A Inquisição Portuguesa em face dos seus Processos | Volume I

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Começou então o Autor deste livro a estudar alguns processos, colocando na Internet no seu site os resultados desse estudo. Tal estudo foi agora transcrito para este livro. Pretendeu o Autor substituir a precariedade do formato digital pela perenidade da obra impressa. Assim a publicação agora dada a lume tem origem em textos da Internet, tanto assim que os diversos capítulos indicam a data da redacção de cada um. As conclusões deste estudo são surpreendentes. Desaparece o mito da “Santa” Inquisição. Em vez disso aparece uma instituição sedenta de poder por todos os modos e feitios. Teoricamente, a Inquisição destinava-se a castigar os hereges, mas certamente não teria um número deles suficiente para justificar a sua existência. Por isso, teve de os inventar e daí a perseguição dos cristãos novos. Não se limitou, porém, a perseguir os cristãos novos hereges, juntou a estes todos os cristãos novos, entendendo por tais até os que tinham um único antepassado judeu fosse em que grau fosse. Mais: não só os que tinham tais ascendentes mas mesmo os que apenas tinham fama de os ter. A explicação da Inquisição é esta mesma e nenhuma outra: uma instituição de poder que se justificava apenas por isso, o exercício do poder. A maior parte dos Inquisidores, homens inteligentes como eram, sabiam muito bem que estavam a condenar inocentes, mas fingiam que os réus eram na realidade culpados de heresia. Para isso, contavam com o ódio anti-semita da população e tratavam de repartir algum desse seu poder pelos comissários e familiares da Inquisição.

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Arlindo N. M. Correia

A Inquisição portuguesa em face dos seus processos volume I

Por volta de 2005, os serviços do Arquivo da Torre do Tombo digitalizaram e puseram em linha todos os processos da Inquisição de Lisboa, o que logo despertou o meu interesse. Infelizmente, a medida não se estendeu às Inquisições de Coimbra e de Évora. Mas a verdade é que os processos de Lisboa eram em geral mais interessantes e importantes que os das outras Inquisições do País.

A Inquisição Portuguesa em face dos seus Processos Volume I Arlindo N. M. Correia

Arlindo Nogueira Marques Correia nasceu em Campia, concelho de Vouzela, em 1943. Aos 19 anos começou a trabalhar como Aspirante de Finanças, após um concurso nacional em que ficou classificado em 1.º lugar entre 238 candidatos. Quando lhe foi possível, matriculou-se em Direito em Coimbra e obteve a licenciatura em 1978. Subiu na carreira das Finanças através de diversos concursos tendo sido aprovado como Director de Finanças em Dezembro de 1979. Em Agosto e Setembro de 1983, frequentou em Washington o Curso de Finanças Públicas do FMI. Em Maio de 1985 foi nomeado Subdirector-Geral da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. De 13 a 26 de Agosto de 1989, integrou uma missão do FMI a Angola para reportar sobre o sistema fiscal daquele País. De 9 a 23 de Abril de 1993, integrou outra missão do FMI a Moçambique para desenhar um sistema de IVA para o País. Em Junho de 1993 foi afastado da administração do IVA sem qualquer justificação. Foi então trabalhar para a Comissão Europeia em Setembro de 1994, primeiro como perito destacado e, após concurso, como Agente temporário A5, passando então à condição de reformado em Portugal. Tendo abandonado a Comissão Europeia no final de Abril de 1999, foi depois nomeado Conselheiro da Representação Permanente de Portugal junto das Comunidades, tendo ido para Bruxelas em Julho de 1999, ocupando-se da Presidência Portuguesa no 1.º semestre de 2000. Regressou de Bruxelas em Julho de 2000 e iniciou então o estágio da advocacia, como estagiário da firma ANBM que durou dois anos e meio. Ficou no mesmo escritório como consultor até Abril de 2008, tendo suspendido o exercício da advocacia. Tem na Internet o site http://arlindo-correia.com de conteúdos variados desde Julho de 2000.


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A Inquisição Portuguesa em face dos seus Processos Volume I Arlindo N. M. Correia

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FICHA TÉCNICA edição: Edições ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: A Inquisição portuguesa em face dos seus Processos autor: Arlindo N. M. Correia capa: Paula Martins paginação: Alda Teixeira 1.a Edição Lisboa, Janeiro 2018 isbn: 978-989-8867-23-0 depósito legal: 435960/17 © Arlindo N. M. Correia

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NOTA: O Autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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ÍNDICE

VOLUME I INTRODUÇÃO .

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I – A INQUISIÇÃO PORTUGUESA I.1 – História da Inquisição Portuguesa, em face dos seus processos . . . . . . . . I.2 – Como ler um processo da Inquisição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.3 – O mito da correcção jurídica dos processos da Inquisição . . . . . . . . . . . . I.4 – A Inquisição formal e a Inquisição real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.5 – A maior perversidade do Regimento da Inquisição de 1640 . . . . . . . . . . . I.6 – Como eu vejo os judeus e o judaísmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.7 – Quem é que era considerado como Judeu – por Hitler? – pela Inquisição? I.8 – As Leis de Nuremberga – Tabela. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.9 – Os primeiros tempos da Inquisição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.10 – As listas do P.e Manuel Dias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.11 – As 5 freiras mortas pela Inquisição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . I.12 – A inventona da Confraria de Frei Diogo, na Coimbra do séc. XVII . . . . – Anexo: processos da Inquisição na época da inventona de Coimbra . . I.13 – A Inquisição de Goa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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II – CRÍTICAS E RECENSÕES II.1. – História da Inquisição Portuguesa – 1536 – 1821, de Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, (A Esfera dos Livros, 2013). . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

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II.2 – A relação entre os Inquisidores e os Bispos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.3 – Os “judeus” da vila de Melo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.4 – As Viríadas do Doutor Samuda, edição crítica com introdução e notas do Prof. Doutor Manuel Curado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.5 – Uma tese de doutoramento virada do avesso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.6 – Queimar Vieira em estátua – Manuscritos inéditos do Inquisidor António Ribeiro de Abreu em resposta ao P.e António Vieira (1608-1697). – Transcrição, Anotação e Introdução por Herman Prins Salomon. Prefácio de António M. Feijó . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.7 – Escritos sobre os Judeus e a Inquisição. Padre António Vieira . . . . . . . . II.8 – Viver e morrer nos cárceres do Santo Ofício, de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.9 – Jacob Rodrigues Pereira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . II.10 – O Regimento de 1640 e a justiça inquisitorial portuguesa: “conforme a melhor e mais segura opinião e estilo do Sancto Officio” . . . . . . . . .

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III – DOCUMENTOS III.1 – Ramos Coelho, Manuel Fernandes Vila-Real, (1608-1652) . . . . . . . . . . III.2 – António Baião – António Serrão de Castro (1610-1684) . . . . . . . . . . . . III.3 – Notícias recônditas do modo de proceder a Inquisição de Portugal com os seus presos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III.4 – Reparos feitos por ocasião do Auto de fé celebrado em Lisboa em 10 de Maio de 1682 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III.5 – O P.e Gaspar de Miranda, S.J. (1564-1639), sobre a Inquisição. . . . . . . III.6 – Michael Geddes, Procedimentos da Inquisição de Lisboa . . . . . . . . . . . III.7 – Breve do Papa Inocêncio XI, de 22 de Agosto de 1681 . . . . . . . . . . . . . III.8 – D. Luis da Cunha criticou D. João V, por ir assistir aos Autos da Fé . . . III.9 – O Cardeal D. Henrique e os cristãos novos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III.10 – O Abade António da Costa sobre a inquisição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III.11 – Portugueses na Inquisição de Sevilha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III.12 – Ramos Coelho, Visitas d’El-Rei D. João V à Inquisição de Évora. . . . III.13 – António Serrão de Castro (1610-1684), Os ratos da Inquisição . . . . . . III.14 – António Serrão de Castro (161-1684), Carta a Francisco de Mezas. . .

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VOLUME II

IV – PROCESSOS ESTUDADOS – Séc. XVI e XVII IV.1 – Na Inquisição de Lisboa, até 1570 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.2 – Frei Valentim da Luz (1524-1562) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.3 – Manuel Travaços, relaxado pela Inquisição por luteranismo em 1571 . . . IV.4 – Garcia Lopes (1520?-1572). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.5 – Bento Teixeira (1561-1600) na Inquisição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.6 – Fr. Diogo da Assunção (1571-1603) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.7 – Na Inquisição, no último lustro do séc. XVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.8 – Ana de Milão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.9 – Manuel Soares Brandão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.10 – Baltasar Estaço (1565-?) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.11 – A prisão e o processo do Doutor António Homem . . . . . . . . . . . . . . . . IV.12 – Henrique Pais, Advogado no Porto, preso nove anos e depois garroteado na Inquisição de Lisboa em 1629 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.13 – Razia de uma família inteira – Tomás Rodrigues, esposa e filhos . . . . IV.14 – O processo de Leonor da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.15 – Duas freiras de Coimbra, na Inquisição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.16 – Os netos do Doutor Pedro Nunes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.17 – A fábrica de Judeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.18 – Os Pinas de Lava Rabos, termo de Ançã, na Inquisição . . . . . . . . . . . . IV.19 – A freira Francisca da Encarnação, de Lamego, morta com sua irmã em 1629 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.20 – A perseguição de jovens meninas em Leiria – uma tese de doutoramento lamentável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.21 – Na Inquisição, em 1632: Manuel de Anta e suas irmãs . . . . . . . . . . . . IV.22 – Outros relaxados de Leiria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.23 – A tragédia na Inquisição de Diogo Rebelo, relaxado como falsário – Cristóvão Leitão, vitima de Diogo Rebelo e da Inquisição. . . . . . . . . . IV.24 – Vicente Nogueira (1586-1654) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.25 – A Família Quintal, de Santarém, na Inquisição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.26 – Isaac de Castro, de 21 anos, queimado vivo pela Inquisição . . . . . . . .

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IV.27 – Padre Manuel de Moraes (1596 ?-1651?) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.28 – João de Águila (1630-?) na Inquisição de Lisboa . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.29 – Simão Rodrigues Nobre, advogado, da Guarda e seu filho, médico. . . IV.30 – As andanças do Padre Pedro Lupina Freire (1625-1685) . . . . . . . . . . . IV.31 – Uma família perseguida pela Inquisição durante mais de 100 anos . . . IV.32 – António Pires, o Meia Noite, relaxado no Auto da Fé de 17 de Outubro de 1660 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.33 – 1655 – A Inquisição entra a sério na Guarda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.34 – António de Oliveira de Cadornega (1623-1690) . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.35 – A Inquisição seria extremamente ridícula, se não tivesse sido sempre trágica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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VOLUME III

PROCESSOS ESTUDADOS – Séc. XVII (cont.) e XVIII IV.36 – João Álvares de Barbuda, relaxado (1600 – 1666), executado pela Inquisição a pedido do Governo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.37 – Uma família dizimada pela Inquisição: mãe-viúva e sete filhos, de Montemor-o-Velho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.38 – Outra família arrasada pela Inquisição: D. Bernarda de Cerqueira e filhos, de Maceira – Leiria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.39 – Freiras judias, outra invenção da Inquisição: Duas irmãs sacrificadas à causa dos Inquisidores em 1673 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.40 – Freiras do Alentejo, na Inquisição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.41 – A Família Penso na Inquisição (1672-1684) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.42 – Miguel Henriques da Fonseca (1642-1682), relaxado . . . . . . . . . . . . . IV.43 – A Família Mogadouro na Inquisição (1672-1684) . . . . . . . . . . . . . . . . IV.44 – Pedro Serrão de Crasto (1650-1682), relaxado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.45 – Manuel da Costa (1621-1681), defunto no cárcere, absolvido . . . . . . . IV.46 – Três renegados, ex-cativos em Argel, na Inquisição, em 1698 . . . . . . . IV.47 – António Tavares da Costa (1674-1707), relaxado . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.48 – Gaspar de Sousa, médico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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IV.49 – O grande delator: Diogo Nunes, médico, do Seixal . . . . . . . . . . . . . . . IV.50 – … e foi assim que a Inquisição condenou à morte mais um inocente . . . IV.51 – Um mártir da Fé Judaica: Heitor Dias da Paz (1679-1706) . . . . . . . . . IV.52 – Duas jovens assassinadas pela Inquisição no início do Séc. XVIII . . . IV.53 – Simão Lopes Samuda (1681-1729) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.54 – Dr. Diogo (Samuel) Nunes Ribeiro (1668 – 1741) . . . . . . . . . . . . . . . . IV.55 – Como a cristã nova Isabel Henriques, que se tinha apresentado na Inquisição e fora “reconciliada” em 1667, presa em 1703, denunciada depois pela filha e pela enteada, foi morta no auto da fé de 12 de Setembro de 1706 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.56 – Como Francisco de Sá e Mesquita (1680-1723) quis enganar a Inquisição e acabou no cadafalso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.57 – Pedro Lopes Henriques e o amigo que o traiu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.58 – Padre Manuel Lopes de Carvalho (1682-1726) na Inquisição . . . . . . . IV.59 – António José da Silva, o “Judeu” (1705-1739) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.60 – Guiomar Nunes, da Paraíba, relaxada em 1731 . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.61 – Padre António Guilherme Hebre de Loureiro, de Tondela (1694-1754) IV.62 – Uma história em Tondela, no ano de 1735 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.63 – Diogo Correia do Vale e seu filho Luis Miguel, relaxados pela Inquisição em 1732 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.64 – António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.65 – Mécia da Costa, parteira e curandeira (1678-1744) . . . . . . . . . . . . . . . IV.66 – Pedro de Rates Henequim (1680-1744) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.67 – José Anastácio da Cunha (1744-1787) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.68 – Dois Mações Brasileiros na Inquisição, no início do séc. XIX: Hipólito José da Costa (1774-1823) e José Joaquim Vieira Couto (1769-1811). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.69 – A saga de John Coustos, lapidador de diamantes, pedreiro livre, em Lisboa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.70 – Francisco Xavier de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira (1702 – 1783) .

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Processos da Inquisição Estudados (por ordem alfabética) . . . . . . . . . . . . . . . . 923 Processos da Inquisição Estudados (por ordem cronológica) . . . . . . . . . . . . . . 927

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INTRODUÇÃO Por volta de 2005, decidi-me a começar a ler e estudar processos da Inquisição. A ocasião era boa, porquanto os Arquivos da Torre do Tombo tinham encetado a tarefa de digitalizar e publicar na Internet a totalidade dos processos da Inquisição de Lisboa. O ideal teria sido que fizessem o mesmo com os processos de Coimbra e de Évora, mas essa tarefa não foi ainda iniciada. Como consolação, direi que se constata que o modo de proceder destas duas Inquisições é bastante mais arbitrário, a apresentação mais rudimentar e, portanto, de menor valor documental. Nos processos de Coimbra e de Évora constata-se muito mais arbitrariedade e menor cuidado em termos de documentação. Apesar da violência inerente à acção inquisitorial, os processos de Lisboa demonstram mais bom senso. Um bom exemplo é o tratamento das freiras na Inquisição. Na Inquisição de Lisboa é muito menor o número de freiras perseguidas e julgadas e não há mesmo nenhuma freira relaxada, enquanto houve duas em Évora e três em Coimbra. Para além disso, muitas vezes o Inquisidor-Geral ou o Conselho Geral avocavam para Lisboa os processos das outras Inquisições que reputavam como importantes. No meu estudo, apenas me preocupei com a perseguição dos cristãos novos, praticamente ignorando os outros alvos da Inquisição: hereges, blasfemos, bígamos, islamitas, pederastas, padres solicitantes. Na realidade, a Inquisição nunca teria existido se não se dedicasse à perseguição dos cristãos novos, que representava mais de oitenta por cento da sua actividade. É verdade que entre os processos estudados que adiante relatarei estão alguns que não visaram cristãos novos. Inclui-os em parte por curiosidade e também porque permitem conhecer melhor as práticas da Inquisição.

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12 Introdução

Constata-se à evidência, que os nossos historiadores, ao estudar a Inquisição, não se preocupam muito em ver os processos. Entendem ser natural a Inquisição perseguir os cristãos novos, porque judaizavam, porque continuava a existir cripto judaísmo. Também não se preocupam a definir o que entendem por isso. Afirmam e mais nada. Depois estudam a vida e obra dos Inquisidores (pela rama), as relações dos Inquisidores com os Bispos, da Inquisição com o Papa e com os poderes políticos e assim por diante. Aos processos, não ligam grande coisa. Este facto faz com que apareçam hiatos e inexactidões mesmo nos autores mais consagrados. Assim, por exemplo, João Lúcio de Azevedo, na História dos Cristãos Novos Portugueses: Pag. 283 – João Álvares de Barbuda – os acusadores dele foram um irmão e uma irmã. Ele acusou-o logo, a irmã, só mesmo quando já estava condenada à morte. Diz o Autor: “Mas era cristão-novo e isso tinha de custar-lhe a vida”. Não é totalmente exacto. Foi morto pela Inquisição a pedido do Governo. Não foi caso único, há pelo menos outro, Pedro de Rates Henequim (Pr. n.º 6138), garrotado em 21-6-1744. Mesma página: O Padre Luis de Azurara Lobo, não seguia os preceitos judaicos. Achou que não tinha sentido dizer que nada tinha de judeu e hesitou nas confissões. Foi relaxado. Pag. 139 -Tortura da água: ao contrário do que diz João Lúcio de Azevedo, foi usada a tortura da água, que foi aplicada por exemplo ao médico Lopo Nunes – pr. N.º 2179, fls.133 r. Também não percebeu nada da perseguição contra os cristãos novos em Coimbra no início do séc. XVII. Aí foram os próprios cristãos novos que fizeram do Doutor António Homem um bode expiatório. Para se defenderem os cristãos novos presos não hesitavam em inventar cerimónias e participantes nelas, sempre que lhes fosse cómodo para se livrarem. Entra nesta categoria a confissão feita por acusados (e acusadas) de bruxaria de terem feito pactos com o diabo, quer expressos quer tácitos. As confissões feitas com pormenores lúbricos encantavam os Inquisidores e permitiam aos réus escapar à morte. Até o Padre António Guilherme Hebre de Loureiro (Pr. n.º 3532 de Lisboa) pôs a hipótese de o diabo ter feito um pacto tácito com ele… Aí, acho eu que o Padre tinha poderes hipnóticos.

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No séc. XIX e início do séc. XX, sempre se considerou a Inquisição como uma entidade perversa e mal intencionada. Mas, no tempo de Salazar, fez-se aproximar a acção da Inquisição à Igreja Católica e até se foram procurar os “benefícios” da Inquisição, nomeadamente o ter impedido que se implantassem em força os protestantes. Até hoje. No séc. XX, a nossa Universidade estudou a Inquisição com base no axioma: “Os cristãos novos judaizavam e por isso eram castigados pela Inquisição”. Este verbo “judaizar” nunca chega a ser definido. Esperava eu que, após o 25 de Abril, se alterasse o modo de estudar a matéria, mas… nada! Outra perspectiva que afecta muito o estudo da Inquisição é dizer-se que a Inquisição Portuguesa matou pouca gente. Esta ideia veio sobretudo de Itália há umas dezenas de anos. De facto, o número de relaxados não deve exceder os 3 000 (mas pode ultrapassá-lo se se juntarem os relaxados da Inquisição de Goa). E o sofrimento dos penitenciados e reconciliados não conta? Saíam de lá humilhados, aleijados, desanimados, sem vontade de viver. E esses são muito mais, não menos de uns 50 ou 60 mil, tendo em conta a existência física de 41 000 processos e as listas de autos-da-fé que referem processos inexistentes. Que é judaizar para efeitos da Inquisição? O equívoco principal está na determinação de quem era considerado como cristão novo. Para a Inquisição cristão novo era todo aquele que tinha um antepassado judeu. Inicialmente, indicava-se a fracção de sangue judeu: se era judeu um dos pais, o filho era ½ cristão novo, se era um avô, era ¼ de cristão novo e assim por diante. No séc. XVII, a Inquisição deixou de fazer contas e passou a dizer que o Réu tinha “parte” de cristão novo ou mesmo “fama” de cristão novo”. Ora isto é totalmente estúpido, mesmo em termos de perseguição racial. Como refiro adiante (ver “Quem é que era considerado como Judeu – por Hitler? pela Inquisição?”), Hitler só considerava como Judeus aqueles que tivessem pelo menos três avós Judeus, sendo os outros considerados como mestiços que, em princípio, não eram perseguidos. O judaísmo no sentido mais restrito, desaparece com os casamentos mistos. Já dizia o sionista Ze’ev Jabotinsky que não há assimilação (dos judeus), enquanto não houver casamentos mistos.

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Nos primeiros tempos da Inquisição, quando os cristãos novos tinham um comportamento exterior neutro em matéria de religião e praticavam os actos exteriores de católicos (ida à missa dominical, confissão e comunhão anuais no tempo quaresmal), nada lhes acontecia. Foi esta a Inquisição que o Cardeal D. Henrique criou e administrou. Ele tinha sem dúvida ódio aos judeus como se vê do texto da carta que escreveu a Pedro Domenico em 10 de Fevereiro de 1542 (Corpo Diplomático Português, vol. V, pag- 34- ver o texto mais adiante), mas não perseguia cristãos novos só por o serem. A certa altura, difícil de determinar, mas que se situará mais ou menos perto do final do séc. XVI, as coisas mudaram. Já tinham fugido para o estrangeiro os cristãos novos que queriam realmente “viver na Lei de Moisés”. Os cristãos novos que tinham ficado em Portugal queriam era viver o melhor que podiam e de preferência sem ser incomodados. E não lhes era difícil terem sucesso. Mandavam os filhos para a Universidade para terem profissões rentáveis como as de médicos e advogados, procuravam grandes negócios como as importações do Ultramar e a arrematação de grandes contratos com a Coroa, por exemplo de cobranças de impostos e fornecimentos militares, trabalhavam boas terras próprias ou alheias, auferindo grandes proveitos com a sua exploração. Em resumo, ganharam boas situações que tinham todo o interesse em manter e por isso, não se desviavam um milímetro dos sinais (pelo menos exteriores) de católicos. A Inquisição ficava assim sem ter que fazer… a menos que alterasse o sistema. E foi o que fez. Alargou o seu campo de acção e passou a perseguir genericamente todos os cristãos novos, qualificando como tais todos os que tivessem um qualquer antepassado judeu. Deixou de ser Inquisição, para ser uma entidade racista imbuída de anti-semitismo, que iria fazer os possíveis por reduzir todos os cristãos novos à miséria. E era isso mesmo que o resto da população desejava, à uma pela inveja do sucesso daqueles novos ricos e também pela doutrinação que lhe vinha dos púlpitos contra o judaísmo. Mas como podia agora a “Inquisição” (que já o não era) perseguir sistematicamente os cristãos novos se eles tinham todo o comportamento exterior de católicos? Simplesmente prendendo os cristãos novos, ameaçando-os de morte se eles não confessassem o credo judaico e não denunciassem que

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outros tantos acreditavam na Lei de Moisés e rejeitavam o dogma católico. Isto é a coisa mais evidente do mundo, lendo os processos. Pois bem. Eu afirmo que a Inquisição, no que toca aos cristãos novos, não tinha que ver com Religião. Era uma instituição de poder que actuava em termos de manter esse mesmo poder. Os Inquisidores eram perversos e cruéis ( e também corruptos, embora essa faceta esteja algo escondida e nunca seja estudada). Como é possível pensar que os reconciliados saíam dos Estaus contentes e satisfeitos, firmes na fé de uma Igreja Católica em nome da qual tinham sido tão maltratados? Quando comecei a estudar a Inquisição, parecia-me que era no séc. XVIII que tinha sido mais cruel e perversa; e foi-o de facto, com a repetição dos processos contra os mesmos Réus, espalhando o terror por toda a comunidade dos cristãos novos, que fugiam ou tentavam fugir em massa para o estrangeiro. Mas, dei conta depois que, no séc. XVII, não eram menores as injustiças cometidas, perseguindo todos os que se distinguiam em profissões liberais de advogados, médicos, professores universitários ou em funções eclesiásticas de cónegos ou sacerdotes. E depois também no séc. XVI, onde, sempre que podiam, manobravam o Cardeal D. Henrique para perseguir os inimigos pessoais, como foi o caso dos professores de Coimbra e de Fr. Valentim da Luz. Apesar do seu ódio anti-semita, D. Henrique era a seu modo um homem íntegro, pois até nunca perseguiu, por exemplo, Pedro Nunes e Tomás Rodrigues da Veiga, cristãos novos conhecidos como tais. Deveria ser um espírito fraco, que se deixava influenciar pelos que o rodeavam. Só assim se compreende o processo contra os professores de Coimbra, Buchanan, João da Costa e Diogo de Teive. Acho que a Igreja Católica se deveria demarcar da Inquisição e fazer um acto de contrição em relação a todo o tempo em que teve a ver com ela. É um lugar comum entre nós julgar que a Inquisição era uma instituição da Igreja Católica. Não era. Atendendo à barbaridade de certos Inquisidores, considerá-los como elementos válidos da Igreja Católica abala seriamente o prestígio desta. De facto, eu não tenho qualquer dúvida em classificar como assassinos os Inquisidores

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que condenaram Réus à morte sabendo muito bem que eram inocentes, por não terem quaisquer convicções judaicas. É uma grande ilusão ligar a Inquisição à Igreja Católica. Os Papas Clemente X (1670 – 1676) e Inocêncio XI (1676 – 1689) convencidos de que a Inquisição portuguesa era comandada pelo Rei, quiseram colocá-la sob o mando da Igreja. Estavam enganados e enganado ficou o Papa Inocêncio ao publicar o Breve Romanus Pontifex em 22 de Agosto de 1681, convencido que tal conseguiria. Os Inquisidores é que ficaram encantados, pouco tinham que alterar. Como muito bem reparou a Prof. Ana Maria Homem Leal de Faria, no seu artigo sobre a crise de 1674-1682, a Inquisição apoiava-se no Papa quando o Rei a incomodava e no Papa quando era o Rei a fazê-lo. Mas nunca abdicava do poder de que dispunha. Também o Prof. Joaquim Romero Magalhães escreveu definindo a Inquisição: “Tribunal ligado ao Estado e à Igreja, serve ambos e de ambos se vai servindo”. No séc. XX, teve eco a disputa entre os Prof. António José Saraiva e Israel Salvator Révah, sobre a natureza e os fins da Inquisição. O primeiro concluiu com base na teoria marxista que a Inquisição perseguira e tentara eliminar a “classe capitalista”. O segundo afirmou ter consultado muitas centenas de processos e concluído que os cristãos novos eram potencialmente judeus. Saraiva era criticado por não ter consultado os processos e se ter baseado unicamente nos poucos livros que haviam sido publicados, o que era verdade; mas a sua tese era ainda absurda em face das dezenas de milhares de indigentes que a Inquisição perseguiu. Mas tinha razão em considerar que a Inquisição pouco ou nada tinha a ver com a Religião. Quanto a Révah, tenho algumas dúvidas sobre a compreensão dele dos textos dos processos. Pouco ou nada se aproveita de tal polémica. Que pretendia então a Inquisição? Nada, apenas continuar a existir como instância de poder. Para isso, tinha de ter uma ocupação e essa era perseguir cristãos novos, conceito entendido em termos larguíssimos como sendo toda aquela pessoa que tinha pelo menos um judeu entre os seus antepassados directos.

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É ideia corrente que os cristãos novos perseguidos pela Inquisição tinham convicções judaicas. Basta consultar meia dúzia de processos para se ficar convencido do contrário. Aquele ponto de vista da direita católica é apoiado pelos estudiosos judaicos, a quem interessa que se invoque o cripto judaísmo para justificar a Inquisição, porque isso seria uma prova da sua existência. Verifica-se assim uma aliança contranatura que prejudica a interpretação dos factos entre dois grupos que nada deveriam ter em comum. Os estudiosos católicos acentuam o judaísmo real ou (na maior parte das vezes) suposto, para justificar a Inquisição e os meios judaicos ficam contentes com isso porque vêem justificada a permanência da sua crença. O absurdo cresce mais ainda na consideração de quem era cristão novo. A Inquisição já não conseguia saber qual a percentagem de sangue judeu dos acusados, mas contentava-se com dizer que os réus tinham fama de possuir antepassados cristãos novos.

O processo que o não era É costume estudar os processos da Inquisição com base no livro de Elias Lipiner “Santa Inquisição: terror e linguagem, Rio de Janeiro, Documentário, 1977”. Eu cheguei, porém, à conclusão que é preferível confrontar os processos da Inquisição com as regras modernas do Direito processual penal e civil para apontar as deficiências do processo inquisitorial que são gritantes. O processo da Inquisição não tinha defesa possível. Lido o libelo ao Réu, vinha este com “contrariedades”, isto é, contestava por negação as faltas que lhe eram apontadas e indicava testemunhas. Esta prova é tratada de modo totalmente arbitrário em todos os processos. Muitas das testemunhas indicadas não eram ouvidas sem qualquer justificação. Nem o Réu, nem o seu Procurador tinham conhecimento dos depoimentos. A contestação não servia para nada, nunca era tida em conta. Pelo contrário, o Réu passava a ser considerado como negativo. Veja-se o caso de Pedro Serrão de Castro que provou ser católico praticante e fervoroso, o que não podia deixar de ser conhecido pelos Inquisidores – não escapou ao cadafalso.

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Uma prova da inutilidade da defesa é que a “Publicação da prova da justiça” é sempre igual ao libelo, indica as mesmas culpas. Costuma dizer-se que o Réu se “defendia” em seguida com contraditas e coarctadas. Não é verdade. Como refiro adiante, as contraditas não são uma contestação. A palavra “contradita” não tem aqui o sentido geral de contestação que figura no dicionário. São as contraditas das testemunhas, previstas nos arts. 521 e 522 do actual Código de Processo Civil, isto é, qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento. No Regimento de 1640, as contraditas referem-se sobretudo às relações pessoais entre as testemunhas e os Réus – ódios, inimizades, disputas, etc. Quando o depoimento se mostra impossível em razão do tempo ou do lugar em que ocorreram os factos, chama-se no Regimento coarctada que é assim a invocação de um alibi. As contraditas e coarctadas só muito raramente resultavam na defesa do Réu. Em geral, os Assentos dizem “não provou” e seguem em frente. Note-se que as contraditas e coarctadas eram utilizadas para avolumar os processos, simulando uma defesa que não tinha consistência. Alongava-se o tempo de prisão, com a realização de audições de testemunhas, deprecadas para a província (chamadas comissões): a Inquisição do processo enviava uma comissão à Inquisição do local da testemunha, e esta por sua vez enviava outra comissão ao Comissário que iria ouvir a testemunha. A sentença que finaliza o processo e era lida no Auto da Fé não era sentença nenhuma, porque a condenação do réu era feita no Assento da Mesa ou do Conselho Geral. Praticamente não fazia parte do processo, não era uma peça jurídica. Era um manifesto de propaganda e nem sequer era secreta. Era redigida em estilo empolado e mesmo não correspondendo por vezes ao que se passara no processo. Por isso, é errado estudar a sorte do Réu através da sentença.

A evolução da Inquisição Foram vários os autores que se ocuparam de estudar a periodização da Inquisição. Referindo-me apenas ao tratamento dos cristãos novos, considero

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que a Inquisição apenas teve dois períodos: o primeiro sob o comando do Cardeal D. Henrique que terminou com a sua ida para o trono em 1578 e o segundo daí até 1773, quando o Marquês de Pombal acabou com a distinção entre cristãos velhos e novos. No primeiro período, acusavam-se os réus de terem práticas típicas dos judeus, na alimentação, no vestuário, nos cuidados de casa, como por exemplo, “estando ambos sós, entre práticas que entre si tiveram, se declararam e deram conta como criam e viviam na Lei de Moisés, para salvação das suas almas e, por observância da mesma, faziam as sobreditas cerimónias, a saber, guardavam os sábados de trabalho, vestindo camisas lavadas à sexta feira à noite, e faziam os jejuns do Dia Grande e da Rainha Ester, e estando em cada um deles sem comer nem beber, senão à noite e ceando então cousas que não fossem de carne e não comiam a de porco, lebre, coelho, nem peixe de pele, e não passaram mais”.

Pouco a pouco, os Inquisidores deram conta que as cerimónias e as práticas não eram prova suficiente de heresia e limitaram as acusações que exigiam à chamada crença na Lei de Moisés: “e estando todas três, entre práticas que entre si tiveram, sem que pudessem ouvir as mais mulheres que estavam na Igreja, e sendo na hora que estava a fazer o sermão do Mandato, se declararam e deram conta como criam e viviam na Lei de Moisés, para salvação das suas almas e não falaram em cerimónias, ali nem depois passaram mais, nem disseram quem as havia ensinado, nem com quem mais se comunicaram”.

A crença na Lei de Moisés queria significar para a Inquisição essencialmente a descrença nos dogmas da religião Católica, visto a Lei de Moisés se resumir praticamente à crença num Deus uno, indivisível e eterno, sem princípio nem fim. A prisão do indivíduo implicava automaticamente a sua condenação a menos que ele confessasse tudo aquilo de que era acusado e em seguida, acusasse também outras pessoas cristãs novas de declarações em forma na mesma crença judaica.

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O processo inquisitorial era pois inteiramente enviesado contra os cristãos novos que tinham o azar de ser apontados como tais, enquanto ficavam livres todos os outros que tinham a sorte de não serem acusados. A propagação de sangue judeu entre a população no início do séc. XVIII, era tão evidente que seria mais que razoável acabar de vez com a pretensão e a ilusão de encontrar mais judeus convictos para prender e condenar. Mas tal não aconteceu e, pelo contrário, verificou-se um assanhar da acção da Inquisição no tempo do Inquisidor-Geral Nuno da Cunha de Ataíde, de 1707 a 1750. Neste período, a Inquisição foi especialmente virulenta, dado o apoio que o Inquisidor-Geral recebeu de D. João V, de quem o Cardeal tinha sido preceptor. São exemplo do terror então vivido as fugas de centenas de cristãos novos para Inglaterra no primeiro quartel do século e também a fuga em 1749 do António Abade da Costa (1714 – † 1780), que nunca mais veio a Portugal. A actuação da Inquisição partia de uma impossibilidade: conhecer os pensamentos ou as crenças do indivíduo. Uma impossibilidade e um absurdo, já que o pensamento é livre por natureza. Tinham pois de conhecer as palavras e actos dos presos, mas basear condenações em tão ridículas acusações não convence ninguém. Por isso, com o andar dos tempos, foi oleada uma perfeita máquina: o réu tinha de confessar as suas “culpas” repetindo os factos que já constam do processo. Esta era uma missão extremamente difícil, pois eram secretos os nomes dos denunciantes e os locais e datas em que as “culpas” tinham ocorrido. Mas, com alguma imaginação talvez conseguisse descobrir a identidade de alguns denunciantes. Para jogar pelo seguro, o réu acusava os seus familiares e toda a gente que conhecia, pois assim tinha mais possibilidades de acertar em quem o denunciara. Assim funcionava a “máquina” da inquisição, assim se “fabricavam” judeus. Era um teatro, em que o réu tinha de desempenhar bem o seu papel, para conseguir salvar a sua vida. Se não o fizesse, teria o patíbulo à sua espera. Com razão, H.P. Salomon chamou ao livro que traduziu e adaptou de António José Saraiva, “The marrano factory”; a Inquisição é que fabricava os judeus e a sua crença.

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Depois de todas as confissões, o réu tinha ainda de se mostrar realmente arrependido… daquilo que não fizera. Teria de se mostrar extremamente humilde, como convém a um arrependido. Quando não matava, a Inquisição reduzia os cristãos novos a “papa”, destruía-os, se não fisicamente, pelo menos mentalmente (para além de lhes ficar com os bens). Encontrei um narrador coevo que deu conta que era assim mesmo que as coisas se passavam. Numa carta do Padre Miguel de Almeida a outro Padre, datada de 27-7-1744, fazendo o relato do auto da fé de 21 de Junho anterior, refere-se ele ao réu Pedro de Rates Henequim (Pr. n.º 4864, da Inq. de Lisboa), de quem fora nomeado confessor e diz: “Então retractou os seus erros, mas com mostras de pouco ou nenhum arrependimento. 2.ª vez pediu mesa depois de eu falar com ele na 6.ª feira, em que se lhe intimou, que iria ouvir a sua sentença, e seria relaxado à justiça secular: para o que o instruí no que devia fazer, palavras certas e ditas com muita humildade, e mostras de verdadeiro arrependimento. Foi à mesa no sábado de manhã, mas pelo que me disse se passara, entendi que não fizera o seu papel como devera.” [(O sublinhado é meu). (transcrição do artigo de Maria Luisa Braga)]. O cristão novo que não representasse bem o seu papel corria perigo de vida. De nada valia estar inocente das acusações que lhe eram feitas, a culpa estava no sangue que lhe corria nas veias. Era anti-semitismo puro e duro. De facto, a Inquisição como defesa da religião vale zero. Depois de presos e humilhados, certamente que os cristãos novos não sairiam dos calabouços da Inquisição, com a crença de católicos. A única diferença entre a Inquisição e Hitler é que a primeira não matava todos os cristãos novos, contentava-se com humilhar e reduzir à miséria a maior parte. Desta opinião é também Fortunato de Almeida na sua História da Igreja (Vol. II, pag. 422): “A animadversão geral contra os judeus provinha menos de dissentimentos religiosos que de causas sociais, avultando entre estas a rivalidade económica e o sentimento de nacionalidade inconfundível que a gente hebreia conservou em todos os tempos Certamente ninguém atribuirá a fanatismo religioso os conflitos que ainda hoje se repetem na Rússia, na Alemanha, em França e noutros países onde são numerosos os indivíduos de crença mosaica. As causas que na actualidade subsistem devem ser as mesmas que actuavam há séculos.” Ficamos esclarecidos.

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Também João Lúcio de Azevedo “O antagonismo, que dividia a nação em dois campos, católicos e marranos, era propriamente de raça e só na aparência de religião. Tudo que tendesse a separar os elementos, que deviam confundir-se, avivava o conflito, e mantinha o pretexto das perturbações.” Ao contrário de Hitler, a Inquisição não podia aniquilar os cristãos novos nem sequer expulsá-los do País, porque então ficaria sem matéria prima, sem razão de ser. Então, o que é que fazia? A sua missão era “asfixiar” toda a população dos cristãos novos, como diz Ana Salazar (2010, pag. 132). Se não eram mortos, eram reduzidos à ínfima espécie, espoliados, humilhados, destroçados. H.P. Salomon comete porém um erro: o de dizer que os cristãos novos eram católicos crentes. Ao dizer isso, cai no mesmo logro da Inquisição, quando queria descobrir a crença dos condenados. Por natureza, o pensamento é livre, impossível de conhecer. Os cristãos novos tinham práticas de católicos, aprendiam o catecismo e frequentavam os sacramentos. É o suficiente para concluir que estavam inocentes. Saber em que é que acreditavam, não é função de nenhum tribunal. Por isso, é ridículo e absurdo chamar à Inquisição, tribunal da Fé. No extremo oposto, estão os historiadores judaicos que vêem mártires em todos os condenados pela Inquisição. Teriam morrido defendendo as convicções tradicionais da sua raça. Também isto não é verdade. Os cristãos novos eram mortos porque não se sujeitavam à humilhação de representar convicções que não tinham, nem tinham a esperteza de representar um arrependimento inexistente; e não podiam esconder a raiva que sentiam pelo modo como estavam a ser tratados. Poderá ter havido um ou outro mártir da fé judaica, mas não era essa a regra. A vida para eles era impossível neste País. Desde o sec. XVI, que os cristãos novos que desejavam ser alguma coisa na vida, tiveram de fugir do País. Por aqui se vê que é ridículo falar-se do “problema do judaísmo em Portugal”. Não havia problema nenhum. A comunidade judaica estava a desaparecer ao misturar-se com a população portuguesa. Na Inquisição, os cristãos novos só tinham duas soluções: erguer a cabeça e acabar no cadafalso, ou deixarem-se humilhar, ficar reduzidos a “papa”,

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completamente imbecilizados e ainda por cima indigentes, já que lhes tinham sido apanhados todos os bens. É evidente que a vida da Inquisição era facilitada pelo facto de os cristãos novos, vivendo separados das comunidades de cristãos velhos (até pela limpeza de sangue), serem odiados por estes, até por, em geral, serem mais bem sucedidos na vida. Como diz a Prof. Ana Isabel Salazar (2010, pag. 136): “Los cristãos novos siempre fueron, estimados como la fuerza económica de Portugal, el sector de población más rico y dinámico”. Os pais faziam sacrifícios para que os seus filhos frequentassem a Universidade, estes aplicavam-se para ter bons resultados. Basta ver o número de médicos entre os cristãos novos que, no entanto, não podiam ter cargos oficiais. Todas estas considerações encontrar-se-ão demonstradas nas descrições dos processos que sumariei neste livro.

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I.1 História da Inquisição Portuguesa, em face dos seus processos A Inquisição deve ser estudada pelos processos Sempre me impressionou o pouco que os nossos historiadores da Inquisição ligam aos processos. Dizem eles que os cristãos novos judaizavam e por isso eram condenados pela Inquisição. E ficam-se por aí. Nem tentam definir o que se deverá entender por “judaizar”, ficam-se apenas pelo uso da palavra. Ora, se a Inquisição no século XVI, ainda utilizou a palavra “judaizar”, depressa deixou de o fazer, passando a acusar os réus de rituais, declarações em forma, jejuns, em resumo, coisas concretas, como juridicamente seria exigido; se eram verdadeiras ou falsas, isso não importava muito aos Inquisidores, desde que tivessem a aparência de verdadeiras. De facto, uma noção vaga e indefinida como “judaizar” nunca poderia ter qualquer valor jurídico. E, pouco a pouco, os processos começaram a ficar imbuídos de uma certa lógica jurídica, até bastante antes do final do séc. XVI. Pondo de lado os processos, os historiadores dedicam-se a estudar as relações de poder entre a Inquisição e o Rei, entre a Inquisição e o Papa, entre a Inquisição e os Bispos e assim por diante. Estão assim a prestar um péssimo serviço à Igreja Católica que tem necessidade urgente de condenar a Inquisição e de separar as águas. No estudo da actuação da Inquisição em si, ficam-se em geral pela rama. Constatam o enorme poder da Inquisição, mas não vão investigar o que é que os Inquisidores fizeram com esse poder, esquecendo a grande máxima de que “o poder corrompe sempre”.

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A iniquidade da Inquisição atingiu níveis que vão além da imaginação. Muitas condenações à morte são autênticos assassinatos. Não tenho nenhum pejo em chamar assim as sentenças da inquisição, sempre que constato que os Inquisidores sabiam muito bem que os réus não tinham quaisquer convicções judaicas. E esses casos não são assim tão poucos casos como isso.

O poder da Inquisição O poder inquisitorial deveria ser o centro de todas as atenções. Liga-se intimamente à autoridade da Igreja Católica que foi realçada e reelaborada pelo Concílio de Trento, com a obrigatoriedade da frequência dos sacramentos, dos jejuns e abstinência em determinados dias do ano, e com a venda das bulas para a sua parcial dispensa. Juntem-se a isto os instrumentos de controle, como o rol das desobrigas e as funções de registo civil que a Igreja Católica se atribuiu, obrigando os párocos ao registo pormenorizado de baptismos, casamentos e óbitos, embora este acabasse afinal por ser um bom serviço público. Veja-se a pequena percentagem de faltas nos róis da desobriga dos séculos passados que se seguiram ao Concílio [1]. Esta apreciação pela positiva do poder inquisitorial deverá ligar-se também ao regime autoritário que vigorou até 1974 que, sendo embora não confessional, tinha uma ligação estreita com a estrutura da Igreja Católica. Não era por acaso que, nas nossas aldeias, quem não ia à Missa dominical, era considerado “comunista” e opositor do regime.

Como é que a Inquisição durou 285 anos Há duas dezenas de anos, um professor de Coimbra, José Veiga Torres, publicou um artigo [2] com uma tese ainda mais espectacular: o poder da Inquisição era sustentado, não tanto ou não só pelos Inquisidores, mas sobretudo pelos familiares e comissários da Inquisição, que através das suas funções, ganhavam grande ascendente na sociedade. Esses elementos eram fundamentais para avaliar a impureza de sangue dos potenciais réus [3].

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É por aí que se deve estudar o “êxito” da Inquisição, não pelos processos. Os processos seguem regras jurídicas pré-estabelecidas, uma jurisprudência sábia construída ao longo de séculos, não têm mais nada que se lhes diga. Esta tese surrealista merece muita atenção. Desde logo se reconhece que a Inquisição pouco tinha a ver com a religião, pois procurava-se sobretudo a “impureza” de sangue. Mas o Autor esquece que a tal “impureza” de sangue teria quando muito os defeitos da raça apenas para os cristãos novos inteiros, estando quase todos os outros cristãos novos com sangue misto já assimilados na sociedade portuguesa. Por outro lado, muito cedo, logo no princípio do séc. XVII, a Inquisição começou a ter dificuldade em determinar a porção de sangue judeu que tinha cada cristão novo. Começou então a dizer que os réus tinham parte de cristão novo, segundo “fama constante”. De toda a maneira, reconhece este Autor que a acção da Inquisição não era sobre hereges, mas sim a perseguição racial. Já não tem razão, quando quer dar importância à acção dos familiares e comissários do Santo Ofício. Os familiares não desempenhavam qualquer actividade importante. Limitavam-se a prender os Réus por ordem dos Inquisidores ou a conduzi-los de um lado para o outro. A missão mais importante que vi num processo, foi a do familiar Francisco Rodrigues, que foi mandado a Madrid prender Diogo Rebelo (Pr. n.º 3389) [4]. É verdade que os familiares ganhavam algum prestígio social com a sua nomeação, mas não o suficiente para justificar a existência da Inquisição. O mesmo se diga dos Comissários que não tinham poder de decisão. Interrogavam as testemunhas por ordem da Inquisição mas, como veremos, o processo em si pouca importância tinha na sorte do réu. Dizer, porém, que o estudo dos processos não tem importância é uma perfeita barbaridade. São os processos que nos revelam desde logo as perversidades que, apesar de tudo, existiam nos Regimentos e sobretudo, as perversidades que eram cometidas pelos Inquisidores contra ou à margem dos Regimentos. E, porque houve necessidade de passar a construir os processos sobre uma base jurídica, são os processos que nos revelam como isso foi feito, através da única defesa que foi deixada aos réus: confessar o que não tinham feito, denunciando a seguir conhecidos e parentes, que seriam presos a seguir. Só assim é que a Inquisição pôde durar 285 anos.

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Também António José Saraiva disse que não precisava de ver processos, achava que havia já documentação suficiente tirada dos processos para defender as suas ideias. Mas é por isso mesmo que elas são deficientes, como veremos a seguir. Uma boa parte dos nossos historiadores aceita que a Inquisição era de facto um Tribunal da Fé, que examinava as crenças dos cristãos novos e os condenava porque eles, apesar de terem sido baptizados, continuavam a acreditar na religião judaica.

A aliança da direita católica com os meios judaicos Esta ideia peregrina, da direita católica e sem qualquer base nos factos, é facilitada por uma aliança contranatura da mesma direita católica com os estudiosos judaicos e filo-judaicos que vêem nos processos a demonstração do cripto judaísmo dos cristãos novos e ficam contentes com isso. Um exemplo disso foram as posições de Israel Salvator Révah (1917-1973), que, na discussão com António José Saraiva, disse ter visto um milhar de processos. Achou ele que todos os cristãos novos eram potencialmente judeus. Isto não diz grande coisa, mas serviu-lhe para se opor às teses de António José Saraiva. Além disso, até pode ser verdade, todos os judeus são potencialmente judeus, na sua raça, mas deixam de o ser quando entram os casamentos mistos, como dizia o Sionista Ze’ev Jabotinsky (1880-1940) [5]. Benzion Nethanyahu, The origins of the Inquisition in fifteenth Century Spain. New York: Random House, 1st edition August 1995, 1384 pág. (na edição de 2001) Este autor foi pai do actual Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Nethanyahu; faleceu em 2012, com 102 anos. No seu livro acima mencionado, defendeu a tese de que os marranos (isto é, os judeus baptizados, os cristãos novos) queriam realmente integrar-se na sociedade ibérica e, por isso, aceitaram o baptismo de boa mente. A propaganda da Inquisição de que eles continuavam a ser judeus no seu interior é falsa, era um mero truque para esconder o ódio racial. Aliás, a limpeza de sangue nada tinha a ver com a religião, mas sim com a raça. As regras

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da limpeza de sangue destinavam-se a bloquear a integração na sociedade dos cristãos novos, negando-lhes a possibilidade de ocupar certos cargos ou ter certas profissões. As ideias do conceituado historiador motivaram algumas reacções negativas em Israel, tanto assim que lhe negaram a entrada como professor na Universidade Hebreia, em Israel.

A pureza de sangue O apuramento da “pureza de sangue” nos tempos da Inquisição era perfeitamente ridículo. Alexandre de Gusmão, Conselheiro da Corte de D. João V, embora tivesse alguma parte de cristão novo, escreveu este texto que na altura fez algum brado: «É necessário saber que cada um de nós na sua árvore de costado até quartos avós tem 32 quartos avós; cada hum destes tem outros 32 quartos avós também na sua árvore, que ficam sendo nossos oitavos avós, e somam neste grau 1024 avós; cada um destes tem da mesma sorte na sua arvore outros 32 quartos avós no seu quarto grau, e somam neste numero 31.768 avós. Cada hum destes tem no seu quarto grau outros 32 quartos avós, que para nós somam 1.016.566 avós. Cada hum destes no seu quarto grau tem outros 32 quartos avós, que nos vem a ficar em vigésimo grau, e que somam nele 32.530.432, que cada um de nós tem nesse grau, todas existentes ou ao menos contemporâneos. À vista do que, tomara me dissessem os senhores Puritanos se têm noticia que todos fossem familiares do Santo Ofício, e, porque os não havia, se tem certeza de que todos eles fossem puros ». Cálculo a respeito dos cristãos novos. Ms. [6]

As contas estão erradas, mas o princípio é verdadeiro. Se a Inquisição queria ter um mínimo de seriedade, então deveria ter averiguado sempre donde provinha o sangue de “judeu” dos réus e indicá-lo nos seus processos e não limitar-se a dizer que o réu tinha “fama” de ser cristão novo.

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No séc. XX, Hitler foi muito mais preciso nas suas regras para aferição de quem tinha sangue judaico: Uma pessoa com dois avós judeus, era considerada ou judeu ou um mestiço do 1.º grau. Uma pessoa com um só avô judeu era considerada um mestiço do 2.º grau. Um mestiço do 1.º grau não podia casar com um alemão puro nem com um mestiço do 2.º grau. Se casasse com um judeu, ficaria judeu para todos os efeitos. Era aconselhado ou a não se casar, ou a casar com outro mestiço do 1.º grau. Um mestiço do 2.º grau que casasse com um alemão puro, deixaria de ser considerado judeu. Em geral, os mestiços do 2.º grau não sofriam perseguição racial [7]

Isto é: quem tivesse um bisavô judeu ou mesmo mais do que um, era considerado ariano puro se, depois deles, não tivesse outros ascendentes judeus (inteiros). Reconhecia o Estado que ele estava assimilado e já não era perseguido. Dir-se-á: mas Hitler matava os judeus que não lhe interessavam para o trabalho escravo e a Inquisição apenas os queria converter. De facto, há alguns anos, corria, sobretudo em Itália, a ideia de que a Inquisição portuguesa tinha sido relativamente benigna, pois tinha morto relativamente poucos cristãos novos, não mais de uns dois ou três mil. Esta afirmação esquece o que acontecia aos outros penitenciados. Na melhor das hipóteses, saíam dos cárceres na miséria, desprovidos de quaisquer bens, obrigados a penitências e a cárcere em lugares diferentes das suas moradas, tendo de pedir esmola para sobreviver. Eram obrigados a trazer o hábito penitencial que os fazia objecto da chacota de todos. Mas normalmente saíam doentes, e até aleijados pelos tormentos, sem vontade de viver e de facto com a vida encurtada pela desgraça que lhes tinha acontecido. Mas a Inquisição dizia que os tinha “reconciliado” com a Fé!... Veja-se o exemplo dos netos do Doutor Pedro Nunes [8], que o avô tinha feito fidalgos e a quem deixara bens para uma boa vida, como foram atormentados: Matias, 8 anos preso em Coimbra e Pedro, 9 anos preso em Lisboa. Só é de admirar como não endoideceram no cárcere, como aconteceu a tantos outros.

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Embora o relaxe fosse a pena máxima, bem se pode dizer que os “reconciliados” sofriam muito mais do que eles. E estes nunca serão menos de uns 40 000!... Não! A Inquisição portuguesa não teve nada de benigna. Perguntar-se-á então por que é que a Inquisição continuou durante séculos a perseguir todos os que tinham ascendentes judeus e mesmo também os que disso só tinham a fama? A razão é muito simples: a Inquisição acabaria se não tivesse a quem prender. Por isso fomentou a acusação de toda e qualquer pessoa que tivesse a fama de ter um antepassado judeu.

A assimilação da população cristã nova Podemos aceitar que os judeus têm tendência a evitar a assimilação na restante população nos países em que vivem. Por isso, os judeus ortodoxos insistem em que os seus familiares casem apenas com judeus. Vejamos, porém, o que aconteceu no séc. XVI. Desde que se soube que seria instituída a Inquisição em Portugal, começaram os que queriam continuar a comportar-se como judeus a sair de Portugal, em grande número. Foram muitos para a Índia, pensando que a Inquisição nunca lá chegaria (Enganaram-se!). Partiram para a Flandres mas depois foram muitos para Itália, onde os governantes os acolheram de bom grado dando-lhes privilégios e liberdade para comerciarem, nomeadamente em Ferrara, Livorno e mesmo, Veneza. Alguns prosseguiram depois para Salónica e para a Turquia. Os que ficaram não tiveram outro remédio senão integrar-se na sociedade portuguesa. Tendo sido baptizados, tinham de cumprir todas as obrigações da Religião Católica: baptizavam os filhos, iam à Missa nos domingos e dias santos, confessavam-se e comungavam no período Pascal, tal e qual como os cristãos velhos. Note-se que, nos processos, os cristãos novos sabem sempre as orações do Catecismo: Pai Nosso, Avé Maria, Credo, Salvé Rainha, falhando só por vezes os Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja. Dir-se-á: mas no seu interior, continuavam judeus.

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Aqui, há que distinguir entre os costumes da raça, que não têm que ver com religião e actividades que podem significar uma fé diferente da católica. Nos éditos da Fé, os dois tipos de actividade são confundidos, mas, pouco a pouco, os Inquisidores deixaram de acusar pelos primeiros, porque não eram fundamento válido para a condenação. Desde logo, não comer carne de porco nem peixe sem escama não constitui heresia nenhuma. Só o seria se o cristão novo declarasse que não o fazia por respeito da lei de Moisés, que era a sua religião. Era perfeitamente livre de não gostar de carne de porco e de peixe sem escama. Guardar os sábados, ou vestir roupas melhores nesse dia, não pode também ser mais do que um costume judaico e só seria heresia se os cristãos novos dissessem que não trabalhavam por respeito à religião, à lei de Moisés. Rezar à noite olhando para as estrelas do céu, sendo embora um costume dos judeus, não é heresia nenhuma, ao contrário do que quis a Inquisição nalguns processos. Lavar a boca, cuspindo a água, a mesma coisa. Enfaixar os mortos em vez de os vestir seria também um costume da raça. E assim por diante. E fazer jejuns judaicos? Tenho de conceder que os jejuns judaicos seriam um sinal de convicções religiosas diferentes das da religião católica. E, de facto, a Inquisição aproveitou-os para condenar e relaxar muito cristão novo. Foram criadas celas especiais, com postigos para vigiar o preso, onde este ficava sozinho. Estavam dois guardas ou dois familiares a observar o preso pelos buracos de vigia 24 horas por dia e faziam depois o seu relatório de modo a identificar o jejum como judeu. Era tal a importância que davam a esta acusação que o Regimento de 1640 no Liv. III. Tit. IX, n..º III, diz: III. Havendo alguma testemunha deposto contra o réu, de culpa cometida no cárcere do Santo Oficio, se lhe fará publicação dela, tomando o tempo cinco ou seis meses atrás de sua prisão, dizendo-se que de tanto tempo a esta parte; e ter-se-á mui particular advertência, que na publicação se não declare circunstância alguma, por que o réu possa vir em conhecimento do lugar em que a culpa de que a testemunha depõe foi cometida.

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Manuel Fernandes Vila-Real apercebeu-se de que o tinham visto fazer jejuns judaicos e foi essa uma das razões que levaram à sua condenação à morte [9] Tudo leva a crer que os cristãos novos depressa abandonaram todas as práticas religiosas judaicas. Seria um suicídio se as fizessem. Os que viviam melhor tinham criados cristãos velhos que estariam prontos a denunciá-los se vissem alguma coisa de judeu na actuação deles. Aliás, deixaram de ter instrução religiosa judaica. Teriam alguma dificuldade em aceitar os mistérios da fé católica, mas isso também os católicos a tinham. Mas não teriam a imprudência de se manifestarem nesse sentido. Um bom exemplo é o processo n.º 14409, contra Ana de Milão. Furiosos por Rodrigo de Andrade, seu marido, ter convencido o Rei (da Ibéria unida) e o Papa a promulgarem um perdão para os cristãos novos, os Inquisidores não descansaram enquanto não a conseguiram prender dizendo aos confessores das criadas para lhes ordenar que fossem à Inquisição acusá-la de não comer nem carne de porco nem peixe sem escama, e de rezar à noite olhando as estrelas. O marido queixou-se ao Papa que pediu o processo para Lisboa, mas os Inquisidores recusaram entregá-lo e só o fizeram quando o perdão já estava despachado e a senhora libertada. Ana de Milão e seus filhos foram para o estrangeiro. Em Portugal, passado o perdão, recomeçaram as prisões. A Inquisição prendeu em 1606, a irmã, Guiomar Gomes, o marido desta, Henrique Dias Milão, sete filhos, um criado e uma escrava.

Evolução do processo da Inquisição No início da Inquisição, os processos são bastante sumários. Em geral, os réus não estão presos mais de dois anos. Não há ainda as sessões de Inventário e de Genealogia. Faz-se o libelo ou acusação, mas não a publicação da prova da justiça. Não se oferece ao réu um procurador para a sua defesa. E, sobretudo, não se dão provas precisas da heresia do réu, é mais uma “impressão” dos inquisidores de que o réu não acredita no dogma e nos mistérios da religião católica. Muitas vezes a acusação descreve ainda meros costumes judaicos como sejam não comer carne de porco ou peixe sem escama, ves-

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tir camisa lavada aos sábados, ou mesmo guardar os sábados, etc. Pouco a pouco, os Inquisidores começam a acusar de elementos mais concretos, como sejam declarações dos réus contra a religião católica, de crença na Lei de Moisés, rejeição dos sacramentos e outras. Sobretudo, começou a imperar o princípio fundamental do processo inquisitorial: não há defesa possível, o único processo de o réu salvar a vida é confessar e a seguir acusar a outros das mesmas faltas que lhe são imputadas. Esta alteração do processo deu-se ainda antes do final do séc. XVI. São um bom exemplo disso os processos de Tomás Nunes, médico em Vila do Conde (Processo n.º 1883) e de seu filho Lopes Nunes, médico em Ponte de Lima (Pr. n.º 2179). Quando iam num barco no Tejo com destino à Flandres, foram presos na Alfândega e entregues na Inquisição, junto com a mulher do primeiro e uma filha. Nada havia contra eles, mas as mulheres denunciaram a ambos. O pai foi relaxado e o filho, depois de muito atormentado, acabou por confessar ser crente na Lei de Moisés e escapou com vida, mas deverá ter saído depois do País. Esta modificação do processo, mais consentânea com uma base jurídica, constata-se sobretudo após a publicação e a entrada em vigor do Regimento de 1613. Os Inquisidores querem ter uma base jurídica com acusações declaradas pelas testemunhas e ao mesmo tempo a denúncia de outros réus com as mesmas “culpas”. O processo inquisitorial, um processo absurdo Ao mesmo tempo que o processo inquisitorial se torna mais lógico sob o aspecto jurídico, com a exigência de acusações que provam a heresia do réu, torna-se mais absurdo porque é coarctada toda e qualquer defesa. Ou seja, o réu é acusado de declarações que provariam ser herege, mas não lhe é permitido de modo nenhum provar que isso é falso, ou que as denúncias são falsas. A “contrariedade” ou a contestação por negação nunca eram aceites. Há casos muito flagrantes, como – o de Pedro Serrão de Castro [10], filho de António Serrão de Castro, que tinha uma vida religiosa muito intensa, mas não lhe valeu de nada, foi relaxado na mesma;

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– o das duas freiras de Beja, as duas irmãs, Joana das Chagas [11] e Maria da Vitória [12], que foram relaxadas, por não se conformarem com a rotina da Inquisição que era confessar e depois denunciar [13]. Até onde ia a crença religiosa judia? Pode-se perfeitamente admitir que em certas famílias judias que viviam mais isoladas da sociedade e preservavam a unidade familiar judaica, de tal modo que todos os casamentos eram celebrados com cristãos novos inteiros, tenha permanecido uma certa crença judaica, Esta crença, no entanto, manifestar-se-ia não tanto na adopção de ritos judaicos, mas mais na rejeição no interior dos dogmas e dos mistérios da religião católica. Há alguns exemplos disso nos processos, embora raros. Grácia da Veiga [14], casada com André Soares de Sequeira [15] confidenciou a Manuel Cordeiro, bufo da Inquisição, que ela se tinha declarado com várias pessoas como crente na Lei de Moisés, não imaginando que ele iria logo contar isso aos Inquisidores. Em geral, porém, os cristãos novos não eram suicidas, e não andavam a declarar a sua fé às claras, pelo contrário. Podemos também dizer que o casamento com cristãos velhos era um primeiro passo para a assimilação dos cristãos novos, sendo raros os casos em que o cônjuge cristão novo se encarregasse de transmitir as convicções da religião judaica aos seus filhos. Aliás, a leitura e o estudo dos processos da Inquisição permitem-nos identificar as localidades em que persistiu o isolamento da comunidade ou das famílias judaicas, com os matrimónios celebrados quase sistematicamente apenas entre cristãos novos. Ainda antes de meados do séc. XVII, começam a existir já grandes dúvidas sobre a condição do sangue de muitas famílias, isto é de saber se eram cristãs novas ou cristãs velhas. Isto era importante, porque muito ridiculamente, a denúncia falsa de heresia contra alguém que tivesse parte de cristão novo nunca constituía perjúrio, ao passo que se fosse cristão velho legítimo, o denunciante seria logo acusado de falsidade.

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Foi o que aconteceu a Diogo Rebelo [16], relaxado em 1632, que acusou de judaísmo a muitas dezenas de pessoas mas foi condenado como falsário por causa dos cristãos velhos que incluiu no rol. Os enganos de Diogo Rebelo foram devidos a dois motivos: a) por um lado, como estudante em Coimbra, não conhecia os ascendentes de muitos colegas vindos da Província, que, por qualquer motivo, ganhavam a falsa fama de terem sangue de cristãos novos; b) por outro, na terra dele, em Lamego, os cristãos novos estavam já muito assimilados na sociedade através de casamentos mistos durante mais de um século, havendo cada vez mais dúvidas em saber se havia algum cristão novo entre os seus ascendentes, o qual transformaria em cristãos novos todos os eus descendentes. É assim que no seu processo, a fls. 224, são elencadas seis pessoas de Lamego que não se sabe se são cristãs velhas ou cristãs novas. Aparecerem de facto algumas localidades onde a assimilação terá sido retardada por factores diversos. Assinale-se a Guarda, onde houve sem dúvida uma protecção do Inquisidor Geral Francisco de Castro aos cristãos novos. Falecido ele em 1 de Janeiro de 1653, a Inquisição atacou em força, relaxando muitos elementos das famílias Carvalho e Aires. Também no Alentejo se constatou até bastante tarde a permanência de convicções judaicas, pela dispersão dos cristãos novos em quintas isoladas. Quando Francisco de Sá e Mesquita [17] denunciou cerca de 100 pessoas (incluindo alguns cristãos velhos) em 1720, dois deles foram ainda fazer jejuns judaicos nos cárceres e acabaram relaxados, quando a maior parte dos acusados foi absolvida [18]. Mas todas estes casos eram excepções. Os cristãos novos tinham abandonado todos os seus costumes até porque tinham todo o interesse em não chamar a atenção sobre eles. E se algo ficara dos antigos costumes só mesmo nos casos de matrimónios de cristãos novos inteiros. Quanto aos outros, queriam era esquecer o sangue judeu que lhes diziam que tinham nas veias e muitos tentavam passar por cristãos velhos. Como dizia o sionista Ze’ev Jabotinsky, o casamento misto é um grande passo para a assimilação.

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NOTAS [1] [2]

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Conforme João Rocha Nunes, A reforma católica na diocese de Viseu (1552-1639), Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. José Veiga Torres, Da Repressão Religiosa para a Promoção Social – A Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil, in Revista Critica de Ciências Sociais, n.º 40, Outubro de 1994. “Esta demonstração (a Inquisição como promoção social dos seus elementos) implica a necessidade de uma teorização global do papel histórico desempenhado pela Inquisição na sociedade portuguesa, que passe pela especialização funcional adquirida pela burocracia inquisitorial na investigação linhagística, e do seu objectivo instrumental, que era o da diferenciação e exclusão social da “impureza de sangue”. – epígrafe do artigo acima citado. Salvo outra indicação, todos os processos mencionados são da Inquisição de Lisboa. Wikipedia. João Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses. Wikipedia – Mischling_Test. Processos n.ºs 8298 da Inquisição de Lisboa (Pedro Nunes Pereira) e 4724, da Inquisição de Coimbra (Matias Pereira de Sampaio). Processo n.º 7794. Processo n.º 9797. Processp n.º 345, da Inq. de Évora. Processo n.º 2493, da Inq. de Évora. Veja-se o depoimento do Jesuíta Paulo Mendes que assistiu a Irmã Maria da Vitória no cadafalso: “Na cidade de Évora se celebrou Auto da Fé em 26 de Novembro de 1675; nele foram condenadas à morte duas Religiosas irmãs, filhas dos mesmos pais, as quais teriam 50 anos de idade, pouco mais ou menos, e quase todos tinham vivido na Religião, onde entraram muito crianças; em uma delas, a qual, se bem me lembro, se chamava Maria da Vitória, e a mais moça na idade, adverti as coisas seguintes: Primeiramente, observei nela grande conformidade com a vontade de Deus, a quem repetidas vezes, oferecia a morte afrontosa, a que estava condenada, em satisfação de seus pecados; se bem que pelo crime de heresia não merecia tal castigo, pois estava nele inocente, como cristã que era, e religiosa, falava com Deus tão afectuosamente, e tanto de coração, ao parecer, que causava devoção e lástima em todos os que a ouviam. De véspera de Todos os Santos até àquele dia, disse que jejuara a pão e água, e que fazia outras penitências, porque o coração lhe dizia que havia de morrer naquele mês. A outras pessoas ouvi dizer que se açoitava todas as noites e que, enquanto estivera presa, rezava sempre o ofício divino.

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