada, continuo deitado a fumar calmamente enquanto ela se desfaz em lágrimas ao telefone, cena absolutamente desnecessária, lá prometo que vou no dia seguinte para a fazer calar. Penso para mim que provavelmente me vou arrepender, não sou quem ela pensa e ela não passa de um rosto bonito, nada mais que isso. Terça-feira saio e lá passo pelo centro comercial às 17:30, mal me vê fica toda sorridente, eu porém mantenho-me calmo e sisudo, aliás não sinto realmente nada a não ser uma vontade enorme de a deixar plantada e ir-me embora. Oferece-me uma pastilha e penso que provavelmente é por causa do hálito a tabaco mas não me chateio... não tenciono beijá-la. – Querias falar comigo? – Não... quero estar contigo, mas a mulher que me substitui nas férias não pode vir hoje, vens buscar-me às 19 h? – Não. Faz olhinhos e enchem-se de lágrimas, viro a cara e ponho-me a olhar para tudo o resto à volta até que me viro novamente para ela. – Não tens namorado? – Não. – Porquê? – Acabei há uns meses com o meu namorado de infância, estavamos juntos há dez anos... – Uau, muito tempo... devias voltar para ele, com certeza têm muito em comum e já se conhecem bem.

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– É uma indirecta? – Porquê, querias pedir-me em namoro? – ... gosto de ti. – Eu também, mas não como namorada. Nisto, muda completamente de atitude e fica na defensiva e agressiva. – Queres aproveitar-te e ir embora? – Aproveitar-me de quê? – Que cínico. – Tu és maluca, Ivone. Olha vou para casa, ok?! Fica bem, obrigado pela “pastilha”. Sexta-feira ao chegar a casa, a minha tia descarregava do porta bagagens muitos produtos de mercearia, charcutaria, gourmet e outros. – Vai haver festa, tia? – Sim, sempre que os meus filhos saem de férias dou um jantar com música para as minhas amigas e fazemos trinta por uma linha. (Sorri maliciosamente). – Pena que não me enquadro, estou na ala das crianças. Quando vejo todos estes ingredientes só penso na quantidade de comidas saborosas que poderia confeccionar com eles. – Queres cozinhar tu, Ivan? Não me tentes, é menos um encargo para mim. – Quando é? – Amanhã, começa às 19 h. Ponho a mão na nuca e penso em voz alta,

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– Saio às 17:30, até chegar aqui são 18 h, teria de começar a preparar a maior parte hoje, a tia adiantava algumas coisas até eu chegar e eu assumia o comando assim que chegasse para a tia poder estar livre para atender as suas convidadas. – Que bom!!! Olha, bastam dois pratos principais, o mais importante são os acepipes e algumas sobremesas. Ajudas-me mesmo, filho? – Claro! Será um prazer enorme, é o que gosto de fazer, tia. Agarra-me os ombros esticando-se toda e dá-me um beijo sonoro no rosto. – Vamos lá levar tudo isto para a cozinha e ver, então, o que vamos fazer com o que há. Assim que vejo o que há, não tenho alternativa, ligo ao Kikas e combino trocar o meu fim-de-semana pelo dele. Acordo cedo sábado, subo e ponho-me ao trabalho, já a tia Marisa montava as mesas, o calor de Agosto estragaria os acepipes se não fosse o ar condicionado da sala e da cozinha... conforme as horas vão passando, a arrumação começa a tomar forma, ao centro da mesa de acepipes uma travessa redonda enorme com um bouquet de fatias de fiambre da perna, enroladas como rosas, alface por baixo, paio e salpicão à volta com estrelas de carambola por cima, outra com abacates recheados de cocktail de camarão, entre elas uma travessa rectangular de sushi com um tabuleiro próprio com gelo por baixo, havia sashimi, futomaki de carangueijo, abacate, queijo creme e ovas de lumpo, uramaki de algas e salmão, temakis de algas, agrião, salmão, ovas de lumpo e ananás, nigirizushi e hossomakis. Dois pratos iguais para cada extremidade com humus de grão de bico e

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