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SERRA DA ESTRELA NOTAS DE SEIS JORNADAS PELA VERTENTE SUDOESTE
Eduardo Mascarenhas Peรงa
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FICHA TÉCNICA Edição edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) Título Serra da Estrela – Notas de seis jornadas pela vertente Sudoeste Autor Eduardo Mascarenhas Peça Ilustrações Eduardo Mascarenhas Peça Arranjo gráfico da capa Patrícia Andrade Fotografia da capa Francisco de Assis Nobre Oliveira Peça Fotografia da contracapa Eduardo Mascarenhas Peça Paginação Alda Teixeira Edição 1.ª edição, Setembro de 2014 Depósito legal 379920/14 ISBN 978-989-8714-25-1 © Eduardo Mascarenhas Peça
Publicação e comercialização
Av. de Roma, n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt
NOTA: Por opção, o autor não segue o Novo Acordo Ortográfico.
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Ă€ minha filha Maria do Castelo
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Agradecimentos Aos meus pais, José Manuel e Maria Luísa, por me terem transmitido o entusiasmo pela Serra da Estrela desde tenra idade e por me terem incentivado a escrever. Aos meus tios e primos, Francisco de Assis, Eduardo Augusto, Fernando Joaquim e António José, porque sem eles não teria sido possível escrever estas notas. Ao meu amigo de infância, Bruno Manuel, porque partilhou sempre comigo o entusiasmo e a vontade de subir montanhas. Ao meu tio Francisco de Assis pela grande contribuição para o registo fotográfico. E, por fim, à minha mulher Ana Sofia pelo apoio e compreensão durante os meses que dediquei a este trabalho.
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Se levãta hũa serra sobre todos os mais montes, cõpetindo con as nuvens, se nâo he co as estrellas. Citação de Aquilino Ribeiro em O homem da Nave: serranos, caçadores e fauna vária, retirada da História Seráfica.
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Ao Leitor Passados quinze anos desde o primeiro passeio à serra, senti que este projecto não podia esperar mais sob pena da memória se desvanecer. O motivo que me levou a escrever estas notas foi o de registar e de certa forma perpetuar a experiência vivida por um grupo de familiares e amigos durante seis jornadas na vertente Sudoeste da Serra da Estrela, região caracterizada por declives e desníveis acentuados, muito menos pressionada pelo turismo e pelo próprio homem. Relativamente à escrita, gostaria de esclarecer o leitor sobre alguns aspectos particulares. Sendo um dos intervenientes da acção, seria expectável que os relatos fossem narrados na primeira pessoa. Porém, optei por escrever na terceira dando voz a um narrador omnisciente. Tal escolha prendeu-se com o facto de querer estar inserido na equipa, em completo pé de igualdade durante a acção e por rejeitar qualquer espécie de protagonismo. A equipa, que acabou por ser flutuante ao longo dos anos, incluiu os seguintes elementos: Fernando Joaquim Brito Sequeira Mendes, José Manuel Nobre Oliveira Peça, Eduardo Augusto Nobre Oliveira Peça, Francisco de Assis Nobre Oliveira Peça, António José Costa Alves Gonçalves, Bruno Manuel Gonçalves Almeida, Eduardo Mascarenhas Peça e Virgílio Évora. 11
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Toda a toponímia referida é baseada na primeira edição da carta militar de Portugal 1:25000, consultada para o efeito anos depois. A escolha da primeira edição é justificada pela riqueza toponímica e completa marcação de caminhos e veredas que certamente seriam mais utilizados nos anos 40 do século XX, mas que hoje em dia estão em desuso. A reportagem fotográfica faz parte de um acervo familiar, constituído por originais tirados durante os passeios com máquinas analógicas e digitais. As ilustrações a tinta-da-china pretendem representar ocasiões e momentos que as máquinas não captaram. As referências aos ilustres escritores e cientistas presentes nestas notas constituíram um gigante apoio histórico e científico sem o qual muitas das observações feitas ficariam sem explicação. Por fim, pois não quero alongar-me neste intróito, desejo que ao longo destas notas o leitor se sinta envolvido pelo silêncio e natureza da extraordinária vertente Sudoeste da Serra da Estrela.
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Pastor no Cov達o da Areia, 2001
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Muralha 1999 No dia 12 de Agosto de 1999 cumprir-se-ia um dos mais desejados sonhos dos mais novos membros da equipa. Um percurso imaginado e revisto vezes sem conta a partir da janela do carro, durante inúmeras viagens até àquela aldeia encaixada entre a Estrela e o Açor. Na véspera subira-se ao Forno da Moura, uma jornada de seis horas e 700 metros de desnível, só para ter uma perspectiva integral do percurso, descurando todo o cansaço que se iria sentir no dia seguinte. O plano era simples: a Serra do Açor unia-se à Serra da Estrela através da Serra da Alvoaça, uma cumeada possível de se percorrer, com vista para ambos os lados, quer para o lado da Cova da Beira, quer para o lado da Terra Chã. O grande problema era saber se a vegetação o permitiria. Havia também a questão da ligação ao maciço central a partir do Alto de São Jorge. A carta militar indicava um desnível de 400 metros, um esforço significativo de subida já depois de várias horas de passeio em “sobe e desce”, pois a cordilheira era composta por uma sucessão de cumes e portelas. Partindo do cruzamento das Pedras Lavradas, a 850 metros, subia-se até ao Fojo (1329 metros). Depois percorria-se a cumeada rochosa, seguindo-se uma leve descida até ao sopé de um cabeço sem nome (1398 metros) que se julgava intransitável. Daquele 14
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cabeço descia-se para a Portela da Alvoaça ou Alto das Portelinhas, que foi sempre designada por “vale do poste” por nela se encontrar um proeminente poste de alta tensão. Esta portela seria decerto um importante ponto de passagem entre a região dos vales Sudoeste da Serra da Estrela e a Cova da Beira. Em termos geológicos, marcava também a transição do xisto para o granito. Sucedia-lhe o conjunto Muralha-Taloeiros, um maciço granítico de cotas superiores a 1400 metros, que formava um prolongamento da Serra da Estrela e que no início foi chamado “paralelo”, por ter uma forma prismática. Alcançar este maciço e caminhar na sua cumeada seria um dos pontos fortes do passeio. Depois do Taloeiros (1511 metros) descia-se para um colo largo seguindo-se a subida do Cerro do Pombalinho até alcançar o Alto de São Jorge. O Alto de São Jorge funcionava como “último acampamento” pois sucedia-lhe uma espinha que ligava directamente ao planalto da Torre. Esta era outra preocupação, visto que o cansaço na altura poderia ditar uma desistência e uma descida precoce. Além disso, nada se sabia sobre o tipo de terreno, apenas se dispunha da leitura das curvas de nível da carta militar. No planalto central, far-se-ia um percurso o mais distante possível da Torre, – que é como quem diz, do “centro comercial” – para alcançar a zona das grandes lagoas. A descida seria pelo vale de Loriga.
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Eram 6h20 e o grupo esperava o autocarro da transportadora local. A lua brilhava ainda no horizonte naquela manhã fria e límpida de Agosto que convidava a vestir camisolas de lã em pleno Verão. A iluminação pública da Vide ainda estava acesa e a aldeia dormia; apenas se ouvia o murmurar da fonte das quatro bicas e o bater irreflectido e enérgico dos paus ferrados na estrada. Tudo tinha sido preparado no serão do dia anterior: alimentos, água, roupa, primeiros socorros, etc. Às 6h35 chegou o autocarro que iria levar a equipa confortavelmente até às Pedras Lavradas, o ponto de partida. Eram os únicos passageiros e foram durante a viagem a disfrutar do nascer do sol que colocava em contraluz toda a cordilheira que iriam percorrer, evidenciando o perfil exacto do caminho. – Magnífico! – exclamou Fernando com os olhos no horizonte. Por volta das 7h00, chegaram ao cruzamento das Pedras Lavradas. O sol tingia os taludes e a vegetação em tons alaranjados e a aragem fria quase fazia esquecer que estavam no Verão. Depois de uma fotografia de grupo começaram a subir com entusiasmo o estradão que partia das imediações do cruzamento. Para Oeste via-se a neblina matinal que cobria toda a Terra Chã, fazendo lembrar um mar onde os cabeços e serras se assemelhavam a ilhas. Para o lado da Cova da Beira a atmosfera era límpida, podendo ver-se a Serra da Gardunha em toda a sua extensão. Eram 8h10 quando atingiram o posto de vigia florestal. Aí aproveitaram para guardar os agasalhos nas mochilas e observar o horizonte com o binóculo. Havia nas imediações uma construção em xisto muito bem preservada. Minutos depois, continuaram a subida pelo estradão que existia no coroamento, o que facilitou muito a progressão. A caravana era composta por Fernando e Francisco à frente, depois Eduardo e Bruno e por fim José. Nas zonas mais arriscadas aglomeravam-se. Fernando, José e Francisco eram já veteranos de 16
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outras façanhas na Serra da Estrela. Os dois jovens, de 17 anos de idade, estavam só a começar. Às 9h10 atingiram o marco geodésico do Fojo, à cota 1329 metros. Todos se alegraram. Bruno, com particular efusividade, trepou para cima do marco. Até então tinham percorrido um estradão desobstruído, mas do Fojo para a frente começava o corta-mato que os iria acompanhar até ao planalto da Torre. Após alguns momentos de contemplação da paisagem, retomaram o percurso através de um serrilhado de fragas de xisto que obrigava a atenção redobrada. A vista para ambos os lados da cumeada rochosa transmitia a sensação de se andar sobre o gume de uma faca. Uns anos antes, Eduardo, Bruno e amigos tinham chegado até ali num passeio de reconhecimento. Chamaram àquela zona “penhasco dos falcões” devido ao avistamento de duas pequenas aves de rapina, cuja espécie não puderam identificar. Mais tarde, após consulta do trabalho de Barbosa e Correia concluíram que tinham visto exemplares de Tartaranhão-caçador (Circus pygargus). Francisco achou então uma “varanda” natural, uma fraga de xisto que dava para a profunda barroca da Ribeira do Bufo, a qual, anos mais tarde, viria a ser objecto também de um passeio. O sol estava de frente, encandeando e dificultando a progressão naquele terreno rochoso. Bruno perguntou como se chamava o cume seguinte, dúvida que ninguém soube esclarecer. De facto, o alto em questão não tinha toponímia associada e não possuía qualquer vereda ou caminho. Às 9h25 encontraram um enorme rochedo, de topo plano, como se tivesse sido cortado industrialmente. Com entusiasmo, todos treparam para aquela espécie de “mesa” de pedra, excepto José, que preferiu resguardar-se do esforço físico adicional. Do cimo da pedra, contemplaram com apreensão o cabeço sem nome até que, por fim, desceram e retomaram o caminho. 17
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Pelas 9h45, encontraram um marco situado num pequeno colo da cumeada, construção que os deteve por instantes e onde acabaram por tomar o pequeno-almoço. Era erigido com fragas de xisto criteriosamente empilhadas, sendo a última colocada na vertical. Não tinha qualquer argamassa entre as pedras. Após a breve refeição à base de fruta e sandes e depois do registo fotográfico do marco, começaram lentamente a subir o cabeço anónimo. O extracto da carta militar que levavam indicava um desnível de 150 metros até ao topo. O terreno era, de facto, muito pouco transitável, mas a vontade de chegar ao cume sobrepunha-se ao transtorno causado pela densa vegetação, nomeadamente urze, tojo e carqueja. Eram cerca das 10h40 quando alcançaram o topo (1398 metros). Puderam então avistar o maciço granítico já muito próximo. Estavam a deixar a Serra da Alvoaça e o seu xisto para finalmente entrarem na Estrela, mas antes teriam de descer para a Portela da Alvoaça. Em relação à litologia da Serra da Estrela, Guerreiro et al referem que o xisto tanto aparece no sopé da vertente Sudoeste como a Leste, nas altitudes mais elevadas. Fernando, ao observar a portela e fazendo um gesto descendente, disse: – Estamos com sorte. Pensei que fosse mais íngreme. De facto, no passeio do dia anterior ao Forno da Moura (1070 metros), a portela afigurava-se muito fechada e antecipava uma descida bastante dura. Mas dali, felizmente, a visão parecia outra. Francisco, aproveitando o momento, pousou a sua câmara numa fraga e tiraram outra fotografia de grupo. A descida foi realmente rápida e pelas 11h00 alcançaram o poste de alta tensão que durante anos simbolizou aquele passeio. A portela era também atravessada por um estradão que ligava o vale de Alvoco da Serra ao da Erada. 18
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A propósito da ligação dos vales Sudoeste da Serra da Estrela à Cova da Beira e Alto Alentejo, Cavaco e Marques referem que, em 1890, chegou a Alvoco da Serra uma máquina a vapor vinda de Portalegre, puxada por três juntas de bois, e que esta entrou na povoação através das encostas da Alvoaça. Em termos topográficos, fazia todo o sentido as juntas de bois carregadas terem passado precisamente ali, na Portela da Alvoaça. Quem sabe se assim não foi? Reforçando a tese de que a Portela da Alvoaça (também referida na bibliografia como da “Aboaça” e “Avoaça”) seria o ponto eleito de passagem entre os vales Sudoeste da serra e a Cova da Beira, a escritora Esther Abranches, natural da Vide, escreve no seu poema “Três velhas na noite escura”: “ (…) BENTA: E sua mãe não se ralava? URTIGA: Ai bem se ralava ela pois se aquilo que eu contava já lho contaram a ela! Mais tarde andei desgarrada na garganta d’Aboaça co’as oitras acompanhada, recoveiras afamadas, quando ia à Covilhã buscar o pão de meã prà sopa da sobremesa do senhor D. Arcipreste em tempo de desobriga. (…) ”
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Diante do grupo estava agora a outra parte do colo que constituía a subida para o Muralha (1487 metros). Não se interrogaram sequer sobre a dificuldade da subida, ou sobre o estado de cansaço, tal era o entusiasmo e o moral. A vegetação predominante constituída por urze rasteira não oferecia tanta resistência como no cabeço anterior e a ascensão entre as cotas 1320 metros e 1487 metros foi vencida somente em trinta minutos. Ao alcançarem o marco geodésico do Muralha ficaram extasiados com a visão de um horizonte completamente novo. Tiraram então as mochilas das costas e sentaram-se para poderem apreciar a majestade e verdadeira grandeza do “paralelo”. O conjunto Muralha-Taloeiros era uma extensa cumeada rochosa, granítica, com grandes rebolos e afloramentos rochosos semelhantes a ruínas, entrecortados por manchas de areão e de urze. Avistava-se em primeiro plano o Taloeiros e em segundo plano, menos nitidamente, toda a vertente Sudoeste da serra. A alguns metros do marco geodésico descobriram um amontoado artificial de lascas e resolveram investigar. Era um diminuto abrigo de pastor que mais se assemelhava a uma toca, pois cabia apenas uma pessoa agachada. Aquela visão fê-los pensar sobre a austeridade da vida serrana. O que seria estar ali abrigado de uma tempestade algures no século XIX? Com cuidado os dois jovens decidiram experimentar o abrigo ao mesmo tempo. – Não mexas muito as pedras – disseram um ao outro com receio de um desabamento. Após registo fotográfico, o grupo continuou o percurso pela cumeada rochosa que oferecia uma extraordinária vista para dois horizontes.
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Às 12h00 encontravam-se sensivelmente a meio caminho entre o Muralha e o Taloeiros. Era um sonho concretizado estar naquele sítio e a ocasião prestou-se a regozijos. – Está a ser excelente! – exclamou Bruno com euforia. Pouco depois passaram por outro marco de pedra empilhada, desta vez constituído por placas de granito. Às 12h20 atingiram por fim o marco geodésico do Taloeiros (1511 metros) que assinalava o fim daquele braço da Serra da Estrela. Era altura de deixar aquele local majestoso e de descer para cotas inferiores. Nas imediações do marco estava uma cova em plena rocha, cheia de água da chuva, que gerou grande curiosidade. Tinha forma circular, com cerca de oitenta centímetros de diâmetro e vinte centímetros de profundidade e parecia ter sido esculpida. A propósito daquela cova, Pereira et al referem, no âmbito da morfologia granítica e das geoformas de pormenor, que as gnammas ou pias são cavidades em rocha sólida, geralmente com forma circular, características de áreas pouco declivosas. Referem ainda que a sua génese está associada a factores de índole endógena e exógena. Parecia de encomenda aquela poça de água e todos aproveitaram para lavar a cara. A descida que se avizinhava era relativamente suave e as urzes estavam ardidas. Após a euforia do percurso entre o Muralha e o Taloeiros o entusiasmo era agora menor devido ao sol abrasador e à paisagem mais árida. Começou então uma busca por um local adequado para almoçar, de preferência com sombra. Durante a descida ouviram uma cabrada ao longe. Bruno, com o binóculo, conseguiu avistar os animais centenas de metros adiante, num maciço onde iriam passar. Às 13h00 encontraram um local com sombra. Tratava-se de uma fraga de granito que formava uma “pala” bizarra na sua extre21
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midade. Colocaram as mochilas à sombra e tomaram uma refeição à base de fruta, sandes e bolachas. Com seis horas de caminho, o cansaço já era visível nos rostos; no entanto, aquele era somente o meio do percurso. Revigorados com água e alimentos, puseram novamente as mochilas às costas e continuaram o percurso pela mesma cumeada que a cabrada subira minutos antes, na direcção do Cerro do Pombalinho. O próximo objectivo era atingir a base da espinha que ligava o Alto de São Jorge ao planalto da Torre. Até lá avizinhava-se uma subida suave por entre urzes e giestas ardidas. Pelas 14h00 avistaram uma mancha amarelo-torrada no meio da vegetação. Era um lameiro de vacas a julgar pelas pegadas marcadas no leito seco. Daquele ponto, a vista para a espinha final era dissuasora. Mais do que nunca o grupo punha reservas sobre a subida daquele obstáculo. A face Sudoeste da Serra da Estrela, cada vez mais próxima, assemelhava-se também a um muro intransponível. Cerca de quinze minutos depois, chegaram a uma grande fraga sobranceira ao que parecia ser um covão encaixado na base do Terroeiro. Era rodeado por altos contrafortes, tendo apenas uma estreita saída rochosa por onde escoava a ribeira – de nome Estrela. No seu fundo, levemente inclinado, podiam avistar-se lameiros com vacas a pastar. Na falta de toponímia, o suposto covão foi baptizado naquele momento com o nome “vale das vacas” (anos mais tarde um habitante de Alvoco da Serra chamar-lhe-ia “tapadão”). Mas aquele vale com aspecto de covão desviara por momentos a atenção do que se aproximava. A espinha que permitia alcançar o planalto da Torre estava agora diante do grupo e constituía o último obstáculo do passeio. José chegou entretanto com o seu ritmo próprio e juntou-se aos outros que observavam cada pormenor do terreno, em particular as intimidantes penhas de granito escurecido. Do estudo feito 22
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concluíram que era aceitável prosseguir conforme planeado e a decisão foi tomada. Após registo fotográfico da paisagem circundante, iniciaram a lenta subida, pé ante pé e com grande concentração. O terreno era irregular e muito propício a tropeções. As giestas ardidas também constituíam perigo com os seus ramos aguçados. Eram 14h45 e pouco tinham progredido. Durante a subida era frequente caminharem dez metros e pararem para descansar. Todo o grupo estava disperso numa linha. Francisco e Fernando lideravam, depois Bruno e Eduardo e com cerca de quinze minutos de diferença vinha José. Durante as inevitáveis paragens era possível ver toda a cordilheira percorrida desde as 7h00 da manhã. A certa altura, interrompendo o coro ensurdecedor de insectos, ouviu-se um urro longínquo: – Vamos a subir! – era Francisco a incentivar os companheiros. Aquela espinha era, sem dúvida, a chave do passeio. Sem ela não haveria continuidade entre o maciço central e o conjunto Muralha-Taloeiros. Cerca das 15h25 ouviram-se aves de rapina e subitamente levantou-se vento. Os primeiros elementos tinham chegado ao planalto da Torre. Eduardo e Bruno sucederam-lhes e sentaram-se os quatro a recuperar. Foi então que combinaram uma surpresa para receber José e, após quinze minutos de espera, este foi recebido com uma salva de palmas e felicitações. A chegada ao planalto da Torre constituiu sem dúvida um marco assinalável no passeio, mas não provocou a exaltação do Muralha. Às 15h50 começaram o percurso pelo planalto mantendo uma grande distância da Torre. Atravessaram o Covão Estrela, passaram na cabeceira do Covão de Alva e seguiram depois o alinhamento do Covão das Quelhas pela margem esquerda.
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Quanto à distância mantida da Torre, esta fazia parte da filosofia do grupo que passava pela recusa do contacto com infra-estruturas urbanas àquela altitude e pela defesa de uma Serra da Estrela menos profanada. Os dois jovens tinham tido o seu baptismo de maciço central no ano anterior (1998), quando subiram o vale de Loriga com Francisco e Fernando, tendo alcançado depois o planalto da Torre. Assim, aquele terreno já não era novidade para nenhum dos elementos. Cerca das 16h30 alcançaram um ponto sobranceiro às Lagoas Serrano e Covão das Quelhas, bem como a primeira perspectiva sobre a rota de descida. As suas águas eram escuras e o seu fundo era constituído por sedimentos e rebolos ocultos. No ano anterior, Eduardo e Bruno puderam comprová-lo ao nadarem na Lagoa Serrano. O seu leito era imprevisível e facilmente se podia dar uma pernada numa rocha imersa. Também não era nada confortável pousar os pés no leito lamacento. Com o passar da hora e sabendo que a meteorologia da serra se podia alterar num ápice, o grupo apressou o passo. Caminhar dentro de uma nuvem na Serra da Estrela era uma experiência para a qual não vinham equipados. Eram cerca das 16h50 quando passaram entre as duas lagoas, cruzando a linha de água que as une. O cervunal e o murmurar da água davam um aspecto luxuriante à paisagem. Neste percurso foi necessário contornar grandes penedos arredondados que ocultavam a rota a seguir. Pelas 17h00 fizeram uma pausa na margem da Lagoa Serrano para um banho revigorante e para comer algumas bolachas. O banho resumiu-se, naquele ano, a uma imersão rápida e a algumas braçadas perto da margem. A equipa tinha pressa para descer a garganta de Loriga antes do pôr-do-sol, pelo que as mochilas foram prontamente colocadas às costas e retomado o caminho. 24
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Às 17h50 chegaram a um ponto dominante sobre o Covão do Meio. Ao observar as suas vertentes abruptas, o grupo aglomerou-se pois a ocasião era de respeito. A vista sobre a albufeira vazia da barragem era assombrosa e por momentos fez esquecer a ferida que na realidade era. Os granitos de cor rosada no leito tornavam perceptível a cota máxima da albufeira. As antigas casas de apoio à construção da barragem vistas dali pareciam um presépio. A propósito da barragem do Covão do Meio, Marques refere que esta fazia parte de um vasto plano de aproveitamento das águas da Ribeira de Loriga para fins de produção de energia. O interesse por este aproveitamento hidroeléctrico datava do princípio dos anos 20 do século passado e incluía mais barragens para além da construída no Covão de Meio. Contudo, em 1935, concluiu-se que o aproveitamento de Loriga não se justificava como exploração energética independente. Mais tarde, no final dos anos 40, estudos indicaram que a exploração hidroeléctrica do vale de Loriga devia ser incorporada no sistema da Lagoa Comprida, tendo sido para tal construído um túnel de transvase das águas do Covão do Meio para o Covão Grande (Lagoa Comprida). E assim, apesar de uma obra fatídica, o túnel acabou por garantir a preservação da garganta de Loriga e seus covões. A descida era acentuada e, por vezes, tinham de caminhar sobre fragas lisas. Os membros já cansados potenciavam o risco de queda. Neste período, José não captou imagens vídeo para se concentrar unicamente em descer em segurança. As câmaras fotográficas também foram guardadas. Nalguns pontos foi necessário o apoio dos braços para dar tréguas aos joelhos, até que, por fim, chegaram à base do Covão do Meio. O paredão da barragem foi ultrapassado pela margem esquerda e cerca das 18h00 ouviu-se o som de uma catarata a ecoar
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nas fragas. Ao aproximarem-se, depararam-se com um fio de água que se precipitava de uma altura de mais de vinte metros. No ano anterior, Francisco, Fenando, Bruno e Eduardo tinham estado ali a tomar o pequeno-almoço após a subida do vale de Loriga. Tinham reparado, na altura, num rasto de líquenes que denunciava o escorrimento de água pela enorme parede de granito. E ali estava agora a prova. Apesar do forte impacto na cabeça alguns elementos do grupo aproveitaram para lavar a face. Pelas 18h10, avistaram o Covão da Nave com os seus pastos abundantes que pareciam dourados com a luz rasante. Ao chegarem ao covão, pelas 18h30, puderam observar as suas vertentes abruptas. Eduardo e Bruno brincavam com os poderosos ecos que as paredes rochosas produziam. Se houvesse um esconderijo da civilização, aquele poderia sê-lo sem sombra de dúvida. Quem sabe se Viriato não apascentou os seus rebanhos por ali? Às 18h50 avistaram o Covão da Areia do topo do degrau que ficava entre este covão e o anterior. Eduardo comentou com o seu pai José: – Estamos a andar há doze horas. A equipa desceu a sinuosa vereda que transpunha o degrau. Um regato corria praticamente sobre o caminho pelo que desceram com muita cautela para não escorregar. Chegaram enfim ao pequeno Covão da Areia, com o seu chão semiárido e com o seu charco rodeado por cervum. Escondido na margem esquerda, entre enormes fragas, estava um verdadeiro tesouro natural. Um poço com cerca de um metro de profundidade, alimentado por águas gélidas e cristalinas que brotavam da rocha. Apesar da baixa temperatura da água e de serem já 19h10, a equipa optou por tomar um último banho na serra que já exibia os tons avermelhados do pôr-do-sol. 26
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A descida subsequente fez-se em passo rápido pois o grupo tinha a preocupação de não caminhar de noite. O caminho limpo e bem assinalado permitiu uma descida rápida e em segurança. Cerca das 20h30 alcançaram as primeiras palheiras e currais nas imediações de Loriga. Olhava-se para atrás e via-se uma neblina fria e compacta a formar-se nas altitudes do Covão da Areia. O lugar aprazível onde estiveram minutos antes era agora austero e sinistro. A formação daquela nuvem era, sem dúvida, a Serra da Estrela a anunciar o devido lugar do homem. Alcançaram a vila de Loriga já ao lusco-fusco e cerca das 20h50 chegou a boleia que os levaria de regresso à Vide. Durante a viagem, de cerca de trinta minutos, a serra escureceu totalmente tornando-se num vulto gigante sob as estrelas.
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Lapa das Naves, 2003
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