Edição: edições Virgula ® (chancela Sítio do Livro) Título: Rumo à Esperança Autora: Jesus Cadete Damata Capa: Patrícia Andrade Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, Março de 2015 ISBN: 978-989-8678-95-9 Depósito legal: 388825/15 © Jesus Cadete Damata PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
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Rumo à Esperança
Este livro é uma sentida homenagem ao meu querido Adrian que, se estivesse ainda entre nós, completaria, neste ano, o meio século. Deixou a nossa convivência há vinte anos, mas permanece e permanecerá no meu coração, até ao final dos meus dias. Depois… depois será o reencontro.
I
No aeroporto da Portela, um homem e uma rapariga olhavam, com alguma ansiedade, os passageiros provenientes de um voo, vindo de Inglaterra, que aterrara há pouco. De mão dada com uma hospedeira vinha um miúdo, aí de uns seis anos, e que trazia, na mão livre, um ursito de peluche que agarrava, ciosamente, contra o peito. O homem colocou um dos braços por sobre os ombros da rapariga e apontando-o, disse-lhe: – Ali vem ele. Está a ver? – Sim, sim. Chame-o! – Adrian, Adrian! – bradou o homem que era pai do pequeno. A criança fixou a pessoa que o chamava e, largando a mão da hospedeira, correu para ele. – Daddy! Daddy! Ernest, assim se chamava o sujeito, baixou-se até ficar à altura do filho e envolveu-o num longo abraço. A rapariga que acompanhava Ernest mantinha-se de pé, junto de ambos, olhando sorridente o reencontro e a aproximação. Era a segunda mulher de Ernest que se separara da mãe de Adrian, ia para dois anos. 7
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Entre ele e a sua actual mulher mediavam cerca de dezoito anos e a concretização da relação não tinha sido pacífica, porque os pais de Maria não a haviam aceitado nada bem! Uma rapariguinha mal entrada na casa dos vinte, e um homem com quase quarenta, ainda por cima divorciado, era tudo o que nunca tinham sonhado para uma filha sua. Entretanto, tinha chegado ao pé dos três a hospedeira a quem Adrian tinha sido entregue no aeroporto de Heathrow pelos avós maternos. Maria olhou para ela e desataram as duas a rir! Imagine-se! Tinham sido colegas de colégio! Maria era um pouquito mais velha do que a outra, mas não muito. Nunca tinham sido íntimas, enquanto colegas, mas ali pareciam. Maria apresentou-a a Ernest e explicou-lhe, sucintamente, de onde e como conhecera Ana. De repente, lembrou-se do pequeno que, de altura, mal chegava à cintura do pai à qual se enlaçara, segurando o ursito, com uma das mãos, enquanto olhava para cima. Ernest afagou-lhe os cabelos e disse-lhe, em inglês: – Adrian, quero apresentar-te a Maria. Lembras-te de eu te ter falado dela nas cartas que te mandava? Adrian disse que sim, se bem que, em abono da verdade, não se recordava de lhe terem lido carta alguma do pai, no colégio interno onde estava há quase um ano. A mãe, seguindo a boa tradição inglesa e também para não ter de se maçar muito com dois rapazes à sua guarda, pois tinha um outro, mais novo três anos do que Adrian, internara-o naquele colégio, muito bom na opinião de todos, sobretudo de quem nunca lá estivera, e nas férias também não o via muito amiudadamente, porque como se encontrava a trabalhar tinha pedido aos pais para o terem em sua casa. Adrian adorava os avós. A eles sim é que considerava seus verdadeiros pais. De cada vez que as férias terminavam e que tinha de regressar ao colégio chorava, compulsivamente, mas a mãe nunca se enternecera e ele acabava sempre por voltar. Depois, passados aqueles primeiros dias de tristeza e de saudade, lá entrava na rotina, mas no seu interior havia o sonho de deixar a escola. Ernest pagava as mensalidades de Adrian e dava outras para a manutenção de David, o seu filho mais novo que vivia com a mãe. Por muito que quisesse nunca tinha conseguido estabelecer com este um relacionamento forte, por um lado porque não houvera tempo suficiente para estreitar laços devido ao 8
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divórcio e depois porque havia algo que ele não era capaz de explicar que lhe dizia que aquela criança não era seu filho. No auge de algumas discussões com a ex-mulher tinha-a confrontado com estas suas suspeitas, mas ela jurara por tudo que David era tão seu filho como Adrian. Do mais velho nunca tinha tido dúvidas, até porque ele era a sua cara! Sobre o outro tinha sérias desconfianças, precisamente por não apresentar quaisquer parecenças consigo e ainda por outras razões que não gostava de recordar e que tinham sido determinantes para o final do casamento. Ainda propusera à ex-mulher um teste de paternidade, mas ela, demonstrando-se ofendida, não aceitou a sugestão. Ernest não vivia mal, mas considerava um absurdo o dinheiro que se gastava no colégio de Adrian, até porque nunca concordara muito com internatos, ainda mais numa idade tão precoce como a do seu filho. Disse-o à mãe dele que, completamente fora de si com esta recusa do ex-marido, declarou, sem qualquer preocupação, à frente da criança, que não ia ficar de maneira nenhuma com aquela «coisa» lá em casa. Ernest ficou chocadíssimo e, desde esse momento, tudo fez para lhe retirar a custódia do miúdo o que foi relativamente fácil, na medida em que a mãe não fez qualquer esforço para o manter junto de si. E era assim e por causa de tudo isto que Adrian chegava ao aeroporto, com autorização do tribunal que conferia ao pai plenos poderes para ficar com a guarda do filho. Tinha custado imenso a Adrian despedir-se dos avós! Tinham chorado todos! A mãe nem viera ao aeroporto despedir-se dele, mas Adrian não parecera sentir muito a sua falta, nem a do irmão, tanto mais que, ao longo dos últimos tempos, tinham sido poucos os dias em que tinham estado juntos. – Esta é a Maria! – repetiu Ernest. Esta baixou-se também para ficar à altura do seu pequeno enteado e, chegando-o a si, deu-lhe um abraço que deixou Adrian confortado e bem-disposto. Os três adultos falaram um bocadinho mais entre eles, numa língua de que Adrian não compreendia patavina. Porém, ao aperceberem-se da sua confusão, passaram de imediato a falar em inglês, rindo e explicando-lhe o que tinham estado a dizer e que tinham falado em português (assim se chamava aquela língua) por força do hábito. Adrian confirmou, então, encontrar-se em Portugal, mais propriamente na sua capital, Lisboa, como os avós lhe haviam referido quando, certa vez, lhe falaram do seu futuro. Esperaram pela bagagem dele que vinha no porão e que Ana conseguiu recuperar mais cedo do que os outros passageiros as suas. Pegaram nas duas ma9
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las onde se encontrava toda a vida do rapaz e, depois de se despedirem de Ana e de lhe terem agradecido a atenção que dispensara ao pequeno, dirigiram-se para o parque de estacionamento onde tinham deixado o carro. Adrian que tinha dado a mão a Maria ficou estupefacto quando o viu. Era um boca-de-sapo cinzento, estofado em pele branca e, como a maioria dos rapazes que adora automóveis, só conseguiu soltar um admirado «Gosh!» O pai abriu o porta-bagagens onde instalou os pertences de Adrian, excepto o ursito de quem Maria quisera saber o nome para quebrar o gelo inicial. Instalado no banco traseiro, Adrian olhava para todos os lados enquanto o carro rolava pelas ruas da cidade, conduzido pelo pai e com Maria sentada ao seu lado. Que estranho! Lá em Londres os carros, os autocarros e todos os transportes deslizavam pelo lado oposto! – Os carros estão a andar ao contrário! – afirmou ele em inglês, o único idioma que dominava. Maria explicou-lhe que não, que em Portugal o correcto era andar assim e só na Grã-Bretanha e nos países que tinham sido por ela governados ou admitiam a sua influência é que se andava pela esquerda, porque nos restantes andava-se como em Portugal. Ao passarem pelo Campo Pequeno, Adrian quis saber o que era aquela construção redonda e encarnada que ali se encontrava. Maria tomou de novo a palavra e explicou-lhe o que era uma praça de toiros e o que lá acontecia. Adrian não se cansava de olhar para todos os lados e Maria, virada para trás, ia-lhe explicando o que era isto e aquilo que iam vendo e os sítios por onde passavam, apontando, de quando em vez, os locais que considerava de maior interesse. Entretanto o pai tinha metido o carro numas ruas, ladeadas por casas de lindas fachadas, quase todas com jardim, pois de muitos muros que lhes estavam anexos pendiam plantas, uma delas com flores lilases que exalava uma fragância maravilhosa. Adrian deu à manivela para abrir um dos vidros e poder respirar melhor aquele ar perfumado e deixou-se ir assim, com os cabelitos a esvoaçarem com a deslocação de ar que o carro, em andamento, produzia. Chegaram a uma rua de prédios antigos. O pai abrandara para depois estacionar, mais ou menos a meio. Maria abriu a sua porta e saiu. Tinham ficado em frente à entrada de um edifício com quatro andares. Depois abriu a de Adrian e convidou-o a descer do automóvel: – Chegámos, Adrian. Vou tocar para nos abrirem a porta. 10
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E dirigindo-se a um painel com meia dúzia de campainhas carregou na que se encontrava por cima das outras todas. Um brevíssimo e ligeiro rangido assinalou a abertura, sinal de que alguém, do local correspondente àquele botão em que Maria tocara, accionara o trinco automático. Maria estendeu a mão a Adrian que a agarrou. Atravessaram a porta que dava para uma pequena escadaria de cinco degraus que separava a entrada do apartamento do rés-do-chão. A seguir vinha mais um conjunto de degraus que Adrian contou: dez; e, logo a seguir, mais dez. Tinham chegado a um patamar onde se podiam ver duas portas: uma, à esquerda de quem subia e outra posicionada frente à escadaria. Mas Maria não quis saber de nenhuma delas e continuou o trajecto. Depararam-se-lhes, de novo, mais duas portas, iguais às anteriores, mas também não foi daquela vez que Maria parou ao passar por elas. E o sucedido repetiu-se ainda mais uma vez, até que chegaram a um ponto onde não havia mais escadas para subir. Havia bastante luz ali, ao contrário dos patamares debaixo, graças a uma clarabóia de vidro existente no telhado. A porta da esquerda encontrava-se aberta e uma senhora forte que a estava a segurar afagou-lhe a cabeça, sorriu e falou com ele naquela língua que ele não compreendia. Maria apressou-se a traduzir o que lhe tinha sido dito e que não era senão uma manifestação de boas-vindas. Depois a senhora forte que Adrian soube, a seguir, ser a mãe de Maria puxou-o suavemente para dentro. Viu-se num corredor comprido. Em frente à porta da rua, uma outra se perfilava. Estava entreaberta e logo à entrada, à esquerda, encontrava-se um guarda-fatos de três portas, sendo a do meio toda em espelho que deu para Adrian ver, através do reflexo que, no mesmo tom da madeira do armário, se localizava uma cómoda com gavetas, encostada à parede. Não deu para ver a cama, mas tinha quase cem por cento de certezas de que se tratava de um quarto. Da direita, vinha uma intensa claridade que entrava por duas imensas portas-janelas que davam para uma varanda corrida. Era a sala para onde a mãe de Maria o conduziu. Entre as janelas um móvel, mais claro que os restantes, albergava, numa das pontas, uma jarra de coloração degradée em tons de encarnado, laranja, amarelo e transparente, repleta de gladíolos de cor branca. Do lado oposto, três livros de colecção eram seguros por dois serra-livros, com 11
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motivos gentílicos, em marfim. No meio, numa disposição propositadamente negligée, dois almofarizes e uma campainha de cobre. Ao longo de toda a parede do fundo ficavam dois sofás, forrados a tecido bordeaux, separados por uma mesa de pé-de-galo, onde um elegante candeeiro iluminava quem neles se sentava a ler ou simplesmente a conversar, quando a noite se acercava. Fazendo ângulo recto, a outra parede albergava um sofá comprido, onde se poderiam sentar três pessoas, à vontade, ou mesmo quatro se fossem elegantes. Junto de um dos braços deste assento, perto da porta da divisão, aprumava-se um candeeiro de pé, em pau-preto, talvez sinal de que, em determinada fase, alguém daquela família vivera em África. Faltava a parede frente aos sofás individuais. A composição era interessante: um balcão, baixo, a todo o comprimento, de linhas modernas sobre o qual sobressaía um televisor enorme. A partir do tecto quatro prateleiras albergavam livros diversos, pratos antigos, molduras com fotografias a preto e branco e diversos pequenos bibelots, em porcelana Vista Alegre, marfim e outros materiais. No meio da sala, uma carpete persa cobria parte do chão de sobrado de madeira, muito bem encerado, e por cima dela, uma mesa de centro onde tinham sido colocados recipientes diversos contendo frutos secos variados, batatas fritas, rolinhos de presunto seguros por palitinhos trabalhados e um jarro de vidro repleto de limonada. Adrian não resistiu e tirou uma batata. A mãe de Maria encheu-lhe um copo de refresco onde colocou uma palhinha. Sentindo-se convidado a continuar a comer, experimentou cada uma das iguarias que ali se achavam. Gostou especialmente de umas bolinhas amarelas que Maria lhe ensinou a comer, trincando a pontinha para libertar a casca antes de se mastigarem por completo. Disse-lhe que se chamavam tremoços, mas só mais tarde foi capaz de apreender este e outros termos. O pai tinha subido, entretanto, com as suas duas malas que depositou no quarto a seguir ao que se encontrava em frente à porta de entrada e que Adrian percebeu tratar-se do sítio onde Maria e o pai ficavam instalados. Acorreu ao seu chamamento que tinha colocado a bagagem dele sobre a cama de ferro, branca; abriu-a , mas sem largar o copo com sumo e uma batata frita gigante que tirara antes de vir. Como foi bom reencontrar o cavalinho castanho, seu companheiro de brincadeiras, as galochas verdes, à caçador, que os avós lhe tinham comprado, recentemente, os pijamas, os calções, os pullovers e muitas outras coisas que lhe eram familiares e o faziam sentir-se em casa! Numa das malas, também se en12
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contrava o uniforme do colégio, mas Adrian virou instintivamente a cara para outro lado, numa clara revelação de que o mesmo não lhe trazia boas recordações. Maria percebeu o seu desagrado e apressou-se a tranquilizá-lo: – Não se preocupe com esta vestimenta, porque não vai precisar mais dela, por aqui. – proferiu, num inglês fluente. – Como vai ser o uniforme que eu vou usar cá? – perguntou a Maria. – Ainda não sabemos, Adrian. Teremos que ir ao colégio conhecer isso e também outras coisas. Mas, até começar o ano lectivo, há bastante tempo e para já vamos mas é usufruir deste óptimo tempo de verão que se faz sentir! – Lá em Inglaterra estava a chover quando me vim embora e até fazia frio. Por aqui está óptimo! – constatou o miúdo, enquanto bebia mais um gole de limonada, depois de ter engolido a batata frita. – Aqui em Portugal o Verão costuma ser quente e cheio de sol! Bom para a praia para onde iremos todos já amanhã. – disse-lhe Maria. – Para a praia! Uau! Que maravilha! – gritou Adrian, completamente entusiasmado. E continuando: – Mas quem é que vai? Só nós os três? – Não, Adrian, vão também a minha mãe, o meu pai, a minha irmã. – confirmou-lhe Maria. – Onde é que estão a sua irmã e o seu pai? – perguntou. – A minha irmã foi fazer umas compras à minha mãe, mas deve estar a chegar. O meu pai está a trabalhar, embora hoje venha mais cedo para poder almoçar connosco, pois está desejoso por conhecê-lo. Adrian, apesar de ainda desconhecer o pai de Maria, ficou logo com uma excelente impressão dele. Nunca ninguém lhe tinha dado importância e, pelo que Maria estava a dizer, o pai dela até ia sair mais cedo do serviço para poder estar com ele! Entretanto, tinha-se fixado nos outros pormenores do quarto. Era comprido, mas não muito largo! Para além da cama de ferro branca que, praticamente, se estendia de parede a parede, no sentido da largura, havia apenas um minúsculo corredor que tinha de ser atravessado de lado por quem ocupava o lado de lá do leito. Uma mesinha de cabeceira, improvisada numa pequena camilha, onde se via um candeeiro e uma salva de prata, com uma pulseira lá dentro, completavam a decoração. Do lado oposto, a toda a largura, um armário, de madeira maciça, erguia-se do chão ao tecto. Estava aberto e Adrian pôde ver diversos fa13
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tos de senhora e de cavalheiro, pendurados. Do outro lado, em várias prateleiras, fundas, encontravam-se camisolas, roupa interior e outras coisas que não teve muito tempo para fixar, já que Maria lhe captava a atenção para a vista que se vislumbrava da janela que ficava, sensivelmente, a meio de uma das paredes, em frente da porta da divisão. Adrian ficou maravilhado com o que viu! Ao longe, mas suficientemente perto para se perceberem bem os pormenores, encontrava-se o rio, deslumbrante pelo brilho do sol, pejado de barcos, maiores e mais pequenos. Em frente, na outra margem, uma imagem de homem, gigante, perfilava-se de braços abertos e rosto acolhedor. Maria disse-lhe tratar-se do Cristo-Rei, em homenagem a Jesus. Adrian já ouvira falar d’Ele no colégio, mas estava bastante admirado, porque a aparência deste não se compaginava nada com a ideia severa de um Cristo castigador que lhe haviam inculcado na escola. Esteve que tempos a olhar aquela paisagem magnífica que o descontraía tanto. Sentiu que uma outra voz surgira. Vinha do corredor. Deixando o seu poiso assomou-se à porta do quarto. Acabadinha de entrar, ainda com a porta que dava para as escadas que subira, entreaberta, encontrava-se uma rapariga aí dos seus catorze, quinze anos. Antes de a encerrar, retirou um molho de chaves que se encontrava pendente na fechadura exterior, pegou num saco enorme que tinha poisado no chão e começou a dirigir-se na direcção em que estava Adrian. Ao chegar à porta do quarto, voltou a colocar a bolsa no chão e, com um grande sorriso, dirigiu-se-lhe, em inglês, ao mesmo tempo que o puxava para si e lhe dava um abraço: – Deves ser o Adrian, não é? – Sim – respondeu ele, surpreendido por se sentir aprisionado pelos gestos dela, mas simultaneamente conquistado pela sua sincera afabilidade. – Eu sou a Céu. Diz lá! – ordenou-lhe – Seu! – repetiu ele, como se de um possessivo se tratasse. Céu fartou-se de rir, mas de forma alguma ele se sentiu troçado. O riso dela, aliás, era contagiante, porque a certa altura estavam todos a gargalhar. – Cé-u! Cé-u! – disse ela, alto e pausadamente, quando acabou de rir. – Cé-u! Cé-u! – imitou ele. – Isso mesmo! Céu! Diz lá outra vez. – Céu! – reiterou. – Boa! – exclamou, batendo as palmas. – Céu! Céu! Céu! Céu! – continuou Adrian, animado com o sucesso que tinha obtido com a sua primeira incursão na língua portuguesa. 14
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– Queres vir comigo, à cozinha, ver-me guardar as coisas? – perguntou-lhe Céu, num inglês nem muito fluente, nem muito correcto, mas que dava para qualquer um perceber o que pretendia. – Yes! – respondeu-lhe ele, encantado com a importância que ela lhe estava a atribuir. – Vou-te ensinar a dizer isso, em português! – virou-se ela, estacando de frente para ele que a seguira. – Dizes: Sim. Adrian repetiu a palavra, na perfeição, e ela voltou a felicitá-lo. Já sabia duas palavras desta nova língua à qual muitas e muitas outras se seguiriam. Céu colocara o saco em cima da bancada da cozinha do qual ia retirando os produtos comprados: um embrulho, num papel muito branquinho, que continha fiambre; outro onde estava um quarto de queijo; um redondo de onde saiu um pão que mais parecia um bolo, pela cor e que Adrian veio a saber tratar-se de uma broa de milho; uma espécie de salsicha preta, mais outra de um encarnado vivo e ainda outra amarela. Em Inglaterra nunca tinha visto salsichas daquelas cores! Mas Céu apressou-se a desfazer-lhe as dúvidas. Não eram salsichas, eram enchidos chamados morcela, chouriço e farinheira que a mãe tinha encomendado para uma feijoada. Adrian também não sabia o que era uma feijoada, mas sentia-se fascinado com o que ia saindo do saco de Céu, como se se tratasse de uma bolsa mágica. E viu que ela tirara ainda uma garrafa de leite, uma embalagem de iogurtes, um pacote de manteiga. Achou uma graça particular a um pacotinho pequeno, cor-de-laranja, atado com um fio branco, na ponta do qual havia sido colocado um pauzinho redondo para mais facilmente se poder segurar. A mãe de Céu pegou nele e com cuidado retirou o fio ao qual desfez todos os nós e uniu a um novelo grande, formado de muitos outros fios como aquele, de cores variadas, com um nó que, mais tarde, veio a saber chamar-se de tecedeira. E de dentro do pacotinho saiu um pó castanho que tinha um cheiro muito forte, mas que Adrian achou bom. Chá não era, pois conhecia bem as suas folhas e chocolate também não lhe parecia, além de tudo o mais porque nunca tinha cheirado chocolate assim. Céu explicou-lhe que era café. Adrian já tinha ouvido falar, mas nunca tinha visto, porque os avós, lá em Inglaterra, só bebiam chá. De repente, ficou triste! Tinha-se lembrado das duas pessoas que mais gostava e que tinham ficado lá tão longe! Será que os voltaria a ver de novo? Céu apercebeu-se que uma sombra de tristeza pairava no rosto do seu novo amiguinho. 15
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– Que foi, Adrian? – perguntou-lhe, com tal suavidade que por momentos deixou o miúdo admirado, ele que só a tinha ouvido falar com voz forte. – Não é nada! – mentiu ele, mas sem conseguir disfarçar uma certa angústia. – Não te acredito! – continuou ela em voz suave, mas firme. – É que… estava a pensar… Os olhos dele estavam húmidos e brilhantes. Via-se que estava a fazer um esforço enorme para não se escangalhar em pranto. Céu passou-lhe o braço pelos ombros, numa atitude protectora. Eram a imagem da irmã mais velha a socorrer o irmãozito mais novo. Então Adrian acabou por lhe confessar que estava com saudades dos avós, mas Céu conseguiu transmitir-lhe tanta confiança e coragem que, mesmo sem dizerem nada, ambos perceberam que, a partir daquela altura, se tinha estabelecido um pacto entre eles que nenhum deles, naquele momento, sabia chamar-se amizade.
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