Portugueses, Holandeses, Britânicos e Bóeres na África Austral
Nascido em Lourenço Marques (Moçambique), no ano de 1922, completou ali o ensino primário e secundário. Fez o Curso de Altos Estudos Ultramarinos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Na Universidade de Oxford (Trinity College), fez o curso de Estudos Coloniais, como bolseiro do British Council de Lisboa. Iniciou a carreira profissional no Quadro de Administração Civil de Moçambique, onde desempenhou as funções de Chefe de Posto (Concelho de António Enes – Angoche), Secretário na Direcção dos Serviços de Administração Civil em Lourenço Marques e Administrador nas circunscrições de Mongicual e Palma. Na qualidade de Intendente do Quadro Comum do Ministério do Ultramar, foi Intendente dos distritos de Vila Cabral, Manica e Sofala e Beira, em Moçambique.
Henrique T. Galha
“Descolonização e Independência em Moçambique – Factos e Argumentos” “O Tempo e o Mêdo”
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Pretória
África doSul
OBRAS PUBLICADAS “Memórias de Uma Vivência Abortada”
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Cidade do Cabo
Lourenço Marques
Durban
A História da colonização da África Austral tem um interesse muito especial por nela terem estado envolvidos quatro povos. Os holandeses apenas fizeram o que poderá chamar-se um ensaio de colonização. O povo bóer nasceu dentro da África Austral. A acção portuguesa manifestou-se, sobretudo, através da luta pela posse da baía de Lourenço Marques. Os verdadeiros colonizadores da África Austral foram os britânicos. Estes tinham já conquistado um vasto império, mas estas conquistas não chegavam para os mercados da indústria britânica, em grande desenvolvimento depois da mecanização industrial no século XVIII. Cecil Rhodes foi o grande impulsionador do imperialismo britânico na África Austral. A sua acção nas disputas com os bóeres e com os portugueses tem excepcional interesse e fica salientada neste livro.
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PORTUGUESES, HOLANDESES, BRITÂNICOS E BÓERES NA ÁFRICA AUSTRAL
Portugueses, Holandeses, Britânicos e Bóeres na África Austral Henrique T. Galha edição gráfica: Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) autor:
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título:
Liliana Simões Paulo S. Resende capa: Filipa Pestana revisão:
paginação:
1.ª edição Lisboa, agosto 2019
978‑989-8867-65-0 456151/19
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isbn:
depósito legal:
© Henrique T. Galha
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O conceito de África Austral, neste texto, compreende o território africano situado ao sul da bacia hidrográfica do rio Zambeze. Por opção do autor a obra não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
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Em memória dos meus pais e dos meus irmãos
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ew Prefácio
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Nasci na África Austral, em Moçambique. Mais concretamente na minha linda cidade de Lourenço Marques. Ali nasci, ali estudei, ali trabalhei durante uma grande parte da minha vida. Ao longo de todos estes anos, tive oportunidade de conhecer alguns territórios vizinhos: a União da África do Sul, a Rodésia do Sul (hoje Zimbabué) e o Nyasaland (hoje Malawi). Na Rodésia do Norte (hoje Zâmbia) nunca estive, mas tive oportunidade de olhá-la através da catarata Vitória, quando o rio Zambeze se lança de grande altura para o território vizinho, com grande estrondo, levantando uma gigantesca auréola de espuma, envolvendo a cascata e as margens verdes do rio. Muitos anos passaram. Entretanto, Moçambique e os territórios vizinhos sofreram profundas transformações políticas e sociais. A União Sul-Africana, já independente 7
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naquele tempo, sob um regime da etnia branca, passou a ser governada pelas etnias nativas; Moçambique, as rodésias e o Nyasaland tornaram-se independentes, numa época em que o fenómeno das independências nativas atingiu quase todos os territórios da África subsariana. De uma maneira geral, a adaptação ao novo regime foi difícil em quase todos os novos países. Sem experiência e sem os recursos necessários, muitos dos novos países assumiram encargos insustentáveis, criaram quadros de pessoal empolado e inexperiente desenvolveram castas privilegiadas de ministros, parlamentares e funcionários públicos. Alguns criaram grandes forças armadas sem disporem das necessárias elites, etc. Moçambique, pouco depois da independência, envolveu-se numa trágica guerra civil, cujos resquícios ainda não foram completamente eliminados. Sem adequado aproveitamento dos recursos naturais, a economia e as finanças têm vindo a ser sustentados por doadores internacionais. Da revista The Economist, de 27 de Outubro a 2 de Novembro de 2018, transcrevo seguidamente uma notícia com o título: Moçambique à espera do gás. «A condição da escola Amílcar Cabral, na Beira, no centro de Moçambique, com os vidros partido, o chão emporcalhado e as paredes sujas com grafítis, tipifica o estado 8
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do país. Estão registados professores que não se vêem, hospitais sem medicamentos e falta de transportes públicos. Há alguns anos Moçambique era feliz. O país era contemplado com ajudas de agências e valiosos investidores. De 1995 a 2015, o PIB cresceu mais de 8% ao ano. Moçambique era uma das dez economias com mais rápido crescimento no mundo. O seu ímpeto terminou, em 2016, quando se soube que três empresas controladas pelo serviço secreto tinham escondido empréstimos do Estado no valor de 2 biliões de dólares. Países Dadores e o Fundo Monetário Internacional suspenderam a ajuda financeira e Moçambique aumentou a sua dívida. Negociações com os credores estão ainda em curso. O crescimento caiu para 3,8% em 2016 e 2017, mal chegando para acompanhar uma população em crescimento. Apesar de um aumento na produção de carvão, que sustenta metade das exportações de Moçambique, o estrago do débito escondido permanece. O total da dívida pública, em percentagem do PIB, sendo 112%, é a quarta mais elevada em África. Moçambique é um dos países mais pobres do mundo. Contudo, muitos ainda acreditam que a salvação está no horizonte. Em 2010, enormes reservas de gás natural foram descobertas na bacia do Rovuma. Alguns prevêem que Moçambique tornar-se-á um dos maiores produtores de gás liquefeito 9
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— um Qatar africano. Dois grandes projectos na orla marítima estão previstos começar a produzir em 2023 e 2024. Um consultor afirmou: “espera-se um ‘gás boom’”. Toda a gente espera milagres, isso é perigoso. Mas mesmo que o gás comece a fluir em 2023, demorará uma outra década para alcançar “transformational levels”.»
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A União Sul-Africana beneficia de importantes recursos naturais, entre os quais as minas de oiro do Transval têm a maior relevância, e de infra-estruturas básicas excepcionais, em grande parte devidas à acção de Lord Milner, no início do século XX. Estas condições e a influência britânica nos domínios das instituições políticas da justiça, da educação, da administração pública e, sobretudo, da saúde, deram à nação Sul-Africana um desenvolvimento e um prestígio destacado na África Austral. Por outro lado, a política de separação racial (apartheid) veiculada pelo povo bóer originou a condenação e o desprestígio do país. A governação da União Sul-Africana tornou-se difícil e atribulada até o Partido Nacional Africano assumir o poder. Todavia a esperança depressa se desvaneceu. A corrupção instalou-se entre os governantes, e o escândalo da recente governação de Jacob Zuma levou à sua destituição e ao próximo julgamento por corrupção. 10
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A revista The Economist, de 29 de Setembro a 5 de Outubro de 2018, dá-nos uma ideia da actual situação do país: «Escolas privadas queixam-se por perderem estudantes pelo facto das famílias se deslocarem para o estrangeiro. Muitas famílias estão a vender as suas casas preparando-se para partir. “Vendas para emigração”, são anúncios no Facebook de grupo vizinhos, próximos emigrantes. Mas diferentemente de anteriores saídas, isto não é só emigração dos brancos. Tem sido um grande aumento de negros, mestiços e indianos que estão prontos para partir. O longo tempo de progressos na África do Sul é agora um tempo sempre mais triste. O país entrou em recessão no princípio deste mês, a primeira desde 2009. No próximo ano espera-se um fraco crescimento. O desemprego está acima de 37%. A percentagem de assassinatos está a subir. A dívida soberana é classificada como lixo por todas as agências de crédito, excepto a Moody’s (…) O rand caiu perto 20% este ano.»
O Zimbabué (antiga Rodésia do Sul) foi um território progressivo, com uma economia forte, sustentada, sobretudo, pelas culturas do tabaco e dos cereais e pelos recursos mineiros. A capital Salisbury (hoje Harare) era uma cidade desenvolvida, bem traçada, com amplas avenidas orladas 11
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de jacarandás, cosmopolita, com bons hotéis e desenvolvida actividade comercial. O turismo era importante, alimentado, sobretudo, por visitantes da África do Sul e de Moçambique. Recordo as estâncias turísticas de Leopard Rock e Inyanga em ambientes paradisíacos. Foi o território da África Austral mais decadente após a independência. O responsável pela decadência tem um nome, Robert Mugabe. Recebeu o país dos britânicos no consulado de Margaret Tatcher. Mugabe revelou-se, desde muito cedo, um ditador implacável, um déspota retrógrado. As primeiras vítimas foram os agricultores brancos, escorraçados violentamente das suas propriedades agrícolas, sem contemplação pelas mulheres e pelas crianças; ocupadas seguidamente por africanos sem conhecimentos e experiência, que destruíram, em pouco tempo, uma actividade que vinha sendo um dos pilares da economia do país. Emmerson Mnangagwa sucedeu a Robert Mugabe, em 2017. Da revista The Economist, de 19 de Janeiro de 2019, sob o título Repressão no Zimbabué, transcrevo o seguinte artigo: «A 16 de Janeiro, os zimbabuanos acordaram com um texto/mensagem da Econet, o principal fornecedor da internet. Citando uma ordem do gabinete do Presidente, a firma dizia que no dia anterior tinha suspendido 12
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os seus serviços. “O assunto está fora do nosso controlo”, acrescentava. Os Estados não ordenam blackouts, a menos que tenham alguma coisa para esconder. Em resposta a protestos motivados por um aumento dos preços do combustível, anunciados em 12 de Janeiro, as forças de segurança lançaram uma violenta repressão. De acordo com activistas locais, soldados e polícia foram de porta a porta nas povoações, batendo ou disparando sobre os protestantes. Na capital, Harare, blocos de rua manejados por assassinos da ZANUPF, o partido no poder, impediam os feridos de chegar aos hospitais. A Amnistia Internacional disse que pelo menos oito pessoas foram mortas e mais de duzentas foram presas. A ameaça de violência serviu apenas para encorajar a participação nacional reclamada pelos sindicatos. Escolas, lojas e escritórios nas principais cidades foram fechados desde 14 de Janeiro. “Toda a gente está em casa”, disse Eddie Cross, um antigo membro do parlamento, de 78 anos. Em toda a minha vida nunca vi nada como isto!! Depois que Emmerson Mnangagwa sucedeu a Robert Mugabe, o novo presidente afirmou que o Zimbabué estaria «aberto para o negócio». Os acontecimentos da semana passada fizeram disto uma falsa promessa. E a crise não tem fim à vista. Isto sucede porque a junta no poder está mais empenhada em atacar quem protesta do que em preocupar-se com 13
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os problemas económicos fundamentais do Zimbabué. Depois que uma ruinosa impressão da moeda deu origem a uma hiperinflação, em Setembro de 2009, um governo de unidade nacional cortou a despesa e aboliu o dólar do Zimbabué. O dólar americano tornou-se a principal moeda, extinguindo a inflação. A economia recuperou lentamente. Mas a parcimónia não continuou depois que o ZANU-PF assumiu o inteiro controlo do governo, em 2013. Impossibilitado de imprimir autênticos dólares, fez a sua própria versão chamada localmente de «zollars». Se bem que o governo insistisse que o «zollar» valia o mesmo que o dólar autêntico, o mercado negro dizia outra coisa. A 16 de Janeiro, o zollar valia um quarto do dólar. A frustração dos zimbabuanos era aparente, mesmo antes da subida do preço do combustível. Em Novembro, a inflação oficial chegou aos 31% (muitos pensam que isto está subestimado). É o mais elevado nível numa década. Mais cedo neste mês, médicos, professores e enfermeiros entraram em greve, pedindo para serem pagos em dólares autênticos. Muitos negócios estão perto da falência. Em 11 de Janeiro, indústrias que produzem óleo cozinhado suspenderam os negócios e despediram os trabalhadores, dizendo-se devedores de 11 milhões de dólares aos seus fornecedores. 14
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Para iniciar o fim do esquema Ponzi de zollars em dólares, o governo precisaria de abandonar o mito da paridade. Mas ZANU-PF tem um direito adquirido neste arranjo. Alguns dos seus membros da elite governante podem converter um zollar num dólar no banco central, enquanto deixam à fome os zimbabuanos. Em vez de enfrentar a realidade, o senhor Mnangagwa deixou o país. Depois de anunciar a subida do preço do petróleo de 1,32 para 3,31 zollars, ele embarcou no seu avião privado com destino à Rússia. Em Moscovo, assinou um acordo para dar a Alrosa, uma empresa russa, acesso aos campos de diamantes do país. Isto poderia ajudar a passar alguns dólares autênticos para os bolsos mandões da ZANU-PR. Mais tarde, em 16 de Janeiro, a internet foi reactivada. As redes sociais mostraram imagens de corpos ensanguentados. O blackout terminou. Mas a escuridão do Zimbabué continua.» A mesma revista, na edição de 26 de Janeiro de 2019, insere novo comentário sobre a tragédia no Zimbabué: «Desde Janeiro, quando o Sr. Mnangagwa enfrentou protestos por anunciar uma subida de 167% no preço do combustível, as forças de segurança do Zimbabué utilizaram a violência numa escala nunca vista durante a última década. Alguns dias depois da subida do preço, soldados, polícias e milícias 15
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do ZANU-PF, o partido no poder, foram de casa em casa através do país, agredindo, matando ou soltando cães contra residentes de 11 anos de idade. Durante a última semana, a violência tornou-se mais selectiva, mas não menos brutal. As prisões estão repletas. Pelo menos, onze oposicionistas foram presos, assim como os líderes dos três maiores sindicatos. Centenas de elementos do povo, incluindo crianças, estão presos.»
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Nos longínquos anos cinquenta do século passado, tive o privilégio de estudar na Universidade de Oxford e a possibilidade de frequentar a Rhodes House Library, biblioteca muito completa sobre assuntos coloniais. Aproveitando a oportunidade, organizei um valioso ficheiro respeitante à África Austral, que me serviu de base para efectuar este trabalho. A minha vida profissional, sempre absorvente, em Moçambique, em Portugal e em Macau, só recentemente me permitiu ir buscar, ao «fundo da gaveta», o meu ficheiro.
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Sagres – Escola Náutica e Rampa de Lançamento – Os Portugueses
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O homem, no decurso da História, procurou sempre aumentar o seu conhecimento da Terra que habitava, caminhando para além da linha do horizonte, nos tempos mais remotos, navegando depois sobre os mares desconhecidos, descobrindo povos e continentes. Portugal, enfrentando o oceano no extremo ocidental da Europa, foi o percursor e o autor das grandes viagens que levaram o homem a conhecer o planeta que habitava. O Infante D. Henrique, nascido em 1394, no Porto, filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre — que os ingleses costumam designar por Henry the Navigator e gostam de lembrar que o Infante português era bisneto do rei Eduardo III de Inglaterra — foi o cérebro e a alma da concepção e execução da homérica aventura dos descobrimentos. 17
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O Infante D. Henrique rodeou-se de peritos nacionais e estrangeiros, em Sagres, erguendo uma autêntica escola náutica (para adestramento e arquivamento das experiências e realizações obtidas), chamando a Portugal, entre outros mestres, o célebre cartógrafo Jafuda que, com os elementos fornecidos pelos navegantes, elaborou novas cartas náuticas. Em 1431, o Infante reorganizou os estudos da Universidade de Lisboa, onde introduziu o ensino da matemática e da astronomia. Viveu a maior parte do tempo nas duas vilas algarvias de Lagos (onde foi sepultado numa igreja destruída pelo terramoto de 1755 e depois trasladado para o Porto) e na Vila de Sagres. As invenções da bússola, da imprensa e da pólvora haviam encaminhado a humanidade para uma civilização nunca antes vista. Anteriormente, as viagens marítimas limitavam-se aos litorais, pois só se podia navegar à vista de Terra. Os antigos quase não saíram do mar Mediterrâneo, como um pequeno lago semeado de ilhas, que constituíam outros tantos pontos de referência e orientação. Não há no Mediterrâneo grandes correntes marítimas, nem grandes tempestades, nem calmarias. O contrário sucede com os grandes oceanos. 18
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Com a bússola não mais se oporiam dificuldades à navegação, não mais barreiras insuperáveis afastariam os povos, não mais o comércio se desenvolveria em estreitos limites. Os aperfeiçoamentos introduzidos na construção de navios tornaram o novo barco, a caravela, muito ligeira e de alto bordo, apta para evitar as ondas elevadas. Com ela, cabe aos portugueses a glória de haverem iniciado e levado a cabo os maiores desenvolvimentos. Os portugueses alargaram o âmbito do mundo geográfico. A Europa passou a dominar o mundo até então desconhecido. Portugal foi o pioneiro das navegações oceânicas, guiado pelo génio de Henrique, o Navegador. As coordenadas geográficas de latitude e longitude eram absolutamente necessárias para a determinação de cada local. Para isso, este problema e a sua aplicação foram estudados com persistência em Portugal. Desde muito tempo se sabia que a latitude era igual à altura do pólo acima do horizonte do lugar. A constelação da Ursa Menor, onde está a estrela polar, servia de ponto de referência aos navegadores que, de astrolábio ou quadrante em punho, mediam o respectivo ângulo com o horizonte. Mas, depois que os portugueses transpuseram o Trópico de Câncer e se aproximaram do equador, essa constelação desaparecia e tornava-se, portanto, impossível a orientação. 19
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Os estudos previamente feitos pelos matemáticos da Junta de Lisboa, para calcular a latitude sem recorrer à estrela polar, por meio de uma fórmula que se relacionava com a posição do sol ao meio-dia, permitiram calcular a latitude exacta no momento da observação. A longitude era calculada pelas léguas andadas e pelo ângulo que a rota do barco fazia com o meridiano. Deste modo, com segurança, navegaram os portugueses pelos mares equatoriais, até que, transposto o Trópico de Capricórnio, avistaram os esplendores da constelação Cruzeiro do Sul, pelo que começaram a calcular com maior rigor as latitudes nesse hemisfério. Para bem se avaliar o heroísmo e a ciência dos portugueses nas navegações, devemos considerar as terras e os mares desconhecidos, a que se aventuraram com os seus fracos recursos. A imperfeição dos veleiros do século XV, as demoras inevitáveis das viagens, a barbárie de alguns povos que contactaram, os terrores da Idade Média, em que se supunha o oceano semeado de substâncias magnéticas que deterioravam os navios, as falsas doutrinas de Ptolomeu, que afirmavam ser a zona equatorial tão ardente, que o oceano ali fervia e as terras secas e áridas eram absolutamente despidas de vegetação e aparentes águas potáveis, numa época cheia 20
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de incertezas e de ignorância, de falsas teorias, que supunham inultrapassável a zona equatorial. Devemos ponderar as deficientes condições de higiene nos veleiros utilizados nas viagens e as dificuldades de abastecimento de alimentos, que produziam os terríveis traumas da doença do escorbuto, a falta de agasalhos e de medicamentos em tão longas e demoradas viagens, em desesperantes calmarias, a constante inquietação de perigos de baixios e de restingas e de correntes ignoradas, para podermos avaliar a heróica decisão e audácia, o admirável saber e a consistência com que um pequeno povo de 1 200 000 habitantes levou a cabo a mais grandiosa empresa de progresso de que se orgulha a Humanidade. As consequências excederam todas as expectativas, pois os descobrimentos portugueses, seguidos por navegadores de tantas nações, especialmente holandeses e ingleses, deram ao comércio europeu enorme expansão e acarretaram imensos materiais para o conhecimento das ciências da náutica, cosmografia, meteorologia, climatologia, botânica e zoologia. Quando o Infante D. Henrique morreu, em Novembro de 1460, os portugueses tinham navegado já até à Guiné e às ilhas de Cabo Verde. Em 1482, Diogo Cão descobriu a foz do rio Zaire. Em 1486, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo das Tormentas e avançou pelo oceano Índico. 21
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A inversão da rota da navegação no extremo Sul do continente africano, enfrentando um mar muito agitado, ao longo do Cabo, deu origem, entre os portugueses, às imagens assustadoras do Adamastor (Luís de Camões) e do Mostrengo (Fernando Pessoa). Mas talvez a morte de D. Francisco de Almeida, assassinado pelos hotentotes na baía da Mesa, em 1508, tenha contribuído mais para a aversão dos portugueses ao lugar. Os navios portugueses passavam ao largo, evitando a fúria do oceano. Procuraram, no Índico Sul, os lugares adequados para instalarem os seus locais de descanso e abastecimento. Estes lugares foram Sofala, em 1505, e Moçambique, em 1507.
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Cabo – A Grande Porta Aberta para a Entrada na África Austral. Os Holandeses. A Origem dos Bóeres Foram
os
holandeses
quem
primeiro
navegou
na baía da Mesa e ali estabeleceram uma base de descanso
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e de abastecimento.
O Cabo foi dado a conhecer aos holandeses pelo desejo
de alcançar o comércio do Oriente. Este desejo nasceu
neles quando, em 1581, Felipe II de Espanha anexou Portugal aos seus vastos domínios, o que implicou o afasta-
mento dos holandeses do mercado de Lisboa, que normalmente frequentavam para adquirir as mercadorias trazidas do Oriente.
Nos tempos recuados dos fins da Idade Média, os holan-
deses integrados na Liga Hanseática, a confederação 23
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de comerciantes no norte da Europa, dominavam o comércio marítimo do Báltico e dos mares do norte. As tentativas por eles feitas para descobrirem um caminho para a Índia através do mar do Norte, conduziu-os a uma preponderância notável no comércio com os países do Norte da Europa e levou-os, consequentemente, a um extraordinário desenvolvimento da marinha mercante. O facto de aquelas experiências terem falhado não representa, portanto, um fracasso; pelo contrário, marca o primeiro passo para alcançar o comércio do Oriente: o desenvolvimento da armada e os conhecimentos adquiridos nas viagens para o Norte da Europa, levou-os a lançarem-se resolutamente para o Oriente, através do já conhecido caminho do Cabo. O sucesso das várias viagens efectuadas foi enorme. A ideia de arrebatar aos portugueses a hegemonia do comércio do Oriente não tardou a desenvolver-se. A criação da Companhia das Índias Orientais foi a medida inteligente que levou à concretização daquele desejo. Os barcos holandeses começaram a aparecer com frequência na frente das montanhas do Cabo, mas só eventualmente demandavam terra: ou pela necessidade de meter água e comprar gado aos indígenas, ou para recolher alguma correspondência porventura deixada por outro barco, ou ainda por imposição de alguma tempestade. Santa Helena era ainda a base preferida dos holandeses. 24
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O valor do Cabo conservou-se oculto durante o primeiro século de actividade da Companhia. Foi o acaso que lhes abriu os olhos. Em 1644, o veleiro Mauritius naufragou naquelas agitadas águas e a tripulação teve de esperar em terra a passagem do próximo barco. Estes holandeses tiveram assim ocasião de constatar a benignidade do clima e a fertilidade da terra. Em 1647, outro barco da Companhia, o Harlem, teve de ser encalhado na praia devido a avarias causadas por uma violenta tempestade, e a respectiva tripulação viu-se coagida a permanecer no Cabo até Março de 1649…, altura em que uma armada holandesa, que regressava do Oriente, foi ali encontrá-la. Num dos barcos vinha Jan van Riebeeck, depois de alguns anos de actividade no Oriente ao serviço da Companhia das Índias Orientais. As óptimas condições do Cabo para a instalação de uma estação de abastecimento foram sobejamente constatadas pelos náufragos do Harlem. As informações por eles transmitidas induziram, na Holanda, a Companhia a criar a estação referida. Com este propósito, chegou uma expedição ao Cabo, a 6 de Abril de 1652, sob o comando de Jan van Riebeeck. Assim: • A incorporação de Portugal na coroa de Espanha incitou os holandeses a desenvolver a sua marinha e a ganhar uma nova experiência na arte de navegar; 25
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• Durante mais de um século, os holandeses tinham passado pelo Cabo sem qualquer interesse em lá se fixarem; • Foi o acaso que fez nascer neles aquele interesse; • Quando se instalaram não levavam qualquer projecto de colonização ou expansão: apenas os movia o aproveitamento das óptimas condições para instalarem uma estação de repouso e abastecimento que servisse eficazmente os barcos da carreira do Oriente.
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Tendo em vista o desenvolvimento da estação, quais as bases do regime que governou o Cabo até à chegada dos ingleses, em 1795, e quais os objectivos desse regime? A política da Companhia, no Oriente, ditada da Holanda, consistia em manter as melhores relações com os chefes indígenas, submeter onde a submissão fosse vantajosa para os interesses do comércio, ou opor-se onde, pela mesma razão, a oposição fosse proveitosa, aplicando inteligentemente a política de dividir interesses antagónicos e, finalmente, tirar o melhor proveito. As estações ultramarinas eram então consideradas pela Companhia como meros centros comerciais. A sua política era apenas dirigida no sentido de obter o máximo proveito do comércio com o Oriente e da rapina das cargas dos barcos inimigos no alto-mar. Só quando os proveitos do comércio 26
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e da pirataria começaram a diminuir, em virtude da concorrência estrangeira, é que a Companhia pensou em estabelecer colónias a fim de obter o domínio nas esferas da actividade comercial. No âmbito desta concepção, Jan van Riebeeck começou a trabalhar no Cabo no sentido de desenvolver a agricultura e, ao mesmo tempo, a construção de alojamentos. Iniciou a edificação de uma fortaleza suficientemente forte para defender os habitantes, não só contra possíveis ataques de navios inimigos, mas também dos indígenas. No fim desse ano de 1652, os pioneiros já se abasteciam a si próprios. Jan van Riebeeck trazia instruções rigorosíssimas no sentido de conservar nas mãos da Companhia toda a actividade, o que equivalia a dirigir para a Companhia todos os lucros resultantes dessa actividade. Assim, a Companhia guardava para si o exclusivo das culturas e do negócio de gado, bem como o fornecimento dos navios. Em breve, Jan van Riebeeck viu a necessidade de conceder tratos de terra a alguns indivíduos, permitindo assim a cultura particular. Os concessionários que ficaram a ser conhecidos por «free burghers», não tinham, porém, nada de livre: a Companhia impôs-lhes várias restrições para proteger o seu próprio interesse. 27
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Esta medida levou a alargar imenso a área inicialmente ocupada. A população ia crescendo lentamente com alguns marinheiros e soldados que ficavam e, bem assim, com a chegada de um pequeno número de imigrantes holandeses. O Cabo, assim, ia-se desenvolvendo no verdadeiro sentido de uma autêntica colónia. Mas as sugestões de Jan van Riebeeck, feitas à Companhia, para ser autorizado a conceder «cartas de liberdade» aos empregados que desejassem tornar-se «free burghers» não foram atendidas, porque não lhe interessava aumentar os seus trabalhos e dificuldades com a formação de uma colónia, mas somente desenvolver o comércio e obter provisões para os barcos. Todavia, em 1656, Jan van Riebeeck obteve a autorização e seleccionou os primeiros «free farmers». Assim, a Companhia abriu uma excepção em relação ao Cabo. Os primeiros colonos foram os empregados da Companhia, cujo contrato terminava em 1657. Contudo, neste mesmo ano, os supervisores da Companhia informaram o comandante do Cabo: «You are at present to adopt a waiting policy just look on, and take no further steps until you hear from us»1. 1 «No presente deve adoptar uma política de espera — apenas observar e não dar passos ulteriores até nossas novas notícias.»
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O desinteresse pela colonização do Cabo era ainda evidente. O facto de um dos altos funcionários da Companhia Mr. Commissioner Rijklof van Goens que passou na estação, em 1657, vindo do Oriente, ter dirigido ao Comandante um longo memorandum com várias instruções, sugerindo a abertura de um canal para separar o Cabo do resto do continente, evidencia bem o desinteresse pela expansão. Nesse tempo, a população do Cabo encontrava-se dividida em dois grupos distintos: os servidores da Companhia e a população «burgher». Esta última era constituída por antigos serventuários da Companhia e por imigrantes, incluindo os filhos de ambos os grupos. A distinção entre as duas classes residia principalmente no seguinte: aos «burghers» eram permitidos os negócios comuns de artífice, como sejam o de carpinteiro, ferreiro, sapateiro, etc., e efectuar os trabalhos de agricultura em terrenos da sua propriedade transmissível aos herdeiros. O serventuário da Companhia não podia fazer comércio e estava sujeito a ser transferido para qualquer dos territórios das Índias Orientais. Os «free burghers», porém, estavam sujeitos a rigorosas restrições impostas pela Companhia, para proteger o seu próprio interesse, o que provocou o desagrado e o afastamento de alguns «burghers» para longe do forte. Todavia, a população ia crescendo, embora lentamente, com alguns 29