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São estudados em pormenor neste volume dezenas de processos da Inquisição, averiguando-se as manigâncias dos Inquisidores para levar os réus à condenação. A grande maioria dos processos é da Inquisição de Lisboa, pois só estes é que foram sistematicamente digitalizados e colocados na Internet. Infelizmente não foi possível consultar e estudar importantes processos das Inquisições de Coimbra e de Évora por se encontrarem em mau estado de conservação.
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Quase todos os processos se referem à perseguição de cristãos novos, acusados como hereges face à doutrina da Igreja Católica. Aqui e além aparecem outros processos de réus que não eram cristãos novos. Foi inserido o estudo destes por terem algum interesse histórico e também para ilustrar os métodos da Inquisição. Nunca se exagera ao sublinhar a falsidade e a hipocrisia da Inquisição. Nos seus inícios, calculava-se a parte de sangue cristão novo que tinha cada réu: metade, um quarto, um oitavo de cristão novo. Depressa passaram a contentar-se com dizer que o acusado tinha parte de cristão novo. E, por fim diziam simplesmente que o réu tinha fama de cristão novo. Tinham acusado o pobre desgraçado, falsamente. Se queria salvar a pele, este tinha forçosamente de confessar a sua crença na Lei de Moisés, mostrar-se arrependido e acusar do mesmo familiares, amigos e conhecidos. Era uma cadeia sem fim à vista.
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A Inquisição portuguesa em face dos seus processos volume II - Estudo de Processos - séc. XVI-XVII
Arlindo N. M. Correia
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A Inquisição Portuguesa em face dos seus Processos Volume II Estudo de Processos - séc. XVI-XVII Arlindo N. M. Correia
Arlindo Nogueira Marques Correia nasceu em Campia, concelho de Vouzela, em 1943. Aos 19 anos começou a trabalhar como Aspirante de Finanças, após um concurso nacional em que ficou classificado em 1.º lugar entre 238 candidatos. Quando lhe foi possível, matriculou-se em Direito em Coimbra e obteve a licenciatura em 1978. Subiu na carreira das Finanças através de diversos concursos tendo sido aprovado como Director de Finanças em Dezembro de 1979. Em Agosto e Setembro de 1983, frequentou em Washington o Curso de Finanças Públicas do FMI. Em Maio de 1985 foi nomeado Subdirector-Geral da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. De 13 a 26 de Agosto de 1989, integrou uma missão do FMI a Angola para reportar sobre o sistema fiscal daquele País. De 9 a 23 de Abril de 1993, integrou outra missão do FMI a Moçambique para desenhar um sistema de IVA para o País. Em Junho de 1993 foi afastado da administração do IVA sem qualquer justificação. Foi então trabalhar para a Comissão Europeia em Setembro de 1994, primeiro como perito destacado e, após concurso, como Agente temporário A5, passando então à condição de reformado em Portugal. Tendo abandonado a Comissão Europeia no final de Abril de 1999, foi depois nomeado Conselheiro da Representação Permanente de Portugal junto das Comunidades, tendo ido para Bruxelas em Julho de 1999, ocupando-se da Presidência Portuguesa no 1.º semestre de 2000. Regressou de Bruxelas em Julho de 2000 e iniciou então o estágio da advocacia, como estagiário da firma ANBM que durou dois anos e meio. Ficou no mesmo escritório como consultor até Abril de 2008, tendo suspendido o exercício da advocacia. Tem na Internet o site http://arlindo-correia.com de conteúdos variados desde Julho de 2000.
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FICHA TÉCNICA edição: Edições ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: A Inquisição portuguesa em face dos seus Processos (Séc. XVI e XVII) autor: Arlindo N. M. Correia capa: Paula Martins paginação: Alda Teixeira 1.a Edição Lisboa, Janeiro 2018 isbn: 978-989-8867-24-7 depósito legal: 435960/17 © Arlindo N. M. Correia
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NOTA: O Autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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ÍNDICE
VOLUME II
IV – PROCESSOS ESTUDADOS – Séc. XVI e XVII IV.1 – Na Inquisição de Lisboa, até 1570 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.2 – Frei Valentim da Luz (1524-1562) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.3 – Manuel Travaços, relaxado pela Inquisição por luteranismo em 1571 . . . IV.4 – Garcia Lopes (1520?-1572). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.5 – Bento Teixeira (1561-1600) na Inquisição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.6 – Fr. Diogo da Assunção (1571-1603) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.7 – Na Inquisição, no último lustro do séc. XVI. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.8 – Ana de Milão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.9 – Manuel Soares Brandão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.10 – Baltasar Estaço (1565-?) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.11 – A prisão e o processo do Doutor António Homem . . . . . . . . . . . . . . . . IV.12 – Henrique Pais, Advogado no Porto, preso nove anos e depois garroteado na Inquisição de Lisboa em 1629 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.13 – Razia de uma família inteira – Tomás Rodrigues, esposa e filhos . . . . IV.14 – O processo de Leonor da Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.15 – Duas freiras de Coimbra, na Inquisição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.16 – Os netos do Doutor Pedro Nunes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.17 – A fábrica de Judeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.18 – Os Pinas de Lava Rabos, termo de Ançã, na Inquisição . . . . . . . . . . . . IV.19 – A freira Francisca da Encarnação, de Lamego, morta com sua irmã em 1629 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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IV.20 – A perseguição de jovens meninas em Leiria – uma tese de doutoramento lamentável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.21 – Na Inquisição, em 1632: Manuel de Anta e suas irmãs . . . . . . . . . . . . IV.22 – Outros relaxados de Leiria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.23 – A tragédia na Inquisição de Diogo Rebelo, relaxado como falsário – Cristóvão Leitão, vitima de Diogo Rebelo e da Inquisição. . . . . . . . . . IV.24 – Vicente Nogueira (1586-1654) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.25 – A Família Quintal, de Santarém, na Inquisição. . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.26 – Isaac de Castro, de 21 anos, queimado vivo pela Inquisição . . . . . . . . IV.27 – Padre Manuel de Moraes (1596 ?-1651?) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.28 – João de Águila (1630-?) na Inquisição de Lisboa . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.29 – Simão Rodrigues Nobre, advogado, da Guarda e seu filho, médico. . . IV.30 – As andanças do Padre Pedro Lupina Freire (1625-1685) . . . . . . . . . . . IV.31 – Uma família perseguida pela Inquisição durante mais de 100 anos . . . IV.32 – António Pires, o Meia Noite, relaxado no Auto da Fé de 17 de Outubro de 1660 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.33 – 1655 – A Inquisição entra a sério na Guarda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.34 – António de Oliveira de Cadornega (1623-1690) . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV.35 – A Inquisição seria extremamente ridícula, se não tivesse sido sempre trágica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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IV.1 Na Inquisição de Lisboa, até 1570 Pr. n.º 8345 – Pero ou Pedro flamengo Pr. n.º 4388 – Álvaro Gomes Pr. n.º 12932 – Salvador Soares Pr. n.º 1284 – Catarina Rodrigues Processo n.º 2485 – Gabriel Rodrigues Processo n.º 10742 – Marcos Gomes
Na Lista dos Autos da Fé da Inquisição de Lisboa (pag. 31 do software), António Joaquim Moreira anotou: “As notícias de todas as inquisições são mui escaças (sic) até ao anno de 1600 – em que começarão a publicar listas manuscriptas dos Autos da Fé”. Nada mais certo e, por isso, não faz sentido andar a coligir estatísticas de relaxados e reconciliados com base nas listas daquele erudito, tantas são as faltas que têm. Há, porém, uma maneira de reconstituir, pelo menos parcialmente, as listas dos Autos da Fé: é agrupar as fichas dos processos existentes por datas dos autos da fé. A data do auto da fé era geralmente anotada a seguir à sentença, pois esta era tornada pública no auto. Foi o que fiz para os Autos da Fé até 1570, em relação aos relaxados, procurando os respectivos processos. Entendo, porém, que este trabalho deveria ser feito pelos Arquivos da Torre do Tombo, mais ou menos assim: 1 – Deveriam, primeiro, actualizar-se as fichas dos processos, verificando a data do auto da fé ou adicionando-a à ficha se lá não está. Deveria ver-se se a data indicada é de um domingo, caso contrário, pode estar errada. Pode utilizar-se um calendário perpétuo, por exemplo, este: http://ghiorzi.org/caleperp.
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htm . Seria muito conveniente assegurar-se que, se fosse o caso, as fichas dos processos tivessem a anotação “Relaxado” e “Faleceu no cárcere”. 2 – Concluído este trabalho, um pequeno programa poria os Réus por ordem de datas de autos da fé. 3 – Ainda antes disso, seria muito conveniente colocar em formato digital as listas existentes de autos da fé, reservando um campo para o n.º do processo. 4 – As listas existentes seriam completadas com os nomes omissos que viriam da lista dos processos, e aditadas com os números dos processos. 5 – Estas listas permitiriam ter uma ideia muito mais completa do n.º dos penitenciados e relaxados pela Inquisição e também elaborar uma lista dos processos desaparecidos.
Relaxados em Autos da Fé em Lisboa que não constam dos manuscritos de A. J. Moreira, até 1570 O primeiro auto da fé não teve relaxados e foi a 26 de Setembro de 1540 e não a 20, como refere Moreira Domingo, 23 de Outubro de 1541 Pr. n.º 17982 – Mestre Gabriel (em estátua por estar ausente e revel) Domingo, 22 de Outubro de 1542 Pr n.º 16957 – João Gomes Domingo, 11 de Fevereiro de 1543 Pr. n.º 584 – Henrique Nunes e mulher Beatriz Nunes – Os réus estavam ausentes Terça-feira, 14 de Outubro de 1544 Pr. n.º 1924 – Álvaro Fernandes Pr. n.º 12903 – André Vaz Pr. n.º 1700 – Nicolau Vaz
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Pr. n.º 4532 – Diogo de Leão (segundo a ficha, o auto da fé deste Réu teria sido em 19-12-1544) Pr. n.º 8435 – Lucrécia Leoa Pr. n.º 12507 – Manuel de Oliveira Nota: Em documento transcrito por João Lúcio de Azevedo a pgs. 450, o Inquisidor João de Melo diz que no Auto foram 19 os relaxados, mas só encontrei estes processos. Domingo, 27-8-1553 (a ficha do processo está errada: o dia não é 26) Pr. n.º 865 – Henrique de Queirós Domingo, 3-3-1555 Pr. n.º 6405 – Duarte Fernandes Pr. n.º 600 – Padre Guilherme Bro (o processo tem Boroa) Pr. n.º 2466 – Fernão Vaz ou Fernão Vasques Pr. n.º 9557 – António Fernandes Pr. n.º 10712-1 – Lourenço Pr. n.º 10811 – Miguel Ferreira Pr. n.º 12445 – Bartolomeu Álvares Terça-feira, 26-5-1556, segunda oitava do Espírito Santo Pr. n.º 3590-1 – Cristóvão Fernandes Pr. n.º 4183 – Alonso Nunes Domingo, 28-2-1557 Pr. n.º 8345 – Pero ou Pedro Flamengo Domingo, 15-5-1558 Pr. n.º 8343 – Pedro Álvares Pr. n.º 11665-1 – Robert Pr. n.º 1270 – Grácia Pires Pr. n.º 1330 – Isabel Dias Pr. n.º 5114- Isabel Mendes
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Pr. n.º 12147 – Ana Fernandes Pr. n.º 10752 – Manuel Henriques – não se consegue saber a data do auto da fé (mas deve ser também 15-5-1558) Domingo, 24-9-1559 (Em algumas fichas dos processos está Outubro em vez de Setembro, mas é erro de leitura que também eu fiz inicialmente) Pr. n.º 4391 – Álvaro de Leão Pr. n.º 6105 – Duarte de Chaves Pr. n.º 4199 – Doutor António Borges Pr. n.º 8342 – Pedro Fernandes Pr. n.º 5957 – Isabel Fernandes Domingo, 16-3-1561 Pr. n.º 4388 – Álvaro Gomes Pr. n.º 8344 – Mestre Pedro Pr. n.º 5114 – Isabel Mendes – já fora condenada em 1558, mas não havia sido executada por estar doente Pr. n.º 7324 – Maria Rodrigues Pr. n.º 7296 – Leonor Caldeira Pr. n.º 12148 – Leonor de Castro Domingo, 10-5-1562 Pr. n.º 61 – Diogo Fernandes Pr. n.º 4188 – Henrique Rodrigues Pr. n.º 12932 – Salvador Soares Pr. n.º 8352 – P.e Mestre Fr. Valentim da Luz Pr. n.º 1266 – Filipa Carvalho Pr. n.º 10886 – Mor Ribeira Pr. n.º 12778 – Branca Ribeira Pr. n.º 13280 – Mor Mendes Pr. n.º 1284 – Catarina Rodrigues Pr. n.º 5248-1 – Guiomar do Campo
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Domingo, 16-5-1563 A lista de António Joaquim Moreira está certa, mas indica o dia 26 de Maio de 1563, quando o correcto é 16, que foi Domingo: António Rodrigues, natural de Tomar – Pr. n.º 606 Jorge Lopes, confeiteiro, natural de Lisboa – Pr. n.º 713 Manuel Álvares, tendeiro, natural de Lisboa – Pr. n.º 10807 Francisco Gonçalves, azeiteiro, natural de Lisboa – Pr. n.º 1155 Manuel da Fonseca– Pr. n.º 10812 Francisco Fernandes, ourives, natural de Lagos – Pr. n.º 9 218 Manuel Álvares, natural de Santarém– Pr. n.º 10808 Catarina Rodrigues, por alcunha a “do Penedo”, de Santarém – Pr. n.º 1284 Catarina Álvares – Pr. n.º 4460 Francisco Luis, barreteira, natural de Lisboa – Pr. n.º 1239
Domingo, 11-6-1564 Pr. n.º 1156 – João Lopes Pr. n.º 2485 – Gabriel Rodrigues Pr. n.º 2486 – Gaspar Fernandes Pr. n.º 8349 – Bastião Fernandes Pr. n.º 10719 – Lázaro Moniz Pr. n.º 12149 – Ana de Torres Pr. n.º 2273 – Leonor Gonçalves Pr. n.º 12151 – Ana Rodrigues Pr. n.º 6481 – Francisco Dias Domingo, 1-7-1565 Pr. 1519 – Duarte Álvares Pr. n.º 2269 – Manuel Dias Pr. n.º 10742 – Marcos Gomes Pr. n.º 12141 – Ana Gonçalves Domingo, 9-3-1567 Simão Dias, de Faro – Pr. n.º 8351
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Afonso Mendes – – Pr. n.º 4200 Diogo Quiban – – Pr. n.º 63 Catarina Álvares, de Tavira – Pr. n.º 3545 (não foi relaxada) Branca Nunes, de Lamego – Pr. n.º 6415 (não foi relaxada)
Na lista acima de A.J. Moreira para este Auto, as duas mulheres indicadas não foram relaxadas, mas sim reconciliadas, mas faltam na Lista estas relaxadas Pr. n.º 1286 – Catarina Afonso, natural de Torrão – Beja, moradora em Lisboa Pr. n.º 7316 – Violante Rodrigues, de S. João da Pesqueira Domingo, 11-3-1571: Manuel Travassos – Pr. n.º 10259 Leonardo Salvador Fernandes – Pr. n.º 8347 (ausente e falecido) Luis Fernandes – Pr. n.º 10718 (em estátua-ausente do Reino) Nota: António de Melo, indicado por A.J. Moreira, saiu neste auto, mas não foi relaxado – não aparece o processo. Teve depois um 2.º processo em Coimbra com o n.º 8388, e saiu no AdF de 12-9-1574, por impedir o recto ministério do Santo Ofício
O que se pode concluir dos primeiros processos Os primeiros processos têm aspecto de sumários, raramente ultrapassam poucas dezenas de fólios. Muitas vezes falta lógica jurídica na ligação entre as culpas e a condenação. Os julgadores condenam mais pela convicção do que propriamente pelas provas aportadas ao processo. Diz-se que o Réu é judaizante, expressão que desaparece dos processos no final do séc. XVI. Curiosamente, será retomada pelos historiadores do séc. XX!
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Geralmente, não há genealogia (não está no Regulamento), mas esta já aparece nalguns processos. Existe no entanto a preocupação de prender vários elementos da mesma família para que, segundo os princípios inquisitoriais, se acusem uns aos outros. O processo n.º 10742, de Marcos Gomes, tem um mandado de prisão para 20 pessoas! Muitos processos não têm libelo, nem publicação da prova da justiça. Não são oferecidos aos Réus procuradores para a sua defesa. Mas existia já a possibilidade de o Réu contratar um procurador. As acusações não são ainda de declaração de judaísmo em forma como seriam quase sempre nos séculos seguintes, mas heresias mais concretas: não crer na SS.ma Trindade, na divindade de Cristo, fazer jejuns, pequenos ou grandes, guardar os sábados de trabalho, etc. A Inquisição considerava indícios de judaísmo todo e qualquer costume de judeus, mesmo que não ligado à religião, por exemplo, vestir camisa lavada aos sábados, ou rezar olhando as estrelas do céu… Nos primeiros processos, os tempos de prisão são curtos e praticamente nunca excedem os dois anos. Alguns processos sobem ao Inquisidor-Geral, mas a maior parte são decididos em parecer da Mesa. As sentenças repetem de certo modo a condenação. Mas, como são lidas publicamente nos autos da fé, começam a conter elementos provindos da fantasia dos inquisidores, que não têm que ver com a realidade. Vigora já o básico princípio inquisitorial de que o Réu para se livrar tem não apenas de confessar, mas também de denunciar. Começam então os Réus a denunciar os que já estão presos nos cárceres. Para a condenação, usa-se por vezes a mera suspeita de que os Réus são “judeus” no coração. Surge já a acusação de perturbar o recto funcionamento do Santo Ofício – Provocar avarias no funcionamento da máquina de poder que era a Inquisição. Certas fórmulas dos assentos são repetidas sem correspondência com cada processo, ex. confissões diminutas, variações, repugnâncias e contradições São já muito utilizadas as denúncias dos presos uns contra os outros, de conversas que se faziam nos cárceres. Tenho a sensação de que o combate ao judaísmo pela Inquisição tinha também por base um pavor ao luteranismo, ainda mais odiado que os judeus.
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A doutrina religiosa dos judeus, tirada a imortalidade da alma e a crença na ressurreição dos mortos é simplesmente um teísmo, praticamente o mesmo que os luteranos, abstraindo da prática religiosa. Desaparecia a eucaristia, os santos, os frades, as indulgências, a venda das Bulas, os jejuns e abstinência.
Processos antigos Pr. n.º 8345 – Pero ou Pedro flamengo –, calceteiro, natural de Anvers e morador em Lisboa, casado com Maria Dias, portuguesa Preso em 24 de Março de 1556 A vizinha Isabel Lopes disse ter-lhe dito a mulher do réu que seu marido dizia que um flamengo ou francês que tinham queimado no auto passado era muito bom cristão. Dizia também que não se devia rogar aos santos. A mulher Maria Dias disse que o marido lia muito por um livro na língua dele e dizia que lhe pusessem esse livro à sua cabeceira, se estivesse doente. Que ele seu marido queria comer carne nos dias de abstinência, dizendo que não era pecado e que, se fosse pecado, que caísse sobre ele. Dizia que não havia de rezar nem jejuar, nem havia de comprar bulas ou indulgências. E que não acreditava nos poderes das relíquias. Que as estátuas dos santos eram feitas de pau e tinta e que não rogava aos santos. Que nenhum pobre havia de ir para o inferno. Disse mais ela que o seu marido fora preso em Granada e ali cuidou que o queimassem e que foi açoitado; foi sambenitado, mas depois tiraram-lhe o sambenito. Interrogado, exprimiu as mesmas convicções que dissera a sua mulher. Nas imagens 50 a 65 está o processo dele em Granada, onde, confessou e abjurou em Setembro de 1552. Por sentença foi considerado relapso no crime de heresia por luteranismo e condenado no relaxe à justiça secular. Foi publicada a sentença e garroteado no auto da fé de 28 de Fevereiro de 1557. Pr. n.º 4388 – Álvaro Gomes, de 70 anos, morador em Portimão, preso em 11-2-1559, por culpas de judaísmo
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Foi denunciante Gaspar Mendes, cristão velho. O Réu iniciou a sua confissão a 16-5-1559. Disse que vestia camisa lavada ao sábado. Disse que fizera vários jejuns do Quipur. Hesitou nas suas confissões, revogou-se várias vezes e, segundo os Inquisidores, não deu mostras de arrependimento. Assento da Mesa de 30-10-1560: “(…) e pareceu que ele estava em termos de impenitente, ficto e simulado confitente e por tal devia de ser declarado e relaxado à justiça secular, servatis servandis, vistas as ditas suas confissões e suas variações e grandes repugnâncias e contradições e a qualidade delas, maiormente o que disse na sessão su próxima (penúltima) e última sessão, com o mais que dos autos consta.” No Auto da Fé de 16-3-1561, foi o Réu entregue com o traslado da sua sentença ao Relator do processo na Relação. Pr. n.º 12932 – Salvador Soares, mourisco forro, de 64 anos, morador em Lisboa, preso em 19-1-1562, por culpas de islamismo Fora já condenado uma vez a cárcere e hábito penitencial perpétuo no Auto da Fé de 15 de Maio de 1558 – processo n.º 13187. Depois, em 15-11-1559, o Cardeal D. Henrique tirou-lhe o cárcere e o hábito. Em 1561 foi denunciado por António de Sousa (Pr. n.º 10821), mourisco cativo de Martim Afonso de Sousa, Brites Pires (Pr. n.º 6424), também mourisca cativa e Manuel Fernandes (Pr. n.º 1113), também mourisco cativo. O promotor diz no libelo que o Réu é cristão baptizado. Em 3-2-1562, foi admoestado para confessar, o que ele não quis fazer. Em 10-3-1562, os Inquisidores exararam o parecer de que o Réu deverá ser relaxado, sendo relapso no islamismo. Foi relaxado por ter crença na seita de Mafamede, no Auto da Fé de 10 de Maio de 1562, tendo sido entregue com o traslado da sua sentença ao Corregedor da Corte Manuel de Almeida. Pr. n.º 1284 – Catarina Rodrigues, viúva, de 50 anos, viúva, residente em Leiria, por alcunha a “do Penedo”, presa em 20 de Julho de 1562, por culpas de judaísmo.
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Denunciada por Ana Dias, Isabel Nunes, Ana Garcia, todas cristãs novas, presas nos cárceres da Inquisição. Acusaram-na de só crer no Deus dos Céus e de fazer jejuns judaicos. É denunciada também pela filha, Ana Lopes (Pr. n.º 6477) e por seu genro Gabriel Lopes (Pr. n.º 15789). Começou a confessar em 28 de Julho de 1562. O processo tem Genealogia. Em 19-2-1563, os Inquisidores deram o parecer de que deveria ser relaxada, “vistos seus autos e confissões e qualidade delas e de sua pessoa e assim as repugnâncias e contradições das suas confissões e suas variações e revogações especialmente o que disse na última audiência que com ela se fez na mesa, porém pareceu mais seguro que o promotor fiscal acusasse em forma as suas culpas para com isso ficar juntamente convicta e confessa, ratificada primeiro a prova larga da justiça-autor e depois da diligência se tornar a ver o que crescer, vistos os ditos autos e qualidade da dita prova.(…)” Foi apresentado o libelo e depois ratificadas as testemunhas. Foi relaxada no Auto da Fé de 16 de Maio de 1563, sendo entregue ao Corregedor da Corte. Processo n.º 2485 – Gabriel Rodrigues, carapuceiro, de 67 ou 68 anos, natural de Elvas e morador em Lisboa, preso em 25-8-1563, por culpas de judaísmo Denunciado por Duarte Lopes (pr. n.º 12785), feitor do pescado, Gabriel de Oliveira (Pr. n.º 15412), tosador, Francisco Dias (Pr. n.º 1695), sapateiro, Justa Antunes (Pr. n.º 9296), Manuel Fernandes, de Miranda e outros. Começou a confessar a 26 de Agosto de 1563. Vários companheiros de cárcere do Réu denunciaram as conversas heréticas que na prisão o Réu teve com eles. No final dos depoimentos, uma nota do Inquisidor Ambrósio Campelo, que assinava Ambrosius doctor: “Satisfaz a informação da justiça mas tem contradição em dizer que no tempo que andava errado cria em Jesus Cristo e no Sacramento”. Foi-lhe notificado o libelo. Em 12-4-1564, pareceu a todos os votos que o Réu estava em condições de ser havido por herege e ser relaxado.
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Na Inquisição de Lisboa, até 1570 17
Foi relaxado no Auto da Fé de 11 de Junho de 1564, sendo entregue ao Corregedor da Corte juntamente com o traslado da sua sentença. Processo n.º 10742 – Marcos Gomes, viúvo, de 52 anos, natural de Vila do Conde e morador em Tavira, preso em 10-5-1564 Denunciado por João Lopes Cristino (Pr. n.º 1156), Francisco Dias, Rui Dias (Pr. n.º 13039), Lopo da Fonseca (Pr. n.º 2190), Baltasar Dias (Pr. n.º 5081). Tem Genealogia. Confessou. Em 14-2-1565 foi admoestado na Mesa para confessar mais. Em 30-3-1565: “pareceu à maior parte dos votos que antes de outro despacho fosse publicado um despacho da Mesa a este Réu Marcos Gomes, cristão novo, que lhe não recebiam sua reconciliação por não ser de receber e que, melhorando coisa de substância, se tornasse a ver o que acrescesse depois para tomar conclusão no caso; e não melhorando, nem satisfazendo mais, fosse relaxado à justiça secular; ratificadas as testemunhas et servatis servandis, vistos seus autos e confissões, fictas, diminutas e simuladas e não satisfatórias e outras considerações que nisto se houveram, porque pareceu que não melhorando nem satisfazendo mais, devia ser declarado por convicto no crime de heresia e apostasia e como tal e impenitente, ficto e diminuto e simulado confitente, relaxado, ut supra. Em Lisboa, xxx de Março de 1565, quando veio à Mesa e se fez com ele a audiência acima.” A seguir, um acórdão dizendo a mesma coisa. Segue-se a sentença. Na véspera do auto, em 30-6-1565, fez mais confissões, mas de nada lhe valeu conforme despacho da Mesa: “pareceu que, sem embargo do que acresceu na audiência supra próxima, depois de lhe ser publicado que o relaxava, e que se cumprisse a sentença atrás, como se nela contém e nisso se fez esta lembrança, que se relaxasse o dito Marcos Gomes, Réu. Em Lisboa, XXX de Junho de 1565, véspera do Auto à tarde depois das seis horas.” Foi relaxado no Auto da Fé de 1 de Julho de 1565, sendo entregue ao Corregedor da Corte juntamente com o traslado da sua sentença.
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Textos consultados ANTÓNIO JOAQUIM MOREIRA, Listas impressas e manuscritas dos Autos da Fé da Inquisição de Lisboa – Cod. 863 da BNP. Online: http://purl.pt/15393. J. LÚCIO DE AZEVEDO, História dos Cristãos Novos Portugueses, Clássica, Lisboa, 1975. REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO DE 16 DE AGOSTO DE 1552, in Archivo Histórico Portuguez, Vol. V, pag. 303, 1907. Online: http://www.archive.org. I.S. Révah, L’installation de l’Inquisition à Coimbra en 1541 et le premier règlement du Saint Office Portugais, in Bulletin des Études Portugaises, vol. XXVII, 1966, pag. 47-88. REGIMENTO DO CONSELHO GERAL DO SANTO OFÍCIO, de 1 de Março de 1570, in António Baião, a Inquisição em Portugal e no Brasil, Separata do Archivo Historico Portuguez, Vol. IV e ss., Lisboa, 1906, pag. 303. Online: http://www.archive.org. REGIMENTO DOS JUÍZES DAS CONFISCAÇÕES DE 26 DE JULHO DE 1572, in Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências, vol. XIII (1918-1919), pags. 795 e ss. Online: http://www.archive.org. REGIMENTO DO SOLICITADOR DO FISCO, de 24 de Novembro de 1573, in Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências, vol. XIII (1918-1919), pags. 814. Online: http://www.archive.org. MANUAL DE INQUISIDORES PARA USO DE LAS INQUISICIONES DE ESPAÑA Y PORTUGAL, ó Compendio de la obra intitulada Directorio de Inquisidores de Nicolao Eymerico, Inquisidor General de Aragon, traducida del francês en idioma castellano, por D. J. Marchena, com adiciones del traductor acerca de la Inquisición de España. Mompeller, Imprenta de Feliz Aviñon, 1821. Online: http://books.google.com. CARTA DO INFANTE D. HENRIQUE A PEDRO DOMENICO, em 10 de Fevereiro de 1542, in Corpo Diplomático Português, vol. V, pag. 34. Online: http://www.archive.org. DOUTORA MARIA MANUELA DE SOUSA VAQUERO FREITAS FERREIRA, O Tribunal da Inquisição de Lamego Contributo para o Estudo da Inquisição no Norte de Portugal, Tese de Doutoramento, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, 2012. Online: http://repositorio.utad.pt/bitstream/10348/2811/1/phd_mmsvfferreira.pdf.
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IV.2 Fr. Valentim da Luz (1524-1562)
Processo n.º 8352 Ao contrário das páginas que tenho escrito sobre a Inquisição, esta não se vai basear no processo n.º 8352, de Valentim da Luz, pela simples razão que este se encontra transcrito fielmente e na totalidade no livro “O erasmismo e a Inquisição em Portugal”, de José Sebastião da Silva Dias. Será, pois, a esse livro que me vou referir, sobretudo à interpretação dos factos ou à falta dela. Apesar de ele seguir fielmente os passos do processo, e criticar os Inquisidores aqui e ali, acho, no entanto, que deveria ter sido muito mais severo e apontar a perversidade e a prepotência com que trataram o pobre frade. Na realidade, o processo não tinha razão de ser: Erasmo não foi herege, Fr. Valentim também o não era e os Inquisidores arranjaram um rosário de falsas acusações para o tramarem, não se percebe com que intenção. Depois, não podiam já recuar e prosseguiram nas acusações sem fundamento até à condenação à morte. Quando o réu se capacitou disso, fez uma confissão em que se acusou do que não tinha dito nem feito, mesmo de coisas para além do que tinha sido acusado, mas disseram-lhe que o arrependimento era falso e ignoraram a confissão. Esta era o único recurso possível para ele salvar a vida, mas a cartilha dos Inquisidores é que lho não permitiu. Claro que Fr. Valentim estava verdadeiramente arrependido do que tinha dito, não que fosse mentira, mas porque tendo-o dito, deu ocasião à Inquisição e seus esbirros, de o acusarem de heresias que ele não professava. Nesse
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sentido, a confissão tinha toda a razão de ser, era uma tentativa (que se gorou) de salvar a vida. Fr. Valentim da Luz, cujo nome de baptismo se desconhece, nasceu em Vila Nova de Foz Coa, no ano de 1524. Ingressou na Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho e tomou o hábito no Convento da Graça de Lisboa, possivelmente aos 16 anos, como era costume nessa altura, tal como diz Silva Dias. Foi depois estudar para Coimbra, com um grupo de frades da Ordem, conduzidos pelo Padre Luis de Montoya, espanhol, encarregado de reformar a Ordem em Portugal. Diz Silva Dias que ali estudou apenas dois anos e meio, interrompendo os estudos por motivos que se desconhecem. Sendo já presbítero, iniciou a actividade de pregador em 1551. Deveria ter caído nas graças do Padre Luis de Montoya, pois este levou-o como adjunto e secretário na viagem que fez a Roma e Itália em 1551, para assistir ao capítulo geral da Ordem realizado em Bolonha. A ida, estadia e regresso preencheram oito meses, que, na vida dele, se revestiram da maior importância. Tinha-se iniciado o Concílio de Trento em 1545, mas ainda não havia conclusões; mas já estava consumada a separação de Roma, de luteranos e calvinistas. Nessa viagem, Fr. Valentim deverá ter contactado com muita gente, discutido muito sobre a prática da fé, terá mesmo lido algum livro de Erasmo (mas, no seu processo, não referiu os livros de Erasmo que tinha lido). Note-se, porém, que acho que Silva Dias dá demasiada importância às ideias apreendidas por Fr. Valentim nesta sua viagem. É que as etapas quase constantes, no curto espaço de oito meses, não permitiam certamente um estudo aturado das questões; as suas ideias progressistas, mais que baseadas num estudo sistemático, foram-lhe sopradas por variadas pessoas que ele foi encontrando no seu caminho, junto com Montoya, note-se. Certamente ainda sob a protecção de Montoya, foi ocupando cargos importantes, apesar de ser muito novo . A chegar aos 30 anos, foi Mestre de Noviços no Convento da Graça em Lisboa e em 1558 foi por dois anos, Prior Conventual do Convento da Graça de Tavira. Nesta altura, já andavam a tramá-lo. O chefe de fila dos seus críticos era um confrade agostiniano, Fr. Duarte, que aparece no processo apenas com
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este nome, e que assina Doctor Parisiensis. Tinha deixado cair o nome que usava, quando em Outubro de 1549, investigara em Paris por ordem do Cardeal D. Henrique, os doutores “luteranos” Buchanan, João da Costa e Diogo de Teive; nessa altura, assinava Fr. Duarte da Apresentação, em Latim, Eduardus Presentatus. Lendo o processo, verifica-se que o réu era de facto um bom pedaço desbocado, pois não conseguia medir o que dizia e a quem o dizia. Não foi difícil encontrar uma viúva beata D. Maria de Menezes que morava em Tavira, mas se encontrava agora doente em Lisboa, a quem Fr. Valentim da Luz tinha dito: - não se deve rezar aos santos, mas sim a Deus; – que mais valia dar esmola aos pobres do que às Igrejas; – que o Evangelho deveria ser entendido à letra. E logo a mesma senhora indicou como testemunha a sua criada, Isabel Correia. A estas seguiram-se inúmeras testemunhas, que foram repetindo os ditos do Padre. A 2 de Outubro de 1560, foi chamado à Inquisição de Lisboa, onde o mandaram pôr de joelhos para ser interrogado. Disse “que ele vinha aqui como filho da obediência e com conhecimento de suas culpas, por falar e dizer algumas coisas mal ditas e delas pedir perdão e misericórdia”. Foi longo o interrogatório e prosseguiu no dia seguinte. Referiu praticamente todos os factos e ditos de que era acusado. Pois, apesar disso, disseram-lhe os Inquisidores “que, acerca das coisas que lhe haviam perguntado e por ele confessadas, que ele não satisfazia nelas a informação que contra ele havia tão inteiramente para que os que isso houvessem de determinar, ficassem satisfeitos. Que lhe encomendavam que nisso tivesse consideração e procurasse de satisfazer ao que lhe convém e é obrigado”. Foi interrogado ainda antes de ser preso a 12 e 21 de Outubro de1560 e ainda 18 de Abril de 1561. Nesta última sessão disse “que confessa que as proposições que ele declarou nas ditas perguntas que disse são escandalosas e mal ditas e desatentadamente, e de as ter dito pede perdão e misericórdia, como já tem pedido e que cumprirá a penitência que lhe derem.” Pensava ele que o despachariam apenas com uma penitência. Afinal, tinha já confessado
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o que dissera às testemunhas. Enganou-se redondamente. No dia 1 de Agosto de 1561, foi preso na Inquisição de Lisboa. Aqui, o processo é misterioso. Não se percebe o que é que os Inquisidores queriam que o pobre frade confessasse, se ele já tinha contado dos seus ditos que não se harmonizavam com a mentalidade do clero do Reino. Aqui, Prof. Silva Dias não me parece esclarecer o caso, quando diz “De um modo ou de outro, procurava-se desencadear os mecanismos da confissão e da conversão. Destes mecanismos faziam parte não só a revelação das conexões heréticas das palavras e atitudes, mas a declaração dos locais onde os erros correram e dos aderentes ou cúmplices que tiveram” e “Inquisidores e réu não se entenderam, porém. O frade tinha boa consciência teológica e tomou as delongas inquisitoriais como sinal de lacunas insuperáveis de prova. Os seus juízes convenceram-se de que o arrastar do processo levaria o réu à fadiga e, portanto, à confissão” (pag. 29). Não posso concordar. O réu não tinha mais que confessar. A não ser… que os Inquisidores pretendessem por seu intermédio tramar mais alguém. Mas isso não se consegue inferir do processo. Antes de ser novamente interrogado a 23 de Agosto de 1561, disseram-lhe “que soubesse que as respostas que tinha dado aos erros e coisas por que foi perguntado atrás não satisfaziam aos autos e à larga informação da justiça que contra ele havia no Santo Ofício; por isso que era necessário abrir os olhos da alma e declarar sua intenção sem pejo nem receio algum, porque com isso salvaria sua alma e seria muito consolado.” Que é que eles quereriam mais? Uma constante do processo é que tanto os ditos das testemunhas como as confissões do réu ficam no âmbito de proposições atrevidas ou escandalosas, mas não heréticas. Porém, quando são transcritas pelo Promotor ou pelos Inquisidores ganham já nova redacção com o carácter de heresias verdadeiras e próprias. Isso acontece mesmo na transcrição feita no processo dos depoimentos das testemunhas. E é também o caso das proposições submetidas às consultas dos teólogos para as qualificarem. Típicos métodos inquisitoriais. Outro truque inquisitorial foi o de, ao reperguntar as testemunhas, lhes ler antes o testemunho para dizerem se o confirmam. Isso era o mesmo que nada fazer, nunca se iriam desdizer.
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Em 28 de Fevereiro de 1562, foi feita a publicação da prova da justiça. O réu disse que não tinha mais que dizer ou que confessar. Foi-lhe dado como Procurador o Licenciado Manuel Bacias. Este redigiu dias depois contraditas indicando inimigos do réu, mas foram rejeitadas por despacho notificado em 5 de Março: “Não recebemos as contraditas do réu Frei Valentim ex causa, vista a matéria delas com os autos e o que por eles se mostra”. Pura prepotência. A fls. 163, está um texto do réu entregue a 6 de Março, que intitulou “Propositiones erroneae falso mihi impositae”, isto é, Proposições erróneas que me foram atribuídas falsamente. Este documento é sintomático para revelar o que se passou no processo. O réu não se humilha, fala claro e de peito levantado, diz o que tem a dizer. A leitura de muitos processos da Inquisição diz-me que este tipo de réus era o que mais desagradava aos Inquisidores. Para terem alguma clemência para com eles, queriam os réus humilhados, compungidos, rastejando aos pés deles. Fr. Valentim não era desses. Diz ele: “Louvo a Erasmo, não estou mal com Erasmo. Se tem erros, será nos livros que eu não li nem vi, que são defesos” e “Castigam os Inquisidores aos que comem carne na Quaresma, que é contra o preceito da Igreja, e não aos sacerdotes amancebados, que é contra o preceito de Deus.” Este papel foi ao Promotor de Justiça para ver se queria responder, mas este disse: “Magnifici Domini, In claris non est opus conjecturis. O R. está convencido pelas provas da justiça e assim pelos papéis que acresceram e livros do Réu que aqui dou em prova da justiça. Pelo que não quero arrazoar. Fiat ius et iustitia et petto ipsum relaxari.” É pena não termos os “livros” manuscritos da autoria do réu que foram na altura juntos ao processo. Outro procedimento inquisitorial à margem do Regimento era a colocação de espiões dentro do cárcere. Foram companheiros do réu, Gaspar Gonçalves, alfaiate, acusado por bigamia, de 35 anos (Pr. n.º 2942) e Rui Gomes, cristão novo, boticário, de 25 anos, acusado por judaísmo (Pr. n.º 13046). O frade foi verdadeiramente destemperado a falar à frente deles. Depôs Rui Gomes: “E é muito solto no falar. Ouvindo tanger a campainha do cárcere esta Semana Santa, disse o dito Padre Frei Valentim: lobos caçadores, ainda esta Semana Santa, não cessais! dizendo isto pelos oficiais da Inquisição. E que dizendo-lhe ele confessante que era necessário aos homens terem
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conta com a língua nesta casa, principalmente porque se perguntavam os companheiros, disse o dito Padre Frei Valentim: tal sou qual sou, o que digo aqui direi no rosto; bem sei que hei-de morrer, morro mártir de Jesus Cristo; assim morreram muitos pelo verdade, e assim morreu Isaías e Jeremias; um tostão tenho para dar ao algoz como fez São Cipriano.” A 7 de Abril de 1562, depôs Pedro Fernandes, alcaide do cárcere. Disse que na Semana Santa, à porta da cela, onde estavam o Frade e os dois referidos companheiros, disse em conversa Fr. Valentim “como Caifas era perdido a Mafamede e que estava no Inferno, e assim Anás. E ele denunciante lhe disse: também lá está Martim Lutero. E o dito Frei Valentim se riu, virando o rosto para outra parte. E ele denunciante lhe disse: não sentenciais este luterano? O dito Frei Valentim respondeu: que o visse ele declarante. E isto por muitas vezes lho disse, sem nunca o dito frade Frei Valentim o querer declarar. E dizendo-lhe ele denunciante que como sentenciava estes e não sentenciava a Martim Lutero, o dito Frei Valentim respondeu que o Evangelho declarava os outros por perdidos. E então ele declarante, de paixão que houve por lhe ouvir isto, fechou a porta e se foi (…)” Estes depoimentos do que se passou no cárcere sugerem outra faceta do frade: havia nele uma boa dose de desfasamento das realidades, o que poderia significar um certo desequilíbrio. De facto, poderia ter mais tento, e pensar que tudo o que se passasse no cárcere iria ter ao ouvido dos Inquisidores. A 10 de Abril de 1562, foi de novo interrogado e admoestado. Disse então que ficaria muito contente se a Inquisição acabasse já hoje e que nunca mais houvesse Inquisição, “e que antes que o prendessem já lhe não tinha amor” (à Inquisição). A fls. 200 do processo, as proposições suspeitas que foram submetidas à apreciação dos teólogos, D. António Pinheiro, Dr. Francisco de Monzón, Dr. Diogo de Gouveia, D. Jerónimo Osório, Dr. Álvaro da Fonseca: 1 – Que não havemos de rogar nada aos santos se não a Deus, porque a Cananeia alcançou por si o que não alcançou pelos Apóstolos 2 – Que o Evangelho se há-de entender ao pé da letra, sem lhe darem entendimentos 3 – Que não há-de haver mais que duas Missas, uma pro vivis, outra pro defunctis.
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4 – Que em nenhuma maneira se hão-de rogar os santos, nem como dadores da mercê, nem como intercessores dela; porque, como quer que Deus nos esteja convidando com a graça, são desnecessárias orações 5 – Que não acha na Sagrada Escritura lugar que manifestamente diga que devemos obediência a homens 6 – Que mais quer uma conta de prata que uma benta de indulgências 7 – Que não é melhor obra com voto que sem ele 8 – Que onde tem o Papa o carácter, se no dedo, ou na unha, ou no cotovelo 9 – Que em nenhuma maneira se podia jurar na lei evangélica 10 – Que as demandas na lei evangélica não são lícitas 11 – Que o artigo do Purgatório se tirou de um corno da mitra do Papa e que não achava lugar na Sagrada Escritura que o provasse.
Em 15 de Abril de 1562 (fls. 216) o assento para o relaxamento do réu que, escrevem os 8 subscritores, “foi examinado particularmente sobre os ditos autos, e muito exortado que tornasse sobre si e fizesse confissão digna de reconciliação, sem mais ele querer manifestar a verdade das ditas culpas, nem declarar sua intenção, nem menos satisfazer aos autos, nem mostrar sinal algum de conhecimento e arrependimento dos ditos erros e culpas. Antes mostrou sinais de impenitente e negativo pertinaz em algumas coisas.” Um despacho do Inquisidor-Geral de 7 de Maio de 1562 (fls. 218) autoriza que o réu seja sentenciado como herege. Fr. Valentim da Luz acordou então. A 9 de Maio (fls. 219 v.) redigiu uma longa confissão que é um absurdo como todo este processo. Na ânsia de fugir à morte confessa-se de todos os pecados possíveis, diz que acreditou em todas as proposições luteranas, condenadas pela Igreja Católica. Até negou a confissão auricular, coisa que nenhuma testemunha nem ele tinham referido no processo. “Soa a falso esta confissão”, escreve o Prof. Silva Dias (pag. 13). É verdade. Soa a falso porque ele não era herege; apenas dissera o que lhe parecia mal e fazia-o desafrontadamente. Mas o mesmo autor acrescenta “Soa ao desespero de um espírito ingénuo que supõe poder convencer os julgadores sem ir até às do cabo que eles pretendem e desse modo ficar vivo para algum dia, fora do cárcere do Santo Ofício, testemunhar a verdade das suas doutrinas e do processo em que se viu envolvido. Enganou-se porém. Os inquisidores não eram ingénuos e detectaram à simples leitura a falta
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de autenticidade nas confissões e retractações constantes do papel. Não lhe receberam pois a confissão e entregaram-no sem mais delongas ao suplício”. Eu gostaria que o autor tivesse dito como é que o réu poderia ir “até às do cabo” e o que é que ele quer dizer com isso. Se tudo na Inquisição era falso, também uma confissão deveria ser considerada, por mais falsa que parecesse. Foi redigida a sentença (que, nesta época ainda o era), sendo-lhe feito este aditamento a final (fls. 225 v.): “O que assim julgam, sem embargo da sua confissão e reconciliação última, que fez depois de lhe ser publicado que estava relaxado e o mandavam entregar à justiça secular, a qual reconciliação não recebem por não ser de receber nem ter as partes que se requerem, antes ser ficta, simulada, e isso mesmo não satisfatória nem digna de misericórdia, vista a qualidade dela e do caso com a disposição do direito nele e o mais que dos ditos autos consta.” A sentença foi publicada no auto da fé que se realizou na Ribeira de Lisboa, em 10 de Maio de 1562. O traslado da sentença foi entregue ao Doutor Manuel de Almeida, Corregedor da Corte, junto com o réu. Aparentemente, nessa altura, a Relação ainda não redigia sentença autónoma para os relaxados. Textos consultados JOSÉ SEBASTIÃO DA SILVA DIAS, O Erasmismo e a Inquisição em Portugal. O Processo de Frei Valentim da Luz, Coimbra, Instituto de História e Teoria das Ideias, 1975, XVIII+317 p. EDUARDO JAVIER ALONSO ROMO, LUIS DE MONTOYA, un reformador castellano en Portugal, Editorial Agostiniana, Guadarrama – Madrid, 2008, ISBN 978-84-9574572-9. ANTÓNIO ROSA MENDES, FREI VALENTIM DA LUZ, Prior do Colégio da Graça de Tavira, queimado pela inquisição in I Jornadas de História de Tavira, org. do Clube de Tavira, 1992, pags. 96-99. ANTÓNIO ROSA MENDES, O drama de Frei Valentim da Luz”, in SUL (Vila Nova de Cacela), Associação Cultural Amigos de Cacela, n.º 0, 1998, pp. 23-28. FR. LUIS DE MONTOYA, Obras de los que aman a Dios – Vendese em casa de Christouão Lopez liureiro a See – Com preuilegio Real. 1565.- Foy impresso em Lixboa
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em casa de Ioam da Barreyra, impressor delRey nosso Senhor, aos quinze de Ianeyro de M.D.LXIIIII. VIDA I VIRTUDES DEL SANTO P. FRAI LUIS DE MONTOYA, escrita por el P. M.ro Fr. Sebastián Portillo, Augustinos de Salamanca – Historia del Observantissimo Convento de S. Augustin Nuestro Padre, de dicha ciudad, Primer Tomo, por Eugenio Garcia de Honorato i San Miguel, Impressor de esta ciudad i Universidad, 1751. SENTENÇA DA INQUISIÇÃO DE LISBOA CONTRA FR. VALENTIM DA LUZ, Eremita de S.to Agostinho, do Convento da Graça desta Cidade, que morreu queimado vivo por herege Luterano, no auto de fé celebrado na Ribeira em domingo, dia 10 de Maio de 1562, in Sentenças da Inquisição, de António Joaquim Moreira, Tomo I, 1.ª parte, pags. 81 a 85 (numeração do software) . Porém, a lista do auto da fé do mesmo senhor tem estas notas: “Confesso e diminuto, por herege apóstata sequaz de Lutero, Calvino e outros heresiarcas. Morreu de garrote mui catolicamente, fazendo grandes imprecações ao Rei e ao povo.” Online: http://purl.pt/15392/2/.
ADENDA – 30-12-2013 Vou transcrever alguns passos do processo da Inquisição que se referem ao Padre Fr. Luis de Montoya. O Prof. Silva Dias, no seu livro, refere logo a pags. 3 Obras de los que aman a Dios (um livro, se não erramos, suspeito à Inquisição). Não analisa nem explica esta afirmação. Porém, o choque entre Montoya e a Inquisição aparece várias vezes ao longo do processo. Diz o Padre Fr. João de Jesus, quando interrogado na Inquisição: Pag. 83 (fls. 17 v) – Perguntado [Frei João de Jesus] por que não veio dizer estas coisas que sabia do dito Frei Valentim mais cedo a este Santo Ofício, pois sabia serem contra nossa Santa Fé Católica e proposições escandalosas e temerárias contra o que tem e cré na Santa Madre Igreja de Roma, disse que ele o não viera dizer a este Santo Ofício porque, tanto que veio de Tavira, deu conta de todas estas coisas que tem dito ao padre Frei Luis de Montoya, seu prelado, e lhe deu um assinado seu em que dizia e protestava ficar desobrigado de vir denunciar as ditas coisas a este Santo Ofício, pois lhas dizia a ele, como prela-
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do que era, que por virtude de seus privilégios podia castigar o dito padre Frei Valentim e prover no caso como lhe parecesse serviço de Nosso Senhor. E o dito padre Montoya lhe disse que bastava dizê-lo a ele, pois por virtude dos seus privilégios podia nisso entender, e com isso ficava desobrigado de o vir dizer à Santa Inquisição, e o mesmo lhe disseram alguns padres letrados da casa, com quem o comunicou, e por esta causa o não veio dizer a este Santo Ofício, senão agora que o mandaram chamar. Foi-lhe mandado, sob cargo do juramento que tem recebido, que tenha segredo no caso e o não diga a nenhuma pessoa, e ele assim o prometeu. O Padre Fr. Luis de Montoya não queria depor no processo. Disseram-lhe, porém, que para isso teria de pedir dispensa ao Cardeal D. Henrique e ele acabou por ceder. Fê-lo, porém, com manifesta má vontade pois até não respondeu à maior parte das perguntas: pag. 191 – (fls. 147) Testemunho do Padre Fr. Luis de Montoya Aos 17 de Fevereiro de1562, em Lisboa, na casa do despacho da Santa Inquisição, estando aí os Senhores Inquisidores, mandaram vir perante si ao padre Montoya, provincial da Ordem de Santo Agostinho em estes reinos. E, dando-lhe juramento dos Santos Evangelhos para dizer verdade do que sabia do contido no libelo da justiça autora, disse que era provincial da dita Ordem e superior do dito padre, e também era inquisidor e juiz dos seus frades, por privilégios que disse tem do Santo Padre, e nenhuma coisa sabia que ouvisse dizer ao dito Padre Frei Valentim, mas que algumas coisas lhe disseram dele. E mandou sobre isso a Tavira ao padre Frei João de Jesus admoesta-lo fraternalmente, o qual trouxe recado disso que lhe parecia que ficava emendado, ao qual ele padre se remete. E depois o mandou vir a esta cidade e o repreenderam em capítulo e lhe deram a pena que lhe pareceu a ele e aos definidores da dita Ordem, conforme a sua regra. E que ele tem agora grande escrúpulo para testemunhar nisso; que lhes pede que o escusem disso por amor de Nosso Senhor. E lhe foi dito que o promotor fiscal o nomeava por testemunha para ajuda de seu libelo, que era necessário testemunhar em forma, e se não que se socorresse a Sua Alteza para o escusar disso, porque eles o não podiam fazer. E logo ele reverendo padre disse que testemunharia, pois que assim era.
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E lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão e prometeu dizer verdade. E foi perguntado por o segundo apontamento do libelo. Disse que ouviu dizer a Frei João de Jesus ou a alguma outra pessoa, não se lembra a quem, que ouvira dizer a outra pessoa que o dito padre Frei Valentim dissera o contido no dito apontamento, e porém não tão exagerado, como no dito capítulo está, senão de maneira que soem dizer os pregadores para encomendar as esmolas aos pobres. Item, perguntado por o 3.º artigo do libelo da justiça disse que ouviu dizer o contido no dito artigo que o padre Frei Valentim o dissera, e porém que lhe não lembra a quem . Item, perguntado por o terceiro artigo do dito libelo, e quarto e quinto artigos do dito libelo, e sexto artigos, disse nada. Item, perguntado por o sétimo artigo do dito libelo, disse que lhe não ouviu nada, somente o ouviu dizer a Frei João de Jesus que lho ouvira. Item, perguntado por o oitavo artigo do dito libelo, disse nada. Item, perguntado por o nono artigo do dito libelo, disse que ele viu um livro que fez o padre Frei Valentim em linguagem, e que no proémio dele, segundo sua lembrança, quer persuadir que a Sagrada Escritura devia de andar em linguagem. E quanto ao mais contido no dito artigo acerca das obras que se hão-de fazer com voto e sem voto, disse que ele visitou a Frei Miguel de Todos os Santos, o qual é religioso da sua Ordem, e em sua visitação disse, respondendo às perguntas de sua visitação, o seguinte: é verdade que o padre Frei Valentim me disse, depois de ter feito profissão, que se ele viera aí antes de sua profissão lhe aconselhara que não fizesse profissão senão ore tanto non autem intentione et animo, porque melhor era servir a Deus de própria vontade que de obrigação. E que o dito padre Frei Miguel está de caminho para Coimbra. e al não disse do artigo. Item, perguntado por o décimo artigo, disse nada. Item, perguntado por o undécimo e duodécimo artigos, disse nada e que o ouviu ao dito padre Frei João que o ouvira ao réu Frei Valentim. Item, perguntado por o quarto décimo artigo, disse nada. Item, perguntado por os mais artigos do dito libelo, disse nada. E que outra coisa não sabia do dito réu. ✳
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Os artigos do libelo que são citados podem ser consultados a seguir: Pag. 128 (fls. 72) 2.º Provará que o R., por palavras claras e manifestas, afirmava e persuadia que se não haviam de fazer esmolas às igrejas para ornamentos e outras necessidades que as igrejas têm, porque dizia ele R. que para que era tanta igreja e tantos ornamentos e tantos concertos, estranhando as esmolas que se fazem às igrejas, de sedas, brocados e outras coisas preciosas, e que era melhor darem-se a pobres, porque o santo santórum estava coberto de peles de cabras, e que ele R. que ia pela letra do Evangelho, dando a entender que a Igreja nisto errava e era contrária não que o Evangelho nos manda e aconselha, a qual proposição, por ser contra o comum uso e universal tradição da Santa Igreja Católica, redargue e convence o R. de herege. 3.º Provará que o R. publicamente, no púlpito, pregava, ensinava e persuadia que não havia de haver mais que duas Missas, uma pro vivis e outra pro defunctis, e que para que era tanto clérigo, e que é outrossim contra a comum observância da Igreja Católica. 4.º Provará que o R dizia que desejava de ver uma Igreja em que os sacerdotes fossem poucos e casados, e que o enfadavam tantos frades e tantas religiões, e que pouco lhe daria ver Espanha como Alemanha, o que assim o R. dizia como pessoa que desejava persuadir e imprimir os próprios desejos que em si mostrava, nas pessoas com quem assim comunicava, que é outrossim contrário ao costume e universal observância da Igreja Católica. 5.º Provará que o R. sentia mal do poder do Santo Padre, porque falando nele dizia que onde tinha o papa o carácter, se no dedo, se na unha, se no cotovelo, e que assim perguntava rindo-se e fazendo zombaria do dito carácter e do poder do papa, a qual proposição é herética e luterana. 6.º Provará que o R. sentia mal das indulgências e perdões do Santo Padre, porque, falando em contas bentas, por que se concedem certas indulgências a quem por elas reza tantas orações, ele R. dizia que antes queria uma conta de prata, que uma benta, pelo que está claro sentir mal das ditas indulgências e do poder que o Santo Padre tem por as conceder. 7.º Provará que o R. dizia e afirmava que não achava na Sagrada Escritura lugar que manifestamente dissesse que devíamos obediência a homens e, sendo-lhe alegada uma autoridade que o provava, o R. dizia que por isso arrenegava
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ele, porque aqueles ligares se não entendiam, e sendo-lhe replicado do entendimento da dita autoridade, o R. ficava sempre em sua opinião. 8.º Provará que o R. dizia, afirmava e persuadia que as demandas não eram lícitas na lei evangélica, e que em nenhuma maneira se havia de jurar na dita lei evangélica, e sendo-lhe alegada uma autoridade do profeta Jeremias que diz jurabis vivit Dominus in veritate et judicio et justitia, o R. respondeu que isso permitia Deus na Lei Velha aos judeus. 9.º Provará que o R. dizia, afirmava e persuadia que a Sagrada Escritura havia de andar em linguagem, e que a Missa se havia de dizer na própria linguagem de cada um, para que todos a entendessem e assim dizia ele R. que a obra com voto não era melhor que sem ele, e que nisto não errara Erasmo, nem lhe achava nenhum error, e que era outro Santo Agostinho, a qual proposição é outrossim contra a comum observância da Igreja Católica. 10.º Provará que o R. dizia, afirmava e persuadia que a Paixão de Cristo se não havia de chorar, que é outrossim contra a comum observância e tradição da Igreja Católica. 11.º Provará que sendo o R. perguntado se uma pessoa se podia vingar por justiça de quem lhe tivesse ofendido, ele respondeu que pois o Evangelho dizia que, dando-se uma bofetada em uma queixada se havia de aparar a outra, que assim se havia de entender; porque o Evangelho se havia de entender ao pé da letra, sem lhe darem entendimentos, e que os letrados o danaram e que ele não havia de deixar de pregar a verdade; e que os teólogos escolásticos eram rãs do Egipto e que nos tiraram a fé, esperança e caridade e que era profecia de Jerónimo Savonarola, profeta de Deus, que se havia de acabar a teologia, como a sofistaria. 12.º Provará que o R. sentia mal do Purgatório, e dizia que se tirara de um corno da mitra do papa, e que ele R. não achava autoridade em toda a Sagrada Escritura que lhe provasse o Purgatório, a qual proposição é herética e luterana. ✳
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14.º Provará que o R. sentia mal das imagens dos santos que se pintam nas igrejas e dizia que ele fizera tirar uma imagem de Nossa Senhora de um certo lugar da Igreja, e que onde estava Deus que para que era rogar aos santos, e que se nós tivéssemos verdadeiro lume e conhecimento de Deus que nós nos iríamos encomendar a Ele e não às imagens do altar, a qual proposição é herética e luterana e damnada pela Santa Madre Igreja. ✳
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Por outro lado alguns passos do processo revelam de certo modo alguma falta de consideração de Fr. Valentim da Luz pelo seu superior, como, por exemplo: pag. 236 (fls. 191) E que ontem deu o alcaide do cárcere uma carta ao dito Frei Valentim, dizendo-lhe que era de Montoya, que a lesse e que lhe amolentaria o coração. O dito Frei Valentim respondeu, tomando a carta: muito me amolenta assim agora isso! E, indo-se o alcaide e fechando a porta, ficou o dito Frei Valentim rindo, dizendo a ele [Gaspar Gonçalves, companheiro de cela] testemunha: venha cá o alcaide apalpar e, apalpando-se uma mão com a outra dizendo: apalpai, alcaide que já estou mais mole! Dizendo mais que viesse o padre Montoya a dar-lhe a disciplina, como dizia na carta, que cumpriria o que São Paulo dizia, dizendo isto por via de zombaria e rindo-se. O mistério do processo do Padre Fr. Valentim da Luz poderia assim ter uma solução que resolve tudo: os Inquisidores quereriam que ele contasse a sua ida a Roma com o Superior Geral ao Capitulo Geral realizado em Bolonha em 1551, de modo a verem as probabilidades de por qualquer modo tramarem Montoya. Assim se compreenderia a insistência dos Inquisidores com o réu dizendo-lhe que era “necessário abrir os olhos da alma”.
ADENDA – 11-6-2014 Num texto do Prof. Giuseppe Marcocci, encontrei uma referência a uma freira de nome Inês Veiga, que ele diz ter tirado do Prof. Paulo César Drumond Braga. Seria ela uma discípula de Fr. Valentim da Luz e como tal foi condenada pela Inquisição. Convém pôr os pontos nos ii. O nome correcto é Inês Viegas e figura ela no processo n.º 3137, da Inquisição de Lisboa. Foi presa em 25 de Junho de 1567 e abjurou de facto no auto da fé de 14 de Novembro de 1568. Note-se que o texto do Prof. Drumond Braga está correcto, o Prof. Marcocci é que deverá ter citado de cor. As acusações são ridículas. A freira teria sido muito amiga de Fr. Valentim da Luz e este ter-lhe-ia dado alguns livros e cadernos escritos à mão, dizendo-lhe que os queimasse se lhe acontecesse algum mal. Ela disse isso mesmo a algumas “amigas” e estas foram dizer à Inquisição que ela os tinha de facto queimado. No processo dela, Fr. Valentim é indicado como herege, quando o processo dele não prova que o
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seja. Estou plenamente convencido que a prisão de Fr. Valentim se destinava basicamente a tramar Fr. Luis de Montoya. Para salvar a vida, Soror Inês Viegas teve de confessar e disse que Fr. Valentim lhe dizia que de nada serve orar aos Santos porque eles não têm poderes. E que seria uma boa coisa ter a Bíblia em linguagem, e não apenas em Latim. Esta afirmação era considerada uma heresia pela Inquisição Portuguesa. Mas é preciso notar que, na Inquisição, os réus tinham de confessar não o que tinha acontecido ou aquilo que pensavam, mas sim aquilo que os Inquisidores queriam que confessasse. Só assim conseguiam salvar a vida. Foi o que fez a freira Inês Viegas.
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IV.3 Manuel Travaços, relaxado pela Inquisição por luteranismo em 1571 Processo n.º 10259 Até há pouco tempo, pensava eu que a Inquisição se tornara uma instituição perversa quando começou a condenar cristãos novos, apenas por terem sangue judeu, o que aconteceu nos finais do séc. XVI. Pois agora estou perfeitamente convencido que a Inquisição foi uma instituição perversa desde a sua criação. D. Henrique, o Cardeal Infante, não era pessoa de maus instintos, acho eu. Mas foi certamente alguém que se deixava influenciar com a maior das facilidades, tantos foram os que se viram postos atrás das grades, apenas porque havia na praça quem não gostasse deles. Um destes foi Manuel Travaços, cristão velho, garroteado na Ribeira Velha em 11 de Março de 1571, como luterano. Tive muita dificuldade em estudar o processo dele, com o n.º 10 259, da Inquisição de Lisboa, em virtude de o escrivão ter uma letra horrível, dificílima de decifrar. Possivelmente, o mesmo aconteceu com o Cónego Isaías da Rosa Pereira (IRP), que publicou um artigo sobre ele nos Anais da Sociedade Portuguesa de História (abaixo citado), tão deficientes são as suas interpretações do processo. Manuel Travaços era filho de Agostinho Fernandes Travaços, Ouvidor Geral da Índia, já falecido e de Joana Clemente, ainda relativamente nova, de 47 anos, em 1570, quando o filho tinha 28 anos. Eram todos cristãos velhos.
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Tinha um irmão mais novo, Lourenço de Andrade, que estava na Índia, para onde teria ido possivelmente quando o pai era ainda vivo. Manuel formou-se em Cânones em Coimbra, mas terá também estudado em Salamanca. Tinha saído do País e passeado por Itália e por França, como disse no processo por diversas vezes. Sentiu curiosidade em conhecer as doutrinas luteranas, de que se falava muito naquela altura. Enquanto a Igreja Católica apertava com os seus fiéis nas obrigações da frequência dos sacramentos e do culto religioso, as doutrinas protestantes mostravam-se bastante mais relaxadas e menos exigentes. Manuel Travaços era homem falador e não perdia ocasião de alardear os seus conhecimentos da nova Religião. Também não era destituído, e lia muito, mesmo livros proibidos que conseguia à socapa, ou que trouxera do estrangeiro. Em 27 de Junho de 1569, dois estudantes de 19 e 18 anos, um de Salamanca e outro de Coimbra, fizeram denúncias bem detalhadas contra Manuel Travaços. Todo o processo sugere uma organização prévia. A sua prisão não ocorreu logo, mas exactamente passado um ano. Alguns dias antes, foram presas as testemunhas que depois depuseram contra ele, geralmente acusadas de judaísmo. O processo decorreu de um modo bem acelerado. Note-se que, embora existisse já o Regimento da Inquisição de 1552, não havia ainda uma tradição consolidada do desenrolar dos procedimentos, que por vezes eram alterados ad libitum, sobretudo pelos corpos dirigentes (Rei, Inquisidor Geral, Conselho Geral). Entre os livros e os papéis do preso, foi encontrado um texto em Latim, com 22 proposições luteranas, que se opunham à crença católica, por exemplo no que respeita à existência do Purgatório, às indulgências, ao rezar aos Santos, ao culto das imagens. Nada disto, porém, indica que ele tivesse essas convicções religiosas. Aliás, o mais provável é mesmo que ele fosse indiferente perante a questão religiosa e discutisse Religião apenas para mostrar o seu conhecimento de doutrinas novas. Os Inquisidores, porém, não o trataram como tal, mas sim como prosélito do luteranismo. Quando deu conta disso, entrou em pânico, pois viu-se ameaçado de morte no cadafalso. Começou então a “confessar” e a denunciar todas as pessoas cujos nomes lhe vieram à cabeça. Mencionou e denunciou até muita gente que nunca tinha encontrado.
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Foi assim que também mencionou Damião de Góis, do seguinte modo: “Perguntado que homem é um Guoes com que ele dizia que praticava e andara lá por estas partes, disse que nunca falou com Guoes nenhum, nem conhece mais que Ambrósio de Guoes, filho de Damião de Guoes, e que Álvaro Fernandes, o físico que aqui está preso, disse a ele confessante que Ambrósio de Guoes praticava muitas vezes nas coisas da Alemanha com ele e fora lá reitor em uma Universidade”(fls. 67 img 135). Diz IRP que “esta resposta é inexacta”, porque Manuel Travaços declarou mais tarde em 4-1-1571: “Que no mesmo tempo [haveria dois anos] praticando ele confessante com Álvaro Fernandes, de quem tem dito, lhe disse o dito Álvaro Fernandes que lhe dissera Damião de Góis que o Cardeal (isto é, o Infante D. Henrique, Inquisidor Geral) o mandara chamar e lhe perguntara um dia quem eram os principais luteranos em Alemanha, porque se os tivéramos cá os queimáramos, dizendo mais o dito Damião de Góis ao dito Álvaro Fernandes que se os ditos luteranos estiveram cá, fizeram do Cardeal o que quiseram, dando a entender que o fizeram da sua banda.”(fls. 115 v img. 232) Salta à vista do processo que nesta altura, o preso já soltava nomes sem qualquer nexo e que nunca contactou Damião de Góis. IRP quis ligar a prisão de Damião de Góis à ida para o cadafalso de Manuel Travaços, mas não tem razão nenhuma, como demonstrarei um dia destes. Foi apenas uma coincidência temporal: Manuel Travaços foi garroteado em 11-3-1571 e Damião de Góis foi preso no 4 de Abril seguinte. Manuel Travaços confessou tudo e mais alguma coisa e denunciou muita gente, praticamente todos os de quem sabia o nome. Mas os Inquisidores ainda não estavam satisfeitos e queriam que ele denunciasse também sua mãe. É que ela uma vez mandara ao filho alguma comida embrulhada num pano onde estava desenhada uma chave e eles queriam atribuir um qualquer significado à figura da “chave”. Decidiram mesmo levá-lo a tormento por causa disso. Quando se viu na sala do tormento, ficou totalmente histérico, chorou e denunciou a mãe como luterana e mais meia dúzia de nomes de que se lembrou. Os Inquisidores foram a correr prender a mãe em 7-2-1571 (e não 14-5-1571, como está na ficha do processo n.º 9908, da Torre do Tombo) e só a libertaram, absolvida, em 9-6-1573. Isto apesar de ele se ter retractado logo a 10-2-1571, dizendo ser falso tudo o que dissera de sua mãe.
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Abro em parêntese para dizer que Manuel Travaços tinha uma relação estranha com sua mãe. Era violento com ela, apertando-lhe os braços e mordendo-lhe as mãos. Ameaçava-a muitas vezes de morte. Disse Pantaleão Teixeira companheiro de cárcere que frequentava a casa da mãe dele que o Manuel Travaços tinha ciúmes dele e dissera a Fr. Francisco, também companheiro do cárcere, que tinha um machado para matar a mãe ou a ele, Pantaleão Teixeira. Disse mais Pantaleão Teixeira, testemunhando no pr. n.º 9908, de Joana Clemente: ”(…) estando um dia na casa em que vivia a Ré [Joana Clemente] ao Jogo da Pela, vira a dita Ré dar duas bofetadas ao dito Manuel Travaços sobre lhe ele pedir ciúmes dele testemunha; e que aquele dia jantara lá e o dito Manuel Travaços ficara disso muito sentido, e viera pela escada abaixo chorando e vindo ele testemunha após ele para o apaziguar, o dito Manuel Travaços pôs a mão no rosto, jurando se havia de vingar e depois disto ele testemunha ir a Almeirim com a dita Joana Clemente, o dito Manuel Travaços lhe disse que pouca necessidade tinha sua mãe de ir com ele só, dando-lhe a entender que suspeitava mal disso e que havia de a matar (…)” Antes, dissera a mesma testemunha: “(…)sabe que o dito Manuel Travaços era muito soberbo e vingativo e mal inclinado e que dizia a ele testemunha muitas vezes que se ele não fora gordo e pejado, que fizera muitas coisas que ele dissimulava por ser pejado e não poder correr, e sabe que tinha muito ódio à dita sua mãe, por ele testemunha ir a sua casa e por outras coisas que lhe dava a entender, presumindo que ele testemunha ia lá em má parte, e que tinha esta com a dita sua mãe.” Nesta altura do processo, reuniu a Mesa da Inquisição em 7 de Novembro de 1570 e decidiu admitir o Réu à reconciliação. Ficou de fora o Inquisidor Simão de Sá Pereira que foi de opinião que o Réu fosse relaxado. Ao mesmo tempo, foi decidido que o Réu fosse a tormento. Há uma nota importante no Assento: “que se dê conta primeiro a Sua Alteza de como está recebido conforme ao Regimento”. A 29 de Novembro, novo assento da Mesa, mandando-o ir a tormento: se confessar, muito bem, se não confessar, considerar-se-á a falta purgada pelo tormento. Mantem-se a decisão de o reconciliar. Confessou e continuou a denunciar pessoas em mais audiências. A 1 de Janeiro de 1571, o Cardeal D. Henrique pediu que o processo lhe fosse
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transmitido. Os membros do Conselho Geral tinham assento no Conselho de Estado. Deverá ter soado aos ouvidos do Inquisidor Simão de Sá Pereira que a decisão do Conselho seria diferente da da Mesa e ele apressou-se a ditar para o processo uma declaração modificando o seu voto de relaxamento para o de reconciliação (fls. 127 img. 255). De facto, o Conselho Geral, em Assento de 28 de Janeiro de 1571, relaxou-o à justiça secular sem apelo nem agravo. Note-se que juridicamente o Assento não em sentido, ninguém pode ser condenado por se não ter convertido no seu coração... O Réu ainda se retractou da denúncia que fizera de sua mãe em 10 de Fevereiro, mas já ela estava a presa. É claro que Manuel Travaços não era luterano, estava era aterrorizado na prisão. Na sessão da tarde do dia 8 de Janeiro de 1571 disse: “(…) requer a suas Mercês o não ponham a tormento porquanto ser moço fraco e lhe farão dizer o que não sabe com medo, e que está muito arrependido de suas culpas e pecados e conforme com a vontade de Deus, e protesta de ser daqui por diante muito católico cristão e nunca mais tornar a estes erros e defender sempre a santa fé católica”. (fls. 125 img. 251) Ao pedir o processo, na carta de 1-1-1571, escrita em Almeirim onde estava a Corte, diz o Cardeal D. Henrique “(…) e também me parece acertada a resolução que dizeis estar tomada no processo de Manuel Travaços, preso nesse cárcere (…). E, no entanto, o Conselho Geral decidiu pelo relaxe, porquê? Talvez não seja estranha a isso a posição de um muito jovem Rei de 16 anos que, na prática, era quem dirigia o Conselho Geral. Um detalhe interessante é que D. Jorge, o Arcebispo de Lisboa, nomeou seu representante no Conselho, o Padre Martim Gonçalves da Câmara, escrivão da puridade, isto é, um homem da Corte. Passado pouco tempo, deixou de haver representante dos Bispos no Conselho, mas havia-os apenas na Mesa da Inquisição, tal como ficou depois no Regimento de 1613. img. 1 – Processo n.º 10259, de Manuel Travaços, cristão velho, desta cidade de Lisboa fls. 1 img. 3 – Relatório do Inquisidor Simão Sá, sobre o Réu Pereira fls. 9 img. 19 – 27-6-1569 – Denúncia de Jorge Rodrigues, de 18 anos, estudante em Coimbra
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