Quando um beijo for uma loja sem comércio

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Quando Um Beijo For Uma Loja sem ComĂŠrcio


Edição: edições Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) Título: Quando Um Beijo For Uma Loja sem Comércio Autora: Marta David Ilustração: Carlos Mendonça Design: Laura Malaquias Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, Outubro de 2015 ISBN: 978-989-8821-07-2 Depósito legal: 398381/15 © Marta David PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt


Marta David

Quando Um Beijo For Uma Loja sem ComĂŠrcio

POESIA



sol num dia de chuva estremeço com a passagem dos comboios no andor veloz de flechas electrónicas que fazem jorrar da bruma a gesta do santo e guerreiro as pontas afiadas das setas o pranto do elmo em fogo o êxtase diluído no milagre do vapor das águas tornado monumento monge redentor claro que podia ignorar todos os comboios as flechas que passam e ferem sem pisar o meu tapete mas ficava-me um sabor a acre na boca perderia todo o fôlego a labuta o sal o cristal remidor a força para ler jornais para carregar no botão certo de ar condicionado e refrescar dar força e gáudio à palavra certa no momento certo – seria como se o mundo perdesse a cor num filme a preto e branco em que escolher não é ter certezas e em que a certeza é apenas saber que o homem conhece o arco-íris o sol num dia de chuva a lua numa noite enevoada – a certeza é os pássaros nascerem e morrerem a levante refundirem-se no ribeiro aéreo do céu na liberdade de ser 7


em que ser ĂŠ ser Ăşnico e inteiro do provir no globo da vida nas fontes sob as raĂ­zes da terra no provir do sonho na alegria da erva

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estímulos de terra aparece no programa dos vips e carrega no cesto o alimento dos povos do vale a troco de uma exibição não sem de peito aberto em lírio crê não deseja fingir querer mudar o rumo do vadio quer pelo menos renovar-lhe a pele doar-lhe a soma da sua operação estética o rewind das cascata do tempo a ele unir-se no emblema no elipse da sombra no elixir na imortalidade num sentir em sangue de gémeo a troco de uma exibição porque o nosso sangue nutrido de células verte ainda pedidos e estímulos de terra – que lhes descubramos em gestos de rosas e doação de bétulas sob o sol comprometedor humanos anjos divinos da placenta dirigida aos céus em seta inteiramente nós profetas narcisos cometas animais políticos historiadores benfeitores de tudo um pouco somos porque de nada perante o Todo – afinal 9


quinto vértice vestem a dor desfiada do traje alheio amantes da alquimia do fogo e da água da palavra sofisticada que refunde o sonho a imaginação o pensamento em matéria nas maravilhas da criação num lençol de linho na esfera de um rosto bordado em geometria de um círculo de areia de um círculo de almas enleadas em veludo no vértice do ângulo de um fio que a coroa de um abajur de pinho alteia outros tragam em suas mãos ruas assimétricas rodeadas pela fortaleza da montanha que não os deixa pensar mas obedecer à mão do traço que os desenha no ecrã do céu quem sabe esse construído pelos arquitectos que deram os seus nomes próprios às dunas e tomaram as fronteiras das praias tiraram-lhes um novo bilhete de identidade e em seu solo tosquiaram seu renovado rebanho a desfiar-se em espigas de sangue dos construtores que olvidaram que no intervalo do espaço serviçal pode estar o da prece de uma ovelha que reza em seu sentir em seu pensar pode estar a prece de alguém que aprendeu a rezar com as dunas do mar 10


há quem receba as bênçãos de um deus de um homem de um benfeitor bafejado pelo pó do betão o que de moedas em bandeja presenteia de pomos o arrumador de carros – homem-deus na Terra maior do que as salinas que jorram do grão somando raízes de corações ilustres ao espírito do sémen difundido-os na chuva divina na rota do éden há também o político embriagado com a semântica do éter jorrando da coroa em forma de sal rei que governa em espírito germe da terra filósofo cavaleiro da arte de bem governar há o profeta – em Portugal tanto os houve e um virá – do quarto império regressará senhor do último em matéria de espírito em pirâmide se moldará do quinto vértice da ilha a ser resgatada de âncora solta e iluminada aos altos céus aspirará

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cidade em que também é Natal o grito da baleia entra pela janela da casa do fundo do mar onde vivo paraíso de sons átomos electrões ou fantasia alçados pelos botões líquidos da televisão de algas do prédio em frente em construção no aconchego do olhar de plasma de legendas líquidas de um serão marítimo de leitura em letras desenhadas a cristais sal e maresia cidade aquática em construção a que não faltam as jóias e os tesouros estelares povoadores de um céu sem fundo que é o altar do fundo do mar cidade em que também é natal sem a diferença da tirania do dever dos bairros – é natal aquático, afinal cidade de búzios rochas e ondinas no seu posto de vigília guardando em suas arcas os destinos dos barcos o destino dos navios o destino das travessias da alma pelos cabos rumo à união da água da terra do céu e do ar da respiração das sereias uma bandeira com uma estrela ao centro a acenar e a marcar o dia da ascensão dos pomos polidos da terra das flores silvestres do mar 12


banco de investimento lunar cruzei-me com o homem do Banco na avenida de Roma ia no seu caminho alheio ao mapa dos números e por isso longe de me reconhecer e mesmo que em seu traje me fitasse estava fora do seu habitual balcão – não me falaria senão com dotes de humano varão que dele assomam para além da porta e do registo da hora de saída no seu cartão a deslizar por entre as espáduas de metal a orientar o sentido da labuta a esmeril espera pelas conversas no adro da lareira ao serão quando entro no Banco sou especial mesmo de vestido hipotecado ao erário público ao montante que me emprestarem só não me querem nua de coração penhorado à vista depois de uma irrigada cirurgia pensava eu que se dessa cirurgia saísse o plasma do meu sangue em concha celeste e o agasalho das veias fosse depositado no monte do cofre à entrada da sala do gerente talvez o dinheiro se multiplicasse e um cheque pudesse ser depositado no banco de investimento lunar

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talvez um cruzeiro buscasse a justa medida dos centímetros sem forma régua sem medição de juros e taxas lunares somente luz insondável para além da fonte solar pudesse talvez construir-se em seu halo de fonte o milagre da lotaria da multiplicação da uva para ofertório de vinho no dia de aniversário dos anéis da lua

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candelabro de sete braços uma voz para além da tua soa através de uma linha de ponta fendida por onde atravessa a luz do raio que o supremo grava na tábua de pérola e separa o céu da Terra a rota dos tecidos de seda e erva da guarida onde o Sol visto da praia se põe em fios e cristais desenhados num quadro a aguarela uma voz para além da tua rege a cera a fileira o sopro do verbo que transmuta dá forma vida e anima ao parto da lua envolve-me na recta vertical do céu e de terra do esquadro no espaço para além do possível do espaço nas linhas de um candelabro de sete braços que alumia todo o eixo da Terra lembra-me quando telefono para as reparações e logo no início da conversa antes de tudo tratado do lado de lá me perguntam como me chamo para me fazerem sentir o quanto importante sou entre tantos – trovador e poeta da geometria dos quadrados em busca de ângulos rectos da copa herdados – é quando me pergunto o que sou – e sei-me luz e claridade penumbra e sombra o que procura afirma o verdadeiro ser o divino em nós e nega o ser o não ser em nós o divino em falta 15


a raiz da árvore em terra firmada a trepadeira de éter na copa rasgada e eu que não quero ser importante mas bem tratada e bem tratar pergunto o nome de quem me atende que não tem só um tem dois e de um duplo eu escolho aquele que melhor se adequa ao céu que desejo e aspiro deslindar em cores pétalas e triângulos equiláteros no modo mais do que perfeito e no condicional na alquimia circular do sonho materializado no sono âmbar escolho o nome para a voz de um rosto que não vejo alinhada pelo invisível das tercinas da lira celeste do peito pelo veludo do serão no enleio lácteo que doa ao corpo em espera paz e devaneio escolho o nome e recebo a voz num triângulo enxertado no corpo num semáforo de palavras enleado nas ervas no sonoro verde de uma cítara mandatária do verbo na Terra recebo do céu desenhado em oito de vime e lã preces enviadas aos humanos no radar das tranças dos devas

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caneta hipotecada a Hermes roubaram as pérolas líquidas do universo que se petrificaram no frio sórdido e deportaram-nas para as suas arcas de tesouros congelados e ainda assim a guitarra soa na praça sob o ardor das calças desbotadas do sem-abrigo na ondulação do corpo desarrumado da aprumada toalha das moedas remetidas para o trono de um duende de passeio pela noite que as transforma em arestas de ouro fundido no lume pardo das velas – e o universo que sabe e sente e ressoa como as preces dos anjos espalha pela abóbada de veludo do céu a tinta permanente de um ancestral frasco que alberga a perene dor sem dono perguntando a quem pertence a guitarra da calçada – e os que a rodeiam em vestidos e luvas de cetim purificados pelo toldo circular do raio interino do fogo da mão de um deus da Terra ouvem os brados dos que sonham a ideia e a enxertam nas raízes nos caminhos pedestais de éter e terra – é frágil a natureza por isso valerá a pena de caneta e tinta permanente hipotecada a Hermes fazer da escrita 17


um palácio sem reino tabu e vestes a íris de um passaporte vidente o perfume sem frasco de um reino de vergel encomendado por ordem do guardião de um castelo de porta iluminada onde a justiça é um alvo pêndulo no provir de uma lua nova é uma balança que exuma e ressuscita os olvidados discursos o supremo sopro do raio de pérola onde a justiça é o som em uníssono do manto silvestre e de marfim que exorta leigos e sábios a banhar-se nas águas do sereno e agitado tridente armado em trave de veludo e dentes de jasmim

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humano divino animal quando depois de muitos anos visito a governanta zelosa a ternura pelos meninos apaziguada a paz do seu precário recanto observo se no rastro da órbita dos planetas também há vestígios de hierarquia e eu que acredito na força dos astros no embalo da rota cônscia do universo que nos debelam nos mascaram nos transmutam em dançarinos de trajes areados em pássaros de porte em eido celestial que nos nutrem de afagos e de espinhos de rosas solares da elipse de um diácono verso em vésperas de altar da cantata dos harmónicos das esferas pela mente dos homens na véspera de cada dia de outro e mais outro embalados pela cantabile primavera eu que acredito na força dos astros creio até que há planetas a mandarem mais do que outros mas eles que são os condutores do mundo deviam pôr à frente do universo um benfeitor que não seja apenas humano ou divino pois qualquer um destes agente promotor publicitário actor espectador mago cientista artista a sós já provou não ter desvelo 19


a sós são apenas idílios verdes vazios sem golo celestial sem o pulular do coração sem a ebulição dos pólos sem o gélido aterrar do Sul sem o colo abrasivo do Norte – inteiros serão os filhos da continuidade da intercepção dos conjuntos aquáticos mundanos e solares dos puzzles sem alicerce nas mãos das crianças com peças sem geometria e tijolo moldável e de escolha livre à vontade do freguês celular podem ser búzios pedra mineral ou jarro de água sei lá uma coisa assim tão simples como isso agente promotor publicitário actor espectador cientista artista ou político ouvirão o canto das sereias e desfeitas as oito cabeças da serpente acima do Sol todo o mal se diluirá em entidade formatada no notário da galáxia num só registo e em sudário manto em síntese humano divino animal vegetal

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que importa se é futebol ou literatura os olhos sabem-nos a Europa sopram ventos de todos os cardeais bússolas em forma de bolas iluminam o cruzamento das rectas de uma baliza à outra e de entre as bancadas em aparato de esgrima e seta ondulada em que o lance do pontapé de saída é da cor da trave da outra baliza e no golo se forja a unidade saudada diz Ele então de cabeça erguida para a inauguração do estádio e dando a bênção à ala de canteiros semeados para os meninos de bola preta que faziam da rua o relvado de sua casa: – um orgulho para todas as famílias assistirem a imperial dourada que leva o sol onde o nevoeiro chove o sangue onde as traves já sem a pressão das barragens ganham o enlevo e a ternura das marés Ele – de cabeça erguida alguém com nome escrito a letras maiúsculas saído de um romance – pode ser um deus narrador omnisciente que sabe tudo sobre a vida e o rumo das personagens 21


– podem ser apenas estas que ganham vida própria e de telecomando em cena dirigem o escritor – ou simplesmente alguém de nome próprio que diz: – que importa se é futebol ou literatura desde que ilumine o retrato de uma vida evite o vazio os pólos de sombra as rosas secas sim como sabes ajude os neurónios a dialogar e em palavras de forma arte e contexto enobreça o músculo do corpo os tendões de éter da alma – a capacidade de pensar

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fazer amor com o homem-deus neste poema não sei por onde começar um pouco como na vida quando as delícias chegam tarde perguntas-me se o mastro do barco faz frente à desordem das ondas sem elas não existia a harmonia do mar só os remoinhos tornam perfeitos um quadro hexagonal dizes-me que parto sabendo que regresso um dia talvez é inevitável sim em breve nem que seja para a última luta para se viver num mundo sem poças manejadas pelo sangue quando um canteiro do jardim tiver a assimetria de um quiosque de centro de praça de um angular quarto de adolescente um mundo arrumado é como um sol que não se põe atapetado pelo rasto embaciado dos tons inamovíveis anuncia a monotonia da luz O mundo só é O mundo arrumado quando tivermos desfeito toda a geometria só abandonado o pressuposto mundano de toda a lógica aquém da perfeição da orla do mundo das almas percebemos o quanto estamos longe 23


das certezas que temos – de que a arrumação de um salão de festas para o evento é a perfeição entender que a nata do leite olvida o turvar surdo dos ponteiros das horas e que por sermos ignorantes não o sabemos sem vista para o além somos protagonistas de uma imperfeição indolor desalinhada da forma do terreno do círculo perfeito – em que cada homem sente o grito alheio exuma as células liberta dos vales os corpos exangues erige o pêndulo tombado solta a dor do outro que traga e verte por uma torneira de água de pão e rosas potável às vezes viver na penumbra é bom olhar para o poço desbotar a sombra e dizer não é por aí e ainda bem que existe alguém nesse ponto que repõe o desalinhado do branco e muda o sentido da placa de trânsito é voltar atrás regar o vaso e fazer amor com o homem-deus que ganhou título e se estreou 24


recém-nascido no berço de silvos na selva depois da primeira respiração no adro profano da erva e de rugido nos lábios virgens deseja fazer a ronda do coche velho e a da rota do astronauta para volver de novo ao quartzo lilás donde proveio num comboio de fuel amniótico no aconchego da carruagem deseja volver à placenta de mosto com um alfinete de dama e uma estrela de ouro dependurada do sexo e exibindo uma coroa de éter

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avião em sintonia uma flor não pode nascer de um decreto nem uma casa da terra mas para sobreviver que lei vigiar? sobreviver é uma mudança no lago póstumo aos tormentos é uma maré baixa em que a corrente de sangue se converte em vela para que não fique hipotecado o sono nos sobre o sonho da vigília o sereno toque dos devas sobreviver é ter esperança olhar de ave planando baixinho é o que cada um deve a si mesmo e cada um sabe de si e deus olha por todos mas quando o universo em seu potro de sílaba possante ordenar que o cocheiro do planeta seja outro emita a vibração aguda e amovível de um pêndulo pilotando naves de éter e sal quando o universo em seu potro de sílaba possante emitir a voz ressoando das profundezas marítimas do sangue talvez sobreviver não seja uma necessidade quando o cavalo preto e o cavalo branco se irmanarem na alquimia do cobre em ouro 26


quando da intercepção do conjunto dos contrários explodir em alvo leito de anil a pele do nu talvez a vida do homem se assemelhe a um avião planando sobre pistas que dispensem solo ouro e conclaves e fuel em suas rendas de asas âmbar um avião que descole em sintonia com outros tantos voando em rotas diferentes numa modulação de vozes linhas e jactos que se cruzem e se avistem mas nunca deixem de em si a do outro velar

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ADN do pássaro por decifrar a tinta escorre de cada dedo faustoso pousado na secretária do gabinete ministerial sentes que as calças não servem aos clientes há um desajuste na forma de gerir uma roupa que tem de ser remendada uma ferida que só a alguns afecta o arrumo desarrumado da mordedura da benfeitora tarântula que morde para a ferida ser curada há que tratar a ferida em forno de lenha para decepar o túnel das chagas derreter as iguarias espojar os corpos fartos despachar os papéis acorrentados onde os duendes habitam em camas de vapor de álcool e ópio solar assomam ao estádio no auge do golo do justo que exibem no ecrã do recinto âmbar o som cósmico do lego exaure a intonação promissora o último decote a última gota de esperança da sombra o enigma da estância dos homens eleitos no relvado que de mãos dadas entendem os veios espessos o ADN do pássaro por decifrar sobrevoando a ondulação da canoa em fundo de papaia o ADN dos signos da bola dos jogadores da vida em gestação para em rosas germinarem 28


e os duendes extraem do sangue o fruto esvaído exaltam a lembrança da respiração do outro quando já nada mais nos resta senão a memória e o tempo de um relógio de areia

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