Retalhos da vida de uma Mulher

Page 1

nasceu em Espinho em 1974. Licenciou-se em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto, em 2001. Pós-Graduada em Consulta Psicológica com Jovens e Adultos desde 2005. Exerce actualmente psicologia clínica.

(...) Quatro seres devotos e em pânico seguiam-me, sem deixarem que o medo os dominasse. Iam cumprir a árdua tarefa de me ajudar com as tralhas que há muito me acompanhavam sempre que fugia de casa (...)

Esta é a história da Mariana, cuja vida foi marcada por violência física e psicológica. Infelizmente, uma história presente na vida de muitas mulheres.

Sandra Araújo Retalhos da vida de uma Mulher

SANDRA MARIA LOPES ARAÚJO,

A chuva batia fortemente e inundava tudo o que se lhe cruzasse no caminho. O carro parou depois de uma curta viagem para o emprego. Um rasto de caminho perdido e jamais retomado. A esperança aparecia agora mais real, mais honesta do que julgara. (...) Aqueles socos estavam ainda muito vivos e amordaçavam todo o meu ser. Doía-me o corpo, de dor, de mágoa, de desgosto.

Retalhos da vida de uma Mulher Sandra Araújo



Retalhos da

Vida de uma

Mulher


FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Sandra Araújo TÍTULO: Retalho

da Vida de uma Mulher

AUTOR: Sandra Araújo REVISÃO, PAGINAÇÃO E ARANJO DE CAPA: Paulo

Silva Resende

1.ª EDIÇÃO Lisboa, Abril 2012 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Publidisa ISBN: 978-989-97767-0-8 DEPÓSITO LEGAL: 340959/12

© SANDRA ARAÚJO PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


SANDRA ARAĂšJO

Retalhos da

Vida de uma

Mulher



Agradeço aos meus colegas de trabalho, amigos e familiares pelo incentivo e apoio incondicional. Dedico este livro a todas as mulheres cujas vidas foram retalhadas. A autora, Sandra Araújo



Preâmbulo

Janeiro de 2009 A chuva batia fortemente e inundava tudo o que se cruzasse no caminho. O carro parou depois de uma curta viagem para o emprego. Um rasto de caminho perdido e jamais retomado. A esperança aparecia agora mais real, mais honesta do que julgara. Os ossos doíam-me como nunca, caminhar era quase impossível, dificultando-me os movimentos. Chegada ao destino, um sorriso de orelha a orelha percorria-me a alma. Fechei o carro e, numa rapidez característica, rodopiei sobre os calcanhares, caminhando até ao meu habitual escritório. Não sei como lá cheguei, a noite tinha sido uma montanha de tormentos e mal dormida, ou se dormi nem me lembro. Aqueles socos estavam ainda muito vivos e amordaçavam todo o meu ser. Doía-me o corpo, de dor, de mágoa, de desgosto. As palavras, essas, ecoavam uma a uma no meu pensamento como facas aguçadas. Entrei no meu novo mundo, aquele que destinara a ser o meu playground para muitas horas, dias, meses, até anos, desde

9


SANDRA ARAÚJO

que me conheço. Ao fim de algumas horas, uma multidão de seres inanimados olhou para mim, espantados com tudo o que lhes dizia, de lágrimas nos olhos, mas sorridente, tentando disfarçar a dilacerante dor de três anos de matrimónio. As suas bocas entreabertas e os seus olhos de terror escutaram cada palavra sem interrupção e, num abraço apertado, limparam-me as lágrimas e partiram de seguida comigo. Num breve instante estava eu novamente sob aquela chuva intensa, aliada à névoa que pairava no ar, onde se sentia o cheiro moribundo das árvores despidas, típicas de um inverno rigoroso. Quatro seres devotos e em pânico seguiam-me, sem deixarem que o medo os dominasse. Iam cumprir a árdua tarefa de me ajudar com as tralhas que há muito me acompanhavam sempre que fugia de casa, para depois voltar novamente àquele espaço frio, vazio, sem calor humano, porque não tinha para onde ir. Mesmo se tivesse não tinha forças suficientes para o largar. Pelo caminho caíam-me as lágrimas, demasiadas para serem contadas. Era o fim do pesadelo, o começo de uma nova vida. Estava a deixar para trás a vergonha, a culpa, os sonhos cor-de-rosa que nunca existiram. Fumava cigarros uns atrás dos outros (acho que me alimentava deles diariamente) com uma mão no volante e outra na minha face já gasta apesar da tenra idade. Dificilmente via o que se passava à minha frente, mas mantinha-me atenta aos três carros que me seguiam – uma carrinha Audi, uma Mégane e um comercial ligeiro. Era deles que dependia para chegar ao meu novo destino. Guiava sem grandes cuidados, afinal do que tinha medo? Esse fora há muito abafado pela cólera e o meu maior desejo era estar o mais longe possível para lhe dar a última bofetada, não a física, porque essa há muito que nos habituaramos, mas aquela que não se sente no corpo mas mói na alma.

10


RETALHOS DA VIDA DE UMA MULHER

Aqui começa a minha história. Uma história marcada pela ironia do destino, por encontros e desencontros, por demasiada dor e amargura. Uma história onde a coragem, a determinação e o perdão foram sendo (re) construídos numa magnífica luta contra o tempo, a sobrevivência na esperança de me tornar na pessoa que sou: mais forte, determinada e mais desperta para o conhecimento de mim mesma. Espero que este livro desperte aos leitores emoções fortes e que ajude pessoas com semelhantes vivências, dando-lhes alento e esperança.

11



“Ainda que haja noite no coração, vale a pena sorrir para que haja estrelas na escuridão” Arnaldo Álvaro Padovani



Capítulo I

Junho de 1974 Estava um dia abafado. Era muita a agitação, ouviam-se gritos, choros, blasfémias vindas de alguém que não se conseguia distinguir no meio de todo aquele aparato. Alguns doentes esperavam e desesperavam por ser atendidos, outros arrastavam-se moribundos pelos corredores brancos e imaculados, com um odor insuportável a éter. Um homem acompanhava a esposa, que estava prestes a dar à luz. As batas bancas foram-se juntando em seu redor e levaram-na para uma sala com forte iluminação e grande aparato de aparelhos e utensílios, impecavelmente esterilizados. Depois de se ouvirem os primeiros gritos a menina saiu. Enquanto todos a cercavam, a mãe gemia de dores: – Vou ter outra, vou ter outra! Ninguém a ouviu, ou então ignoraram-na e continuaram todos admirando, vestindo e exibindo a menina que acabara de nascer.

15


SANDRA ARAÚJO

– Esqueceram-se de mim! – devo ter pensado, enquanto lutava para não ficar mais tempo do que o devido durante o parto. Consegui sair por mim própria, minutos depois do sofrimento que devia ser insuportável. Por instantes poderia ter caído da marquesa, mas uma enfermeira segurou-me, sem eu saber como. Roxa, demasiado feia para um bebé e de extrema magreza, dois quilos e duzentos, o meu prognóstico era reservado. Os médicos consideravam que eu não duraria mais do que uma semana, uns meses no máximo. Os meus pais foram aconselhados a deixarem-me internada por tempo indeterminado, nos cuidados intermédios do Hospital Maria Pia, no Porto, mas não se resignaram. Acreditavam que em casa eu sobreviveria a todo aquele flagelo e convenceram a equipa médica a darem-me alta. O meu nome é Mariana e sobrevivi, mas as sequelas de uma neglicência médica começaram a tornar-se evidentes aos dois anos. Era incapaz de, com normalidade, executar movimentos coordenados como a maioria das crianças da minha idade. Os meus pais aperceberam-se de que havia algo de estranho na forma como eu me movimentava e começaram logo a procurar os melhores médicos do país. Nenhum deles foi capaz de chegar a um diagnóstico quanto ao meu problema; uns acreditavam que eu caminhava daquela maneira para chamar a atenção dos meus pais, outros acusavam-nos de terem alucinações visuais. Ao fim de oito anos, inconformados com a falta de diagnóstico, os meu pais desistiram de procurar ajuda. Eu era uma criança de ar angelical, com cabelos castanhos e olhos cor de mel que transmitiam ternura; era dotada de uma invulgar sensibilidade e sentido de justiça em relação à maioria das crianças. Aparentemente feliz, por dentro eu sentia uma corrente de agitação que me levava, por vezes, a comportamentos invulgares. Uma vez teimei com os meus pais, a chorar

16


RETALHOS DA VIDA DE UMA MULHER

compulsivamente, que um trabalhador que realizava trabalho com uma escavadora na construção do paredão da zona marítima onde vivia, se tinha suicidado. Na verdade o trabalhador terminara o seu serviço ao final do dia e voltara para casa. Durante a minha infância adorava brincar com crianças mais novas e preferia os rapazes. Nutria mais curiosidade pelos brinquedos de meninos do que pelas belas e famosas bonecas que as meninas transformavam a toda a hora, fazendo delas seres animados. No entanto, os meus pais davam-me sempre brinquedos próprios de meninas. Por vezes acontecia ficar doente, com as doenças próprias da infância, mas a mais forte de todas foi a meningite, aos quatro anos. Fiquei acamada durante semanas, sem recuperar, perdendo todos os movimentos, inclusive o caminhar. Felizmente recuperei graças à teimosia da minha mãe e ao excelente pediatra que, atendendo ao estado avançado em que a doença já se encontrava, interrompeu as suas férias com a família para apanhar o primeiro avião que conseguiu, para cumprir o seu juramento. Precisava urgentemente de uma medicação intravenosa, num espaço de seis horas. Quando entrei para a escola, com sete anos, fui para um colégio onde a adaptação foi difícil. A angústia e a tristeza tomaram-me logo no princípio. Tinha pavor de estar naquele lugar. No recreio ficava a ver as outras crianças a brincar e eu não era capaz, só queria sair dali o mais cedo possível e regressar a casa, onde me sentia segura e protegida. A minha professora veio agravar ainda mais o meu estado. Era bastante doente, maltratava os alunos com castigos físicos condenáveis. Uma vez esbofeteou-me numa aula de artes plásticas porque não cumpri com rigor o que ela tinha exigido. Senti o impacto tão grande da sua mão na minha face que foi o suficiente para cair e bater com a cabeça numa parede. Não fiquei inconsciente, levantei-me sem me queixar, mas quando regressei a casa não falava. Os

17


SANDRA ARAÚJO

meus pais vieram a saber dias depois, pela minha irmã gémea, o que me tinha acontecido. Depois desse dia nunca mais vi aquela professora que foi substituída. Na altura não entendi a mudança súbita, mas agradou-me ter uma professora nova, com a qual progredi, mas não o suficiente para ter mudado o meu sentimento por aquele espaço. No resto da primária frequentei uma escola pública bem mais perto da minha casa. Gostava muito da escola, especialmente da professora que, mesmo de idade avançada, nutria uma empatia e carinho especial por cada aluno. Era uma aluna média, um pouco preguiçosa e sem grandes aptidões académicas. Fora da sala de aula era bastante diferente daquela Mariana que frequentara o colégio. Gostava de brincar e participava em todas as brincadeiras que me propunham. Além da minha irmã gémea, a Joana, tenho mais outra irmã, três anos mais velha. Chama-se Isabel e é de estatura alta, magra, loira, com olhos cor do mar. Foi filha única durante três anos e nunca sentiu falta de um irmão ou irmã, sentia-se bem no papel de filha única, agarrando os mimos e as oportunidades que os meus pais lhe proporcionavam. Com o nosso nascimento mostrou o quanto não éramos bem-vindas, mas com o tempo foi aceitando a sua condição e obrigada a partilhar a sua rotina connosco. A Joana é quase a minha imagem, mas com uma pequena diferença, mais alta e mais forte. Apesar de sermos gémeas não tivemos a chamada telepatia que dizem que os gémeos possuem, mas a proximidade foi sempre evidente e mais marcada, comparativamente com a minha irmã Isabel. Esta teve sempre uma personalidade bastante peculiar, com um humor inconstante que por vezes nos afastava. Os meus pais, Afonso e Maria, são um casal bastante unido apesar de terem namorado apenas nove meses por correspon-

18


RETALHOS DA VIDA DE UMA MULHER

dência e casado de seguida. O meu pai é um marido bonito, de pele clara, estatura média, cabelos grisalhos e olhos pretos. O seu sorriso é singelo mas contagiante. Eu e a minha irmã gémea herdámos a sua fisionomia mas pouco do seu temperamento. Calmo por natureza e bastante culto, foi dono de um estabelecimento de restauração durante alguns anos. Mais tarde foi director de uma empresa hoteleira. Era um óptimo relações públicas. Uma simples conversa com ele durava o tempo necessário para cativar as pessoas e levá-las a seguir o caminho que aconselhava. Reformou-se aos 65 anos. A minha mãe é morena, de estatura baixa, com grandes olhos verdes. É bastante diferente do meu pai, ansiosa, hipocondríaca e muito pudica para a época. Penso que ainda vive na década de 40, tendo ficado por aí. Trabalhou como costureira antes de conhecer o meu pai e adorava o trabalho agitado e coscuvilheiro próprio do ofício. Por obrigação, abandonou a profissão anos mais tarde e nunca se refez. Com três filhas a seu cargo, o meu pai decidiu que não precisava de trabalhar porque ele ganhava o suficiente e nós precisávamos de atenção. Deve ter sido esta a razão pela qual se tornou mais tarde numa mãe tão protectora, obstinada pela limpeza e pela disciplina, teimando que nós teríamos que seguir sempre as suas regras, senão instalava-se o caos. Vivíamos num belo T2, em Espinho. Um apartamento grande e acolhedor, com vista para o mar. Não se sentia o ar quente em dias de verão, nem o frio gélido durante o Inverno. Eu partilhava o quarto com as minhas irmãs e dormia com a Joana. A Isabel dormia na cama ao lado. Adorava dormir sozinha e detestava quando era obrigada a mudar de cama se uma de nós adoecia. No mesmo andar morava um irmão do meu pai, o Francisco. Tinha-se mudado por questões profissionais e levou a sua esposa com ele, a Josefa, e as suas duas filhas, a Inês, com

19


SANDRA ARAÚJO

nove anos, e a mais velha, a Salomé, que tinha doze anos. Na altura, os meus pais não tinham muito contacto com os pais da minha prima. Só mais tarde conheci verdadeiramente a Salomé, aos quinze anos.

20


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.