A Aldeia e a Infância José Luís da Costa Sousa
Edição: edições Vírgula® (Chancela Sitio do Livro) Título: A Aldeia e a Infância Autor: José Luís da Costa Sousa Paginação: Paula Martins Capa: Patrícia Andrade 1.ª edição março, 2018 ISBN: 978-989-8821-67-6 Depósito legal: 437124/18 © José Luís da Costa Sousa
PUBLICAÇÃO e COMERCIALIZAÇÃO:
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Para Teresa, Rita e Luís, netos e irmãos
Notas Introdutórias Foi já há uns bons anos que, ainda escrever sem escolhos me parecia quebra-cabeças, ousei, depois de muita leitura, assinar um conto, que aliás não divulguei. O Conto. Este tímido assomo literário ficou comigo e com o Professor José de Sousa Esteves que, depois de o ler, me surpreendeu a arrebitar-me para a escrita. Em primeira reação disse-me: «Escreva! Escreva contos!» A natural timidez em experiências novas, porém, susteve em mim a iniciativa de abalançar-me a tal tarefa de criação, que eu, na altura, tinha para mim como mero pretensiosismo dispensável e insensato atrevimento de incompetência. Tudo muito fruto de um já sentido de perfeccionismo em dealbar de processo, sentido esse que me prendia (e a qualquer outra pessoa prenderia) a mão e a construção de engenho. Mas as palavras de José Esteves ficaram a fervilhar no meu pensamento, às vezes hibernando, outras deixando-me a refletir na almofada do repouso até o sono chegar. Enquanto tal, fui também lendo narrativas de qualidade literária garantidamente insofismável. Recordo daí Novos Contos da Montanha por Miguel Torga, Doze Contos
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José Luís da Costa Sousa Peregrinos por Gabriel García Marquez, Viaggi e altri viaggi (em italiano) por Antonio Tabucchi, Cuentos Completos (em castelhano) por Cortázar, La puerta de la luna (em castelhano) por Ana Maria Matute, Too Much Happiness (em inglês) por Alice Munro, e Romans (em francês) por Patrick Modiano - estes, os que mais me sensibilizaram -, também pondo à prova competências minhas adquiridas na Universidade Sénior que frequentava e frequento, no âmbito das Humanidades. Universidade que me fez, porque eu nela também me fiz, um pouco poliglota. Mais recentemente, deliciou-me Isabella e l’ombra (em italiano) por Antonio Tabucchi. Recomendo todas. Quando menos esperava e sem qualquer esforço adicional para o conquistar, dei por mim com o prazer da escrita, ao mesmo tempo que mantinha o de leitura. Ambos, escrita e leitura, têm sido paixão e ocupação pessoais. Passei a expressar-me por aquele meio com regularidade. Não necessariamente com grande perfeição, simplesmente escrevendo e procurando aperfeiçoar-me. É o que aqui volto a tentar. Ler bons autores, penso, pode despertar para a escrita e consegui-la cada vez melhor, da mesma forma que ouvir em interação bons emissores pode estimular falar-se melhor. Decidi-me a um novo ensaio no âmbito da escrita de contos, trazendo a mim memórias fantásticas de infância e de pessoas da terra natal com cujas vidas a minha há tanto tempo se cruzara e que agora descrevo e torno públicas. São contos criados a partir de episódios com algum fundo real e em contextos ficcionados conforme a perceção do autor sobre o lugar e o tempo da ação, cujo todo é aqui pretensa narrativa sobre a infância. Afinal de contas, um retrato da aldeia distante. —8—
A aldeia e a infância É uma escrita em que ensaio a minha estética literária, também procurando contribuir para a difusão da Língua. Estou entre conterrâneos! Trata-se de pensamento livre que em tempos transpus para uma rede social eletrónica, para fazer-me ler por amigos. Alguns dos meus leitores-online acenaram-me com a sua vontade de ver os meus textos em livro. Assim explico a faísca e razão primeira desta obra. Votos de agradável leitura!
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Prefácio Sou o primeiro dos cinco filhos de Manuel Sousa e Maria Costa. Nasci na casa de meus pais, no Mosteiro, um dos lugares da freguesia de Refoios do Lima, a nove de setembro de mil novecentos e quarenta e oito. A data de vinte, que figura no meu bilhete de identidade, explica-se por o meu pai ter pensado nas Feiras Novas, festas com mais carreiras entre a manhã e a noite, para também despachar o registo civil. É que os meios de transporte eram escassos ao longo dos dias de semana normais mas mais frequentes nas festas. Comigo no Civil, avisaram-no que teria de pagar a multa de 50 escudos, do atraso, e, como o dinheiro não lhe abundasse, corrigiu a data de nascimento para vinte de setembro. Se é certo – perceção minha – que herdei dos pais uma estrutura corporal sólida e um funcionamento orgânico equilibrado, não posso esquecer os traços de caráter e temperamento que, parece-me, integrei sobretudo deles e ainda da avó e dos tios de Real graças à convivência ao longo da minha infância. Seguramente, às influências de demais familiares do lado do meu pai e de gentes da minha aldeia não terei ficado também indiferente.
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José Luís da Costa Sousa O meu pai vi-o sempre como homem de trabalho (duro) e aventura. A cabeça dele, dentro da sua simplicidade, não parava de funcionar. Obcecava-se para garantir a satisfação das necessidades básicas, suas e dos seus, e os sonhos-acordado não deixavam de ocupá-lo. Arriscava, jogava muito na sorte, a tentar sair do buraco. Em situação de aflição, antes de emigrar, jogava com regularidade poupanças na lotaria. Era parco de palavras, mesmo em casa. Talvez da sua ansiedade no relacionamento, minimizava as palavras à medida da necessidade estrita de comunicar como se quisesse chegar rapidamente ao fim da frase. Assegurava o essencial. Eu ria-me no fim das curtas piadas que ele soltava, quando logo se calava a deixar todos suspensos. Ele surpreendia. Oscilava entre períodos de abatimento, associados a preocupações da vida e instantes de humor. Faleceu fisicamente para mim no natal de setenta e três, de enfarte, a duas semanas do meu regresso de Angola, para onde eu fora cumprir o serviço militar obrigatório. Tenho dele o estilo da frase curta e do uso cuidado da palavra. Sempre conheci a minha mãe como pessoa trabalhadora e solidária. Foi-o na relação com o marido, foi-o após a morte dele no âmbito da rede social em que sempre viveu – a das gentes de Refoios do Lima. Manteve, é também certo, uma atitude conservadora perante a vida. Do património à saúde e aos valores, procurou preservar os ensinamentos e modos de pensar do passado, orgulhosa da maneira de estar, dos saberes e dos valores que tinha herdado. Receosa do futuro, sempre priorizou a estabilidade e a intercessão de Deus e santos. Tenho dela o sentido do trabalho como ação prazenteira que tapa os poros do tempo e a tendência para harmonizar. O meu tio Zeca (Costa, na relação exterior) foi o meu pai mais presente e de maior impacto educativo. Homem de — 12 —
A aldeia e a infância trato agradável na aldeia e fora desta, recebia os sobrinhos de forma carinhosa. Raramente ralhava. Nunca se exaltava. Ouvia, dava conselhos, respondia às perguntas, sempre sem levantar a voz. Era afável. Tinha a preocupação e chieira de usar criteriosamente o verbo com quem quer que estivesse. Dele recebi a vontade de dizer para ser compreendido e proporcionar uma relação agradável ao interlocutor. O meu tio João, o mais novo dos irmãos e da casa, era um brincalhão. Brincava usando frequentemente a ironia. Trabalho nele significava a vontade de largá-lo, fugir dele indefinidamente. Aguentava-o porque não queria dar parte de fraco, mais novo que era. Encanava o convívio com os sobrinhos para ocupações não produtivas e lúdicas. Jogava, brincava a jogar. Isto é, quando o jogo deixava de sê-lo por já estar a ser obrigação ou fardo, ele gozava com o jogo, trocava-lhe as regras a seu jeito, inventando outro jogo em que pudesse voltar a dar cartas. Por isso, eu oscilava muito entre adorá-lo (ele era quem mais satisfazia o meu desejo de jogar) e zangar-me com ele. O tio João influenciou-me a aceitar jogar conquanto houvesse significado lúdico. Além disso, com ele consolidei a minha tendência para não estar sem ocupação, motora ou intelectual. Hoje, recordo a minha vida de infância, principalmente na interação com os familiares mais próximos, mas reconheço também dificuldade de voltar mentalmente a esse tempo. Recordo, contudo, com certo detalhe episódios e cenários que mais intensamente se me impõem, mas não me parece que consiga da época uma narrativa que me satisfaça plenamente. Farei o meu melhor. Talvez o tempo e a reflexão possam vir a preencher buracos negros da minha memória e pretextar voltar à narrativa mais tarde. Asseguro das famílias a relembrança do grande conforto afetivo e de enorme — 13 —
José Luís da Costa Sousa alegria de que disfrutei, desde levantar até deitar-me. Eu fui, ao tempo, criança extremamente alegre e dedicada ao estudo. Nunca constou que a cama me tivesse sabido mal e que gastasse muitas horas da noite com insónias. Os acontecimentos e os cenários humanos mais longínquos, que agora revivo como próximos, relacionavam-se com as presenças da mãe e do pai – a se Mariazinha e o senhor Sousa – e com as visitas mais assíduas que fazia à avó – a dona Rosinha – e aos tios do lugar de Real – Zeca e João. Não posso esquecer ainda as visitas aos tios do Caneiro (irmãos de meu pai) – José e Joaquim, o Americano – e aos tios José Lima e Custódia (de Golfeiros). De resto, eu brincava por casa e pelo quintal à roda da mãe, que se ocupava, sem resmungos e em orações, da lida doméstica, da mercearia e dos filhos, muito recolhida em si própria. Em casa da avó Rosinha, entretinha-me muito a olhar a irrequietude dos pardais pelo terreiro e pela eira e a sonhar com um dia vir a ter um para brincar, mais perto de mim. Ficava horas a ver as pombas entrarem e saírem do pombal. Podia até atirar-lhes milho amarelo ou migalhas de broa dura, que a avó me dava. Se ela surgia com o seu andar rasteiro e apressado de saraquitar pela casa e pelo quintal, olhava-a sem medos e respondia às perguntas mais diversas que ela me colocava. Nela, os cuidados pelo meu bem-estar eram constantes. Se eu estava no Mosteiro por casa dos pais e me saturava de estar só e nada a fazer, podia voltar, sozinho ou com irmãos, a casa da avó Rosinha, onde os tios me recebiam de braços abertos. No entanto, a iniciativa das visitas raramente pertencia aos adultos; era eu e os meus irmãos que procurávamos os contactos. Claro, visitávamos sobretudo os familiares que tivessem mais tempo disponível para nós — 14 —
A aldeia e a infância e agradavelmente nos acolhessem. Além do mais, os tios Zeca e João inventavam muitos jogos, maneiras divertidas de ocupar o tempo. Quando passava a seca e a levada ressurgia com as primeiras chuvadas, por exemplo, o tio Zeca fazia uma geringonça – a taramela – que deixava ao pé do tanque a fazer barulho. E nós gostávamos daquele barulho, pois de silêncio tão prolongado já estávamos fartos. Eu, então, ficava-me ali a contemplá-la por horas a fio. Sem que o imaginasse, àquela mesma hora e noutra paragem, meninos e meninas podiam estar a brincar também. Não necessariamente da mesma forma, embora a essência dos brincares fosse semelhante. Brincar respondia aos impulsos naturais das crianças para rasgar o caminho de crescer e desenvolver-se psicologicamente e socialmente, segundo necessidades comuns. A Teresinha, por exemplo, poderia estar a inventar, com irmãs e amigos, formas próprias de viver o tempo de infância e até atribuir ao cão um papel central no teatro lúdico das amizades. Não podemos, no entanto, limitar-nos a absolutizar as regularidades dos jogos, já que em reprodução cultural os modos de vida das pessoas comportam também a natural expressão das diferenças. Os processos de identificação, por exemplo, conduzem à representação das distintas ambiências dos trabalhos e lazeres adultos, em especial das pessoas significativas para as crianças, heróis reais ou imaginários. Falando das minhas vivências de primeira infância pelo Mosteiro, lugar central da freguesia de Refoios do Lima, a rede social, inicialmente circunscrita às interações com pais e irmãos, foi ganhando novas conexões, embora ainda pouco socializadoras. Os amigos que interagiam mais frequentemente com os familiares próximos foram adquirindo, cada vez mais, um papel importante na socialização pré-escolar. — 15 —
José Luís da Costa Sousa As autoridades locais – Prior, Professor e Regedor – tinham impactos diferenciados, destacando-se pela força simbólica com que eram representados os dois primeiros. Antes da escolaridade, porém, eu era-lhes alheio, sobretudo no que dizia respeito aos papéis que desempenhavam para as pessoas com maioridade da aldeia. O mesmo não acontecia com o tio Zé sacristão, que, nas horas de já ter a igreja limpa e arrumada, se entretinha a compor o cemitério, paredes meias com a casa de meus pais. Era com quem eu brincava a fazer cova para caixão. A Teresinha, lá longe, não descansava de brincar pelo quintal às voltas com o cão. Afeiçoava-se a este e, quanto mais tropelias inventava para ele, maiores e mais frequentes eram as provas de afeto mútuo. Nem sempre o que parece é! Olhamos para as coisas, e não nos é fácil distinguir o que constitui a sua essência e a sua aparência, o conteúdo e a forma…
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1 O crepúsculo estava a dar lugar à noite, e a dúzia de pintos nascidos ao longo do dia tinha pouco onde dormir. Muita lama! Muito frio gélido pelas frinchas da cancela…! A chuva caía a rodos. - Zé – diz-me a mãe –, podias apanhar umas palhas secas, uns fenos fofos para os animais, que te parece? - Está bem, mãe! Vou buscar, de fugida. Saí para a invernia do terreiro, o cão sempre no meu encalço. Não me largava. Frio dum raio! Trouxe o molho de feno que encontrei e colhi. Servi os pintos e o cão que, de cauda entre pernas, gania desesperado do frio. Dizia-se que o tempo podia melhorar. A vida pelo Mosteiro ia tão rotineira que, no dia seguinte, me decidi pela casa da minha avó, dona Rosinha lhe chamavam. A ideia foi acarinhada pelos meus pais, ainda que acompanhada de avisos, recomendações. Não fosse eu dar desgosto a alguém! - Zezinho! – Chamou a mãe, na hora da saída. - Já preparaste a roupa para levar?
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José Luís da Costa Sousa - Oh, não sabe que já lá está, deixei-a da última vez que lá fiquei… - eu, ansioso de partir. – E a avó, da última vez, fez da camisola interior velha do tio Zeca uma nova para mim… Dei um beijo ao pai e outro à mãe e, com os meus cinco anos, saí a assobiar pela estrada abaixo. Nesse preciso momento, o Domingos carteiro, com saca das cartas às costas e estrada abaixo, passava junto às janelas de casa de meus pais. Todo rapioqueiro, lambendo-se o cabelo que trazia puxado para trás e a luzir da brilhantina, empolgou-se por baixo da janela da cozinha já de pressentir o aroma da criada. - Maria, estás aí? – Ela sempre àquela hora a cozinhar, ansiosa por ele. - Olá, Domingos…! – A fazer-se surpresa. - Vamos à noite ao fogo? - Na carreira ou a pé? - A pé, namorávamos melhor… - Pois é! Antes da curva ao pé da nogueira grande que se enxergava do alto da estrada do Caneiro, ficava o lagar de azeite. Eu segui entre os muros altos da quinta do Elias, camisola coçada nos punhos de tanto roçar paredes e hortências azul-claras que bordejavam o caminho. Ao chegar ao lagar, dei pelo cantoneiro a limpar a berma. - Bom dia, ti Francisco! – Saudei-o, à espera da habitual conversa. - Bom dia, menino! – Respondeu o cantoneiro, a endireitar as costas e a amparar a sachola à parede. – O menino vê-se que vai a casa da avozinha… Os paizinhos deixaram, deixaram? Mas olhe que o caminho está todo enlameado… Que há-se fazer-se? É só chuva, chuva! Mas o vento já virou, e as nuvens estão a rodar também… — 18 —
A aldeia e a infância - E então, ti Francisco? - É que amanhã vamos ter bom tempo! - Ainda bem! Ti Francisco, tenho de ir-me embora. Adeus! - Adeus! E cumprimentos aos tios e à avozinha! Passei a nogueira, junto à curva, e tomei o caminho do Outeiro. Era caminho estreito que lama e charcos faziam ainda mais acanhado. A água da chuva, de ter caído sem parar dias e dias, tinha empapado a zona baixa e deixado apenas um carreiro livre para passar. Mas saltando de pedra em pedra, lá alcancei o Outeiro, onde o tio Secundino se entregava, porta escancarada, à arte de sapateiro. «Conserto… Conserto todos os tipos de calçado: meto solas novas, coso, remendo à sovela e colo… Faço muito! Faço o que posso…» - anunciava ele de dentro para fora da porta, sentado num banquinho e olhos pespegados no sapato a que dava os retoques finais. Seriam duas da tarde quando cheguei a casa da avó. - Tio Zeca – disse eu, resignado -, fui caçar pardais com armadilha no olival do senhor Inácio e não apanhei nenhum! - E tu querias um pardal?! – Ele admirado do meu desejo e com sorriso generoso para o ofício. - E o tio consegue?! – Já eu alegrado e de entusiasmo a subir. - Então – veio ele -, amanhã de tarde e com sol, que é a melhor altura, vamos apanhar o pardal de que tu vais gostar. No dia seguinte, perto da hora falada, eu já era um poço de ansiedade. O sol sorria e sorria, só que não havia meio de as horas passarem mais depressa. E foi então que surgiu a avó: — 19 —
José Luís da Costa Sousa - Zeca, está na hora de jantar, o jantar está pronto! Jantámos por volta do meio-dia e pouco, e o tio Zeca não dispensou a habitual sesta de verão. Eu, ansioso como estava, não via que os minutos passassem; o tempo de espera parecia-me uma eternidade. Estendido ao lado na mesma cama, olhava as profundezas do tio, a ressonar indiferente a tudo. Animava-me uma suspensão da respiração ou um arranque gutural mais forte dele, mas logo eu desfalecia ao ver o sossego que de novo o invadia, numa paz que parecia parar o tempo. - Ó tio Zeca – chamei, quase a choramingar –, quando é que vamos apanhar o passarinho?! Caramba! - Oh, já me acordaste! – Exclamou ele, meio estremunhado. – Vá, deixa-me pousar as vistas, só mais um pouco! Já passava das três quando o tio Zeca se espreguiçou e bocejou a sorrir. Convenci-me de que estava agora disposto a fazer-me a vontade. Foi então que ele me puxou pela mão a pedir atenção. Eu rodei o corpo até pronto a escutar: - Abre a porta da adega – começou o tio Zeca – e repara que no chão, entre a parede da casa e a latada, bate o sol. E continuou em tom de segredo: - Puxa um cesto de acarrejar e agarra numa corda de sisal… dessas cordas que tu vês… Depois, espera por mim à porta, que vais aprender. Minutos passados, a soleira da porta da adega era estreita para tanto entusiasmo meu. Eu seguia os passos do tio Zeca e observava com minúcia o aparelhar da forquilha e o jeito de atar a corda. Era um jogo que se prolongava sem pressas e cujo desfecho eu, desesperadamente, não conseguia prever. - Ó tio Zeca – perguntei, impaciente –, quando é que se apanha o pássaro?! Falta muito? — 20 —
A aldeia e a infância - Olha, ali onde bate o sol – interrompeu o tio, a querer satisfazer-me – costumam eles pôr-se à cata de grãos de milho caídos. Ata então a corda à forquilha e levanta a borda de cá do cesto, de forma que fique no ar levantado pela forquilha. Estica de seguida a corda com cuidado, não vá o cesto tombar… - E depois? - Depois, espalhas milho por baixo do cesto – disse o tio, explicando – e um ou outro por fora para atrair o pardal e vens segurar a ponta da corda aqui para dentro da adega. Mas esconde-te, sempre a espreitar! E como estivesse certo de que eu tinha entendido, ele esfregou as mãos de satisfeito e confiante em mim. - Pronto – ainda disse -, se apanhares algum debaixo do cesto, avisa-me, que eu agora tenho coisas para fazer. Pouco depois, pardais passavam por perto, uns apeados, outros pelo ar. Pousavam pelas redondezas do cesto, nos arames e galhos das videiras e pululavam mesmo no terreiro em frente à porta, bem à margem do ardil. Também percebia que eles não estavam a dar por mim. Da guarita, eu arrepiei-me do pardal que esvoaçava, rasando a esperança do meu contentamento, e perguntei-me porquê se ficara à distância, convencido e risonho, matreiro – eu bem estava a vê-lo – como se me soubesse atrás da porta. Eis, no entanto, que um para de voo vertical junto à entrada para a escadaria batida pelo sol, olha irrequieto em todas as direções e dá dois ou três pulos na direção do cesto. O meu coração, surpreso e encantado, salta de entusiasmo do que pressinto. O pardal bica um grão, outro grão…, e outros pardais aterram logo seguindo-lhe os pulos. Uma parra avermelha— 21 —
José Luís da Costa Sousa da baloiça entretanto no ar em queda cerca do cesto, que eu bem mirava. «Ai que eles vão assustar-se e fugir!» A naturalidade da queda, porém, fundida com o estalar das ervas silvestres e o pio das galinhas, a esgaravatar por ali, não quebrou a indiferença que campeava. Os pardais, como se tivessem descoberto um tesouro, atiraram-se a bicar à compita por todo o chão, azáfama sem par, a encher, a encher, a encher o papo. Até que um deles, já muito próximo do ardil, bicou um grão deixado de isco e, num instante, já sob o cesto, saciava-se cegamente da fartura que lá fora deixada. Eu, entrincheirado e de periscópio apontado, não perdi oportunidade: puxei a guita, e o pardal ficou lá aprisionado. «Vitória!» foi o que eu gritei. Vitória…?! Movido pela emoção do acontecimento, excitado, desatei a correr pelo quintal abaixo à procura do tio Zeca e a gritar por este. Ele nem pio! «Possa, não o vejo, não o topo…!» Encontrei-o mesmo ao fundo de sacho nas mãos a arranjar o canteiro do tomate para lhe dar a rega. - Ó tio Zeca… tio Zequinha – gritei a custo, perdido de excitação -, venha depressa, que está um passarinho no cesto! - E então tu apanhaste mesmo um?! – Replicou o tio, a transbordar vaidade por mim, de admiração. - Ó ti Zeca, queria que apanhasse dois?! – Ironizei, orgulhoso e na galhofa. Eu com pressa de que ambos voltássemos ao cesto, pus-me a correr pelo terreiro acima a querer abrir caminho ao tio, a desafiá-lo. A passada dele, porém, parecia-me sempre a mesma. Verdadeira lesma! «Bem podia despachar-se mais!», pensava eu. - Está debaixo do cesto, eu vi! – Assegurei-lhe. – Ai se o passarinho me foge! — 22 —
A aldeia e a infância Junto à adega, o tio desapareceu para tratar da coisa. Reapareceu com um panal de suster azeitona na apanha. Estendeu-o no chão e, levantando ligeiramente a boca do cesto para o deixar passar, fê-lo deslizar até ficar todo por debaixo. Depois… Depois, levantou e levou o conjunto – cesto e panal – com muito cuidado para o quarto escuro. E às apalpadelas dentro do cesto, acabou, ao fim de muito tentar, por agarrar o pardal. Era o meu passarinho! Tinha-o dentro de uma mão e com a outra ia-o acariciando. A alegria que ia em mim! Queria mostrar o pardal ao pai e aos amigos. «Gosto do meu passarinhão!» - Assim eu dizia para dentro de mim quando o olhava. Chego ao Mosteiro e vejo amigos a espreitarem-me. - Olha, olha, que trazes na mão?! - Eram eles, pasmados. - É o meu passarinho! Mas não podia trazê-lo sempre na mão. «Onde o vou deixar a descansar ou a dormir?» - Era preocupação que me invadia e assoberbava sempre que, de se calarem, me deixavam em paz. Depois de correr os cantos de casa encontro, finalmente, uma solução: a caixa de guardar os meus sapatos novos. Furo-a com um lápis para o passarinho não sufocar. Não demorou muito que o meu pai, sozinho a querer vê-lo, desse pelo meu querido já sem vida. E fora de contar-me toda a estória, explicou-me apenas de fugida: - Olha que o teu pássaro fugiu! Meu filho, sabes que até as aves se querem livres…
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2 Os últimos dias tinham sido de chuva intensa e persistente, mas este quinze de março de cinquenta e três, quinta-feira de esperança, o tempo antes ameaçador mostrava-se agora algo aliviado. Ainda que subsistisse a ameaça de um ou outro aguaceiro, o sol já sorria de vez em quando e parecia querer ficar com as nuvens entreabertas a correrem menos de oeste e mais agora de sul. «Aparece-me às onze horas! Mais tarde, não!» - tinha-me dito o tio Zeca, na véspera. De há tanto tempo não ir à Vila, esta necessidade de sapatos era mais que isso. Tinha em mim associadas curiosidades várias, tinha o condão de me fazer recordar o que já há muito se dissipara. Apenas subsistia uma vaga reminiscência do rio e da ponte medieval e da carreira a atravessar entre Vila e Além-da-Ponte. Saí do lugar do Mosteiro, depois dos beijos à Mãe e ao Pai, por volta das dez daquela manhã fresca e de pardais a mexericar nas laranjeiras, com a ideia de apanhar-se o barco nas Cucas. Apesar dos respingos que me incomodavam ao passar sob árvores antes batidas pela chuva, o meu ânimo, alimentado pelo apetite de coisas bonitas da Vila, que
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José Luís da Costa Sousa a aldeia não possuía, revigorava-se à medida que se aproximava a saída de Real. A carreira do Cura, a essa hora, não era alternativa admissível, pois obrigaria o tio Zeca a uma caminhada até ao Mosteiro, e ele tinha ainda umas coisas de lavoura para fazer. Ele era sempre assim! Tão miudinho, tão miudinho, havia de arranjar sempre demoras infindas antes de partida. Eu era pequeno, mas já o conhecia bem… Creio que, desta vez, seria tapar uma água. Eu sabia das conversas, porque a mãe e o pai tinham estado a falar à lareira dos riscos de eu ir por lameiros, tomando-me, pareceu-me, por criancinha de colo. Tinha chovido muito durante a semana finda. Como estaria o rio Lima? Mais uma cheia? – Perguntas que a mim colocava. Aliás, tirara-as das conversas nas barbearias dos tios Pires e Zé barbeiro, enquanto eu e amigos esperávamos a vinda da carreira da manhã com o Jornal de Notícias. Se tivesse a sorte de ganhar lugar de primeira leitura, ainda poderia dispor de tempo para ler toda a página desportiva. Assim foi. Ainda eu pelo Mosteiro, perguntei-me do caminho a seguir, já que o se João Pereira, vindo de Real de Baixo em busca de negócio de fruta, me falara de muita lama e charcos no caminho, entre o Montinho e o Outeiro. - Olha, não há por onde passar, a não ser molhando os pés… «Não! Desta vez, vou pelo lugar de Golfeiros! Assim, sempre garanto estrada de paralelos até Cristilhas…» - disse cá para mim. Nestes termos, cogitava quando me apareceu, vindo da curva da estrada do Caneiro, o se Manel dos ovos a acelerar os passos curtos e buliçosos, rápidos, sem tempo para grande conversa. Mas fazendo jus à sua cortesia – ele era tido como pessoa muito educada -, não desdenhou o seu cumprimento de sempre: — 26 —
A aldeia e a infância - Olá, Zeca, lindo menino! Despacha-te, não vá voltar a chuva! Vá, fujo, que tenho pressa… - Se Manel, aonde vai? As galinhas da mãe já cantaram hoje na capoeira…! - Vou, então, passar por casa da mãezinha! Adeus! Não posso demorar-me… Passei a nogueira do Convento, já na curva do campo do Patrocínio, e, tão distraído ia, dei por mim mais à frente a remexer com um pau a água suja da poça de Golfeiros, brincando com alfaiates. Tocava-lhes com a ponta do pau, e eles nadavam com um arranque instantâneo como se tivessem levado um choque. Fora isso, boiavam como cortiça, à espera que eu voltasse. Estava nisto quando ouvi quartos do relógio da torre da igreja e, surpreso, dei-me conta de como o tempo tão depressa passara, tão divertido me encontrava. «Ah, tenho de ir embora! Não posso brincar sempre que me apetece…» Acelerei o passo junto à quinta e casa do senhor Barbosa (não estava lá ninguém), eu bem atento às bostas das vacas que pejavam o chão. À frente, o tio Zé Lima falava à tia Custódia, sua esposa e minha tia, de ir ao Mosteiro comprar trigos. Eles tinham muita gente em casa à espera de comer qualquer coisa mais fina que broa de milho. O Tomás. O Zé. A Rosa. A Maria. O Quim. O Tone. Tantos! – Toda a gente dizia. Não os vi. Aliás, lembrava-me deles quase só de quando nos encontrávamos no sarrabulho do nosso avô comum - o avô Tomás de Andrias-, no terreiro depois das missas de domingo, nos dias de feira da Vila ao pé da paragem da carreira e nas visitas pascais. Estes primos eram danados para mourejar nos campos dos pais ou em casa a ajudar a mãe…! Julgo que seria por isso que não me faziam companhia nos jogos do terreiro da igreja. - Olá, tio Zé! – Assim o cumprimentei. — 27 —
José Luís da Costa Sousa Ele apertou-me a mão, desandou à pressa e desapareceu, já a coberto do muro do Convento que subia desde o passal da paróquia gerido pelo padre José Ribeiro. Não sei se de arrecear algum aguaceiro, se de estar preocupado com a chusma de filhos a acordarem todos quase ao mesmo tempo e ansiosos do pão quente do Mosteiro com manteiga, o tio Zé Lima revelava semblante de querer despachar-se. Mas a vida está sempre a continuar, não é assim? - Olá, senhora Ana! – Disse eu, logo de deixar o tio Zé, ela já cansada da vida e com um caneco de água no braço que trouxera da nora. Bem, ainda se via dali o Convento e a sua quinta, mesmo até ao olival de Frades. Para a direita, em frente e em cima, ficava o lugar de Ranhados com o seu casario, tudo explicações do meu pai Sousa. Para a esquerda, vinha Cedofeita. Mas eu estava a perder-me pelo caminho, não devia demorar-me tanto. Vejo ali, ainda antes de me ir, o senhor Bical, que fazia de veterinário da aldeia, ele de sachola às costas, e desato a correr. «Será que consigo chegar a horas…?» Chego a Real, ainda antes da hora, o sino da torre da igreja a dar a meia depois das dez. Junto ao portal de baixo, o tio Zeca conversava com o David, seu vizinho, conversa tão longa, tão longa, que já eu estava a impacientar-me. «Afinal, tanta coisa com as horas, e não se despacha…!», pensei, mas não falei. Eles não davam pela minha chegada, tão casados permaneciam na conversa. - Tio! – Disse alto, a querer que me visse. - Ah já chegaste! E então não se cumprimenta? – Era o meu tio a querer-me simpático e a despachar-me para continuar a tagarelar. - Bom dia! – Disse eu. — 28 —
A aldeia e a infância - Olha, deixa-te estar debaixo do telheiro, que nós vamos arrumar já o que temos para arrumar. O tio Zeca era sempre assim! Ele não se dava conta da irritação que provocava em mim, deixando-me ali a pasmar sem algo com que me entreter. Aliás, nem isso me interessaria, porque o que eu desejava era ver a Vila. Finalmente, ufa, (0h tio Zeca…!) dizemos adeus à avó Rosinha. Saímos pelo portal de cima, junto à capela de São Sebastião. Perto da capela, vinha a Emília Ventura a comandar e atrás dela a irmã Quina a arrastar os pés, ambas corpo inteiro de preto. Vinham de mão estendida. E antes que falassem, o tio apressou-se em palavras: - Se querem esmola, vão à dona Rosinha… Ela tem sempre sopa feita… Daí ao rio foi um instante, de o tio Zeca ter um andar tão apressado. Eu, sempre a correr atrás dele. Pelo monte das Cucas abaixo, o tio, que adorava tagarelar, ia-o fazendo enquanto acompanhava a Chibinha (único nome por que era tratada e a que ela respondia com naturalidade) e a Maria Carvalha, ambas com um montão de roupa suja metida dentro de lençol atado com orelhas de fora numa mão e com um bocado de barra de sabão azul na outra mão. Eram as trouxas da roupa suja. Elas tinham pedras à sua espera, cada uma a sua, na beirada do rio, lajes, onde esfregariam e torceriam as peças de roupa. Eram ali as lavadeiras daquele dia! A tia Maria Cuca, já bem entrada na idade e endossando a habitual roupa preta de viúva, viu-nos passar da janela da sua casa, um casebre singelo no cimo do monte, e veio logo atrás. Tinha a vara de tanger o barco escondida na folhagem de um salgueiro ribeirinho, salgueiro baixinho ao pé do penedo, donde, no verão, eu, os meus irmãos e os tios Zeca e João costumávamos mergulhar. — 29 —
José Luís da Costa Sousa Entrámos no barco e largámos. Fomos cortando a cheia, temerosos de tanta água à volta. Ui! A geringonça e as pessoas a bordo tremelicavam, mais parecendo tremor de terra. Possa! Só de lembrar, arrepio-me! O tio Zeca ia mais direito que um fuso para evitar arrepios e não falava. Olhava em frente a ver a água ao longe, como se a disfarçar a vergonha do medo que transportava; não queria vê-la junto à borda, em jeito de enterrar a cabeça na areia. Eu ainda vi um peixe perto de mim – tinha aspeto de ser um barbo -, e, embora me tivesse despertado curiosidade, só de ver o tio Zeca com ar de tanto respeito, não me atrevi a olhar muito para ele. A tia Maria é que tangia o barco, seu sustento a cinco centavos por travessia. O rio, como transbordava! - Zezinho, chega-te com cuidado para a frente! Não baloices o barco…! – Atreveu-se a dizer-me o tio, ora olhando para mim ora fitando a água longínqua que corria à fartazana. A água quase tocava a borda, como que a querer entrar. «Ai se ela entra!», receei, calado para não fazê-la abanar. A tia Maria, com um leve sorriso nos lábios, parecia querer expressar: «Ai que medricas, este senhor Costa!» (Senhor Costa era o meu tio…) - Ó se Maria, acha que essa vara consegue chegar sempre ao fundo? – Perguntou o tio Zeca, o mais acagaçado ali. Mas passámos! Conseguimos vencer o fundão. Ufa! Abeirámos. Não havia ninguém no outro lado, a não ser um cão à solta, sem dono, que andava por ali sem coleira. Lambia água da borda. Foi problema sério sair do barco porque, sem cais em São João, o risco de molhar os sapatos e os pés era enorme. O barco acostou nas ervas da encosta, já que, de coberto pelas águas, nem se via o areal. A mim, valeu o tio içar-me — 30 —
A aldeia e a infância da margem! Quando olhei para trás, apercebi-me de como seria difícil nadar até à borda se se desse o caso de o barco se virar ou de a água o engolir; compreendi os fantasmas que assombravam o tio e a razão de ser do respeito com que ele encarava aquela cheia. - Chegámos! Ufa! Adeus, se Maria! Olhe, no regresso ao descer a encosta, chamo do meio do monte por si – alertou o tio. A se Maria, que segundo o tio nem sabia nadar, já ia afastada da margem quando o tio Zeca me chamou com a mão, para eu reparar bem na cheia. - Vês, Zezinho? Quando, no verão, vínhamos ao banho, o penedo via-se até acima do salgueiro; agora está coberto, não se vê… É formidável! - Tio, já se afogou alguém aqui nas Cucas? - Bem, lembro-me de o barco se ter virado, mas o Lima não levava tanta água. Ainda o marido da se Maria era o barqueiro. Nadaram um bocado e apoiaram os pés em areia… Não chegou a haver alarme. - Eu tenho um bocado de medo… E vamos voltar! - Não te arreceies, Zezinho! Eu nado bem, e poderia bem contigo… Subimos o carreiro pela encosta da outra banda, entre pinheiros e tojos, para apanhar a estrada da Barca para Ponte, isto em São João da Ribeira. - Está bem, senhor Costa! – Era assim que ela tratava o meu tio e tinha dito; concordava sempre quem precisava… Lá fomos para a Vila e lá chegámos. Comprei com a ajuda do tio Zeca os sapatos deste ano. E fomos até ao largo de Camões, o meu tio com o tique no nariz de sempre, de estar no ar muita humidade. Como fungava! Estava com pressa… — 31 —
José Luís da Costa Sousa - Vá, o tio João deve andar por lá atarefado com tanto para fazer… ‘Vamos d’abalada!’, como diz o compadre alentejano. Morto por se pôr a andar, o meu tio olhou para o céu. Olhou e voltou a olhar. As nuvens fugiam. Nuvens açapadas por cima faziam de chapéu. Vento fresco soprava das bandas de Viana. Sol viste-o? Antes que a chuva voltasse, ganhámos coragem para o regresso. Mas não se afigurava um volte face iminente. Os pardais bicavam nos charcos deixados por aguaceiros prévios e no que houvesse, migalhas, de comer. As pombas competiam com eles pelo mesmo. Um cão rafeiro lazarento cheirava as portas das casas de pasto. Tinham a companhia de pombas que deambulavam pelo largo de Camões, por sinal fazendo o mesmo que as do pombal da avó Rosinha. Eu não largava os sapatos novos que, metidos na caixa incómoda, trazia debaixo de um dos braços, mudando-os de vez em quando de sovaco para sovaco a fugir de incomodidade. Bem, viemos. Fizemos o caminho inverso. Três quilómetros até à igreja de São João. O tio sorria quando me espreitava o ar de felicidade expresso no cuidado e doçura com que agarrava nos sapatos. Eram castanhos, como eu queria! O tio Zeca, descido o primeiro troço de monte depois da igreja, assobiou com dois dedos na boca e, do outro lado do rio, a tia Maria Cuca respondeu: - Já vai! Nas lajes do outro lado, terra de Refoios do Lima, ainda estavam a Chibinha e a se Maria Carvalha. A roupa lavada, quase toda estendida e aberta, aproveitava todas as réstias de sol, antes que caísse aguaceiro. Aí chegados, parámos a descansar. O meu tio, depois de respirar fundo: - Pois é! Esfregue, esfregue, Chibinha, que o seu esfregar tem graça…! – Era humor de laivos brejeiros. — 32 —
A aldeia e a infância «Ó tio Zeca…!» - Eu não percebia tanto sorriso dele e delas. - Já vai, senhor Costa?! Quanto vale ser homem! Esta sina de mulher, sempre, sempre a esfregar…! A esfregar-se…
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3 No dia aprazado, como em outros anos passados por outono, o ti Zé barbeiro veio munido do facalhão a casa dos meus pais para matar-lhes o porco. Nessa madrugada de frio, eu era, na companhia de minha mãe, que já saraquitava pela casa, o único homem que ainda restava dentro. Permanecia na cama entre cobertores e nem se me via a cabeça, tal o frio que ia fora. A brancura, aliás, era vê-la nas vidraças da janela. Em mim, ali, acordar obedecia a um ritual que me encantava. Logo pela manhã, muito cedo, os pardais pousados na pereira velhinha que havia ao fundo da escadaria costumavam chilrear e estrebuchar, primeiro com curtos laivos de pio e depois em desbragada sinfonia. E eu despertava assim. Naquele dia, a luminosidade começara a penetrar, tímida, pelas frestas da janela, e o mexericar dos pássaros no folhedo logo deu lugar aos chilreios mais desabridos. As vidraças apresentavam-se salpicadas de gotículas de geada derretida, que engrossavam e escorriam por ela abaixo. Ainda era mais noite que dia. Sob a janela do meu quarto ficava a estrada que ligava o Mosteiro ao Caneiro e, através
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José Luís da Costa Sousa do barulho rasteiro e abafado pelo mexericar de milho seco, adivinhavam-se por ela mulheres silenciosas, agora uma, muito depois outra, a caminho da igreja para a missa da manhã. A ti Custódia de Golfeiros. A tia Emília Barona. A tia da Veiga. Sobretudo, mulheres idosas que, de preto e cabeça coberta, apenas se faziam notar pelos gemidos e pelo roçar das socas na berma empedrada da estrada. Até que do sino da torre soaram seis badaladas. Ouvi então o último bater compassado de socas no empedrado. Não demorou que uma voz grossa de homem no ar ferisse o silêncio da madrugada: - Sousa! Ó Sousa! É o homem! – Gritou ele, depois de um chorrilho de palmas. Era o Zé barbeiro, cigarro aceso ao canto da boca e facalhão na mão. Foi por essa altura que um carro de vacas a chiar fez calar o barulho da passarada e irrompeu, a passo de procissão, em busca de tojo dos montes para o curral das vacas. A lentidão do carro era tal que a chiadeira parecia não ter fim. Eu já desesperava, mas animei-me mais à frente ao sentir que a calmaria do campo, aqui e ali já menos interrompida pelo bulício dos pardais, estava a regressar. - Ó Sousa! Sou eu, o Zé barbeiro! – Voltou a gritar, com três valentes palmadas na porta da adega. É que nem Sousa (meu pai) nem Mariazinha (minha mãe) se tinham apercebido da presença do matador. Imóvel no afago dos cobertores, percebi então que se tratava do homem que mais rapidamente matava da aldeia e das redondezas. Tinha ouvido dizer que, com o ti Zé barbeiro, o serviço era de segundos. E mais atento pude ouvir ruídos de chancas e vozes diversas na escadaria granítica de acesso à cozinha. Os homens, supus depois, possivelmente estariam a fazer roda na proximidade da lareira, donde brotava o calor — 36 —
A aldeia e a infância que os estaria a atrair. «Deve estar um frio de rachar!» Sustentavam uma conversa fiada que nada tinha a ver com o ofício por que tinham vindo. Palavras soltas. Palavras desgarradas. Palavras salpicadas com bagaços de matabicho. - Amândio, vai mais um bagaço? – Ouvi o meu pai perguntar, supus que de copo e garrafa nas mãos. - Não, senhor Sousa. Já tenho cá que me chegue… - respondeu, logo de escorropichar o copo na mão e do estalido com que costumava tomar-lhe sabor. O ti Zé barbeiro, vendo as horas passar e porque tinha ainda outro porco para matar, adiantou-se com os socos barulhentos para a claridade da janela que dava para o caminho de Penas. Afinei, então, o meu ouvido e pude escutar com grandes arrepios pelo corpo todo o barulho metálico da lima de aço com que o ti Zé afiava a faca de matar. O meu coração! Não conseguia evitar a lembrança de quando brincava com o bicho. Costumava lançar-lhe pedaços de broa e ficava-me a vê-lo lamber-se. Recordava o gozo do bicho a roçar o lombo na biqueira da minha bota. E estava com pena dele. A troca de palavras na cozinha, entretanto, tinha subido de tom e era agora mais fácil de acompanhar. Uma voz de homem pouco familiar passava em baixo, sob a janela da cozinha, a caminho de Quintão, soube-se mais tarde que para tratar de assuntos do padre Zé… - Então, Sousa, isso vai ou não vai! Bom trabalho! – Era o senhor Manuel das Lajes, falando alto do caminho para a janela da cozinha. - Obrigado, se Manuel! Boa viagem! Vá, mas cuidado com charcos e buracos, não vá torcer um pé…! – Respondeu de cima o meu pai. — 37 —
José Luís da Costa Sousa O se Manuel sabia da matança por conversa com o meu pai, tida na barbearia do tio Pires, onde ambos haviam estado na véspera a escanhoar-se. - O carro de vacas já está fora? – Perguntou o Xico, mangas arregaçadas e pronto para o serviço. - Não está, rapazes! – Respondeu o meu pai. – Mas, caraças, também se tira em dois tempos… O Zé Barbeiro: - Da minha parte, a faca está pronta! Afiada como está, o reco vomita o sangue todo num abrir e fechar de olhos! - E a Mariazinha, tem os alguidares prontos para o sangue? – Voltou Xico, a acender um cabeça-atada. Aquela conversa ainda se prolongou e, vindo à baila a tarefa de cada um, alguém deu pela falta de braços para manietar o bicho. Estavam um para espetar a faca mais três para forçá-lo e sujeitá-lo no carro de vacas, o que, se calhar, seria pouco. - Não é problema! – Disse um deles. – Chama-se o Zezinho… Até lhe faz bem! Tem cinco anos, precisa fazer-se homem. Eu, sem modos de esboçar defesa, senti-me de imediato invadido por um pavor desmedido que, como fogo em tojo seco, progredia rapidamente, não sabia onde iria desembocar. «Ó Menino Jesus, que posso fazer?» Não apareceu ninguém a tirar-me daquele sufoco, daquele inferno… Ouço passos do soalho. Alguém que chegara junto ao meu quarto bate à porta e chama por mim. À espreita do passo seguinte, lá fui indo para a cozinha, tremendo como nunca. Ainda tentei vestir-me como quem não tinha nada a ver com o assunto, o serviço, quis mentir, quis enganar por boa razão… Mas esperavam-me, e tive — 38 —
A aldeia e a infância de dar-me por vencido na tentativa de esquiva. Como me sentia desarvorado! Os homens chegaram ao cortelho e aprontaram o carro. Tirando eu, que me pus um pouco à margem, todos se aproximaram do reco em jeito de cerco. O bicho, desconfiado, fugiu para o canto do cortelho, acabando aprisionado. Receoso da fúria dos lidadores, afastei-me mais, temendo por mim como se eu fosse o porco. Procurei, no entanto, recuando cautelosamente passo a passo e a medir os movimentos a minha volta, um ponto donde pudesse seguir os acontecimentos. O reco, primeiro perseguido, depois manietado, explode a gritar desesperadamente, como que adivinhando a sorte que homens maus lhe haviam destinado. Cena terrífica! Deixou-me aterrado, como se o meu corpo é que estivesse a ser violentado. Os gritos e o desespero do bicho cresceram até que os homens grandes lhe quebraram a resistência e o fizeram tombar sobre o carro. Apercebendo-me da relativa acalmia do momento, acheguei-me um pouco. Foi então que o ti Zé barbeiro, camisa puxada nos braços para cima e facalhão a luzir, deitou o outro braço ao cachaço do desesperado. - Vá, prontos? – Perguntou o matador, a certificar-se. - Botem o vosso corpo para cima dele e agarrem-no com força! - Ó Zezinho – gritou o Xico -, fica ao pé de mim! Vá, cerra os dentes e pega-lhe forte, valente! O prisioneiro, esse inconformado com a situação, mobilizou toda a energia disponível para um grito de protesto e um esforço derradeiro de fuga ao fim triste a que havia sido votado. Não vendo outra saída, aproximo-me lentamente e a tatear. Desvio o meu olhar do reco e coloco-me o mais — 39 —