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LuĂ­s Souta

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45 narrativas curtas sobre o Ensino Superior, na perspectiva (desconstrutivista) do Prof.S.


edição: Edições

ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro)

título: PEDAGOGIA autor: Luís

capa:

S.

Souta

Lionor Dupic e Elizabeth Dupic

contracapa:

Foto de © Fernando Pinho (2000)

arranjo gráfico de capa:

Filipa da Costa Cabral

paginação:

Paulo S. Resende

1.ª edição

isbn:

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Lisboa, Junho 2019

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Revisão: Carlos Cardoso

978­‑989-8867-64-3

456150/19

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depósito legal:

© Luís Souta

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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

publicação e comercialização

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

Apoio

O autor não segue o AO90; continua a redigir segundo a identitária ortografia, a que respeita a ‘memória etimológica’.


OBRAS DE LUÍS SOUTA Juvenil: Bichos à Solta. Lisboa: Edições Vírgula (Chancela do Sítio do Livro), 2016.

Ficção:

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Fa[r]do Escolar. (episódios etno-ficcionados de uma saga estudantil – 1960/74 – com contrapontos críticos sobre a contemporaneidade). Lisboa: Sítio do Livro / Ex-Libris, 2014; também em e-book no formato EPUB. A Escola da Nossa Saudade. Porto: Profedições, 1995.

Poesia:

Ensaios:

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(des)Amarra. Bubok, 2012. Solitários Anónimos. Bubok, 2009. Amardor. Junta de Freguesia de Castelo Branco, 2003 [esgotado]. http://hdl.handle.net/10400.26/19130

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Multiculturalidade & Educação. Porto: Profedições, 1997 [esgotado]. http://hdl.handle.net/10400.26/6183 Escolas Superiores de Educação, Ensino Politécnico e Formação de Professores: uma década de debates, algumas polémicas e crítica que baste. Porto: Profedições, 1995.

Trabalhos Académicos:

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A Voz da Escrita: a escola na palavra dos escritores. ESE-Instituto Politécnico de Setúbal, Dezembro 2002 [dissertação de provas públicas para Professor Coordenador, não publicada]. The academic backgrounds of the Social Studies teachers and their teaching performance during the inservice training. Boston University, School of Education, 1985 [tese de mestrado, não publicada].

Colectânea: A mulher nas bocas do povo e na pena dos escritores. Setúbal: ESE de Setúbal/ CEE, 1989 [esgotado]. http://hdl.handle.net/10400.26/25640

Edição de periódicos: Multicultural, CIOE-ESE de Setúbal, 1993-96. Fidebeque, IPS, 1992-93.


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Para a Caetana, minha neta americana, razão primeira da minha saída de cena.

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Se vier a ter uma experiência universitária em Portugal que, nessa altura, tudo esteja diferente e bem melhor: mais organização, rigor e qualidade, o que significa também mais igualdade, justiça e democracia.

Para os meus estudantes que, ao longo destes anos, se cruzaram comigo nas aulas, nas tutorias, na investigação…

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Muitos deles foram a fonte (involuntária) destas narrativas.


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PREFĂ CIO de

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Agostinho Reis Monteiro


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Pr «Mas tortuosos são os caminhos da pedagogia.» (“A Escola” in Inventário dos Mundos, Ricardo França Jardim, 1995: 20)


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Simpatizo profundamente com seres humanos de convicções e sentimentos radicalmente humanistas e coerentes. É o caso do Prof. Luís Souta.

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Este seu novo livro é uma espécie de TAC do Ensino Superior em Portugal, com imagens coloridas daquilo a que chama o homo scholaris. Estou em sintonia quase completa com as suas análises e reflexões. Vou destacar alguns dos seus temas e contribuir com breves comentários da minha experiência e seara académicas.

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Powerpoint

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Luís Souta não é um professor powerpoint… Disse Paulo Freire: «A educação libertadora não pode ser a que busca libertar os educandos de quadros-negros para oferecer-lhes projectores». Antes, quando os retroprojectores entraram nas salas de aula, Jean Piaget tinha prevenido contra o novo «verbalismo da imagem». Agora, é o inebriamento do powerpoint. É um avançado suporte da comunicação, muito útil em certas ocasiões: por exemplo, para facilitar a compreensão do inglês por um público multilingue, num congresso. Não, quando é utilizado por estudantes e professores ou professoras meramente como ‘cábula’ ou para ‘efeitos especiais’… O futuro da profissão docente não está na ilusão de que próteses tecnológicas poderão, um dia, fazer a economia das pessoas das educadoras e educadores. A relação educacional – sobretudo durante os anos da escolaridade obrigatória – é sempre eminentemente interpessoal. Um professor ou professora ‘ensina’ mais a pessoa que é do que aquilo que sabe. É a sua lição mais inesquecível. Nenhuma


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“cultura de colaboração” ou “comunidade de aprendizagem” poderá diluir a centralidade da personalidade docente, que é verdadeiramente o princípio de todos os métodos. Jamais a tecnologia substituirá a Pedagogia, compreendida na sua clássica plenitude de Paideia.

Praxes

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As praxes são rituais sadomasoquistas de mimetismo e reconhecimento tribais cujas motivações mais profundas se cruzam com as de outras práticas e fenómenos, como as tatuagens e cortes de cabelo dos jogadores de futebol. Fazem pensar no enigma abordado por Étienne de la Boétie no Discours de la servitude volontaire, formulado nestes termos:

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«Gostaria apenas que me fizessem compreender como é que tantos homens […] suportam, por vezes, tudo de um único Tirano, que só tem o poder que lhe é dado».

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No grande palco das praxes da Academia de Lisboa – o Jardim do Campo Grande (agora Jardim Mário Soares) – as praxes duram praticamente todo o ano, com picos de bandos e alarido em Setembro/Outubro e Abril/Maio. Nunca presenciei ali cenas propriamente degradantes (resido perto), mas é um espectáculo de frivolidade, pantominas e javardices em que uma das maiores excitações dos ‘doutores’ de capa e batina é vociferar palavrões. Não penso que ‘no meu tempo é que era’. O mundo mudou muito, e nem tudo para melhor no que respeita à juventude, em particular, mas é um facto que, hoje, a maior parte dos jovens não têm ‘causas’. Parece estar a emergir a causa do ambiente, mas continuará a ser minoritária se a escola, designadamente, continuar a ser tão ilegítima, irracional e patológica como é. É a escola onde ‘veteranos’ e ‘caloiros’ das praxes passaram doze anos das suas vidas, pelo menos…


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Erasmus

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Erasmus é o mais emblemático dos programas comunitários de cooperação no domínio da educação, cuja primeira geração foi lançada na década de 1980 pela Comissão Europeia, antes de a educação ter entrado formalmente no Direito Comunitário com o Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht, 1992). Este e outros programas orientados para a mobilidade internacional dos estudantes têm feito, na realidade, mais pela cidadania europeia do que muita retórica político-pedagógica. O mais importante podem não ser os estudos feitos numa instituição estrangeira, mas as experiências multiculturais, interpessoais e outras que a estadia possibilita.

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Cidadão pré-Erasmus, eu seria provavelmente muito diferente do que sou, se nos anos 1960 não tivesse ousado partir para outro país europeu onde estudei num Instituto de Línguas frequentado por jovens de todo o mundo, como a futura rainha da Suécia (filha de mãe brasileira); lavei pratos, casas de banho, automóveis, vendi jornais e fiz outros trabalhos para ter alguma autonomia financeira; viajei por toda a Europa à boleia, dormindo, por exemplo, num saco-cama debaixo de uma árvore entre a Suécia e a Noruega ou sobre o quentinho de um respiradouro do metro de Paris; assisti no Parlamento Alemão (convidado por um parlamentar) a um debate entre os grandes políticos da época sobre a Ostpolitik (política de abertura ao Bloco de Leste de Willy Brandt, que lhe valeu o Prémio Nobel da Paz em 1971); li uma cópia do El Diario del Che (ainda não publicado), etc. etc.

Inglês A Globalização do mundo é irreversível, mas ambivalente, como todos os fenómenos de mudança civilizacional. Tem efeitos de homogeneização, uns positivos, outros negativos, mas também de visibilidade


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e valorização das diferenças, com efeitos também positivos ou negativos. Torna necessário um esperanto de comunicação universal que, nos tempos medievais, era o latim e é, hoje, o inglês. O inglês porque, sendo a linguagem um instrumento de poder, a correlação de forças no mundo contemporâneo é favorável ao poder económico-militar dos países de língua inglesa, falada em todos os continentes. É uma realidade que me obrigou a mudar academicamente ‘de armas e bagagens’ para o inglês, depois de todo um percurso intelectual tendo o francês como língua estrangeira principal, incluindo uma tese de doutoramento em Paris.

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A utilização de uma língua franca não é, fatalmente, causa de desvalorização de outras línguas. A salvaguarda da diversidade linguística é uma prioridade da UNESCO e uma preocupação também da União Europeia. Uma língua não é uma escolha, é uma herança identitária, uma visão do mundo. É por isso que aprender a língua materna é um elemento do direito à educação, assim como aprender na língua materna, quando é diferente da língua ou línguas oficiais, pelo menos nos primeiros anos da educação pré-escolar e escolar. Aprender na língua materna ainda não é um direito formalmente reconhecido nas principais disposições internacionais sobre o direito à educação, mas é inquestionável a sua importância para o desenvolvimento da capacidade de utilizá-la, para o sucesso das aprendizagens e para a protecção da identidade cultural.

Papers Sobre o Homo Academicus escreveu o saudoso Pierre Bourdieu (estive num almoço com ele numa das primeiras sessões do Fórum Mundial de Educação, em Porto Alegre): vive acima dos seus meios e goza, eventualmente, de «uma respeitabilidade científica sem correspondência com os seus contributos reais para a ciência»; trata de acumular «o capital


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de serviços prestados que é indispensável à instauração das cumplicidades, das alianças e das clientelas»; pratica «estratégias de cooptação» que explicam a crónica e elevada endogamia universitária, através de concursos que motivam intermináveis contenciosos administrativos (eu próprio levei ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos um caso que terminou com o pagamento de uma indemnização pelo Estado e a repetição de um concurso no qual decidi não participar). Há decisões de júris académicos que trazem à lembrança o júri do prémio instituído pelo Secretariado Nacional da Propaganda, em 1934, que preteriu a Mensagem de Fernando Pessoa em favor da Romaria de um obscuro clérigo franciscano, por não ter o número de páginas regulamentar…

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O típico Homo Academicus tem um CV nutrido pela sua mediocridade laboriosa e cortesã, uma academica mediocritas eventualmente recheada de papers ou outros foods do aviário académico. As perversões da sua métrica estão bem comprovadas. Luís Souta dá um exemplo da sua experiência, mas além do ‘milagre’ da sua multiplicação, há papers assinados por dezenas e até centenas de autores. E até o insólito de aparecer como autor de um paper alguém que já faleceu… A própria fiabilidade do sistema dos referees é questionada. A Universidade Portuguesa continua assombrada por aquela ‘alma’ tão eloquentemente descrita e criticada, entre nós, por figuras como Bernardino Machado, Orlando Ribeiro, Eduardo Coelho. Por isso, quando tive de escolher entre as servidões de uma ‘carreira académica’ gloriosa e a liberdade da diferença, optei pelo direito de ser diferente.

Congressos No que respeita a participação em congressos internacionais, pode-se falar em algum ‘turismo académico’, como se fala de ‘turismo médico’ (pago por


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Rousseau

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farmacêuticas ou outros interessados beneméritos). Todavia, também na participação docente em congressos internacionais o mais importante pode não ser o paper que se apresenta ou qualquer outra performance, mas as pessoas que se conhece, as relações que se estabelece, as experiências que se vive… Devo confessar que o mais gratificante da minha vida académica tem sido a possibilidade de livremente investigar, escrever, publicar, bem como de viajar pelo mundo, desde Pearl Harbor (Havai) à Grande Muralha da China. Quando passo um certo tempo sem viajar, começo a sentir alguma falta de ar… Mesmo que seja ir percorrer centenas de quilómetros de automóvel para ministrar cursos de doutoramento em remotas cidades do México.

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Luís Souta faz uma referência aos “filhos de Rousseau” – certamente alusivo ao título de um artigo publicado por Maria Filomena Mónica no extinto semanário Independente a 28 de Fevereiro de 1997 e título também de um livro da mesma autora publicado no mesmo ano. O artigo e o livro tiveram repercussão polémica nos meios de comunicação social. Tentei participar na polémica com dois artigos, mas sem sucesso, que os jornais têm os seus critérios. Neles argumentava que na polémica se tinha escrito direito por linhas tortas e torto por linhas direitas. Com efeito, no universo da educação, o sol continua a mover-se em volta da terra, mas a autora argumentava com uma ligeireza intelectualmente chocante. Mas estou plenamente de acordo com o que a Profª Filomena Mónica escreveu numa nova revista em 2013: «Há três anos, farta de presidir a concursos de promoção com base em grelhas idiotas, pedi a reforma antecipada».

Como escreveu Eric Weil, «é difícil ficar frio perante Rousseau, gosta-se ou detesta-se». Eu apaixonei-me


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pelo seu génio. (Fui visitar Montmorency, terra natal de Émile…). Por isso, tinha sugerido (em vão) à primeira Presidência Portuguesa do Conselho das Comunidades Europeias (de 1 de Janeiro a 30 de Junho de 1992) o lançamento de uma iniciativa coerente com a nova visão comunitária da educação fundada no Tratado sobre a União Europeia. Justificava:

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Erasmo, Sócrates, Coménio e Leonardo da Vinci são nomes históricos do património cultural e pedagógico da Europa já escolhidos como patronos de Programas comunitários de cooperação, no domínio da educação e da formação. Seria um acto da maior justiça e de grande alcance político-pedagógico que o novo Programa tivesse o nome de Rousseau.

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Pelas suas modestas origens e diversificada cultura de autodidacta insaciável; pela sua aventurosa e sofrida biografia europeia; pelas atribulações, contradições e paradoxos da sua vida e obra; pela sua individualidade universal; pelo seu génio político, pedagógico e literário; pelo seu amor da natureza, do povo, da verdade, da justiça e da lei; pela sua capacidade de indignação e de compaixão; por tudo isto, Rousseau é bem um símbolo da Europa real e ideal. Vem a propósito acrescentar que no seu livro intitulada O ‘eduquês’ em discurso directo – Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista, publicado em 2006, o futuro Ministro da Educação Nuno Crato incluía o meu nome na comunidade dos eduqueses, com uma citação (truncada) a propósito de Rousseau retirada de um livro sobre a história da educação que eu publicara em 2005 (posteriormente publicado também no Brasil).

Direito à educação Este livro inclui uma bela citação da letra de uma música da Banda do Casaco, no álbum Coisas do Arco da Velha (1976): «É triste não saber ler / É triste


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não saber falar […] / É triste um homem morrer / Sem ter chegado a nascer». Na realidade, os filhos e filhas da espécie humana nascem como animais des-naturados que, se não forem humanizados, tornam-se seres humanos des-figurados, como ilustram os casos de ‘crianças selvagens’. Os seres humanos nascem para re-nascer através da educação como fenómeno de comunicação. O Homem é um animal pedagógico porque é um animal semiótico.

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Faço votos para que Luís Souta continue a escrever, porque as suas convicções e sentimentos ainda têm muito para dizer…


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RECEPÇÃO AOS NOVOS ESTUDANTES «No fim de contas, isto não passa de uma fábrica de diplomas! E, para eles, terem um diploma é mais importante do que ficarem a saber.»

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(Crónicas Docentes, Maria Carlos Radich, 1983: 73)

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O Prof.S., durante três anos, acolheu os novos estudantes na cerimónia da rentrée académica. Tal como nas aulas, preocupou-se em evitar a rotina, não se repetindo. Mas ao terceiro ano de recepção aos ‘caloiros’ a tarefa complicava-se: já não havia muita imaginação para expor assuntos recorrentes e animar aquela juventude para um modelo de licenciatura curta que Bolonha impôs e cujos frutos não conseguia vislumbrar. O seu cepticismo, sobre uma formação de base reduzida a um triénio, continuava em crescendo; a jornada era curta para os lançar, devidamente preparados, no mundo do trabalho… que a (estrutural) ‘crise’ ia empurrando para as calendas. À falta de documento escrito ou multimédia, tentaremos reconstruir de memória um desses discursos do Prof.S.; pelos eventuais lapsos e omissões, desde já nos penitenciamos junto do ex-presidente do CD esperando que o seu propalado (mas algo exagerado) ‘mau feitio’ não nos leve à barra do tribunal (onde nas «sociedades de direito» todos as querelas acabam por ir bater). É com enorme satisfação que vos dou as boas-vindas à Escola xpto. A entrada no Superior constitui um marco significativo no vosso percurso académico e pessoal. Este é o momento por que tanto ansiaram. E por isso, é um dia muito importante nas


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vossas vidas. Para nós, docentes, é mais um arranque de um ano lectivo, para o qual nos preparámos, como sempre, com renovado entusiasmo. Para vocês, é o primeiro dia no ensino superior. Não na faculdade, como muitos dos vossos colegas teimam em apelidá-la; tal como os vossos pais, quando informam orgulhosos, vizinhos e amigos, que o/a filho/a «entrou na Universidade!»; ou até aqueles, que morando nas imediações da Escola, persistem em afixar anúncios de «óptimo quarto, com wi-fi, muito perto da Universidade». Clarifiquemos: esta não é uma Faculdade, é uma Escola que faz parte do ensino superior politécnico público. Nos próximos anos, será o vosso local de trabalho. Nele passarão parte significativa do vosso tempo, estudando, pesquisando, criando… crescendo. Aqui encontrarão, assim o julgamos, conhecimentos e competências necessários à profissão por que optaram (aos colocados em cursos de segunda escolha, esperemos que o ensino aqui ministrado vos convença a ficar, prescindindo de uma hipotética mudança de curso). Mas este é também um local onde podem, e devem, exercer uma cidadania activa, participando, designadamente, na Associação Académica (AA) e no Conselho Pedagógico (CP), na construção de uma comunidade viva com diversificada vida cultural. A escola deveria ser um ‘oásis’: aqui deveriam sentir-se bem pois nela encontrariam tudo o que acham que falta no ‘deserto’ societário (sub)urbano em que residem. Todos somos chamados a criar esse enriquecedor contexto social e pedagógico. Nos próximos tempos vão dar conta de muitas diferenças em relação ao ensino Básico e Secundário que frequentaram nos últimos 12 anos. E, na generalidade dos casos, quanto maior for essa discrepância, melhor; isso indicia que estão a emergir numa cultura ‘superior’ e que a Escola xpto não é um upgrade do Secundário (como pretendem os promotores dos CTeSP - Cursos Técnicos Superiores Profissionais). Aldous Huxley (célebre autor do Admirável Mundo


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Novo, de 1931) no seu livro Proper Studies (1927: 115), no capítulo «Educação» — “As Universidades”, considera que Oxford e Cambridge têm «o melhor método de ensino» pois aí «é-se activamente encorajado a adquirir saber». Cá, essa deveria ser, igualmente, a nossa meta.

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A partir de agora estão por vossa conta. Não hesito em apostar, pois a probabilidade de acerto é alta, que os vossos pais só virão a esta escola no dia em que estiverem de saída, quando vos entregarmos o «canudo» de fim de curso. E não é mau sinal, podem crer. Gozarão de liberdade e autonomia enormes. A contrapartida é, naturalmente, o acréscimo da responsabilidade. Terão que aprender a gerir esta trilogia de valores, a difícil arte do equilíbrio entre direitos-e-deveres. Um saber que se adquire sem sebenta nem prelecção… O coordenador de curso e os colegas mais velhos são auxiliares preciosos nesse balanço de experiência e bom senso.

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Depois da maratona de exames e candidaturas do 12º ano, alguns de vós correm o risco de caírem numa espécie de ‘ressaca’, pairando entre o descanso e a brincadeira, entretidos nas praxes que vos anestesiam a mente e emporcalham a roupa (como evitá-las?). Sendo as unidades curriculares (uc), no 1º ano, todas semestrais, quando dão por isso estão no final do 1º semestre, descuidaram as avaliações, e as notas finais… são um balde de água fria. Deixovos, pois, um ‘aviso à navegação’, socorrendo-me de um grande escritor português, Jorge de Sena, e do seu romance Sinais de Fogo (de 1979, adaptado ao cinema, em 1995, por Luís Filipe Rocha): «Porque éramos livres de entrar e sair da faculdade, e ninguém nos perguntava para onde íamos, e estávamos – pelo menos nós três – muito mais longe de casa, a sensação de liberdade era absoluta, tão absoluta, que quase perdemos o hábito de estudar regularmente.»


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Por favor, tenham sempre presente que, enquanto estiveram nesta instituição, estudar e concluir o curso (sem reprovações) é o vosso objectivo prioritário. Divertirem-se, arranjar amigos e namorado/a são efeitos colaterais… positivos. Votos de um excelente ano escolar.

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Ouviram-se aplausos no anfiteatro. O Prof.S. cogitou, «nos dias de hoje, há falta de critérios, aplaude-se sempre; tudo é entendido como espectáculo». Só que este não teve a parafernália multimédia.


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RELAÇÃO ALUNO-PROFESSOR uma tipologia «Aprendi muito com os meus mestres, mais com os meus companheiros e mais ainda com os meus alunos.»

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(Talmude)

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Mais um ano lectivo. O regresso às aulas, no ensino superior público, não trouxe novidades de monta. Os governos mudam, mas os orçamentos insistem na contenção. Consequência, investimento zero: o edifício não tinha tido intervenção alguma (lá voltaríamos ao ping ping das primeiras chuvas), não houvera upgrade no hardware informático, o corpo docente igual ao ano transacto (não há lugar para sangue novo no sistema), os sobreiros do campus continuam a estiolar… De diferente só mesmo a leva de estudantes de 1º ano. Havia sempre alguma expectativa em relação às colocações de início de Setembro (se corressem bem nos vários cursos, seriam umas 180 caras novas). Mais que as suas fisionomias, a curiosidade prendia-se com os seus perfis psicológico, cultural, cívico e de aprendizagem. O Prof.S. recordou-se então de uma série de tipologias de estudantes: cábulas - marrões (a mais tradicional); futricas - caloiros - veteranos - doutores (da bafienta Universidade de Coimbra de outras eras); marrões - bacanas - graxas - baldas (Machado Pais, Culturas Juvenis, 1993). Na sua já longa carreira, o Prof.S. (exemplo fidedigno de «professor reflexivo») tem observado, de forma crítica, a evolução do comportamento dos estudantes, apreciado reacções, ajuizado atitudes,


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Fase 1 - Afrontar Fase 2 - Aproximar Fase 3 - Apomadar Fase 4 - Apartar

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avaliado condutas. Os tempos têm cambiado (e de que maneira!) e os estudantes também. Apesar das ‘mudanças de espuma’ (muitas) e das ‘mudanças estruturais’ (poucas), havia condutas que se mantinham quase inalteráveis; continuava a fazer sentido o conceito que ele criara – Homo Scholaris. Tendo por base a sua experiência empírica, o Prof.S., encetou uma análise sistemática conducente à categorização, não da performance escolar ou dos clássicos ‘desenvolvimentos’ (psicológico, cognitivo, moral, educacional…), mas dos comportamentos de alunos no seu relacionamento com o professor. E elaborou a tipologia dos quatro A’s:

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A fase 1 - Afrontar, coincide com o início das aulas; o estudante intervém muito, colocando perguntas (pretensamente difíceis), fazendo comentários (alegadamente pertinentes). Como não conhece o professor (nem a cultura escolar, no caso de ser caloiro), desafia-o (na sua tolerância), testa-o (no seu saber), para ver como ele reage. Em suma, vai puxando a corda… É a fase de estudo do ‘adversário’. Já na fase 2 - Aproximar, o estudante procura quebrar o distanciamento. Quando a aula acaba, fica para dar mais uma palavra ao professor, colocar-lhe uma dúvida, pedir um esclarecimento adicional; e no arrastar da conversa, acaba por o acompanhar até ao gabinete (mostrando assim aos colegas a ‘proximidade’ com o prof). Fora da sala de aula, sempre que se cruza com ele, cumprimenta-o efusivamente. Envia, com frequência, e-mails ao professor solicitando-lhe apoio. Esta é a etapa mais profícua do relacionamento. A fase 3 - Apomadar (termo pedido de empréstimo a Ruben A., Páginas V, 2000: 116), equivalente


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na gíria estudantil ao ‘dar graxa’ ao professor. Nesta etapa, mais intensa no período das avaliações finais de semestre, mais que perguntas há elogios. Prontifica-se para tarefas ‘menores’ (ligar o computador e o data show da sala, entrar na moodle e, finalizada a aula, até se oferece para apagar o quadro, e levar o cavalete se for caso disso). Arranja pretextos constantes para demonstrar o seu «enorme interesse na matéria» e não cessa de perguntar isto e aquilo; enfim, quer mostrar que está sempre ‘presente’.

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Esta fase 4 - Apartar, inicia-se após a conclusão da uc. Depois do lançamento das notas, o estudante, que passou com classificação baixa, entra rapidamente neste processo de afastamento que se vai acentuando até ao ‘desconhecimento’; ou seja, quando o docente se cruza com ele, nos corredores da escola, já nem se digna cumprimentá-lo (está seguro que ele não voltará a leccionar mais nenhuma uc do plano de estudos). O bom aluno escapa, com mais frequência, a esta etapa.

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Obviamente, nem todos os estudantes passam por estas quatro fases com um só docente e num só semestre. Mas raros são aqueles que, durante o curso, não acabam por manifestar estes 4A’s. Ao professor cabe descodificar os comportamentos associados a cada fase e acomodar-se, mostrando poder de encaixe e fazendo sempre uso desse precioso auxiliar pedagógico – o ‘espelho’. Devolver a imagem aos estudantes é um bom caminho para a sua auto-regulação.


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PRAXES beber e amochar «Os estudantes auto-educavam-se nos valores do humanismo e na luta contra a ditadura. Agora educam-se nas praxes e na cerveja.»

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(O Sonho Português, Paulo Castilho, 2015: 388)

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Segundo um estudo de 2017, 14% das instituições revelou que já lhe tinham sido comunicados casos de violência nas praxes. Não há ano escolar, neste ensino dito Superior, que não seja manchado por incidentes graves durante as (estupidificantes) praxes. Em Dezembro de 2013, no Meco, foi a morte dos estudantes da Universidade Lusófona. Dois anos depois, a imprensa reportou o caso da «Caloira do Algarve em coma alcoólico»: segundo o relato da proprietária de um apoio de praia, «eles abriam covas, ficavam cobertos de areia até ao pescoço, e quando não estavam suficientemente enterrados, vinha o padrinho e obrigava-os a beber» (Público, 25/09/15 de Setembro, p. 14). No fim, «muitas garrafas de vodka, whisky e vinho», no areal, quais vestígios dionisíacos a denunciarem os excessos de mais um (anacrónico e degradante) cerimonial estudantil. Ali, ninguém fez caso da campanha do MCTES: «Diz não às praxes agressivas e violentas». Eram estes os pensamentos do Prof.S., enquanto cafezava, antes do início das aulas da manhã. Agastado, fechou o jornal e saiu do bar. Num placar do corredor, um colorido cartaz da AA promovia uma Festa, com imperial a 0,35€: «começa o ano lectivo em grande e está sempre de Cop’Cheio». Dias antes, no desfile académico, um grupo de estudantes


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