Entre Diamantes

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w ie edição: João

António Tavares Diamantes – Crónicas de Algures autor (texto e fotografias): João António Tavares

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título: Entre

fotografia da capa (do autor):

Ilhas Feroé

Liliana Simões Filipa Câmara Pestana paginação: Paulo S. Resende revisão:

arranjo de capa:

1.ª edição Lisboa, outubro 2019 isbn:

978­‑989-54484-0-1 460709/19

depósito legal:

© João António Tavares

impressão e acabamento:

Printer Portuguesa


Índice

Entre diamantes (Introdução) 11

1

Diamante por lapidar (Etiópia) 15

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Proximidades distantes (Arménia, Geórgia e Azerbaijão) 36

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Chá e tâmaras (Omã) 72

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4 No fim do mundo (Argentina) 85 5

Ele tira e ele dá (Fogo, Cabo Verde) 104

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Bétulas, pinheiros e abetos (Rússia (asiática)) 117

7 A ilha-borboleta (Guadalupe, França) 134 Girassol, milho e vinha (Moldávia) 143

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9 Base comum e ingredientes específicos (Filipinas) 159 10

Zan e Tan (Tanzânia) 176

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As ilhas das ovelhas (Ilhas Feroé, Dinamarca) 193

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Apontamentos do Oeste (Estados Unidos) 207

13

Desertos em transformação (Qatar e Barém) 227

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Para lá do estreito (Marrocos) 245

15

Igrejas especiais (Roménia) 261

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Não há pátrias pequenas (Nicarágua) 275

17

Estepes infinitas (Mongólia) 288

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Praias sem fim (Moçambique) 305

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Setenta e quatro anos depois (Bielorrússia) 319


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Introdução

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Viajar exige a ocorrência simultânea de várias condições e é, por isso, um privilégio. A condição mais óbvia é a financeira, pois não se viaja de graça. Embora seja uma atividade cada vez mais acessível, existindo hoje soluções para uma grande amplitude de bolsas, a maioria dos habitantes do planeta tem de canalizar os seus meios para necessidades básicas e vive confinada aos horizontes da sua residência. Outro recurso escasso é o tempo. Não só dias de descanso do ganha-pão, mas tempo que possamos subtrair a todas atividades que exigem a nossa disponibilidade, na sua maioria prioritárias e bem-vindas: a família, os amigos, as comunidades a que pertencemos, as outras paixões que temos e às quais também gostamos de dar um pouco de nós. Qualquer que seja a nossa circunstância, o tempo não abunda e foge-nos sem darmos por isso. Ter tempo para viajar é uma preciosidade. A terceira dimensão do privilégio é a saúde. Em geral, não pensamos nela, sobretudo quando somos novos, mas mais tarde ou mais cedo o corpo impõe-nos limites. Viajar pode continuar a ser possível, quiçá com restrições de vários tipos e consequências, mas chega uma altura em que as condicionantes se tornam demasiado pesadas. Males e maleitas, quaisquer que sejam, são inimigos das viagens. A quarta dimensão é a capacidade de gostar de viajar. Pode parecer estranho a alguns leitores, mas muitas pessoas não gostam, mesmo que não o saibam ou não o reconheçam. Poderiam gostar, se dispusessem de uma máquina de teletransporte, mas mesmo assim porventura prefeririam teletransportar consigo a cama, 11


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a comida, os horários e tudo aquilo de que pudessem sentir saudades. Viajar é desconfortável: sair do leito a horas inimagináveis, suportar aeroportos confusos, passar horas de aperto em aviões, comboios ou autocarros, fazer e desfazer malas sempre pequenas para o que se quer lá meter, comer não o que se gosta mas o que há, suportar frios, calores, chuvas e ventos. Por isso, não é raro vermos quem «viaje» viajando o mínimo possível, por exemplo indo para um destino e nele imergindo até chegar a hora de voltar. Quem gosta mesmo de ver o que está além dos horizontes, dos mares e das montanhas, está disposto a sofrer por isso. Cada um verá estas várias dimensões do privilégio com distintas importâncias relativas. Para mim a mais importante é a quarta, pois quando se tem efetiva paixão por conhecer o planeta vai-se encontrando soluções para as dificuldades. Há quem viaje em condições básicas, gastando muito pouco. Ou quem suba à montanha a pé e observe o que está do outro lado. No extremo oposto, há lisboetas bem instalados que nunca foram a Cascais. Quanto ao tempo, quem gosta mesmo de se fazer ao caminho encontra uma oportunidade para a empreitada. «Temos sempre tempo para o que consideramos importante», li uma vez, uma frase algo exagerada, mas com um fundo de verdade. Exceções haverá sempre, mas, em geral, os amantes da descoberta arquitetam estreitas faixas de disponibilidade, frequentemente com a ajuda de colegas e familiares que lhes asseguram a retaguarda durante a sua ausência. Quanto à saúde, tudo depende do nível de sacrifício exigido e das soluções possíveis para amenizar as condicionantes. Conheci um senhor que fez uma excursão de duas semanas à China em cadeira de rodas, contando apenas com o apoio da esposa. Na Etiópia, vi um velhote que mal se conseguia deslocar, ofegando nas escorregadias igrejas de Lalibela, amparado por um guia contratado. Que coragem, pode-se dizer, mas, além disso, que vontade de descobrir! Não julgo quem, podendo, não viaja. Cada um conduz a sua vida como lhe apraz, não há certos nem errados. Eu tenho podido usufruir do que considero ser um grande privilégio e estou, por isso, 12


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muito grato. Em consequência, tenho um enorme gosto em partilhar as minhas descobertas, sejam experiências, emoções ou conhecimento, e a melhor forma de o fazer continua a ser, na minha opinião, através de textos e imagens. Por enquanto em forma de livro, o futuro dirá se outros modelos se tornarão pertinentes. Um livro de crónicas de viagens, de textos com fotografias ou, se se quiser, de fotografias com textos. A organização do livro (ou a falta dela) segue a lógica das minhas duas edições anteriores sob o mote e subtítulo «Crónicas de Algures»: não há uma sequência específica, as viagens foram acontecendo e o livro também. Há seis anos, editei «De Mapas a Tesouros – Crónicas de Algures», um título que releva o facto de que cada viagem me permite transformar os mapas, representações abstratas, em tesouros concretos de experiências e de memórias. Há três anos, concluí «Folhas de Plátano – Crónicas de Algures», onde me referi ao mundo como algo tão belo e extraordinário como simples folhas caídas, com consciência de que, tal como em relação a essas folhas, podem coexistir visões negativas. Usei a Índia como exemplo das duas perspetivas opostas, por um lado tanta miséria e estranheza, por outro o mais fantástico e interessante dos países. Neste volume, na ausência de mais uma viagem à Índia, começo pelo seu equivalente em África, a Etiópia: tantos problemas e traumas e, ao mesmo tempo, uma tão extraordinária história, tanta beleza, tantas singularidades, tanta esperança. Um diamante por lapidar, chamei-lhe, pensando no seu gigantesco potencial. De certa forma, todos os países são também diamantes, no sentido em que não há um que não tenha encantos, não nos possa surpreender, não contribua para esta realidade de beleza indescritível chamada Terra. Uns serão pedras grandes e brutas, como a Etiópia, com numerosos quilates e muita lapidagem a fazer para ficarem a cintilar, outros serão gemas já bem talhadas e polidas, que não requerem grande esforço para encantar, mas todos são joias de diversos tamanhos, com diferentes imperfeições e distintos brilhos. E cada par de olhos verá esta mina de diamantes de diferentes 13


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formas, além de que não há duas viagens iguais, até porque nós próprios não voltamos atrás no tempo. Qualquer deambulação é uma incursão neste imenso tesouro, saltando de pedra preciosa em pedra preciosa. «Entre diamantes», uma possível descrição, em duas palavras, do privilégio de viajar pelo mundo. Assim sendo, apresento-vos «Entre Diamantes – Crónicas de Algures», o meu terceiro livro de crónicas de viagens. Espero que gostem.

A meseta de Ashenat e o vale de um afluente do Nilo Azul, no voo LalibelaAdis Abeba, Etiópia

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Diamante por lapidar

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Etiópia, 2018

A capela no complexo de igrejas de Santa Maria de Sião onde, segundo a tradição da Igreja Ortodoxa Etíope, está guardada a Arca da Aliança. À esquerda, de túnica castanha, o sacerdote guardião. Axum, Etiópia

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«Makeda, a rainha de Sabá, viajou até Jerusalém, para visitar o célebre e sábio rei Salomão. Ele tentou seduzi-la, mas ela não cedeu, ainda que se sentisse bastante atraída. O soberano aceitou a recusa e disse-lhe que ela seria bem-vinda no seu palácio, mas não poderia mexer em nada sem autorização. Ao jantar, mandou servir-lhe comida muito salgada e, à noite, disse para não lhe colocarem água no seu aposento. Ao lado da sua cama, pelo contrário, garantiu a presença de um grande jarro com água. Durante a noite, Makeda acordou cheia de sede e, desesperada,

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procurou onde beber nas proximidades. Ao ver o recipiente com água fresca ao lado da cama do rei, e concluindo que este dormia, precipitou-se em direção ao desejado líquido. O monarca, contudo, tinha por hábito dormir de olhos abertos, fechando-os quando estava acordado, em meditação. Ao aperceber-se de que a sua convidada saciava a sede, agarrou-a pelo braço e disse-lhe que ela quebrara o compromisso e lhe devia obediência. A rainha anuiu e seguiu-se uma noite de intenso amor. Ao regressar a Axum, Makeda trazia no seu ventre a semente real, dando à luz um filho que veio a ser Menelik I, o primeiro rei da dinastia salomónica, a qual reinou durante milénios, até ao fim do império com a deposição de Haile Selassie, em 1974». Ouvi esta história por duas vezes, primeiro em Gondar e depois em Axum, a cidade tida pelos etíopes como a capital do reino de Sabá, onde se inicia a história da Etiópia atual e o seu local mais sagrado. Axum é hoje uma pequena cidade no norte do país, na região do Tigré, a escassas dezenas de quilómetros da fronteira com a Eritreia. Makeda, figura mítica na história etíope, terá vivido no século x a.C. e o que se sabe sobre a sua existência fundamenta-se em textos dispersos da Torá judaica, da Bíblia cristã e do Corão muçulmano, em geral de interpretação questionável. A fonte mais detalhada sobre a sua vida é o Kebra Negast (Glória dos Reis), uma compilação de lendas escrita há 700 anos, considerada pela Igreja Ortodoxa Etíope como de inspiração divina. Rezam estes textos que Menelik I visitou Jerusalém para conhecer o rei Salomão, seu pai, e que a parecença entre ambos era tão evidente que a paternidade foi desde logo reconhecida. Terá sido nessa ida, face às numerosas ameaças a Israel, que o jovem rei etíope trouxe para Axum a Arca da Aliança, contendo as tábuas com os Dez Mandamentos, as leis divinas recebidas por Moisés diretamente de Deus. Segundo a tradição etíope, a Arca está guardada numa capela ao lado da Igreja de Santa Maria de Sião, várias vezes destruída e reconstruída. 16


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A atual igreja é um edifício moderno de base circular, mandada erguer por Haile Selassie nos anos 60. Ao seu lado, um espaço vazio e desleixado marca o que terá sido o lugar da primeira igreja ali construída, no século iv d.C., a que seria a mais antiga de África, destruída cinco séculos depois. Do outro lado, mantém-se de pé outra igreja, do século xvii, com interessantes frescos originais e com a curiosidade de que, à sua frente, se podem ver as pedras-trono onde, por vários séculos, foram coroados os reis etíopes. Entre ambos os templos, situa-se uma pequena capela quadrangular de granito cinzento, cúpula esverdeada e visual modesto, rodeada por grades das quais os visitantes não se podem aproximar. É aqui que estará guardada a Arca da Aliança, o que o torna o mais sagrado local da Etiópia, objeto de peregrinações devotas e celebrações anuais. Na capela reside o sacerdote guardião, a única pessoa com acesso ao sacrossanto objeto. A sua missão é vitalícia e é ele que designa o seu sucessor. Esta tradição é levada muito a sério pelos cristãos etíopes, que explicam com uma convicção maior do que a qualidade dos seus argumentos porque é ali que está a verdadeira arca. Ouvi estas descrições sentado nas cadeiras da igreja moderna, antes de me mostrarem um grande livro antigo com textos sagrados escritos em magníficas folhas de pele de cabra, uma preciosidade manuseada com desconcertante informalidade por um sacerdote. Em seguida, conduziram-me a um piso subterrâneo onde está um pequeno museu, no qual só entrei depois de deixar todos os meus pertences num cacifo. Quando vi a sua sala, suja, desengraçada e mal iluminada, pensei que iria ver curiosidades de arte sacra de reduzida relevância. Equívoco: coroas enormes e riquíssimas de reis, rainhas e príncipes, trajes sumptuosos, objetos vários das tradições religiosas, incluindo magníficas cruzes processionais, cruzes de mão e outros acessórios, compõem um acervo surpreendente, que bem merecia melhores instalações. Esta contradição revela-se não só neste incrível tesouro como também na cidade de Axum no seu todo, tanto é o seu património, 17


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Campo de tumbas, estelas e obeliscos, do século iv d.C., Axum, Etiópia

e tão recente é a sua descoberta e incipiente a sua disponibilização ao público. É que não se visita apenas o complexo das Igrejas de Santa Maria de Sião, acede-se a vastas áreas de ruínas e vestígios arqueológicos riquíssimos, cuja maior parte, creem os especialistas, continua soterrada. A uma escassa centena de metros das igrejas fui surpreendido por um parque arqueológico com enormes estelas e obeliscos de granito, muitos com faces esculpidas, e ainda várias tumbas complexas, compondo um conjunto monumental que, em todo o continente, apenas será superado pelos seus equivalentes no Egito. Nos arredores da cidade, avistam-se outros conjuntos de estelas, menores, e mais tumbas. Guardada num casebre, construído no local onde foi encontrada há 30 anos, admira-se a Pedra do Rei Ezana, a chamada «Pedra de Roseta etíope», uma estela de granito de três metros de altura com textos gravados em grego e outras duas línguas antigas. Este valioso testemunho remonta ao século iv, época 18


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a que se crê pertencer a maioria dos vestígios descobertos na zona e que marca a transição do paganismo para o cristianismo, fazendo da Etiópia a segunda nação cristã mais antiga do mundo, a seguir à Arménia. Na saída oeste de Axum situam-se as ruínas Dungur, tidas pela tradição como sendo do palácio da rainha de Sabá, mas na realidade devendo ser da luxuosa residência de um nobre, provavelmente do século vi. O sítio é pouco interessante, mas importa ter em conta que as escavações, quer aqui quer à volta de toda a cidade, ainda mal começaram. Quantos segredos estarão escondidos por estas pedras e terras que testemunharam milénios de história? Vestígios e monumentos à parte, Axum é uma cidade com pouco mais de 50 mil habitantes, marcada por uma avenida principal que concentra os poucos edifícios dignos desse nome, em geral hotéis, bancos e serviços públicos, misturados com casas modestas que ao virar da primeira esquina dão lugar a bairros humildes, a que se seguem subúrbios muito pobres. Não deixa de ser uma urbe aprazível, pelo menos ao longo desta artéria que liga todos

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Mercado de cestos, aos sábados de manhã, Axum, Etiópia


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No Grupo Sueste de igrejas, Lalibela, Etiópia

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os locais relevantes, da praça central, onde visitei um mercado de cestos coloridos, às lojas de um artesanato de excelente qualidade, em especial os objetos de inspiração religiosa em madeira ou metal. Achei curiosa a calçada que forra parte da avenida e algumas das suas transversais, em algumas zonas fazendo lembrar a portuguesa. Se o berço da nação etíope e o seu local mais sagrado, Axum, é hoje uma singela cidade planáltica cuja riqueza histórica suplanta a realidade observável, o segundo local de maior importância religiosa, Lalibela, é uma vilória de visual ainda mais pobre, espalhada por cristas montanhosas isoladas. Hoje, pode chegar-se-lhe de avião, graças a uma pista construída numa estreita faixa plana, a 20 quilómetros de distância. Por estrada, de Adis Abeba, são 14 horas de caminho, que se devem transcorrer, pelo que vi dos ares, com doses reforçadas de paciência e resistência. Do declínio de Axum, no século viii, ao estabelecimento da dinastia Zagwe em 1137, na zona de Lalibela, decorreu a «idade das

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trevas», dela pouco se sabendo, dada a ausência de documentos. Mesmo da época em que Lalibela foi o centro do poder etíope, até 1270, as informações são escassas. Consta que os novos soberanos não gozavam do apoio do sempre poderoso clero e que, para conquistar a sua simpatia, fizeram construir numerosas igrejas, numa empreitada arrojada e original: os templos foram escavados nas rochas, vazando-as de cima para baixo e ligando-as por passagens e túneis. São estas curiosas igrejas, 11 no total (1), que trazem peregrinos e visitantes a estas paragens remotas. Algumas são grandes, como Bet Medhane Alem, a maior, outras são pequenas capelas onde não cabe mais do que uma vintena de fiéis. Distribuem-se por dois complexos situados a poucas centenas de metros um do outro, o Grupo Noroeste e o Grupo Sueste, cada um com cinco igrejas. Fora destes conjuntos, mas também próxima, fica a mais fotografada e a mais marcante: Bet Ghiorgis, a Igreja de São Jorge, a joia de Lalibela. Bet Ghiorgis foi escavada numa zona rochosa pouco inclinada, em forma de cruz grega, com os quatro braços do mesmo tamanho. Pode dizer-se que tem 15 metros de altura, mas será melhor dizer 15 metros de profundidade, pois é essa a medida do fosso escavado em redor do edifício, que na realidade não foi erguido, resulta da parte que se deixou ficar da rocha original. As suas paredes grossas e teto portentoso garantem-lhe boa resistência, dispensando pilares interiores. No topo exterior, ao nível do solo da encosta, estão esculpidas cruzes concêntricas de desenho simples, as quais muito contribuem para a beleza do monumento, em especial quando se lhe chega, vindo de um plano superior. À base da igreja acede-se por um sendeiro e um pequeno túnel escavados na rocha, do lado oposto ao da chegada. Tal como na generalidade das igrejas de Lalibela, o interior é austero, com paredes lisas e ornamentação escassa: um reposteiro verde e dourado isola o compartimento interior, reservado aos sacerdotes, onde 1

Algumas são igrejas-gémeas, pelo que certas fontes referem um total de 13 igrejas.

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Os fiéis posicionam-se para ouvir a missa de domingo de manhã, nas proximidades do Grupo Noroeste de igrejas, Lalibela, Etiópia

está guardada a cópia das Tábuas da Lei; ao lado, dois quadros de São Jorge, um moderno, outro antigo e em mau estado; forrando a quase totalidade do piso, tapetes coloridos incaraterísticos que nunca devem ter sido limpos na vida, ainda assim protegendo os pés desnudos dos visitantes do frio da pedra, uma vez que na Etiópia os sapatos ficam sempre do lado de fora dos locais de culto. Bet Ghiorgis é a igreja em melhor estado de conservação, dispensando as feiosas coberturas metálicas que foi necessário erguer sobre as restantes, para as salvar de uma morte certa, causada pela erosão. A princípio julguei que as rochas escavadas fossem argilosas, pela sua cor alaranjada, mas são na realidade «escórias basálticas hidrotermicamente alteradas», brandas e em processo de desgaste químico acelerado pela sua exposição ao clima. As tapagens, em especial a enorme estrutura que cobre Bet Medhane Alem, são de facto inestéticas, uma espécie de enxerto futurista sobre monumentos seculares, mas é suposto serem temporárias e têm 22


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sido essenciais para evitar a catástrofe que seria o colapso deste património. A visita aos dois conjuntos de igrejas implica percorrer descidas íngremes, pedras escorregadias, escadarias toscas e passagens obscuras, em todo o caso um agradável exercício de descoberta da singularidade do enquadramento, da extravagância da arquitetura, do engenho relativo à drenagem das águas, da simplicidade das linhas exteriores dos templos, da austeridade dos seus interiores e dos efeitos de luz e sombra nas paredes cor de laranja. Algumas igrejas têm zonas interiores com baixos-relevos e pinturas, sempre em mau estado, insuficientes para quebrar o minimalismo estético e amenizar o ar de pobreza e de desleixo decorrente dos tapetes sujos e de alguma desarrumação, por exemplo pelos toscos recipientes de plástico deixados à vista. Não obstante, reconheço que esta sensação de desapontamento resulta dos meus olhos europeus, pois não é por falta de carinho que os interiores se apresentam desta forma. Eles são frequentados pelos habitantes e vigiados por sacerdotes

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Bet Ghiorgis, a Igreja de São Jorge. Lalibela, Etiópia


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zelosos, a realidade é que as coisas são mesmo assim nesta África profunda, onde se vive e se pensa de forma distinta da nossa. Aliás, vistas por esta perspetiva, as igrejas de Lalibela tornam-se ainda mais exóticas. Cada templo era guardado por um clérigo invariavelmente barbudo, com vestes longas em que não encontrei um padrão, umas brancas, outras amarelas, outras ainda com um bordado mais sofisticado. Sobre os cabelos, sempre cobertos, usavam diferentes tipos de turbantes ou chapéus altos. Em todo o caso, estavam sempre atentos ao comportamento dos visitantes e em geral dispostos a posar para uma fotografia, a troco de uma gratificação, com direito a uma bênção e a beijar uma das lindas cruzes metálicas tradicionais, povoada por micróbios por certo sagrados. Voltei aos monumentos num domingo de manhã, quando a missa atrai numerosos fiéis e o centro de Lalibela se enche de povo. Com igrejas pequenas e encafuadas como estas, as pessoas distribuem-se pelas redondezas, sentando-se em bancos corridos de madeira, nas escadarias, ou ficando apenas encostadas ou dispostas no chão onde lhes convém. Um sistema de altifalantes traz a voz dos sacerdotes a todos os recantos, numa cerimónia que chega a durar três horas. As famílias separam-se por sexos, de um lado os homens, do outro as mulheres e as crianças, quase todos vestidos de branco ou, pelo menos, com um pano branco sobre a sua roupa. Esta imagem das numerosas silhuetas brancas e tranquilas, espalhadas à entrada das igrejas, contrastando com o alaranjado de rochas e paredes, é verdadeiramente magnífica. A hora e meia de caminho, por estradas rurais em estado razoável, encontrei Yemrehanna Kristos, uma igreja construída numa grande gruta a meio de uma encosta íngreme, ainda mais antiga do que as de Lalibela, pensa-se que do século xii. Tive a sorte de lhe chegar quando terminava a missa, a tempo de observar as mulheres e as crianças, quais fantasmas brancos, caminhando em fila pelo trilho, no meio da encosta arborizada. Lindo. 24


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A igreja situa-se perto da entrada da gruta, recebendo uma luz natural que lhe ilumina a fachada de riscas brancas e castanhas da pedra e da madeira utilizadas na construção, num estilo associado ao período axumita. O interior é muito interessante, com as paredes e o teto cobertos de frescos, baixos-relevos e zonas de madeira trabalhada. Creio que beneficiaria de um restauro bem executado, pelo menos de uma limpeza que lhe reavivasse as cores, mas não deixa de ser um templo belíssimo pela sua antiguidade e pela sua localização, perdida nas montanhas, próxima de uma aldeola paupérrima, onde vi crianças a brincar com lama e com gargalos de garrafas de cerveja. Nas traseiras do edifício estão dois túmulos cobertos por tecidos coloridos, como se fossem uma tenda, e ao fundo da gruta acumulam-se numerosos esqueletos e corpos parcialmente mumificados, de monges e peregrinos, alguns tão antigos como a igreja. Surpreendente. A queda da dinastia Zagwe levou a um novo período de poderes itinerantes e existências conflituosas. A Idade Média etíope, como é chamada, começa com a restauração da dinastia salomónica pelo rei Yekuno Amlak, e leva-nos até às margens do lago Tana, onde, por vários séculos, se vieram a instalar os sucessivos monarcas. Foi esta zona que testemunhou os primeiros contactos com os cristãos europeus, entre os quais os portugueses, sendo que alguns vestígios dessa influência ainda sobrevivem (2). De facto, vi e atravessei uma «ponte portuguesa», perto das Tis Abay, as cataratas do Nilo Azul, a 30 quilómetros de Bahir Dar, mas não sei se foi construída com o engenho dos meus compatriotas de há 400 anos, posso apenas dizer que não me surpreenderia se a visse numa qualquer aldeia minhota ou beirã. O lago Tana não é particularmente bonito, embora seja agradável ver um grande espelho de água interrompendo planaltos e montanhas sem fim. As suas águas de um azul desbotado espalham-se 2

Sobre o período de contacto dos portugueses com a realeza etíope, nos séculos xvi e xvii, leem-se com prazer as «Histórias Etíopes», de Manuel João Ramos (edição Tinta da China).

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Pr ev Pescador numa tankwa (embarcação de papiro), no lago Tana, perto de Bahir Dar, Etiópia


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por 3500 km2 a 1788 metros de altitude, alimentadas por dezenas de pequenos rios vindos das montanhas circundantes. Contudo, em termos de rios, o que conta é o único que ali nasce, o Nilo Azul, que se junta ao Nilo Branco em Cartum, no Sudão, após 1370 quilómetros de curvas e desfiladeiros bravios. É na sua nascente, à beira do Tana, que se situa Bahir Dar, a capital da região Amhara, uma cidade de linhas geométricas sem especiais motivos de interesse, mas uma boa base de acesso às dezenas de curiosos mosteiros espalhados pelas margens do lago e em várias das suas ilhas. A caminho desses recônditos locais de culto, de barco, o lago revela-se prazenteiro e desvenda alguns dos seus encantos, de alguns hipopótamos, que se adaptaram à altitude, a pelicanos e íbis em elegantes sobrevoos. O que mais apreciei, porém, foram as tankwa, as embarcações de papiro dos pescadores locais, tão baixas que parecia que remavam sentados na água, mas não tão frágeis como parecem, dada a incrível flutuabilidade da sua matéria-prima. Um dos pescadores, vendo o nosso interesse, aproximou-se e mostrou-nos as suas tilápias recém-apanhadas, mantidas frescas na água acumulada dentro da embarcação. Não pude deixar de me lembrar do norueguês Thor Heyerdahl, que em 1969 por aqui passou à procura de papiro para construir o seu Ra, a bordo do qual quase conseguiu atravessar o Atlântico. A maior parte dos mosteiros do lago Tana são dos séculos xiii e xiv, em geral destruídos e reconstruídos ao longo dos tempos, dado que são feitos de adobe, madeira, papiro e colmo. Curiosíssimas, estas palhotas-igreja, dispersas no meio do arvoredo, muitas vezes só se vendo um pedaço dos seus cones de palha acima das copas. As três zonas típicas das igrejas etíopes estão dispostas de forma concêntrica, do interior com a cópia das Tábuas da Lei, de acesso restrito, à zona intermédia de onde se celebram as missas e à zona exterior destinada ao público. Algumas têm murais pintados de cores garridas, com numerosas imagens e histórias bíblicas de visual um pouco infantil, dando-lhes um caráter próprio que justifica a visita. 28


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De Bahir Dar parti para a mítica Gondar, a três horas de caminho por boa estrada. Gondar foi a primeira capital estável da Etiópia desde a queda dos Zagwe de Lalibela, quando em 1636 o rei Fasiladas ali mandou erguer o seu palácio. Hoje, não é apenas esse edifício que se visita, mas um impressionante complexo monumental murado, que foi sendo erigido pelos sucessivos monarcas. No recinto de forma oval de 300 metros por 200 encontram-se, além do palácio de Fasiladas, outros palácios, igrejas e construções, quase todas em ruínas, mas ainda ilustrando o esplendor desta época, antes das divisões e intrigas que determinaram o declínio da cidade a partir de meados do século xviii. Além deste complexo, visitei os curiosos Banhos de Fasiladas, um edifício harmonioso rodeado por um grande tanque, supõe-se que servindo de residência real alternativa. O local é hoje utilizado no Timkat, a celebração do batismo de Cristo no rio Jordão, efetuada por toda a Etiópia cristã a 19 de janeiro: após uma longa

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No Complexo Monumental Real. À direita, o Palácio do Rei Fasiladas, do século xvii, Gondar, Etiópia

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cerimónia religiosa feita em presença de uma cópia da Arca da Aliança, com toda a gente vestida de branco, segue-se uma efusiva invasão das águas, no que deve ser, pelas fotografias expostas, uma cena memorável. Não saí da cidade sem visitar também a igreja Debre Berhan Selassie, a única que não foi derrubada quando da invasão e destruição de Gondar pelos dervixes sudaneses, em 1880. Ao que parece foram afastados por um enxame de abelhas, sempre úteis e neste caso também oportunas: o monumento é belíssimo, com as paredes cobertas por pinturas bíblicas, mais uma vez encantadoramente infantis, e um teto de madeira pintado com mais de 100 querubins com grandes olhos negros. Destruída e abandonada pelo poder, Gondar caiu num declínio que o turismo renascente ainda não conseguiu disfarçar. É hoje uma aldeia grande e desordenada de mais 200 mil habitantes, dispersos numa zona de planalto ondulado, com passado largo, presente estreito e futuro indefinido. Foi na sequência do seu estertor, na segunda metade do século xix, que o imperador Tewodros conseguiu reunificar o reino, o seu sucessor Yohannes derrotou os invasores italianos (que se mantiveram confinados ao que é hoje a Eritreia) e o seguinte monarca, Menelik II, fundou a nova capital Adis Abeba ou «Nova Flor», em amárico (a língua oficial atual, a par do inglês). Decorria o ano de 1889, há pouco mais de um século. Menelik II é considerado o fundador da Etiópia moderna e são-lhe creditadas importantes iniciativas de modernização como a eletricidade, as comunicações, estradas, pontes, hospitais, escolas, bancos e indústrias. Alguns anos após a sua morte e passadas as sequelas da Primeira Grande Guerra, ascende ao trono o príncipe Ras Tafari, que veio a ser coroado Imperador em 1930, com o nome de Haile Selassie. Esta personagem carismática, a ponto de ter originado um movimento religioso que lhe reconhece caraterísticas divinas (3), reinou até 1974, quando foi deposto pelo movimento 3 O Movimento Ras Tafari ou Rastafarianismo é uma seita judaico-cristã surgida na Jamaica nos anos 30 e que tem hoje 600 mil seguidores, os rastas.

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Pr ev O interior da igreja Debre Berhan Selassie, dos finais do sĂŠculo xviii, Gondar, EtiĂłpia


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republicano Derg, de orientação comunista, liderado pelo sinistro Mengistu Haile Mariam. Iniciou-se o período de «terror vermelho», durante o qual se cometeram atrocidades indizíveis e negligências insuportáveis, sendo a mais conhecida a crise alimentar de meados dos anos 80 (4). O Derg caiu, em 1991, e desde então, com graves e incontáveis problemas pelo meio, da guerra fronteiriça com a Eritreia a disputas pelo poder e tensões tribais várias, o país tem vindo a sair das trevas e a caminhar para a posição de relevo que merece no contexto africano. Adis Abeba é hoje a capital do único estado do continente que nunca foi colonizado, pois a ocupação italiana de 1935 a 1941, liderada por Mussolini, não chegou a deixar marcas culturais ou sociais. Sem centros planeados ou edifícios de estilo colonial, é sobretudo uma enorme aldeia com várias centralidades e 3,5 milhões de habitantes, onde os arranha-céus se misturam com os mercados de rua, os palácios convivem com bairros miseráveis e as avenidas ajardinadas têm como tributárias estradas enlameadas. É ao chegar-lhe de avião que se aprecia a sua confusa extensão e diversidade, incluindo um campo de golfe, zonas de moradias e condomínios-ilha não longe de lixeiras e de favelas de zinco, madeira e plástico. Quem não aprecie esta manta de retalhos sociais e urbanísticos, quem não se entusiasme com um passeio no confuso Merkato, dito o maior mercado ao ar livre de África (onde circulei de máquina fotográfica ao pescoço, sem nunca me sentir inseguro), fica com alguns museus cujo acervo tem um valor que não condiz com a sua apresentação negligente (de tronos e coroas ao célebre esqueleto de Lucy, a jovem australopiteco de 3,2 milhões Consideram Haile Selassie como o segundo Messias e seguem um conjunto específico de princípios e costumes. 4 A Amnistia Internacional estima que tenham sido assassinados meio milhão de etíopes ditos «contrarrevolucionários», num processo com uma crueldade insuficientemente relatada. E se a fome de 1972-1974 contribuiu para a queda da monarquia, a fome de 1984-1986 foi pior, vitimando entre 400 mil e um milhão de pessoas, sabendo-se hoje que a principal causa foi política, a seca apenas agravou um desastre que já estava instalado.

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de anos) e com algumas igrejas interessantes, como a de São Jorge, a da Santíssima Trindade (com os túmulos de Haile Selassie e da sua esposa) ou a Bete Maryam (com o túmulo de Menelik II). A Etiópia é um país enorme (pouco menor do que Angola) e o segundo mais populoso de África, com cerca de 105 milhões de habitantes. Visitei apenas aproximadamente um terço do seu território, a sua zona cristã, a mais montanhosa, mais habitada e mais expressiva do ponto de vista histórico e cultural. Ficaram de fora o sul animista, que confina com o Quénia e o Sudão do Sul, e o leste muçulmano, que se estende para a Somália, ambos diferentes e por certo também interessantes. Ficou ainda de fora a zona de Danakil, a nordeste, nas fronteiras com a Eritreia e o Djibuti, que creio ter das paisagens mais estranhas e fantásticas do planeta. Em todo o caso, penso ter visitado o «coração» deste destino, a zona que o torna único, a ilha cristã de tradições perdidas nos tempos, a que justifica que este povo alto e elegante tenha um orgulho muito próprio que o faz sentir especial face aos outros, os «africanos». País conhecido por maus motivos, das revoluções à fome, é hoje um espaço que se visita em boas condições, com infraestruturas razoáveis, uma companhia aérea competente e níveis de segurança que se distinguem pela positiva num continente no qual, em regra, ser branco e europeu implica cuidados redobrados. As tensões tribais continuam e os problemas políticos persistem, mas os estrangeiros são bem recebidos e raramente perturbados. Se me sujeitei a alguma insegurança foi a sanitária, como é infeliz regra em boa parte do mundo. Por esse motivo, arrisquei pouco na condimentada gastronomia etíope, em que molhos e picados, coloridos e fumegantes, são apostos sobre a injera, um pão esponjoso e mais azedo do que se possa imaginar, feito de tef, um cereal regional. Para compensar, adorei o café e achei encantador o seu cerimonial, que inclui ervas verdes e frescas no chão, um fogareiro com incenso ardente, uma cafeteira sobre carvão e chávenas de barro negro. Magnífico, o café etíope, aliás o primeiro de todos, pois foi aqui que nasceu o seu consumo, antes de ter passado para o Iémen, 33


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na variedade hoje conhecida como «arábica», de onde seguiu para turcos, europeus e para o resto do mundo. Cada vez mais viajado e menos suscetível de ser surpreendido, saí de Adis Abeba com sentimentos mistos. Os monumentos etíopes são especiais, diferentes, adorei conhecê-los, mas não são deslumbrantes, daqueles de nos deixar de olhos esbugalhados. A história, fantástica, supera o que se observa. Se noutras paragens um pequeno facto pode dar origem a uma obra-prima, aqui a relação é a inversa, ficou pouco para tantas memórias. Para ser justo, contudo, importa comparar a Etiópia com os países limítrofes e com os restantes territórios a sul do Saara, onde o que se aprecia são as paisagens e a vida selvagem. Quanto património como o de Axum, Lalibela e Gondar se visita na África a sul do Trópico de Câncer? Muito pouco, e a maior parte terá mãos europeias. Em todo o caso, tenho uma confissão final a fazer: se é certo que apreciei os monumentos e fiquei mais rico por ter conhecido esta longa e extraordinária história, o que de mais marcante trago na memória são outras coisas, porventura despiciendas para a maioria dos visitantes. Por um lado, as paisagens fantásticas observadas nos voos internos, em que se vê a verdadeira natureza do território etíope, com zonas planálticas cultivadas cortadas por desfiladeiros agressivos, vales castanhos rasgados com fúria, sulcados por rios apressados e cinzentos, aldeias isoladas, casotas perdidas, os poucos caminhos, as raras estradas, as grandes extensões de uma ruralidade a que não falta água, faltam infraestruturas, quilómetros e quilómetros de paisagens tão lindas quanto desconhecidas. Por outro lado, percorrendo as estradas, as pessoas, de feições bonitas, as crianças a sair das escolas, os miúdos sorridentes e curiosos, as aldeias, as casas de adobe e troncos de eucalipto (a nova fonte de madeira rápida, depois de destruídas as florestas endógenas), as pessoas carregadas com mercadorias, os homens e rapazes caminhando com os seus inseparáveis cajados, os numerosos bajaj (os tuk-tuks locais) azuis, os mercados caóticos, os arados puxados por bois, os pastores imberbes, os burros de olhos simpáticos, 34


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os campos de arroz, girassol e milho, as igrejinhas redondas com telhados de colmo, os fiéis vestidos de branco a rezar do lado de fora, a Etiópia profunda, genuína. Um diamante por lapidar.

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No Merkato, o grande mercado ao ar livre de Adis Abeba, Etiópia

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