Na pele do cão Mário Tomé Luís Ofício Cumbane texto
ilustrações
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Na Pele do Cão Conto de Mário Tomé Ilustrações de Luís Ofício Cumbane
Point
Freek
Ice
Nokas
título:
Na Pele do Cão
autor:
Mário Tomé
ilusstrações:
Luís Ofício Cumbane
edição gráfica
revisão:
: Edições Berbequim das Letras® (Chancela Sítio do Livro)
Liliana Simões
paginação:
Paulo S. Resende
arranjo de capa:
Ângela Espinha
1.ª edição, Lisboa março, 2019 isbn:
978‑989-8711-33-5
depósito legal:
451775/19
© Mário Tomé Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.
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Índice Introdução 7 Dedicatória 9 Agradecimento 11 O encontro
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A apresentação
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Os dias seguintes
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Os meninos
27
As férias grandes
30
Relato da NoKas
33
Relato do Ice
41
Relato do FreeK
47
Relato do Point
54
De novo juntos
63
Introdução Será que aqueles olhos meigos que nos fitam, o gesto de vir buscar uma carícia, ou ser o primeiro a chegar ao sofá para ver o futebol com o dono, não ocultam ideias e sentimentos egoístas e malvados? Esta pequena história pretende, de uma forma divertida, imaginar a forma como os nossos companheiros de quatro patas podem interpretar o dia-a-dia de uma família e as próprias relações entre eles e os seus donos. « Na Pele do Cão » não é mais do que uma visão fictícia, canina e felina, do meio em que estão inseridos e dos humanos com quem convivem. Não será um livro infantil no seu sentido puro, mas algo que, penso, poderá ser lido por todos ao longo da vida. Pretensamente eruditos, sarcásticos ou dependentes dos seus donos, os protagonistas assumem uma personalidade própria, que espero vos apaixone e divirta. Eu adoro animais, e vocês? Divirtam-se. Um abraço do autor.
Dedicatória Esta pequena história é dedicada ao meu neto Martim. Não sei quando vai conseguir lê-la e compreender tudo o que digo nas entrelinhas. De qualquer forma, pretendo que seja um contributo para que, ao longo da vida, aprenda a gostar e a respeitar os animais. Não chegou a conhecer os protagonistas de quatro patas que vivem nestes contos, mas certamente irá ter ocasião de conhecer, acarinhar e ser acarinhado por outros. Um Grande Beijo Martim, Avô Mário
Agradecimento Em primeiro lugar, quero agradecer aos quatro pilantras desta história, que fizeram o favor de conviver comigo durante alguns anos. Infelizmente e com muita tristeza nossa, já partiram. Ficou a gata, que na verdade se chama Tibinha, e que tem agora uma companheira, a Amarela. Em segundo lugar, agradeço à minha família e amigos, que comigo se foram rindo e dando algumas dicas. Por último, mas não menos importante, um agradecimento ao artista Moçambicano Luís Ofício, que soube recriar um ambiente que nunca viu, e umas personagens que nunca conheceu. O Autor
O encontro Pinhal de Negreiros. Era uma manhã enevoada de sábado. Ou seria de domingo? Tinha perdido a noção do tempo. Bem sei que andava perdido desde quinta-feira, dia de caça, em que o meu dono, armado em Rambo, de arma na mão, resolveu que me ia iniciar nas artes da caça. Achava que eu tinha jeito. E eu também. Claro que me perdeu logo ao fim de meia hora. Digo que me perdeu, porque cão que é cão como eu, não se perde. Consta-se que ainda andou à minha procura. Ninguém pode provar ou desmentir. Vou acreditar que sim. Mas, deixem-me apresentar: Sou um animal de raça canina, de aspecto esbelto e garboso. Num desfile em Londres, poderia passar por um pointer digno de capa de revista. Não conheci nem pai nem mãe, pelo que tive de me desenrascar sozinho. Ainda sou cachorro, mas devo ter bom aspecto porque o Rambo esquelético tomou conta de mim. Como devem ter reparado, sou sobretudo modesto. E algo bipolar. Tenho dias em que acordo e acho que sou branco com manchas pretas, outro dia, que sou preto com manchas brancas. Convivo bem com isso. Não convivo bem é com o frio e a fome que me assolam há três dias. O desgraçado do homem que passou por mim também não estava melhor. Ia a correr, mas reparei que não vinha ninguém atrás dele. Pelo menos 12
humano. Tinha a cara arroxeada com o frio e coberta de suor. Que nojo. De repente parou e dirigiu-se para mim. Eu ainda olhei para o lado mas não havia vivalma. Não tinha sido eficaz a técnica de camuflagem que havia imaginado: um canídeo branco e preto escondido de pé numa relva baixinha e verde. Mostrei-lhe os dentes. Aliás, já estavam à mostra devido ao frio e à magreza. Não teve medo, estranhamente, o que não me fez nada bem ao ego, pois aquele meu ar aguerrido devia ter mantido à distância qualquer coisa que mexesse… Para primeira impressão, senti-me um bocado frustrado. Estendeu-me a mão, a cheirar a sabão e a creme Nívea e fez aquele gesto amaricado com os lábios e aquele barulho com a boca que irrita de morte qualquer cão: Mmu Mmu Mmu. Parecia que estava a palitar os dentes. Não lhe liguei nenhuma, mas deixei-o passar-me a mão pelo lombo. Estava quente e até soube bem, confesso. Foi aí que reparei que estava um bocado magro. A festa que me fez pelas costas, deu para contar as minhas costelas todas. Depois fez aquela coisa que enerva qualquer pointer de raça afinada: mexer-lhe nas orelhas. No meu caso até foi bom porque deu para reparar que estavam quase dormentes de frio. Convidou-me a ir atrás dele, a andar e a olhar para trás e a dar palmadinhas no próprio rabo. Como se eu fosse desses. Sou muito cão. Mas pronto, lá fui até uma estrada 13
que eu nem imaginava que existia. Mas também como poderia adivinhar que estavam uma estrada e casas a 60 metros do sítio onde o Rambo me tinha perdido? O alucinado fez o gesto para eu me deitar e esperar, algumas dez vezes. Eu tinha percebido à primeira. Ele é que nem percebeu como estava a ser ridículo. Até olhei para o lado com vergonha. Só não cortei os pulsos logo ali, porque senti que aquele imbecil precisava de alguém como eu para tomar conta dele. Decidi que ia dar-lhe cinco dias até ele voltar. Voltou meia hora depois. Numa carrinha branca e acompanhado de uma megera. Uma mulher mandona que positivamente me raptou e colocou na parte de trás da carrinha. Estava lá uma manta que fedia a cão e perfume tipo bien-être. De morrer. Aquilo era sem dúvida um gang internacional de sequestradores de cães sobredotados que tinham em vista sabe-se lá o quê com os infelizes! Se calhar usá-los como se fossem objectos, para desfilar nas passerelles em Itália! Que horror! Antes passar a vida a roer ossos com tutano e enroscado nas pernas de um tosco qualquer. Por falar em tosco, o palermóide que me encontrou, saiu da carrinha e entrou numa casa que até tinha bom aspecto. Quem conduzia era a megera. Ele se calhar nem sabia. Voltou com uma tira de uma coisa fina e comprida com uma espécie de colar agarrado na ponta. O sacana pôs-me aquilo à volta do pescoço. AH! Mas 14
trouxe uma tigela com água e outra com uma pasta de uma coisa qualquer com sabor a gordura cozida que me deu a volta ao estômago. Comi porque estava com fome e não queria ofender. Pelo aparato da carrinha ainda pensei que fossemos fazer campismo. Nada mau. Desenganei-me rapidamente. Fui desembarcado num verdadeiro antro de promiscuidade. Aquilo devia ser um bordel. Eram cães, eram gatos, machos e fêmeas, por cima uns dos outros… Confesso que não estava mentalmente preparado para aquilo. Entrei na onda. Deixei-me ir. No fim, nem foi muito mau. Chamaram finalmente por mim. Lavaram-me, massajaram-me, pronto, fui apalpado, fui. Mas no fim, uma fulana de bata branca disse que tinha tudo no sítio e era um belo cão. Como se eu não estivesse careca de saber… Coitada. Não se podia dizer o mesmo dela, aquela gorda! Ofendeu-me um bocado quando depois disse que eu não tinha corpo para levar uma vacina! Que me alimentassem bem e levassem lá uma semana depois. Que melodia para os meus ouvidos! Mas atenção! Não podia perder a minha cinturinha de vespa. Saí do spa um bocado cansado. A megera levou-me ao colo, e o fulano ia a conduzir. Não tinha muito jeito, mas sabia. Parecia boa gente. Decidi dar-lhes o benefício da dúvida durante os próximos anos. 15
Resolvi encetar uma estratégia de aproximação pouco conhecida e dei-lhe uma lambidela na mão quando fez pisca. O gajo gostou. O cinismo resulta sempre.
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A apresentação Nunca duvidei que tinha nascido para príncipe. Aliás, ainda há dias olhava-me no reflexo do vidro do carro do Rambo esquizóide e confirmava as minhas certezas: belo, elegante, de uma inteligência muito acima do normal, mas acima de tudo possuidor de um charme inigualável. Por várias vezes, perguntei-me porque não nascera no Mónaco. Provavelmente o Criador escolhera-me para elevar o nível intelectual dos outros, ajudá-los a compreender melhor o que os rodeava e compensar as suas limitações. Tipo a Madre Teresa de Calcutá, mas em cão. Tinha de me forrar de paciência. Logo eu. Mas não iria abdicar de forma nenhuma do estilo de vida que me estava destinado: mordomo, jaqueta Príncipe de Gales, cognac ou bourbon, conforme as horas. Teria de me habituar a segurar o charuto nas mandíbulas sem o babar todo. Uma questão de treino e de somenos importância. Aliás, aflorou-se-me a ideia de vir a exigir uma personal trainer, não tanto para as questões físicas, pois era um atleta nato, mas para melhorar ainda mais, pequenos pormenores de protocolo. Foi completamente concentrado nestes pensamentos, que dei por mim empurrado, é esse o termo, para aquele pátio. Este vil gesto iria marcar todo o meu futuro, como irão ter conhecimento no 18
decorrer do meu insuspeito e clarividente relato. Aquele antro infecto, o pátio não tinha outro nome, tresandava a cão por tudo quanto era sítio. À entrada, à esquerda, estava uma presunçosa casota em tijolo e telha, que devia ter servido para acolher os sem-abrigo que me olhavam ao fundo: uma monstra gorda, castanha e branca, que vinha a abanar o focinho cabisbaixo, direita a mim. O pêlo saltava-lhe ao andar. O cheiro a queijo de Castelo Branco que exalava daquelas patas era nauseabundo. Mas não era tudo: Veio logo atrás um marreco, castanho, com o pêlo mais seboso e emaranhado que eu jamais vira. E depois aos guinchos histéricos, surge o « cromo » dos « cromos ». A anedota em forma de cão. Todo de lado, aos saltos, aparece à minha frente um anão albino cheio de remela e com mau feitio. A situação não estava fácil de gerir. A olhar por cima, tratei de mandar uma mija contra o muro, logo ali. O brancóide ia sendo regado. Os outros foram cheirar. Perceberam logo que ali havia macho. A sério. O indigente que me encontrou no pinhal e aliciou maliciosamente para eu estar naquela humilhante situação, entrou no portão. Com aquela cara de totó, disse feito parvo: 19
— Sejam amigos! Vão estar muito tempo juntos… Sem ter combinado nada, fizemos os quatro uma cara de náusea. O castanho marreco esteve bem, resmungou de lado: — Desde que estejas a léguas, talvez a coisa se componha. O troglodita não ouviu. Iam ser dias difíceis.
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Os dias seguintes Não foi fácil começar a impor a minha personalidade vincada e espírito de liderança. Isso é um fenómeno muito frequente quando se lida com outros seres, cuja velocidade de raciocínio é mais lenta que um relógio parado. Nestas ocasiões, temos de tomar a iniciativa e despoletar a dinâmica dos acontecimentos. Aprendi estas frases num jornal desportivo que estava na parte de trás da pick-up do Rambo caçador. Comecei por me apresentar aos asilados: — Pointer d’Armagnhac e Vasconcelos. Com quem tenho o prazer de dialogar? — nada. Repeti. Ou eram surdos ou adormeceram repentinamente. Há relatos desses… em que o choque ou a excitação de se estar perante situações em que somos manifestamente inferiores, provoca carências súbitas de sais e outros nutrientes que por sua vez desenvolvem uma reacção psicossomática, em que os indivíduos em causa entram numa letargia profunda e instantânea. Não era esse o caso. Aqui o que se passou foi que os indivíduos estavam pura e simplesmente a rebolar de riso, a esfregar a barriga e a dar palmadas nas costas uns dos outros. Também acontece. Resolvi mudar de táctica, para um discurso mais condizente com a pequenez daqueles cérebros: 22
— Então, meus? Na boa? Curtem essa cena de morar aqui com os cotas? Cena fixe, meus! Também já morei numa quinta comunitária no sul de França, em Maio de 68! Bem marado! Grandes ganzas! Já snifaram palha de estábulo de cavalo? Ganda pedra! Vi que a coisa ia ser séria, quando o marreco, aquele que parece andar vestido com um blusão de pioneses, parou de rir e disse: — Porque é que não vais ver se nós estamos na fila do pão? Ia-me a voltar e a perguntar onde era a padaria, quando ouvi a monstra do pêlo voador: — Olha lá! Já percebemos que o australopiteco do nosso dono não deve andar a tomar os medicamentos. Senão não trazia para aqui uma ossada falante. Mas já que cá estás, pões o lápis na orelha e assobias baixinho. Dessa asneirada toda que disseste, passas a chamar-te point e com « p » pequeno. Eu que saiba que assinas com « p » grande! Eu chamo-me NoKas com « K » maiúsculo no meio, como chike! O sarrabulho atarracado é o FreeK e o branquelas é o Ice. A dona não quis que fosse Ike. Virando-se para os outros: — O que é que acham? Já estou farta de falar. O marreco foi o primeiro: — Acho que o esqueleto bem-falante devia pagar para entrar no clube. A sonsa da Gata Hari diz que há comezaina à farta na cozinha, porque este fim-de-semana vêm cá os miúdos. Já não como uma costeleta de jeito 23
desde que entrámos por engano no talho do Chibinho, enquanto ele foi buscar trocos ao banco. Explicaram-me, então, que a tal de Gata Hari era uma felina malhada, dengosa, que passava a vida dentro de casa. Uma vez, os trastes com quem vou ter de conviver, deram-lhe uma corrida em osso e obrigaram-na a fugir por um pinheiro acima. Fizeram-lhe uma espera cá em baixo e obrigaram-na a ser espia, e contar tudo o que se passava lá em casa. Dizem que faz gato-sapato do infeliz que pensa que é nosso dono, e que até dorme com ele na cama. Exageros. O que é certo é que eu estava condenado a ir gamar umas costeletas para aqueles meliantes. — Parece que também há bolo de noz! Traz! — gritou o marreco. — As nozes metem-se-me entre os dentes — disse o branquelas. Dei meia-volta e disse-lhe armado em bom amigo: — Devias procurar ajuda numa consulta de ortodontia! Conheço um… — Vai à tua vida e não me esgotes a « PACIÔNCIA »! Já eu tinha virado a esquina, ouvi: — Traz palitos! E pronto. Ia ser esta a minha vida. Saí do canil de um Rambo tresloucado, armado em caçador, para vir voar sobre um ninho de cucos. Esta foi boa, pensei. Muito bem esgalhada. Cucos. Uns cucos é o que eles são. E eu a pairar por cima. Embrenhado nestes pensamentos, enfiei uma cabeçada na porta da cozinha. Nem reparei que estava fechada. 24
A minha incursão discreta e silenciosa dentro de casa acabou ali. Não ia ser fácil cumprir a minha primeira missão. Já voltava para trás, a pensar que desculpa iria arranjar, quando ouvi a megera a gritar: « Põe as costeletas lá fora a descongelar! Ainda estão em pedra! » OH! PÁ! Segundos depois vejo a janela da cozinha a abrir, e uma travessa a ser pousada no parapeito. A monstra « larga pêlo » e o marreco foram os primeiros a acabar o produto do gamanço. O último foi o branquelas. — Estava um bocado mal passada — disse este, enquanto me dava o osso da costeleta. — E fria. — Estava crua e congelada, ó estúpido! — respondeu o marreco. Voltámos a ouvir a voz da mandona dentro de casa: «Vê lá se os pilantras dos teus cães vão roubar as costeletas! » «Não chegam lá! Estão altas! », respondeu o totó. Passado um bocado, passa por nós com um olhar furibundo e entra no carro. Alguns minutos depois volta com um saco de plástico a dizer: « Talho da Esquina ». Não olhou sequer para nós durante dois dias. Fui formalmente acolhido no gang de malfeitores, essa tarde. Tive dúvidas na altura se isso seria bom ou mau. Hoje tenho a certeza que foi uma desgraça. Mas com muitas histórias para contar. 25