Domingo (teatro, Edições Efémero, 1998), levado à cena em Coimbra em 2006
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O Parque dos Piqueniques (teatro, Edições Tema, 2001, também inserido na colectânea Dramaturgias Emergentes, Cotovia, 2001), leitura encenada no Porto, em 2002 Então, felicidades! (teatro, Edições Fluviais, 2001), levado à cena em Lisboa em 2001 e em São Paulo em 2003 Manual de Viagem para Amantes (contos, Edições Fluviais, 2006) Aldeia da Bruma (contos, Edições Partenon, 2017)
José Mora Ramos
Retrato de Manuel Couteiro
O Candidato (teatro), levado à cena em Cascais em 1997
A partir de 1980 ocorre em Portugal, e parafraseando Gil Vicente, um consistente assalto ao Paço, perpetrado por gerações sem quaisquer tipo de escrúpulos, muitas delas, curiosamente, provenientes do interior do país. Como escreveu Miguel Real em Nova Teoria do Mal, Homens “bons”, no Governo, na direcção de grandes empresas, de grandes instituições, praticam o mal, com o à-vontade de quem está praticando o bem. Retrato de Manuel Couteiro, escrito sem preocupações de rigor histórico, mesmo nas pequenas estórias que vão sendo contadas, embora inspirado em acontecimentos e pessoas reais, é o relato ficcionado da vida de um desses homens “bons”, desde a sua infância numa pequena aldeia beirã, até ao seu apogeu, outorga da comenda e posterior exílio forçado.
ou sobre a caminhada para a Comenda
Obras anteriores
José Mora Ramos
José Mora Ramos nasceu em Lisboa e cresceu em Lourenço Marques (hoje Maputo), tendo dividido grande parte da sua vida entre as duas cidades. Reside presentemente entre Évora, Ilha das Flores (Açores) e Ilha do Maio (Cabo Verde), com permanências regulares em Lisboa e Maputo. É investigador científico na área da engenharia de barragens, sendo autor ou coautor de mais de duas centenas trabalhos técnico-científicos. Paralelemente, é profissional de teatro, cinema e televisão, tendo colaborado de diversas formas (actor, dramaturgista, encenador, cenógrafo, produtor, autor) em cerca de setenta espectáculos de teatro e como actor em cerca de cinquenta filmes, séries televisivas e novelas.
Três de Abril & Os Malefícios do Vinho Tinto (teatro, Edições Licorne, 2019)
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FICHA TÉCNICA TÍTULO:
Retrato de Manuel Couteiro ou sobre a caminhada para a Comenda José Mora Ramos EDIÇÃO GRÁFICA: Edições Pártenon® (Chancela Sítio do Livro)
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AUTOR:
Retrato inacabado de Manuel Couteiro (José Mora Ramos – carvão e acrílico sobre tela) ARRANJO GRÁFICO DE CAPA: Ângela Espinha PAGINAÇÃO: Alda Teixeira 1.a edição, Lisboa Agosto, 2020
978-989-8845-33-7 468890/20
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ISBN:
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IMAGEM DE CAPA:
DEPÓSITO LEGAL:
© JOSÉ MORA RAMOS
Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.
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PUBLICAÇÃO:
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Prefรกcio de
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Augusto Baptista
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Quem quiser ter que comer trabalhe por aderência, haverá quanto quiser
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Gil Vicente – Auto da Festa,
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Real e ficção de braço dado
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Muito do real dos nossos dias sugere estar ancorado neste Retrato de Manuel Couteiro, tantas as pontas relacionais entre o enredo da obra e o quotidiano de atropelo, de vale tudo, que hoje entre nós campeia, anima conversas de café, inflama redes sociais, é notícia em jornais, rádio, televisões. Real-ficção assemelham-se a universos espelhares, um mesmo continente de personagens que elegem o poder, o dinheiro, a chantagem, como modo de vida; um mesmo espaço e tempo de protagonismos e comportamentos reprováveis, construídos de vilanias, torpezas. Crimes. Por serem de generalizado conhecimento, dispensável é a enunciação dos patamares do arrepio, das cotas de crueza que a transgressão alcança neste aqui e neste agora, mimese das torpezas do ficcionado Manuel Couteiro, figura que José Mora Ramos acolhe neste seu romance: prosa fluente, torrencial, viva, constante cruzamento de tempos e de espaços, a exigir cumplicidade do leitor, às tantas mergulhado numa teia de sobressaltos e guinadas, colado às andanças da personagem, às tantas largado em espaços, ambientes, reais ou imaginários, no presente, no passado. Em sonhos, delírios, pesadelos, jogos de cama, manigâncias, consciência em sobressalto, serpenteia Manuel Couteiro pelas páginas do romance, crescentemente ensarilhado em teias com horizonte funesto, marcadas pela ânsia de poder, por toda a sorte de ardis, falcatruas, vilanias. Sagitário, nascido numa descartável geografia interior, beirã, num contexto de penúria e atraso, o temos numa árdua e obstinada ascen-
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são, numa longa viagem da periferia para a centralidade (económica, social, geográfica). Do anonimato para a ribalta, percurso árduo, demorado, paciente. Lobo solitário, Manuel Couteiro sobe na vida com recurso a todo o tipo de expedientes, habilidades, compadrios, ilicitudes. Mata. Na formação repressiva, em Seminário, é modelado na invertebração de carácter, no castigo. Entre Evangelhos, orações, missais, penitências, pudores, a castração da identidade, o aprender a dobrar a cerviz, o pecado. O abuso. O trauma. Pós-Seminário, o salto para Coimbra, sempre pela mão tutelar do padrinho, Manuel cursa Direito nos tempos conturbados de Abril. Iniciado no jogo da Bolsa, abraça a vida política, experimenta-lhe o veneno, desvenda a fórmula do sucesso: delação, jogo sujo, o vale tudo. Impregna-se do horror à gente de Esquerda. Concluído o curso, sempre amparado pelo padrinho, cacique beirão, integra importante escritório de advocacia em Lisboa. Aí busca buracos nas leis, feitos “pelos mesmos que depois neles penetram, como ratos”. Casa, instala-se em bairro chique na Lapa, depois em Monte Estoril, faz carreira profissional e partidária. Não tarda, após passagem fugaz pela política autárquica no torrão natal, desempenha cargos governativos relevantes, torna-se Conselheiro de um ficcionado Grande Chefe, tece a rede de contactos nacionais e internacionais que lhe irão permitir concretizar o sonho: fundar um Banco. O seu Banco! Neste percurso, não olha a meios. No fio da navalha, embarca em sombrios negócios imobiliários, na especulação financeira, na gestão de fortunas, no uso abusivo de dinheiro alheio. Integra-se no submundo do tráfico internacional de armas, contrata homem de mão para o exercício de trabalho sujo, trilha os caminhos da chantagem, explora uma longa lista de protagonistas de actividades marginais que, unção do destino, lhe vem parar às mãos: “parecia que a corrupção, as ilicitudes, se espalhavam por todas as áreas de actividade.” Acossado, não hesita: estrangula no Brasil a sua cliente milionária que, burlada, se torna estorvo, lhe ameaça os planos: “o dinheiro
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sim, o poder do dinheiro sim, cada vez era mais claro para ele o que realmente lhe interessava, o dinheiro, as finanças, a colecção de arte, mulheres belíssimas, e em tudo isto não havia ética a respeitar.” Tanta torpeza acaba por ter consequências. Perseguido pela Justiça, sai do país, transfere o grosso da fortuna para uma conta offshore, instala-se em Cabo Verde, resort de luxo entretanto adquirido e, impune, aí vive como um príncipe. Esta trama, este enredo, o enredo do retrato de Manuel Couteiro, aqui brevemente sintetizado, é, no livro, um detalhado percurso, um enleio, prosa demorada, mas não monótona, que a surpresa se esconde e salta, inesperada, em toda a obra. Com um remate fulgurante, quando tudo parecia imerso na doce mansidão da morna: “Estes portugueses pensam que ainda vivemos o tempo colonial!” Retrato de Manuel Couteiro é um livro para gente adulta – como o é ou o requer a vida nestes tempos – que abre imperativos desafios a outras artes: o cinema, a televisão, o teatro. Alerto para a construção e detalhe dos ambientes em que decorre a acção, as acções, no jogo cru ou onírico de muitos quadros do romance, o sexo como arma nesta caminhada narrativa e na vida do protagonista: um dia-a-dia de bordel, meta amantes, parceiras de ocasião, a mulher. Mulher que protagoniza uma noite de excepção em toda a obra: voluptuosa, terna, em que se conjugam os prazeres da carne, a degustação de vinho velho e o travo antigo da poesia de Omar Khayyam: Não vamos falar agora, dá-me vinho. Nesta noite a tua boca é a mais linda rosa, e me basta. Retrato de Manuel Couteiro é também um entrecruzar de viagens. Viagem pelo mundo da fantasia, da comida, da bebida, da vida faustosa, dos negócios, da ambição, do dinheiro, da sede de poder, da baixa politica. E do sexo, explícito, cru: muitas cenas com bolinha, romance transposto para o pequeno ecrã. Viagem pelas estilhaçadas relações familiares de Manuel: o pai falecido, a mãe, proprietária de uma pequena venda na terra natal, o padrinho, os irmãos ausentes – um rapaz, uma rapariga – , a mulher, de quem se divorcia, a filha a estudar no estrangeiro.
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Viagem por tempos, paisagens, espaços, indumentárias, vinhos (entre todos: o Dão!), pudores, paixões, História, histórias. Por uma teia complexa de temas e situações. E por regiões, cidades, sítios vários de Portugal, e por países (Cabo Verde – Ilha da Boavista e Ilha de Santiago – Suíça, Marrocos, Itália, Brasil), aflorando em chão pátrio ou além fronteiras documentadas telas de pincelada fina. Viagem ancorada no real, no sonho, no imaginário, no fantástico, com piratas, princesas. Recorrentes pesadelos: El-Basir, marroquino traficante de armas, o Seminário, o Reitor: “O menino Manuel sabe porque é que o mandei chamar, sabe menino Manuel, sabe menino Manuel”. Com este romance José Mora Ramos dá um inestimável contributo à literatura empenhada – social, política e civicamente. E se há quem reclame uma literatura virada para a aspereza dos nossos dias e desafie os escritores a deterem-se neste real, Retrato de Manuel Couteiro responde ao repto: obra importante no plural caminho de José Mora Ramos, criador que cruza a escrita, o teatro (actor, encenador, dramaturgo, produtor), a televisão, o cinema, a actividade científica, com reconhecido mérito e competência em campos tão diversos. Aqui chegado, a sensação de tudo ter ficado por dizer. Mais do que em desabono destas linhas, tal deve ser atribuído em favor do romance, da sua pluralidade, das múltiplas abordagens que a obra consente e abre. Depois, os exercícios preambulares têm muito de jogo da vermelhinha: desvendam, ocultam. Obrigam a rodeios, a manter penumbrosos silêncios, a não ir além do entreabrir de cortinas, para não quebrar o encanto da descoberta e estimular o essencial, o mais importante: a aventura de ler.
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ͭ. Santos, Brasil, junho de ͮͬͬͬ
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Seis da tarde, hora de ponta. O pequeno Toyota Yaris segue no meio do intenso trânsito ao longo da Avenida Presidente Wilson, a grande marginal de Santos, a praia e o mar a adivinharem-se para lá do frondoso jardim amuralhado de palmeiras, através das quais penetram raios do sol já baixo, as sombras das árvores e das suas folhas de longos dedos pontiagudos a atravessarem toda a avenida. Dependurada no suporte do espelho retrovisor uma figurinha de Santo António de Lisboa balança ao sabor dos movimentos do carro. Mãos cerradas no volante, tenso, o advogado Manuel Couteiro conduz, algo intimidado pela intensidade do trânsito, tendo ao lado a sua riquíssima cliente Rosália Cristas. O silêncio incómodo que de há largos minutos se instalara entre ambos é finalmente rompido, – Lembrou-se de trazer um Santo António, ou estava no carro quando o alugou? – Anda sempre comigo, conforta-me. – Falou-me disso na primeira vez que nos vimos. – Trouxe-lhe uma pequena lembrança, estive em Marrocos, dê-me licença, Manuel Couteiro estende o braço e retira do porta luvas um ramo de flores silvestres que lhe tinham oferecido aquando do aluguer do carro e uma pequena caixa, embrulhada em papel dourado, – É um hábito da empresa, uma forma de desejar felicidades e boa condução aos clientes, aqui tem. – Muito obrigada.
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Rosália Cristas desfaz de imediato o embrulho, gestos meticulosos respeitando papel e caixa, – É um Cristo belíssimo, muito obrigada, mas marfim! – Em Marrocos não é ilegal, desde que sejam peças pequenas. De novo o silêncio, enquanto Rosália Cristas coloca as flores no banco de trás, volta a pôr a imagem na caixa e refaz o embrulho, que guarda na carteira que tem no colo, – Está com frio, Manuel? – Como? – Se está com frio? Fim de tarde luminoso, ar fresco e limpo embora húmido, como por vezes acontece em Santos naquela altura do ano, início da estação seca, – Não. – Então porquê as luvas? – É o volante que está húmido, é para as mãos não escorregarem, mas estas luvas são finas, não fazem calor e não está um fim de tarde quente, acho mesmo que até está um pouco fresco para a altura do ano. – Tem a testa suada, está nervoso? – Um pouco, por causa deste trânsito. – Está um fim de tarde muito bonito. – Está muita humidade. – Você já aqui tinha estado, Manuel? – Estive muitas vezes no Brasil, mas aqui em Santos é a primeira vez. – Um litoral lindíssimo. – Seguimos ao longo da marginal, passamos a ponte e vamos até Guarujá, acha bem? Não chega a dez quilómetros, procuramos uma esplanada ou damos um passeio a pé pelo topo da falésia, li que há um passadiço e que do alto a vista sobre a baía é magnífica. – Como você quiser, Manuel, não tenho pressa, a minha amiga foi ao Rio de Janeiro e só volta depois de amanhã, não tenho ninguém à minha espera.
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– Óptimo. – Podíamos seguir só até ao fim da marginal, até à praia da Aparecida, há lá uma esplanada muito agradável, estive lá anteontem com a minha amiga, estava como hoje um fim de tarde muito bonito. – Muito bem. – Já ouviu falar da igreja? – Qual igreja? – A igreja da Aparecida. – Não. – Fica por detrás da praia. – Praia da Aparecida? – Sim. – Muito bem, como quiser. – Fica entre os canais e , ensinou-me a minha amiga, anteontem levou-me à Igreja, o Manuel deveria ir lá um dia destes assistir à missa, as pessoas aqui são muito devotas à Senhora da Aparecida, sabe que é a padroeira do Brasil? – Sei, sim. Os canais de Santos, um dos ex-líbris da cidade, mandados construir há mais de cem anos para drenar os pântanos da planície santista e que estruturaram o quadriculado regular e ordenado da cidade, – A igreja é bonita. – Se tivesse tempo iria, gostaria muito, mas tenho que regressar a Lisboa já amanhã de manhã, só se agora a igreja ainda estiver aberta. – Regressa hoje a São Paulo? – Sim. – Durante a noite? – É um pulinho, cerca de uma hora. O silêncio voltou, difícil começar a inevitável conversa, – Quero agradecer-lhe ter vindo até aqui para falarmos. – Não tem que agradecer, dona Rosália, é apenas a minha obrigação, vir até aqui para lhe dar conta das diligências que tentei efectuar. Pareceu-me, dada a importância dos assuntos, que seria mais adequado falarmos directamente, sem ser pelo telefone e já, sem esperar
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pelo seu regresso a Lisboa, uma vez que ainda se demora por cá, ou não é assim? – Mais uns quinze dias, três semanas talvez. – Pois é. – Sabe qual é a divisa desta cidade? – Não. – Patriam Charitatem et Libertatem ou, na versão mais moderna, Terra da Caridade e da Liberdade. – Divisa curiosa, associando a caridade à liberdade. Novo silêncio, este prolongado, – Então o que me tem a dizer sobre os meus assuntos, já desfez os equívocos, vou chamar-lhes assim, para usar um eufemismo, ou, se preferir, um termo simpático, os equívocos da minha conta bancária em Zurique? – Na realidade ainda não consegui, embora o tenha tentado, era uma das coisas que lhe queria dizer de viva voz. – Como assim? – Já lhe explico, quando pararmos, no meio deste trânsito tenho alguma dificuldade em... – Disse-lhe que quero o assunto resolvido rapidamente, caso contrário mando cancelar a conta e quero saber tudo dessa outra conta no estrangeiro, em Cabo Verde, foi o que me disse, não foi? – Julgo que não lhe disse onde estava sediada essa outra conta, como soube? – Bom, se não chegou a dizer-mo então soube quando telefonei para o banco de Zurique, eles informaram-me. – Telefonou e eles informaram-na? – Claro. – São informações confidenciais. – Telefonei através do meu banco em Lisboa. Novo silêncio, os dedos de Manuel, anéis de uma serpente a estrangular a presa, a apertarem o volante, o rosto a crispar-se, a decisão a definir-se, – Será aquela a igreja?
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– É sim, Manuel. – Poderemos entrar? Já que aqui estamos gostaria de a ver por dentro, se ainda estiver aberta. – São cerca de seis horas, talvez ainda esteja aberta. Manuel Couteiro pára o carro em frente da modesta igreja, três portas, três janelas por cima das três portas, três cruzes no topo da fachada lisa, portas e janelas debruadas a azul, espanta-espíritos pensou, como nas casas alentejanas. Sai do carro, sobe os três degraus do patamar de entrada, empurra a porta central que se encontrava apenas encostada, igreja quase vazia, apenas algumas mulheres ajoelhadas nas filas da frente, avança até meio, silencio, olha em todas as direcções, volta ao carro, – Está aberta dona Rosália, se não se importa entramos, eu gostaria de fazer as minhas orações já que desde ontem, com a viagem, não tive oportunidade, depois sentamo-nos na esplanada para falarmos calmamente. – Acho muito bem, Manuel. – Venha comigo. – Claro, não vou ficar aqui sozinha. Entram os dois na igreja, ele avança uns passos, ajoelha-se e apercebe-se de que a mulher se ajoelha também, atrás dele. Passado um momento levanta-se, – Já rezou, Manuel? – Não, dona Rosália, vou à pia da água benta. – Ah! Manuel Couteiro dirige-se à pia da água benta que vira à entrada da igreja, aí chegado tira a luva da mão direita, molha a ponta dos dedos, benze-se sentindo com agrado a água fresca na testa húmida, volta a calçar a luva, aproxima-se de Rosália Cristas, por detrás, sem que o seu andar provoque o mínimo ruído, olha à volta, tira dissimuladamente do bolso do casaco, envolvido no lenço branco com que limpa a testa, um fino cabo de aço plastificado com pegas nas extremidades, passa-o à volta do pescoço da mulher ajoelhada, gesto rápido, preciso, aperta com força até sentir que toda a energia se desprende daquele
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corpo gasto e frágil, apenas um leve estertor, envelhecera muito nos últimos dez anos, Manuel lembrava-se nitidamente da primeira vez que a vira, através da fresta da porta entreaberta da sala de espera do seu escritório, era então uma mulher que com os seus anos retinha os traços essenciais da beldade que certamente fora. De seguida, endireitou o corpo inerte da mulher e colocou-o na posição mais natural que conseguiu, de forma a parecer que estava profundamente absorta na oração, a testa entre as mãos cerradas apoiadas na tábua superior do genuflexório, o terço dependurado dos dedos da mão esquerda. Sem tirar as luvas, faz uma festa nos nós dos dedos de ambas as mãos de Rosália Cristas, enrugados da idade avançada, enrola cuidadosamente o cabo de aço, que volta a envolver no lenço e a meter no mesmo bolso do casaco de onde o tirara, abre a carteira da mulher, retira o telemóvel e o embrulho com o pequeno Cristo que guarda no outro bolso, bem como todo o dinheiro, alguns milhares de reais e, displicente, sem ruído, espalha o resto do conteúdo pelo piso. Sai, volta ao carro, guia até um local de inversão de marcha e, nervoso, inicia o regresso a São Paulo, pensando parar um pouco na fortaleza de Itaipu. A meio da marginal, porém, viu um grande camião de recolha do lixo na sua labuta, ultrapassou-o, umas dezenas de metros adiante parou, deitou luvas, lenço, cabo de aço, telemóvel e estatueta de Santo António num caixote de lixo, voltou ao carro e esperou até ver pelo espelho retrovisor o conteúdo do caixote ser vertido para dentro do camião e de imediato triturado, o riso interior que de há muito lhe era próprio a aparecer, a tensão a esvair-se. No fim da marginal, nova paragem, em Praia Grande, à frente do Forte de Itaipu, acessível ao público desde a década de . Sai do carro, na mão o ramo de flores que retirara do banco de trás e antes de entrar na fortaleza abre o pequeno guia turístico que comprara numa bomba de gasolina na autoestrada São Paulo-Santos. Forte de Itaipu, começado a construir em num pequeno morro na barra de São Vicente, acesso ao Porto de Santos, para controlar o
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movimento de embarcações. Lê com interesse uma estória curiosa e divertida: “Durante a Revolução Constitucionalista de , a guarnição do forte alinha ao lado dos que lutavam contra o governo do Presidente Getúlio Vargas; na iminência de ser bombardeada por uma esquadrilha de hidroaviões governamentais, a guarnição substitui os canhões Schneider de fabrico alemão, por réplicas de madeira, a verdadeira artilharia escondida nos vagões do Fantasma da Morte, um comboio adaptado, utilizado nos combates em acções de surpresa”, – Fantasma da morte, e a expressão ecoa na sua cabeça, entra, atravessa a praça de armas da fortaleza, onde sobressaem os enormes canhões de fabrico americano, que em substituíram os anteriores e que nunca foram utilizados a não ser em algumas cerimónias e exercícios militares de fogo real, e ao aproximar-se da amurada parece-lhe ver, muito ao longe, caminhando sobre as águas, um vulto vestido com uma túnica branca. Estaca, o suor a voltar a inundar-lhe a testa, os olhos a fecharem-se-lhe com força e a abrirem-se-lhe de novo, o vulto a desaparecer. Recupera a calma, aproxima-se da amurada, atira o ramo de flores ao mar, – Descanse em paz, minha amiga, para onde quer que vá guarde bem os nossos segredos. Fica largos minutos a olhar, umas dezenas de metros abaixo, o ramo a afastar-se levado pela corrente e depois a afundar-se, enquanto a espuma das ondas galga a protecção de enrocamento da base do morro e lava as pedras negras de basalto. Quando o sol se põe volta ao carro, guia até São Paulo e passado pouco mais de uma hora entra num hotel próximo do aeroporto de Congonhas, onde, meio-sorriso estampado no rosto, reservara quarto sob o nome de Carlos Triste. Na manhã seguinte, muito cedo, após um duche rápido, desceu à recepção, pediu a conta, saiu do hotel, comprou vários jornais no primeiro quiosque que encontrou, regressou ao hotel e, enquanto tomava o pequeno almoço, a papaia era óptima, o sumo de goiaba
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excelente, folheou-os rapidamente. Na Folha de São Paulo, última página, com algum destaque, encontrou a notícia que procurava, Milionária portuguesa assaltada e assassinada em Santos, enquanto rezava na Igreja da Aparecida. Segundo as primeiras impressões da polícia o móbil do crime terá sido o roubo. O assassino terá asfixiado a vítima com um cabo de aço plastificado. Leu até ao fim a notícia, que descrevia a origem da fortuna de Rosália Cristas, o império industrial do falecido marido, construído à americana, a pulso, a partir de um simples trabalho de marçano numa empresa de província, no sul de Portugal. Volta ao quarto para arrumar as poucas coisas que trouxera, apenas bagagem de mão na qual guarda o embrulho com o pequeno Cristo de marfim, depois, na recepção, paga a conta, pede um táxi que o leva ao aeroporto.
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Apanha o avião para Lisboa.
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ͮ. Rabat, Marrocos, maio de ͮͬͬͬ
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Fome. Uma fome de inteiriçar corpos. E dor. Estômago, costas, cabeça a doer, dor aguda, penetrante, a atravessar os tecidos até aos ossos, centenas de pequenas facas aguçadas, cravadas fundo. E medo. Olhar fixo, confusão mental, nervosismo, dificuldade de falar, apatia, medo, medo, medo, cansaço, um cansaço de meses de angústia, de noites mal dormidas, palpitações, coração aos saltos, a bater, a bater, a querer saltar do peito. Suores frios, tremores, desmaios, desmaiar não, aqui não, à frente do senhor Padre Reitor não, mandou-me chamar, aqui estou senhor Reitor, olhe para mim, olhe para mim por favor, tenho fome, dói-me tudo, num grito, – Olhe para mim! Choro. – Desculpe, desculpe-me, por favor, o grito saiu-me sem querer, olhe para mim, por favor. Olhos abertos! O mesmo pesadelo, merda, sempre o mesmo pesadelo, há quase trinta anos o mesmo pesadelo, o Reitor, a fome, o castigo da fome, a tortura da fome, não comer durante dois dias, de manhã à noite, a punição do pecado da gula, dores de estômago primeiro, depois no corpo todo,
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– O menino Manuel sabe porque aqui está, porque o mandei chamar? – Sei, sim, senhor Padre Reitor, não sei, não, senhor Padre Reitor. – Em que ficamos, sabe ou não sabe? Calo-me, – Vai ser castigado menino Manuel, vou castigá-lo, dois dias seguidos sem comer, pecado da gula, quando chegou de férias devia ter entregado de imediato os figos que trazia no saco, aqui, neste Seminário, nenhum menino guarda comida debaixo da cama, devia ter vergonha, pode sair. Um último olhar atravessado antes de deixar o gabinete. O Reitor voltara ao livro, já me concedera os seus trinta segundos, muito baixo, sentado atrás da secretária, viam-se-lhe apenas a cabeça redonda, de que sobressaía a careca húmida, gordurosa, e os olhos pequeninos, matreiros, sem cor, olhos de sapo, agigantados pelas lentes grossas dos óculos de armação de massa espessa, castanha clara. Saio. Paro. Fome. E os figos quem os comeria? O Reitor?
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Olhos abertos a percorrer o quarto do hotel, a luz do amanhecer a penetrar pelos extremos da cortina fechada. Que horas serão? O despertador do telemóvel ainda não tocou. Sete da manhã. É cedo. Muito cedo. Merda de pesadelo, fiquei todo suado, podia ter dormido mais duas horas, não tenho fome, a memória da fome apenas, não tenho dores, a memória das dores apenas. O jantar de ontem, bem bom, do castigo da fome, da punição do pecado da gula, ficou-me esta vontade de comer, este gosto de comer, este prazer na boa comida, no conhecimento dos condimentos, dos temperos, das receitas, da maneira de as concretizar, quase um Chefe, “presque un Chef”, dit-on en français. Ensopado de borrego, ervas aromáticas, cozinha marroquina, deve ter sido daqui que a receita viajou para o Alentejo, quem sabe se logo em quando as tropas do general Tárique cruzaram o estreito
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de Gibraltar, penetraram na Península Ibérica e venceram Rodrigo, o último rei dos Visigodos da Hispânia, na batalha de Guadalete. Excelente o vinho. Não bebem, dizem eles, muçulmano não bebe nada alcoólico, a produção do vinho é toda para exportação. Não acredito, não bebem em público, em casa bebem certamente, irresistível aquele tinto aveludado das encostas do Atlas, vou encomendar duas caixas, peço aqui no hotel que mas enviem para casa. Depois da longa caminhada pelas lojas de artesanato no exterior da muralha de Rabat voltara ao quarto do hotel, para um duche demorado, a água tépida a repor-lhe as forças, ainda cheiro aos sais de banho apesar dos suores frios do pesadelo, e jantara calmamente no restaurante do terraço do hotel, maio cálido, a convidar a comer ao ar livre. Calcorreara a muralha, não fora logo até à loja onde sabia que devia ir, deambulara, de loja em loja, que prazer, e regressara depois ao hotel em passadas largas. Azahara Riad Hotel, mistura de clássico e moderno no centro da Medina de Rabat, pátios interiores esconsos, de arcos árabes tradicionais, mil ladrilhos multicolores, recantos a convidar ao recolhimento, outra que me ficou, esta do recolhimento, memória da capela do Seminário, gosto do hotel, foi-me indicado, instalei-me nele da última vez que vim a Rabat, voltei a instalar-me agora, – Temos muito prazer em voltar a recebê-lo, senhor Dr. Couteiro, um português muito aceitável, recebem bem estes marroquinos. Levanta-se, entreabre a cortina da janela, espreita. Salé. Do lado de lá do rio a bela Salé, sua conhecida da Casa da Livraria, já trazia do Seminário este gosto pela História, pelos grandes factos, pelos ínfimos pormenores, ampliou-o depois naquela espantosa biblioteca setecentista. . República de Bu Regregue, República dos Piratas de Bu Regregue, Rabat e Salé separadas pelo rio, o Bu Regregue, mas unidas na República, a fazer a vida negra aos navios comerciais das monar-
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