Delfim Carvalho M
Y
CM
MY
CY
CMY
K
www.sitiodolivro.com
O Sétimo Sótão
C
Gorila Ramos nasceu em Odivelas, mas cedo foi para o jardim zoológico de Lisboa. Aí, teve uma adaptação fácil, mas certa noite decide fugir do zoo. Refugia-se num velho sótão de um cinema abandonado onde passava os dias a comer bombocas. Com saudades dos seus amigos da jaula, decide organizar uma festa na sua nova casa. A festa decorre normalmente até dois convidados se envolverem sexualmente. Aquilo que seria uma festa de amigos torna-se uma depravação sexual descontrolada. Para dissipar discussões é chamado um árbitro numa analogia ao futebol. Uma história com estórias ocasionais. Uma leitura dinâmica de linguagem rude e com graça. A gargalhada pode predominar se a órbita do leitor for similar. Um livro inventado de um nada em crescente. Todas as personagens desta obra são fictícias.
O Sétimo Sótão Delfim Carvalho
O SÉTIMO SÓTÃO
edição: Edições Vírgula®
(Chancela do sítio do Livro)
título: O
Sétimo Sótão autor: Delfim Carvalho desenho de capa: Ana
Paulo Ângela Espinha paginação: Paulo S. Resende arranjo de capa:
1.ª edição Lisboa, dezembro 2017 isbn:
978‑989-8821-60-7 432729/17
depósito legal:
© Delfim Carvalho publicação e comercialização
www.sitiodolivro.pt
DELFIM CARVALHO
O SÉTIMO SÓTÃO
AdvertĂŞncia: Este livro deve ser lido em silĂŞncio.
Momentos JB
Dedicado a 3 rapazes, agora homens. Tudo começou num acampamento da escola, um desses rapazes decidiu chamar a nossa tenda de J.B. A partir desse dia, e por muitos anos que se seguiram, sempre que nos encontrávamos, dizíamos muitas vezes, “momentos J.B.” Isto parece propaganda, mas era apenas uma forma simples de brindar à nossa amizade. Saúde!
. 7 .
Ter um pensamento estúpido é muito bom, desde que isso te faça rir… Ter muitos pensamentos estúpidos, pode ser ainda melhor… O Ser humano é um ser profundamente estúpido. A vida é estúpida porque um dia acaba E se não acabasse Seria também estúpida.
. 9 .
Capítulo 1
O inverno O inverno é a estação do ano em que os mortos gostam de bater palmas. O inverno é uma enorme pradaria de depressão. O inverno, ai o inverno, que inferno em gemidos gélidos! Que força aglutinante de melancolia. No inverno, o inverno bate nas costas do vento, ele entusiasma-se e começa a varrer telhados pelas vilas fora. A chuva fica cheia de si e descarrega-se nos outros em forças que metem nojo e fuga. O frio bafeja gelo pelo ar oprimido que sai das bocas. A neve veste a capa de ministro e ordena leis brancas pelos passeios municipais. Vento, chuva, frio e neve sentam-se na mesa a jantar com madeira a crepitar na lareira, escolhem em insinuações fáceis quem vai ser o próximo a chatear o planeta. Se ninguém que está na mesa deseja sair, mandam o nevoeiro aos recados para chatear os ossos e a visão nocturna. O general inverno tem bons funcionários ao seu dispor, e não lhes falta com regalias para desempenharem briosamente a sua profissão. A neve recebe antecipadamente o décimo terceiro mês. A chuva tem adse. O frio leva 2 meses de férias . 11 .
D elfim C arvalho
no verão. O vento tem viagem e estadia paga em hotel 5 estrelas nas Caraíbas durante 15 dias, e o nevoeiro é operado de borla aos ossos pelos melhores ortopedistas que existem. Mordomias de quem sabe estar… As vantagens são para aproveitar… A hora atrasa-se nos relógios tornando o anoitecer mais triste por antecipação. Os ponteiros das horas sentem-se humidificados de tédio, os ponteiros dos minutos com vontade de se enforcarem a cada minuto, os dos segundos não têm tempo para pensar, para sorte da sua existência. Os relógios de parede, sem nada que fazer, acabam por dar as horas, verificando que seus donos vão para debaixo dos cobertores bastante cedo. Começam a sair à rua, numa procissão agoniante, botas peludas, meias de pescador, camisolas de gola alta, cachecóis, sobretudos, gabardinas, gorros, polainas, luvas, com o devido etc. O guarda-roupa fica bem agasalhado num termómetro de lã, o baú de roupa volta a mover poeira, sinal que ainda aguenta mais um ano. A máquina de lavar sente a tensão da bombazina, da flanela, dos kispos malucos, da alma das ovelhas em berrares extraterrenos. O sol que não aparece, ou poucas vezes o faz, a chuva molha a roupa e não a deixa secar. Inverno, esta seca que se apresenta molhada, a luva dos raios ultravioletas, simbiose climatérica depressiva. Existe uma profissão que funciona como uma tábua de salvação no inverno. Isto por ser uma profissão que . 12 .
O S étimo S ótão
acomoda calor, por esse interveniente profissional trabalhar perto das brasas. É como trabalhar com uma lareira à sua frente. Ele dispõe da carne e distribui-a conforme o espaço existente na grelha, depois é só ir mexendo o frango, se for o caso, e esperar que o lume aceda às partes mais cruas. Terminado, tem o com ou sem piripíri, mas isso já é à escolha do cliente. Esse trabalhador tem as suas funções como todos, e o que assa frangos não pode fugir às suas responsabilidades. Tem que lavar os ouvidos aos frangos antes destes irem para o lume. É necessário limpar-lhes as fossas nasais com umas luvas finas do género látex. Por fim, não esquecer de lavar bem o pescoço ao frango, por ser uma ave que come de tudo e apanha facilmente infecções na garganta. Tem alguns profissionais desta área que pintam as unhas aos frangos, mas isso já são outros molhos. Esta é apenas mais uma profissão, como tantas outras, com a dificuldade natural de ser pronunciada por ter demasiadas sílabas. Refiro-me evidentemente ao churrasqueirolaringologista.
. 13 .
Capítulo 2
O cinema O cinema vai apresentar esta segunda parte, quem escreveu o guião do filme não fui eu, mas alguém que habita dentro de mim e eu não conheço. O realizador também não sou eu, ser realizador implica mandar nos outros, comandar diversos segmentos… mas sei que ele pula nas minhas costelas, esse realizador. Não tenho qualquer contrato com o actor principal, pese o facto de ele nadar pelos neurónios da minha saliva. E com o cameraman, que coisa bichosa, anda por todo o lado, outro dia acordei com ele a filmar os meus pés, o moço parece que tem bichos-carpinteiros nos braços e gosta de filmar tudo, até moças com fatoco no umbigo ele capta. Os figurantes têm como passatempo fazer bolinhas com os pêlos dos sovacos, provocam uma comichão desagradável. As bandas sonoras a usarem guitarras rebarbadoras e aspiradores para fazerem a devida geometria da imagem com o som. A actriz principal começa a tirar o deslumbrante vestido, deixando de lampejo uma visão que suscita excitação. Os duplos a caírem de montanhas rochosas deixando as suas faces . 15 .
D elfim C arvalho
num estado erosivo, motas a galopar camiões num asfalto consequentemente sangrento. Produtores a discutirem produção numa propagação de altiva bilheteira, finados de estrutura económica. As vozes contratadas para desempenharem o papel de bonecos, ou pior mas mais engraçado, de miquises! O cinema, tantas vezes o ensejo daquilo que nos falta viver, a pirâmide castelar dos sonhos que teimam em ficar, a fantasia da realidade como realidade da fantasia. As salas enormes e escuras com uma tela gigante sobre um ruído de fundo de pipocas. Confortáveis cadeiras forradas a tecido quente com apoio seguro para os cotovelos. A cortina no abre e fecha da hora da expectativa, movimentações cronometradas de pano artístico. Os camarotes da excelência quando o filme é um senhor. O porteiro não abre a porta, rasga o bilhete a meio. As meninas e meninos da caixa na tarefa de receber notas e dar moedas, vendendo ingressos com rapidez e apetência informática numa atitude pouco cinéfila. O homem da lanterna que ilumina os corpos escuros nas cadeiras corretas sobre a lassidão de atrasos no horário previsto. Os espectadores, esses fundamentais da imortalização da grande tela. Os olhos cravados na concentração para perceber o filme, os ouvidos atentos aos detalhes, o cérebro na investigação da intriga, assim se sentem muitas vezes os espectadores, ora emocionados, ora expectantes. A preferência do filme quando a sala tem mais . 16 .
O S étimo S ótão
gente, a estação que mais faz render os lucros da sétima arte é o inverno. Porque não há nada como ver um bom filme no inverno, haver há, mas o cinema é mais romântico nesta estação do ano. Cinema e inverno enlaçam-se numa sintonia de apego através de um cobertor. No verão batem as esplanadas, no inverno o que bate são os cinemas. Os cinemas acabam por ser um aquecedor gigante onde o cérebro vai fazer ginástica, ou rir, ou chorar, ou sentir medo, depende do filme. Os cinemas não fecham no verão, da mesma forma que uma discoteca não fecha no inverno. Com ou sem cachecol, vamos a um curto intervalo. Os realizadores de cinema gostam todos de beber uns valentes canecos, são também pessoas com pouca força nas pernas. Acontece que quando bebem em demasia, acabam por cair com bastante facilidade. As quedas são fruto dos realizadores nunca praticarem atletismo. Dedicam-se mais ao whisky quando têm dinheiro, se a carteira não andar muito abonada viram-se para a cerveja, em último recurso, se estiverem sem dinheiro dizem que pagam depois, mas acabam por se esquecer. Mas as quedas, essas, são absolutamente fulminantes, caem de costas batendo com a cabeça no chão, caem de lado quando está uma mulher ao lado, caem de frente quando vêem notas no chão… Havendo uma festa onde estejam realizadores de cinema, haverá sempre uma mancha de sangue na parede, uma . 17 .
D elfim C arvalho
pisadura na cara de uma menina, dinheiro que desapareceu, e principalmente sobretudos com botĂľes largos.
.  18   .
Capítulo 3
A fuga No velho sótão de um cinema abandonado vivia um gorila que passava os dias a comer bombocas. O gorila havia fugido do jardim zoológico numa noite de trovoada, o guarda-nocturno distraiu-se a fumar cigarros e deixou a jaula aberta. Com os outros a dormir, o Gorila Ramos, estando de insónia por ter medo da trovoada, aproveitou a situação para dar entusiasmo à sua sede de aventura e fugir do medo. Pulou o muro do habitat dos animais da selva a viver na cidade, e rumou atordoado pelas ruas noctívagas da cidade. A noite estava posta como um caldo numa malga, com as pessoas embutidas nos seus casulos de lençóis, a trovoada vociferava palavrões luminosos para os que insistiam em manter-se acordados. Pouca gente circulava naquela noite vagabunda, e quando, ao acaso, ele avistava um vulto humano, fugia para zonas escondidas com esconderijos improvisados à pressão. Foi aguentando assim a situação da sua aparição, sem aparecer. Viu uma carrinha a aproximar-se, era um padeiro que entregava pão na madrugada, meteu noutra rua, mas deu-se mal, . 19 .
D elfim C arvalho
encarou de frente com um taxista que esperava clientes no seu táxi. O homem careca do carro de aluguer ficou assustado, deu um grito bem sonoro que se confundiu por entre os trovões, e, sem saber o que fazer, começou a buzinar estridentemente. O gorila ficou atrapalhado e escondeu-se atrás de um vidrão, mas logo reparou que a táctica não era das melhores. Desatou a correr com as suas pernas arqueadas, chapinando a água que lhe aparecia pelas patas. Foi então que avistou o velho cinema, abandonado, trepou por ele acima e escondeu-se no sótão, que era bastante espaçoso e protegido da chuva, parcialmente, pois chovia em alguns cantos. Gostou do local, estava isolado e ninguém o chateava, além disso, tinha milhares de bombocas para comer, alimento não lhe faltava.
. 20 .
Capítulo 4
Bombocas! As bombocas para efeito de consumo humano estavam fora de prazo, por isso foram parar ali. Funcionava uma fábrica de chocolates ao lado do velho edifício cinematográfico, e aquela encomenda rebentou de excesso, teve que vir para trás, como o armazém da fábrica estava à pinha foi para o sótão, seriam um dia para reciclar, fazer jubileus e pintarolas, ou pura e simplesmente iriam apodrecer por ali. Não faz qualquer diferença para o metabolismo de um gorila comer bombocas fora de validade, aliás, ele nunca a verificou, nunca precisou de ler para comer, não seria agora que o iria fazer. Por sorte sua podia variar, existiam bombocas de chocolate, morango, baunilha, maçã, e mais tarde descobriu as de avelã que estavam por debaixo das outras. Começou a gostar tanto de bombocas que se esqueceu completamente da alimentação nutrida que tinha no zoológico, à base de vegetais e frutos. Nunca repetia uma refeição, se almoçava bombocas de chocolate, jantava bombocas de morango, para o lanche alternava entre as de baunilha e avelã. No dia seguinte . 21 .
D elfim C arvalho
voltava a modificar o hábito gastronómico e ia levando o estômago ao colo com a barriga consolada. Uma ocasião fartou-se de bombocas de baunilha, esteve 3 dias sem lhes tocar, ao quarto dia, repetiu-as 3 vezes. O seu aparelho digestivo conhecia bem as tácticas do paladar em excesso ou escassez. Certa noite em que estava cansado não podia dormir sossegado, uma ratazana andava de um lado para outro numa correria alucinante e desmedida, farto daquilo, e com receio que ela fosse comer as suas bombocas, aproximou-se rapidamente e esmagou a ratazana com as patas, depois de bem esmagada, o que bastou apenas duas calcadelas, abriu 4 bombocas de morango a meio e enfiou a ratazana dentro, foi para o bucho e chamou-lhe um figo, soube-lhe pela vida comer a sandes bomboca de ratazana àquelas horas da noite. Seria pior se o Ramos abrisse a ratazana a meio e metesse dentro umas bombocas esmagadas, como não o fez, tenho que lhe dar os parabéns, os parabéns por ter tido o cuidado de não magoar a ratazana depois de morta. A noite estava escura por força de evidência visual, parecendo mais escura de que o habitual, dando a sensação de ver o escuro a entrar no próprio escuro. O frio era cortante e duro com orvalhadas que colavam no mundo terreno. O dono da tasca mandou-o embora, estava na hora de fechar o estabelecimento. O homem . 22 .
O S étimo S ótão
saiu acompanhado pelos seus copos, que haviam começado no bagaço e terminado no vinho. No caminho para casa tinha que passar por uma bouça que havia nas redondezas. Este homem era um bom trabalhador, mas tinha a fama de ser uma pessoa muito má. O trajecto conhecia-o muito bem, era cliente há muitos anos daquela tasca. Já tinha passado mais de metade da bouça quando ouviu um ruído. Um ruído que não era mais do que gargalhadas. Olhou em várias direcções e nada via, os seus ouvidos perceberam que o barulho vinha de cima. Levantou a cabeça e viu um corpo todo vermelho com um grande rabo e dois cornos. Ficou assustado com aquela aparição, percebeu imediatamente que estava a ver o diabo. O homem ficou petrificado, mais congelado do que a noite fria. Tinha noção que estava um bocado bêbado, por isso esfregou instintivamente os olhos, para ver se aquilo desaparecia. Mas nada desapareceu, apenas se transformou, via agora um macaco que continuava a dar gargalhadas. Além de rir intensamente, o macaco fumava um cigarro, não parando de olhar para o homem, parecendo intimidá-lo para o resto do seu caminho. Não esfregou novamente os olhos, percebia que era efectivamente um macaco e naquela bouça não viviam macacos. O riso era estridente e repetitivo, ecoando sonoramente pelas proximidades. Depois, o macaco meteu umas cuecas vermelhas de mulher na cabeça, já sem cigarro, a gargalhada . 23 .
D elfim C arvalho
perdurava. O que estava debaixo da árvore sentia um medo espinal, e para disfarçá-lo começou a insultar o macaco, usando dos piores palavrões que o dicionário do calão admite. Acontece que o macaco não apreciou aquelas palavras. Desceu rapidamente da árvore e foi de encontro ao homem. Seguiu-se uma luta brava, rebolaram pelo chão entre murros, enlaçados em pancadaria. Foi uma luta feia, mas não durou muito tempo. Quando o homem deu por si no fim daquela algazarra já não via o macaco. Levantou-se com dificuldade, algo dorido fisicamente, meio cambaleante. De seguida ouviu um barulho imenso e rápido, um ruído derrocado, foi então que ouviu uma voz que se esgueirou por entre a escuridão das árvores, “Vais ter que colocar o muro em cima!” Nada mais ali aconteceu, depois do silêncio o homem rumou pelo seu caminho. No fim da bouça havia um velho muro que separava a própria de umas casitas, numa delas morava o homem que viu o diabo em figura de macaco. Ao avistar o muro verificou que ele se encontrava tombado, espalhado pelo chão. “Se pensas que vou pôr isto no sítio estás muito enganado.” Vociferou o homem numa atitude de raiva. No dia seguinte, a primeira coisa que fez foi ir à porta de casa para ver o muro, estava intacto, erguido como sempre. Antes de ele sair para o trabalho a mulher perguntou-lhe, “Não ouviste um barulho estranho ontem à noite?” . 24 .
Capítulo 5
A visita Com o tempo, a solidão ia aumentando o seu isolamento, o gorila tinha uma vida tranquila, mas faltava-lhe aquilo a que chamámos convivência, carecia de amigos, da ausência de gente. Se nas primeiras semanas a sensação de estar a viver de uma forma diferente o agradou, com o desenrolar dos dias tornou-se um fardo que partia todas as balanças do seu corpo. Sentia-se agora muito só, e foi obrigado a tomar uma decisão para terminar com o seu sofrimento, ou pelo menos, para atenuar. Resolveu fazer uma visita inesperada à sua antiga casa, tinha em mente convidar os seus amigos mais chegados do zoo para uma festa no sótão, a festa da bomboca, que os outros não conheciam como alimento saboroso. Esperou o anoitecer em largas horas, e quando se fazia muito tarde pelos ponteiros do escuro desceu o velho cinema, galgou escondido pelas ruas e saltou o muro do zoológico com facilidade, estava agora mais magro, provavelmente por se alimentar apenas de bombocas, o que convenhamos, não vem na roda dos alimentos . 25 .
D elfim C arvalho
principais. Avistou a jaula dos gorilas e ficou à cuca com os vigilantes. Os gorilas dormiam, o que não era de estranhar, eram 4 da matina, alguns dormiam mais do que outros, embora isso não fosse perceptível pela visão, mas sim pelo som, pois ouvia-se altos roncos por debaixo dos troncos. Ramos não sabia o que fazer para falar com o gorila Roberto, o seu melhor amigo, com quem costumava ter grandes conversas íntimas nos troncos do jacarandá, a velha árvore argentina que veio pelo correio internacional e que possuía flores majestosas de cor malva inebriante. Evitava fazer barulho, coisa nada fácil para um gorila, que tem movimentos pesados numa definição clara de um brutamontes. Aproximou-se do jacarandá onde Roberto dormia, sem querer, calcou um alfinete que se encontrava na vertical sobre o chão, acabou por ficar com ele espetado, deu um gemido grosso para si, como se a garganta berrasse para dentro. Estupidamente, o gorila Roberto acordou, parece que pressentiu o alfinete a perfurar a pata do amigo. O que estava dentro da jaula, ao avistar o que estava fora teve uma reacção alegre e abraçaram-se por entre as barras ferrugentas que os separavam. Ramos contou-lhe tudo, da fuga, do sótão, das bombocas, da sua vida nova… Roberto dizia que por ali tudo estava igual, enfadonho como sempre. Finalmente, Ramos contou-lhe o porquê daquela visita, que se sentia só e queria fazer uma festa no sótão com o pessoal mais chegado. Roberto ficou de . 26 .
O S étimo S ótão
avisar a malta, combinar o que era preciso levar e arranjar maneira de se esgueirarem dali por uma noite. Marcaram para sexta-feira, anulando o sábado, evitando assim que os gorilas andassem ressacados no domingo, dia de tantas visitas e que não convinha dar estrondo. Roberto comentou que nunca tinha provado bombocas, e que por via das dúvidas, era melhor o pessoal levar algo diferente na eminência de alguém não gostar, que não se preocupasse com as bebidas. Ficou acertado e despediram-se de forma ruidosa e emotiva, levando alguns alfinetes a acordarem e distribuírem picadelas por outros animais do zoo que não tinham nada a ver com o assunto. Houve mesmo uma cobra que saiu toda furada da jaula. Passou um enfermeiro para a enfermaria com um urubu nos braços, saía-lhe sangue pelo pescoço, ao enfermeiro. Uma andorinha bateu de frente numa borboleta do Árctico setentrional, provocando-lhe a morte de imediato. Alguma desordem tomou conta do zoo, os vigilantes ligaram os holofotes principais e deram com um tigre envergonhado, que brincava com um golfinho bebé numa pequena poça por debaixo de um castanheiro escandinavo. Fugiram centenas de formigas. Bacalhaus espirraram sem sucesso. Apanharam um canguru a andar de triciclo. Quando Ramos chegou ao seu sótão, a confusão ainda durava e só acalmou completamente pela manhã. Deitou-se a descansar e acordou tarde, à hora do almoço. . 27 .
Capítulo 6
Percurso sem chicletes gorila Ramos nasceu em Odivelas, numa herdade onde predominavam porcos e galinhas, era ainda um gorila bebé quando um simpático casal o levou para o seu apartamento. Esteve lá apenas 4 meses, pois crescia bastante várias vezes ao dia, comia muito e de tudo, além disso, sujava as carpetes e os lençóis com fezes enormes que demoravam a sair mesmo com lixívia extraforte. O dócil casal não reunia condições económicas para sustentar um bicho com tamanho apetite, era pior do que sustentar um burro a pão-de-ló na verdadeira dimensão gastronómica. O espaço também escasseava visto o apartamento ser um T1, não raras vezes o gorila acabava por partir objectos de uso caseiro, ainda que involuntariamente. Como naquela tarde em que a tijoleira estava húmida e fê-lo escorregar causando a destruição completa do frigorífico, da mesa de jantar, da mesa de almoçar, da mesa do lanche e da mesa do pequeno-almoço, como se não chegasse, partiu a colecção de cadeiras jesuítas que era relíquia familiar que vinha de antepassados. Antes disso, uma semana . 29 .