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PARTIR E FICAR NO CAIS
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Maria Adriana da Silva Nóbrega Simões, angolana de 2ª geração, nasceu na cidade de Sá da Bandeira, actual Lubango, neta de colonos madeirenses que, nos finais do séc. XIX, se instalaram no sítio hoje denominado “Barracões”. A terra que os acolheu não lhes deu mais do que chão. O esforço, a perseverança, o sacrifício, a arte e o engenho... do nada fizeram nascer frutos, flores, campos verdejantes, os primeiros caminhos, as primeiras habitações, a primeira escola. A cerca de 3km do sítio dos Barracões, a povoação foi crescendo e, em poucos anos, se tornou vila e depois cidade. Com a cidade ela foi crescendo, abençoada pelos prodígios da natureza (as serras, as quedas de água, os precipícios rochosos, como a Fenda da Tundavala, património geológico) e por um clima cultural marcado pela existência de vários estabelecimentos de ensino (a Escola Técnica, a Escola de Regentes Agrícola Tchivinguiro, o Colégio feminino e o inesquecível Liceu Diogo Cão de grandes tradições académicas servido por professores de indiscutível competência profissional) que contribuíram para a formação científica e de cidadania dos seus educandos. A inexistência de ensino superior em Angola determinou o apartamento da sua terra natal, obrigando-a a rumar a Lisboa, onde, na Faculdade de Letras, se licenciou em História, caminho aberto para a carreira docente que percorreu por mais de três décadas.
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Adriana Nóbrega
PARTIR E FICAR NO CAIS
Revolver o baú de recordações de guerra é muito doloroso, sobretudo quando se viveram momentos de grande tristeza, ansiedade e inquietação. Passado mais de meio século, porém, resolvi abri-lo e partilhar as emoções então vividas. As recordações vão surgindo, começando por relatar episódios da estadia de uma jovem mulher, grávida, na Guiné, da guerrilha, dos sustos e da necessidade de rumar a Moçambique. Noutro extracto, assoma um período em que Moçambique se vê a braços com as lutas de guerrilha da FRELIMO e a passagem da antiga colónia a país independente. Perseguições, provocações, insegurança, acusações de cariz político, ameaças de prisão ou de expulsão do território e até de morte, por impedimento de acesso aos cuidados de saúde, tudo sofreu a jovem mulher, então mãe de dois filhos de tenra idade. Mais no fundo do baú, o desejado e dramático regresso a Portugal. O marido, detido no aeroporto da Beira, foi impedido de acompanhar a mulher que viajou sozinha, ignorando as razões que levaram à sua detenção. Aprofundando um pouco mais, já no Portugal de Abril, as últimas recordações: - Retornada… Não, obrigado!
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FICHA TÉCNICA TÍTULO:
Partir e Ficar no Cais Adriana Nóbrega EDIÇÃO: edições Vírgula® (Chancela do Sítio do Livro) PAGINAÇÃO:
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AUTORA:
Alda Teixeira António Galrinho IMAGEM DE CAPA: Detalhe do quadro “Cair e Levantar” ARRANJO DE CAPA: Ângela Espinha DESENHO DE CAPA:
1.a Edição Lisboa, setembro 2019 ISBN:
978-989-8986-01-6 458042/19
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DEPÓSITO LEGAL:
© ADRIANA NÓBREGA
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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. Por opção da autors, a obra foi redigida sem aplicação do acordo Ortográfico.
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
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ew Ao meu marido que sobreviveu à guerra.
Aos meus filhos que a guerra de mim apartou.
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Aos meus netos Filipa, Pedro Miguel, Nuno e Diogo a quem afectuosamente também dedico a história deste pedaço da minha vida.
A todas as mulheres que viveram o drama da guerra colonial.
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ÍNDICE
Partir e ficar no cais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Uma ameaça constante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
O grande sobressalto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 Uma nova realidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
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Em jogo a liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 De África para África. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 O regresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
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A alegria do advento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Reinventar a vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 Uma partida atribulada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 África minha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Começar de novo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Impreterível mudar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 O ano de 1974 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 A partilha do poder . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Os grupos dinamizadores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 Apelo à colaboração. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
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Ser ou não ser. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 Do Rovuma ao Maputo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 Moçambique independente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
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Imperioso regressar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Planeando o regresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Um cenário sinistro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Finalmente o regresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 Nairóbi – o grande susto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
O primeiro embate. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
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Uma burocracia analfabeta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 Finalmente a colocação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78 A maior de todas as surpresas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
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A libertação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
POEMAS
Negro Valério . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 Menino Negro Angolano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 Monólogo do Menino Negro Angolano… . . . . . . . . . . . 91 Hás-de vir. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 Angola terra mãe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Meu sekulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
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Poema da Terra Adubada
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Por detrás das árvores não se encontram faunos, não. Por detrás das árvores escondem-se os soldados Com granadas de mão. As árvores são belas com os troncos dourados. São boas e largas para esconder soldados.
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Não é o vento que rumoreja nas folhas, Não é o vento, não. São os corpos dos soldados rastejando no chão.
O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes. É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.
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As rubras flores vermelhas não são papoilas, não. É o sangue dos soldados que está vertido no chão.
Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar. São os silvos das balas cortando a espessura do ar.
Depois os lavradores Regarão a terra com a lâmina aguda dos arados, E a terra dará vinho e pão e flores Adubada com os corpos dos soldados. António Gedeão, in “Linhas de Força” 11
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... quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar...
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Fernando Pessoa, in “Mar Português”
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O dia 22 de Fevereiro de 1964 irrompeu cinzento e frio. O Navio da República Portuguesa, “S. Gabriel”, atracado à Doca da Marinha, preparava-se para zarpar. Destino: Guiné. A bordo, um Destacamento de Fuzileiros Especiais, o N.º 9. Ao todo, 72 homens: três oficiais, sendo um 1.º Tenente, o Comandante, um 2.º Tenente, o Imediato, e um Subtenente, o 3.º Oficial, 5 Sargentos e 64 Praças. Destes 64 jovens de apenas 17 ou 18 anos de idade, alguns procuravam, num corpo militar de combatentes da guerra colonial, a solução para as grandes dificuldades económicas que as famílias, então, enfrentavam. Com a sua natural jovialidade, entravam no navio, carregando recordações, voltando, por vezes, ao cais, para mais um abraço afectuoso, um beijo às mães e namoradas, as mulheres das suas vidas. Quantos deles, desconhecendo o cenário da guerra, a região, a respectiva topografia e as condições climatéricas, voltariam a abraçar os seus entes queridos? Quantos regressariam em perfeitas condições físicas e psicológicas, depois de experimentarem as mais duras e
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dramáticas situações de uma guerra que provavelmente não entenderiam? Entre amigos e familiares que abraçavam os que partiam, uma jovem mulher, grávida, era o retrato da solidão e da incerteza, protagonista de uma história de guerra no feminino, como tantas outras suas contemporâneas. Absorvida em pensamentos melancólicos, especada no cais de pedra, como se algo dificilmente escorasse, sentia que as horas, no cais, decorriam lentamente, simulando um tempo infinito. A ansiedade tornava-lhe insuportável aguardar o momento da partida. Num emaranhado de emoções, a imagem do navio, sinal de apartamento e de distância, acrescentava o sofrimento, na expectativa de partir e ficar no cais. Subitamente, um estranho sentimento ambivalente invadiu o seu ser, bipolarizando uma tomada de decisão: abandonar a doca, antes de o navio zarpar, evitando, assim, talvez cobardemente, prolongar o sofrimento e o exacerbar da emoção da despedida; ou resistir estoicamente no cais, aguardando a terrível e inexorável realidade, confrontando, deste modo, o cansaço físico e psicológico que desesperadamente procurava superar, em defesa do pequenino ser que crescia no seu ventre. Neste impasse desgastante, pela sua mente, predisposta para o sofrimento, perpassava uma imagem de um momento marcante da sua vida que a memória ciosamente guardara: a representação da figura do pai, 14
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homem que, habitualmente, não exteriorizava emoções, deixando, então, deslizar lágrimas sentidas pela face, no momento em que a via partir para tão longe da terra que os seus avós lhe haviam legado como berço. Era a filha mais nova, a última a afastar-se do lar paterno. Também nesta revelação, havia um navio, símbolo da distância imensa que os separaria. Também o sofrimento de partir e ficar no cais.
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Ficar no cais, até à hora da partida, poderia constituir um risco que decidiu assumir, convicta de que a sua capacidade de resistência não a trairia. Finalmente, largadas as amarras, o navio levantou ferro e desapareceu na linha do horizonte. Na doca, acenar já não fazia sentido.
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UMA AMEAÇA CONSTANTE
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Retomar as rotinas e aguardar o momento de embarque para a Guiné, momento determinado pela garantia de existência de instalação no hotel, foi a maior preocupação que, durante cerca de um mês, a jovem mãe geriu, com alguma impaciência. Passado esse tempo, qual “terra de ninguém”, voou para Bissau, onde permaneceu cerca de dez semanas.
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Ao abandonar o avião, no aeroporto de Bissalanca, logo se apercebeu dos embaraços que a adversidade do clima lhe poderia ocasionar. O calor e a humidade, na época seca, apresentam níveis insuportáveis, durante o dia, enquanto as noites, mais frias, beneficiam de um vento procedente do deserto do Saara, o Harmatan.
No 4.º mês de gravidez, conseguiria o organismo reagir em sua própria defesa? O tempo o diria. Mas, para além do clima, outro factor, mais cruel, mais poderoso, poderia perturbar o normal desenvolvimento da gestação: o perigo iminente decorrente das incertezas de uma guerra de guerrilha, favorecida pelas características topográficas do terreno profusamente arborizado, cruzado por recônditos caminhos só dos 16
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naturais conhecidos, serpenteado por vários rios, como o Geba, o Cacine e o Cacheu, caracterizados por fortes e perigosos caudais. Estes e outros rios, enxameados por répteis vorazes de costumes anfíbios, os crocodilos ou jacarés, que abundam em certas regiões tropicais, eram as estradas líquidas utilizadas pelos fuzileiros, nas suas operações anfíbias e nas missões de apoio às tropas terrestres. Esta realidade emergente constituía, sem dúvida, para os operacionais, o seu calcanhar de Aquiles, o ponto fraco que naturalmente haveria de comprometer a sua desejada invulnerabilidade.
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O GRANDE SOBRESSALTO
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Logo num dos primeiros dias de permanência em Bissau, quando ainda não se apercebera de toda a realidade que a envolvia, sofreu o primeiro grande sobressalto que haveria de perturbar seriamente a gestação: tendo em conta as marés, o Destacamento partira, numa lancha de desembarque (LDM), para uma operação, no rio Geba, que decorreria das nove às vinte e uma horas, hora de regresso. Aguardou inquieta, mas o tempo foi correndo preguiçosamente, sem que o retorno se cumprisse de acordo com o previsto e sem que pudesse ter notícia de qualquer ocorrência. Sozinha, num quarto de hotel, onde tudo lhe era estranho, foi controlando o relógio, a cada momento, numa ânsia que transmitia, seguramente, ao bebé que, igualmente, manifestava o seu desconforto. Sabia, todavia, que, na melhor das hipóteses, a verificar-se o regresso, o mesmo se realizaria aproveitando a maré das nove horas da manhã seguinte, o que, no entanto, não a impedia de equacionar as mais estranhas e tenebrosas suposições: – Teria a lancha sido aprisionada e feitos reféns ou mortos todos os seus operacionais? – Teria um macaréu engolido a lancha e toda a tripulação?
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– Ou a embarcação, numa acção de guerrilha, teria sido obrigada a rumar para outras paragens? Foi uma noite interminável de perplexidade e desespero, durante a qual todos os sonhos foram paulatinamente ruindo, regredindo a memória para os tempos inesquecíveis da sua infância e adolescência vividas na sua inolvidável terra natal: a beleza da paisagem, a claridade intensa da luz, a terra, os frutos, as flores, os cheiros, o sol poente, a serra, a família grande e coesa (sempre acrescentada à mesa com a presença de amigos ou de alguém que o pai convidava para o repasto sem dar notícia à mãe), a porta sempre aberta, as brincadeiras na rua, em liberdade, a escola onde se cantava a tabuada e onde não faltavam as reguadas, os amigos de há décadas feitos no Liceu de tão fortes tradições académicas, os anos da Faculdade… tudo deslizava pela sua memória, naquele momento de tanta incerteza. – O que poderia ter acontecido, para que não se cumprisse o retorno dos operacionais, conforme previsto? O despiste de alguns elementos, que, na mata, se haviam perdido da sua unidade, dera origem a uma situação inesperada que fez alterar os planos da operação, forçando parte do grupo, que, na hora prevista, embarcara, a aguardar, cerca de oito horas, pela chegada à lancha dos operacionais transviados que, entretanto, haviam sido resgatados.
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Perdida a maré predeterminada para o reembarque, doze horas foi o tempo de espera necessário, para que se verificasse o regresso. Neste contexto, assente no leito do rio, não dispunha a lancha das necessárias condições de navegabilidade. Entretanto, na densa e tenebrosa escuridão da noite, fez-se sentir um ruído estranho e assustador, cuja intensidade foi crescendo, durante cerca de meia hora. O terror apoderou-se da tripulação que só se apercebeu de que se trataria de um macaréu, fenómeno de que alguns teriam um vago conhecimento e que associavam a um rio do Brasil, o Amazonas, quando uma onda gigante, avassaladora, autêntica muralha líquida, associada por muitos a um monstro marinho, invadiu o rio, fazendo apenas boiar a embarcação devidamente ancorada. A maré das nove horas da manhã do dia seguinte, por si considerada o último referencial para um hipotético regresso, trouxe finalmente os operacionais de retorno ao ponto de partida, dando à esperança, já tão rarefeita, um novo alento.
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UMA NOVA REALIDADE
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Como num macaréu, os acontecimentos sucediam, na vida da jovem mãe, inesperada e implacavelmente. O clima e as sucessivas emoções não contribuíam para que a gravidez decorresse de acordo com as expectativas. Por sugestão médica, deveria regressar a Lisboa, uma vez que, em Bissau, não existiam os necessários recursos para a realização do parto, em segurança. Devidamente ponderada a situação, foi resolvido que partiria para a cidade da Beira, em Moçambique, onde teria o apoio dos familiares do marido e onde nasceria o bebé. PARTIR passou a ser, então, uma realidade que se repetiria inúmeras vezes, deixando, no íntimo, uma interrogação terrificante, sem resposta imediata, que inspirava um temor que aumentava incessantemente: – Até quando? Noutro contexto, uma nova vivência exigia de si um esforço de adaptação, não ao nível do clima, idêntico ao de Bissau, mas ao nível de hábitos de vida determinados por uma sociedade de costumes diferentes, altamente influenciados pela vizinhança rodesiana e sul-africana. Assim, se lhe falassem de “spoon” ou de “naifa”, deveria entender “colher” ou “faca”; se lhe dissessem “maningue”, deveria saber que se tratava de algo em grande quantidade; se se aventurasse a conduzir auto21
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móvel, era imperioso não esquecer que a prioridade era dada à esquerda… Apesar da sua origem angolana e dos anos vividos em Lisboa, não lhe foi difícil assumir a nova realidade, tendo integrado o quadro do corpo docente do liceu local, durante um ano lectivo, ano marcado pelo sucesso do nascimento do filho, não assistido pelo pai, então, em cenário de guerra, sucesso que se deveu a mãos sábias de clínico muito experiente que evitou o recurso a cesariana ou a forceps, por que poderia ter optado, uma vez que se tratava de um parto pélvico. Da decisão médica não resultaram quaisquer lesões cerebrais para a criança.
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As preocupações eram, todavia, crescentes. A distância ampliava o temor do que poderia acontecer, transformando em sonhos, realidades vividas e só por si conhecidas posteriormente.
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EM JOGO A LIBERDADE
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Num período de gozo de férias de cerca de trinta dias, deslocou-se o jovem pai à Beira, conhecendo, então, o bebé, já com cerca de um mês, o que aliviou, por breve espaço de tempo, a inquietação da mente daquela mulher já tão afectada por acontecimentos, emocionalmente, dolorosos. Contudo, a curiosidade e a imprudência de velhos amigos, sedentos de conhecer a realidade da guerra na Guiné, através de um militar em combate, quase determinaram a sua prisão pela PIDE/DGS. Irreflectidamente, o militar terá desenhado o mapa da Guiné num simples guardanapo de papel, sublinhando as zonas críticas, já tomadas pelo PAIGC. O referido “documento” foi, então, enviado para amigos asilados políticos em França, dando origem a uma acção persecutória da PIDE/DGS. Deste facto, o militar só viria a ter conhecimento mais tarde, quando se preparava para gozar novo período de férias. Alertado para não voltar a comentar a situação de guerra na Guiné e sabendo, simultaneamente, que, entretanto, os citados amigos tinham sido detidos pela polícia política, percebeu o que anteriormente se passara e como teria estado em jogo a sua liberdade.
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DE ÁFRICA PARA ÁFRICA
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Terminado o ano lectivo, mãe e filho, este já com cerca de um ano de idade, rumaram para Bissau. De Moçambique, viajaram até Lisboa, onde, no Aeroporto da Portela, embarcaram num avião Super-Constellation que, parecendo desmantelar-se no espaço, os remeteu para a Guiné, onde a guerra se tornara cada vez mais inquietante. Cenário: o mesmo ou mais agravado. Desembarcando nas bolanhas, terras alagadiças de cultivo do arroz, os fuzileiros progrediam perigosamente até alcançarem a densa mata onde se embrenhavam os guerrilheiros do PAIGC. Daí partia o tiroteio efectuado com morteiros, armas automáticas e pesadas e vários tipos de granadas, obrigando, muitas vezes, os operacionais a mergulharem nos arrozais e no lodo ou a protegerem-se nos ouriques, espécie de carreiros que dividiam os campos de cultivo de arroz. Serviam, igualmente, estes ouriques como caminhos que os fuzileiros percorriam, em longas filas, nem sempre protegidos pela aviação militar. A presença da força aérea era, para os guerrilheiros, indicativo de protectoria dos operacionais que avançavam no terreno, vindo, portanto, alertá-los para perigo iminente. Exaustos, perante a visão de corpos esfacelados de camaradas de armas atingidos, os fuzileiros sentiam 24
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crescer a tensão e a raiva, alimentando a intrepidez e a coragem. Assim, cada vez que sucedia uma operação, ninguém imaginava como voltaria ou quem seria a próxima vítima dos guerrilheiros do PAIGC. Sem fim à vista, a guerra prosseguia. As dificuldades foram crescendo e a entrada dos operacionais, nalgumas regiões, já se tornava impossível ou muito preocupante. Na cidade, sentia-se que o seu perímetro era cada vez mais apertado. O temor crescia a cada momento. Um qualquer estampido ou uma falha de electricidade eram motivos de pânico, provocando as mais inesperadas e, por vezes, caricatas reacções de defesa. Afortunadamente, o tempo corria célere (com a ajuda das obras de Jorge Amado e de Graciliano Ramos, constantes do “índex” da PIDE, vendidas sob o balcão da Casa Gouveia), encurtando o prazo previsto para o regresso do Destacamento. Antecipando o fim da missão militar, mãe e filho viajaram com destino a Lisboa, em Janeiro de 1966, sem que fosse possível prever os acontecimentos que, naquele meio tempo, poderiam ainda ocorrer. De novo se cumpria o presságio de partir e ficar no cais, como sempre, numa expectativa angustiante. Um mês foi o tempo, ansiosa e temerosamente aguardado, até ao retorno do Destacamento.
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