Sótão, Rés-do-Chão e outras Vidas

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Sótão, Rés-do-Chão e Outras Vidas

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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

Edições Partenon® TÍTULO: Sótão, Rés-do-Chão e Outras Vidas AUTOR: Alberto Branquinho CAPA:

Ângela Espinha PAGINAÇÃO: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, Outubro 2018 ISBN:

978-989-8845-25-2 445732/18

DEPÓSITO LEGAL:

© Alberto Branquinho

PUBLICAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt

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Sótão, Rés-do-Chão e Outras Vidas Alberto Branquinho

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OBRAS DO AUTOR

Prosa: – – – – – –

CAMBANÇA – Guiné/morte e vida em maré baixa (contos) CONTOS COM ENCONTROS (contos) PARIÇÕES & APARIÇÕES (panfletos & divertimentos) CAMBANÇA FINAL – Guiné/guerra colonial (contos) FILHOS D’OUTREM OU D’ALGURES (contos) POR SÉCULO E MEIO (romance)

Poesia: – SOBRE VIVÊNCIAS (identificado como Alberto Abrunhosa) – QUASOUTONO?!

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Ir Para o Sótão

– Manuela! Faz-me um favor. Diz à Adelaide que mude para outro lado as coisas que estão nestes armários. – Porquê? E onde é que se vai por o que lá está? – Vou precisar de espaço para arrumar umas papeladas minhas. E alguns livros. Que tire, também, da estante aquelas revistas. – Mas que te deu? Que papeladas? – Vou precisar de espaço para arrumar umas coisas e alguns livros. Não são muitos, mas são bastantes. Preciso desse espaço. – Mas porquê? De onde vais trazer isso tudo? – Depois te digo, querida. Depois te digo. E tenho que pôr lá na sala, também, aquela mesinha que era do meu pai e a cadeira. – Agora deu-te para trabalhar em casa? – Talvez. Por enquanto. – Tens andado esquisito. O que se passa? – Depois te digo. – Não dizes depois. Dizes já e, se não disseres, não digo à Adelaide para fazer coisa nenhuma.

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– Na próxima semana vão trazer umas caixas de cartão com tralha minha. – De onde? – Da empresa. De onde havia de ser? – Mas porquê? – Depois te digo. – Não dizes depois, dizes já! – Está bem. Mas promete que fica entre nós os dois. – Que se passa, Rui? Já estou a ficar preocupada. – Chamaram-me à administração e disseram-me que tenho que sair. – Sair? Sair? Que aconteceu, Rui? – Não aconteceu nada. Querem gente mais nova. – Ah! E tu tens que sair… – Não. Não é sair, sair. Querem que vá para… a… reforma. Não concordam que eu fique mais uns anos. – Ai filho! Já estava a ficar preocupada. Acho muito bem. Já tens idade para descansar. – Pois. Estou velho… – Velho? Eu não disse isso. – Está bem. A minha papelada está a ser empacotada para vir para aqui. Já percebeste? – Ai filho, que boa notícia! Vou já falar com a Adelaide. – Mas é para ficar só entre nós. – Está bem, está bem. Não percebo porquê, mas está bem. ✳

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– Meus senhores, vamos passar a ter aqui, nos nossos almocinhos, mais um elemento. – Quem? – O engenheiro Ávila. – O Ávila do Planeamento? – Sim. Do Planeamento ou da… Estratégia… – Pois, do Planeamento e Estratégia… ou lá o que é. – Ou do Planeamento-Estratégico ou Estratégia do Planeamento…Não acredito que, instalado na sua importância, venha alguma vez aqui, às nossas comedorias. – Não digo que venha já na primeira ou na segunda semana, mas vem. Ele sabe que nos encontramos aqui. – Também acho que não virá. E, por mim, será melhor que não venha. Com aquela mania que está a deitar pérolas a porcos… – Isso pode ser só nos primeiros tempos. – Há pouco estava o Figueiras a dizer que ele lhe telefonou a convidá-lo para fazerem consultadoria. – Ora, aí está! Está o mercado ansioso, à espera que o sr. eng. Ávila, consultor de alto gabarito, abra as portas para salvar as empresas nacionais…Nacionais e estrangeiras! – Tu és um má-língua. Quem te disse que ele, por exemplo, acompanhado de um bom financeiro ou economista e de um advogado experiente não poderiam ter boa clientela? – Oferece-te. Fala com ele. – Má-língua, derrotista, é o que tu és. Derrotista, terra queimada!

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– Os tempos estão bons para consultadorias. O que as empresas precisam é de financiamento, não de aconselhamento. Alguém que lhes abra as portas da banca. A não ser que ele tenha esse tipo de contactos. – Talvez, não sei. Fazer consultadoria é muita coisa… Cabe lá muita coisa, como sabes. – Ora, pois. Estou mesmo a ver. – Mete na cabeça que, daqui a um mês, ele aparece por aqui. Para tentar impor as suas ideias, ter a última opinião. – Não se chateiem. Deixem lá o homem. Se não aparecer, não faz cá falta. Se vier, logo se vê. A mim não vai impor coisa nenhuma. Não se chateiem com isso. – Ninguém está a chatear-se, pá! Mas se ele vier, tentando falar só ele, porque só ele sabe tudo, não venho cá mais. – Não vem, não vem. Vai estar muito ocupado como consultor. Ou então vem, de vez em quando, para nos dizer que está com muito trabalho. – Não me parece que o Figueiras esteja muito disposto a aturá-lo. – Talvez venha cá para falar com ele se não conseguir agarrá-lo noutro lugar. – Veremos. – Pois. Veremos. Ninguém vai declará-lo persona non grata, assim sem mais. Vamos dar-lhe dar uma oportunidade. – Veremos, então. Se aparecer. ✳

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– Bom dia, D. Maria da Luz. – Bom dia, sr. eng.. – Ora, chegue aqui, por favor. Então como vão as arrumações? – Sr. eng., antes de mais, queria dizer-lhe que telefonou o sr. eng. Atalaia, da administração. – Está bem. Ele que espere. Já lá vamos. Quando acha que o Sr. Meireles pode começar a levar as caixas para minha casa? – Amanhã à tarde, sr. eng.. Talvez vá tudo de uma vez. Se não for, leva o restante no dia seguinte. – Muito bem. E o meu substituto já apareceu? – Não, sr. eng., mas pela conversa que tive com a secretária do sr. eng. Atalaia ou está no gabinete dele ou deve estar a chegar. – Muito bem. Que espere então, que espere. Estou a ver que a livralhada já foi arrumada. – Sim. Só preciso que o sr. eng. veja se os dossiers que coloquei em cima da mesa de reuniões são para ir ou para ficar. – Ó D. Maria da Luz! Só fica o que for do serviço, o que for cá da casa. Tudo o resto vai. – Pois. Mas fiquei com dúvidas. Parece ser documentação de contratos antigos. E alguns mais novos. – Está bem, está bem. Vou ver isso, embora me comece já a faltar a paciência… Bem, ligue lá ao eng. Atalaia. … – Está em linha. Posso passar? – Sim… Alô, alô! Sim. Como está, sr. eng.? Eu vou indo, vou indo e vindo. Por enquanto… não falta muito para ir. 13

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… – Ficar três meses?! Ó eng. Atalaia, então fico ou saio? Quando entrei nesta casa e comecei funções, há muitos anos, não sei quantos, ninguém me arranjou um preceptor ou uma dama de companhia. … – Não sei se tenho… se posso. … – Não, não, eng.. Dentro de poucos dias o gabinete está livre para se instalar e… … – Não, não. A empresa, pois. A empresa… Aliás, como a minha secretária, segundo espero, continuará em funções aqui, porque é uma excelente colaboradora… será um bom cicerone para quem venha de fora e não conhece os cantos da casa. … – Sim, sim. Passarei por aqui todos os dias, mas só até ao fim do mês. Ficará tudo arrumado. Terá óptimos colaboradores que eu fui formando e informando ao longo de todos estes anos. – Muito bem. Boas tardes, sr. eng.. – Pode entrar, Maria da Luz. Pode entrar. Acabo de dizer ao eng. Atalaia que espero que a senhora permaneça nestas funções, pois irá ser muito útil ao meu substituto. – Obrigado, sr. eng.. Ele é jovem? – Olhe, não sei nem quero saber.

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– Sr. eng., está aqui a srª. assistente social da empresa que quer saber se o sr. eng. deseja que os serviços dela tratem da papelada para o pedido da reforma. Posso mandá-la entrar? – Hom’essa! Assistente social! Reforma?! Só me faltava esta! Ainda não estou morto, senhora, para me mandarem o cangalheiro! Diga-lhe que passe bem, que eu saio, sairei, mas saio pelo meu pé. ✳

– Vamos lá ver, Figueiras. Avançamos ou não com o projecto? – Já te disse que não posso, porque vai exigir uma disponibilidade total. – Não concordo. – É a tua opinião. São as ausências, deslocações, os dias completamente ocupados, reuniões noite dentro. Não tenho disponibilidade para isso. – Eu sei que te dedicas a estudos. Estudas a situação económica do país, a economia em geral, tenho lido tudo aquilo que publicas. Estás actualizado e não é por falta de tempo… – Estou actualizado, publico, etc., mas tudo isso pode ser feito quando há tempo e disposição, sem sujeição a horários e à vontade dos outros. É quando posso e… quero. É importante que entendas isso: trabalho quando posso. A situação da minha mulher exige muito acompanhamento. – A família… sempre a família. – Sorte a tua. Não teres problemas desses em casa. 15

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– A minha ideia é agregar mais alguém, mas não para entrar na sociedade. Será conforme as solicitações que surgirem. Procurar a colaboração pontual deste ou daquele, conforme os projectos que surjam. Já tenho instalações. Fui visitá-las com a imobiliária. O que é preciso é coisa pouca: instalar comunicações e algum mobiliário. Não é preciso fazer obras. De início, os custos fixos mensais mais significativos são a renda e uma secretária, com contrato a prazo. A renda, se tu quiseres, pode não existir. Compra-se. As instalações… – Ávila, Ávila, uma vez mais, tu estás a pensar que toda a gente tem a tuas possibilidades. Não me obrigues a falar da minha vida. Não, pronto! Não! Agradeço a tua confiança, mas não. Não posso. ✳

– Ai, querido! Ainda bem que chegas. Acabou, agora mesmo, de sair o pessoal que trouxe todas aquelas tuas caixas. Aquilo tudo não, Rui. Aquilo tudo não pode ficar ali na salinha. Não há espaço para aquilo tudo. – Não há espaço? – Não filho. Anda ver. – Não é preciso ver. Se não pode ficar na sala, então fica onde? – Ó filho, podemos colocá-las no sótão da casa de Oeiras. – Está bem! Está bem! Olha, manda tudo para o sótão, que eu também vou para lá. – Vais o quê?! 16

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– Vou buscar as chaves e vou para Oeiras. – Fazer o quê, filho?! – Mando montar uma cama no sótão. Camas e mesas velhas, usadas, devem estar lá muitas. Com a minha idade, qualquer uma me serve. O meu futuro vai ser… lá. O sótão é o meu futuro. (Adelaide, a empregada doméstica, ao ouvir o desejo manifestado pelo patrão, parou de limpar o pó, pensou, pensou e concluiu: o sótão é um lugar alto, mesmo muito alto, mas… deve estar cheio de pó).

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RÉS-DO-CHÃO

Sexta-feira quente de Agosto com muita gente amontoada, ansiosa, irritada, transpirada, no espaço exíguo da papelaria. Demasiada gente para a massa de ar existente no interior. Irrespirável. Não eram papéis ou jornais que as pessoas pretendiam comprar, mas fazerem apostas no Euromilhões, nessa semana com um bom jackpot, amplamente publicitado nas TV’s. Então, diga lá, D. Isilda, são dois euros? Não, minha filha, com tanta gente e assim, hoje queria mais. Quatro euros? Sei lá, filha. Seis? Seis, seis, não, que é muito dinheiro. Vá lá, despache-se, D. Isilda, que tenho muita gente à espera. Ai, filha! Hoje não te conheço. Nem pareces tu. Dá-me um de quatro, pronto. Quatro euros? Pois, quatro euros. Que é que havia de ser? Quatro mil réis já não há. Vá lá, vá lá. Pronto! Quatro euros. Ai, despache-se lá, D. Isilda! Ó filha, que me estás a pôr nervosa. Olha, agora caiu-me para o chão. Pronto, toma lá cinco. Não vejo a moeda que caiu. Olhe o troco, D. Isilda: um euro. Não vá embora, olhe o papel da aposta. Ai credo! Que aflição!

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Dá licença, dá licença? Ó homem de Deus, passe lá. Não vejo a moeda que me caiu. Pronto, pronto, vou-me embora. Olha, Amèlinha, se, depois, encontrares a moeda, guarda-a. Ou é de cinquenta ou de vinte. Ai Jesus, que confusão que isto está hoje. Que aflição, valha-me Deus. ✳ ✳ ✳ ✳ ✳

Que está aí a espreitar, D. Isilda? A estas horas a loja já está fechada. Ó Adelaide, vê-me lá aqui o papel do meu Euromilhões por este que está aqui colado na porta, que eu seguro-te nos sacos. Deixei os óculos em casa. Assim, não vejo nada. Mas, também com eles é quase a mesma coisa: os números do papel são muito pequeninos. É que ontem gastei um dinheirão. Já estava de cabeça perdida e até era capaz de jogar mais se não fosse a Amèlinha que estava tão impertinente. Quatro euros, vê lá tu! Dê cá o papel para ver. Oh! Oh! D. Isilda, chegue-se lá mais p’rá aqui, p’ró pé de mim, não vá alguém ouvir. Eu também não consigo ver bem, mas parece-me que vossemecê acertou nos números todos da primeira linha. Deixe-se estar aqui caladinha, que eu vou ver com mais calma. Está bem, está bem, filha. Ai, D. Isilda! Deve ter ganho uma fortuna. Só faltou acertar numa estrela. Ai filha! Quanto é, quanto é? Não sei D. Isilda, só perguntando à Amèlinha, na Segunda-Feira. Tome lá e guarde bem o papel. Ai filha e se o perco? O melhor é seres tu a guardá-lo. Não, não D. Isilda, o papel é seu. Guarde-o bem guardado e depois passe aqui pela Amélia, mas não diga nada. Peça só o papel que tem os resultados. E não diga nada, 20

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que eu, depois, passo pela sua casa. Não. É melhor esperar por mim, depois, à porta lá do meu prédio. Ai, filha, que inquietação! Onde é que eu vou guardar o papel? Vá, tenha calma e vá para casa. Até já estou a tremer das pernas, Nossa Senhora! Será, assim, muito dinheiro? Não sei. Só vendo os resultados na Segunda-Feira com os prémios à frente. Vá, vá para casa e não diga nada a ninguém. ✳ ✳ ✳ ✳ ✳

Amèlinha… bom dia. Tens aí o papel, o papel… dos números da Sexta-Feira? Quer a “chave”? Deixe ver a aposta, que eu vejo. Não trouxe-a…Deixei-a em casa. Tome lá. Tem lá os números e os prémios. Parece que está nervosa. Já se vai embora? E não quer a moeda que deixou cair? Ai filha, quanto era? Cinquenta. Deixa ver, deixa ver. Afinal, sempre a encontraste. Está com pressa, D. Isilda… Não, não. Tenho que ir falar com a Adelaide. Não sei quem é. É aquela rapariga que trabalha na casa da D. Manuela, aquela senhora que o marido é aquele engenheiro, assim pessoa importante, daqueles prédios novos…ali daquele lado. Está nervosa, D. Isilda. Olha, quem estava nervosa no outro dia eras tu. Às vezes não há paciência. Tinha muita gente para atender, D. Isilda. Pois, pois, tu lá sabes. Adeus. ✳

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Olá, D. Isilda. Ai Adelaide! Já estava à tua espera, estava aqui à tua espera já… E tem o papel dos prémios? Está aqui, filha. E o outro papel, o seu do Euromilhões? Então… está lá em casa bem guardado, como tu disseste. Ó D. Isilda, é só para ter a certeza do que vi no outro dia. Vamos lá à sua casa, mas tenho que voltar depressa. Só depois de fazer a comparação com este, que lhe deram agora, é que tenho a certeza. Olhe, D. Isilda, tem o segundo prémio. É mesmo. É muito dinheiro. Não fique nervosa e não diga nada a ninguém. Eu, depois, venho falar consigo outra vez. ✳

– Sr.ª D. Manuela, a minha amiga Isilda… – Não sei quem é, Adelaide. – Aquela minha amiga, que mora ali atrás no bairro velho, que é viúva… – Aquela alta, magra… – Não, Srª. D. Manuela. Aquela pequenina, que esteve aqui a perguntar por mim, que anda sempre de preto e que mora num rés-do-chão. – Ah, já sei. – Teve o segundo prémio do Euromilhões na Sexta-Feira. – Tens a certeza? – Sim. Vi agora o papel, há bocadinho, quando saí. Ela está tão nervosa, que tenho medo que lhe dê alguma coisa. São quase quinhentos mil euros. Nem lhe disse quanto era. 22

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– Que sorte ela teve! Devia comprar uma casinha mais arejada, mais alegre do que deve ser aquele rés-do-chão de uma casa velha, onde mora há tanto tempo. Até pode ser nestes prédios novos aqui ao pé. Diz-lhe que um prémio destes não pode ser recebido nas lojas. Acho que tem que ir recebê-lo à Santa Casa e que lhe dão um cheque para depositar no banco. – Vai ser uma atrapalhação para ela e eu não sei tratar nada disso. – Então diz-lhe que, se ela quiser, posso ajudá-la. – Dá-me licença que vá a casa dela logo à tarde? – Podes. E se ela quiser vir falar comigo, pode vir. – Ai, isso vai ser um descanso para ela. E para mim. ✳

D. Isilda comprou um T1 num terceiro andar dos prédios novos, numa rua próxima. Comprou equipamento de cozinha novo, móveis novos para a sala, mas não para o quarto. O recheio do quarto, comprado ao tempo do casamento, foi transportado para a casa nova. As vizinhas visitavam-na em grupos de duas ou três. Que bonita vista! Eu cá comprava um mais alto; quanto mais alto, melhor. É mais arejado. Credo! Até tenho medo de espreitar lá para baixo. Olha se uma pessoa tem uma tontura e cai daqui. Era notório, no meio das conversas, encontrar uma pontinha ou, até, pedaços bem grandes de inveja. Nos primeiros tempos foi um corrupio de visitas, principalmente aos Domingos à tarde. Depois, acabaram, apesar de continuar a ser motivo 23

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de conversas e cochichos na antiga rua. Não demorou que D. Isilda passasse a ter como companhia somente as vistas da varanda e, uma ou outra vez, a Adelaide. A pretexto de ter que comprar pão, uma alface, cebolas, deslocava-se à mercearia do sr. Joaquim, na sua antiga rua, ao pé da antiga casa. Foi assim que um dia, espreitando a “sua” casinha, o coração lhe deu um salto no peito. Encostou-se à parede. A janela era um buraco sem vidraças e a porta da rua… não tinha porta. Chegou-se, em passos lentos como se fosse um ladrão, espreitou pelo buraco da porta. Viu as madeiras do chão arrancadas, as paredes picadas e com o reboco à vista e entreviu o pequeno quintal das traseiras, todo coberto de entulho. Chegou-se à janela e a sala estava, também, virada do avesso. Regressou a casa. A sala, a janela, a porta da rua e o quintal não lhe saíam da cabeça. Nessa noite sonhou com as flores do quintal a nascerem em cima do entulho e a taparem o entulho todo. Não voltou a passar junto à sua antiga casa durante muitos dias, mas, cerca de um mês depois, não resistiu à curiosidade e espreitou de uma esquina próxima. Já tinha janela e uma porta. Novas. Aproximou-se. Poisou o saco das compras encostado à parede e, com uma sensação estranha, bateu à porta. Abriu-a um homem com o boné e as roupas manchadas de tintas. Bom dia, estão a arranjar a casa? Sim. O Sr. Manuel Bernardo está cá? Não. Ele costuma passar por cá só no fim da tarde. Está bem. Obrigada. O quintal ainda está sujo? Não, o entulho já foi tirado. Olhe. Ele abriu a porta toda e ela viu o quintal, ao fundo do corredor, limpinho, com terra fresca. Viu, também, 24

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o chão do corredor, tapado com cartões, mas com madeiras novas e as paredes pintadas. Obrigadinho. Bom dia. ✳

– Srª. D. Manuela, sabe que a minha amiga Isilda está a mudar de casa? – O quê, Adelaide? – A Isilda está a mudar de casa. – Outra vez?! Para onde? – Para a casa antiga. Aquela que o senhorio fez obras. Foi falar com ele e trocou a casa nova pela antiga. – O quê?! – Diz que tinha saudades das conversas com as vizinhas. Assim, da janela, sem ter que sair de casa. E, como o móvel, a mesa e as cadeiras novas da sala não cabiam lá, foi ao adelo e comprou, outra vez, as antigas.

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TRABALHOS e DESEMPREGOS

I – HÁ SEMPRE ALTERNATIVA

1 – Bom dia. D. Irene. – Bom dia, Sr. Presidente. – Venha aqui, ao meu gabinete, por favor. A secretária tomou o bloco-notas e um lápis, contornou a mesa de apoio e seguiu o novo Presidente do Conselho de Administração, que iniciara funções nesse mesmo dia. – Sente-se, D. Irene. Ora bem: em primeiro lugar faça os contactos necessários para que um homem ou dois vão lá em baixo ao meu carro para trazerem umas caixas de cartão. O meu motorista está lá. Colocam-nas aqui, no meu gabinete… além, junto à janela. Depois, logo que tenham trazido tudo, peço-lhe que contacte todos os directores de departamento… de departamento… ou como lhe chamam aqui na empresa, para uma reunião amanhã, com a Administração. Será às oito horas e trinta, na sala que a senhora entender adequada ou, melhor, 27

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na sala onde essas reuniões costumam ter lugar. Depois me dirá onde é, porque não conheço, ainda, os cantos à casa. – Sim, senhor Presidente. – Feito isso, vou necessitar da sua ajuda para dar uma arrumação às minhas coisas... tudo isso que os homens vão trazer. – Sim, senhor Presidente. – E… é tudo. A secretária já ia saindo, mas interrompeu-a. – Não. Mais: avise, também, as secretárias dos outros membros do Conselho da reunião de amanhã. Como estão a instalar-se, se houver alguma dificuldade, avise-me. Parece que mais nada, por agora… Bem, pensava falar-lhe nisto mais tarde, mas… amanhã de manhã vai apresentar-se aqui a D. Maria do Rosário… Ao notar um ar de preocupação no rosto da secretária, que, nervosamente, corrigia a posição dos óculos: – D. Irene, o seu lugar e condição de secretária, trabalhando aqui comigo, está garantido. A senhora conhece as pessoas da casa, os tiques, diria, até, as suas fraquezas e virtudes. São as informações que eu tenho. Isso é muito importante para mim, mas há muitos anos que a D. Maria do Rosário me acompanha e me conhece tão bem ou melhor do que eu me conheço. Portanto, não se preocupe, porque vou precisar do apoio de ambas. As duas trabalharão em equipa e irão completar-se. Agora é tudo. Tome providências para a colocação de mais uma mesa de trabalho junto da sua. – Sim, senhor Presidente. Muito obrigado. 28

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2 – Senhor Presidente, os senhores directores estão já na sala. Não está o Director da Área Comercial, que está em serviço no estrangeiro. Está presente o Adjunto. – Obrigado, D. Irene. Os senhores administradores estão? – Sim, senhor Presidente. Aqui ao lado, na sala de espera. – Muito Bem. Saiu. Entrou na sala de espera, cumprimentou os outros dois administradores e, seguindo a secretária, encaminhou-se para a sala de reuniões. Entraram. Alguns estavam já sentados, outros, levantados, conversavam. Ao verem o Presidente entrar, todos se encaminharam para os seus lugares habituais. – Bom dia, meus senhores. Façam o favor de se sentarem. Esperou um pouco, depois continuou: Como sabem, esta administração foi eleita anteontem em assembleia de accionistas. Antes de vos dirigir umas breves palavras, gostaria que se apresentassem, um por um, embora alguns de vós sejam já do meu conhecimento pessoal. Já conhecem, embora não pessoalmente, mas já receberam cópia dos nossos curricula. Fui informado que o senhor Director da Área Comercial está ausente, mas está o seu substituto. O senhor Director do Pessoal, por favor? Muito bem. Importa-se de se sentar mais próximo? Aqui à direita do senhor administrador, por favor. (Momento de espera). 29

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