Simples. Uma abordagem suave da sombra humana
Edição: edições Ex-Libris ® (chancela Sítio do Livro) Título: Simples. Uma abordagem suave da sombra humana Autor: Emídio Carvalho Capa: Patrícia Andrade (foto oferecida amorosamente pela Cristina Ferreira - www.despertarparaser.com) Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, maio de 2015 ISBN: 978-989-8714-49-7 Depósito legal: 392527/15 © 2015, direitos reservados para Emídio Carvalho website: www.emidiocarvalho.com e-mail: omaildoemidio@gmail.com Facebook: escola.viva Scribd.com: emidioc_1 PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
EmĂdio Carvalho
Simples. Uma abordagem suave da sombra humana
Este livro não segue o novo acordo ortográfico porque não.
Índice
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Aviso à navegação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Parte Um – A origem do drama . . . . . . . . . . . . . . . . . . A vida acontece sem a tua autorização . . . . . . . . . . . . . . . A sombra humana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A sombra humana alimenta-se da vergonha . . . . . . . . . . . . Um coitadinho à solta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eu sou tu (projecções) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As gavetas das experiências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Dança com a culpa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
19 21 27 35 39 47 51 57
Parte Dois – Crenças da humanidade . . . . . . . . . . . . . . Onde está a segurança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Controlar a vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Preciso de saber o que tenho de fazer . . . . . . . . . . . . . . . . Ninguém me compreende . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Estou só . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ele/a não me ama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Não estou satisfeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Não sou feliz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
61 63 67 75 79 83 87 93 97
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Parte Três – Simplificar a vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 Os lugares comuns são velhos, muito velhos . . . . . . . . . . . . 105 Grato ao universo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 Um adulto não pode divertir-se . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 Interpretações e desinterpretações . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 Futurologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121 Desistir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 Tudo termina bem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 A generosidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Simplificar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 Sobre o autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Agradecimentos
Estou grato a todos os que participaram financeiramente na produção deste manual. Sem vocês muito provavelmente teria desistido deste projecto, uma vez que a parte deliciosa estava feita. Bem hajam: Ana Cristina Silva, Ana Pifre, Ângela Antunes, António Bruno Azevedo, Celina Leão, Cândida Miranda, Cláudia Carvalho, Cláudia Pesqueira, Cristina Ferreira, Cristina Viana, Diana Morais, Dora Vital, Énia Jardim, Freddy Rodrigues, Inês Bárrios, Joana Mourisco, João Coelho, Jorge e Manuela Sanchez, Lígia Clara Rosa, Mafalda Machado, Maria Ribeiro, Mariana Ferreira, Marcolino Ferreira, Miguel Carvalho, Nuno Gonçalo Gusmão, Olga Silva, Rosa Albuquerque, Rosa Gabriel Silva, Sílvia Freitas, Sofia Leitão, Tânia Moutinho. Estou grato a todas as pessoas que participaram nesta vida de uma forma ou outra. Cada uma trouxe algo e levou algo. Bem hajam sobretudo pela coragem de se aproximarem. Emídio Carvalho
Prefácio
Vou começar por confessar uma coisa: tenho vindo a desabituar-me das palavras e disse isso mesmo ao Emídio, quando ele me pediu que escrevesse este prefácio. Que ultimamente as palavras não me inspiravam confiança nenhuma, porque estão cheias de mal-entendidos e criam muitos equívocos e só contribuem para haver mais confusões. Mas admito que a «falha» possa ser minha e que tenha sido eu que deixei de saber usá-las… Num caso ou noutro, a verdade é que me comprometi com o Emídio a escrevê-lo e só reparei que não iria ser mesmo possível quando, depois de horas passadas à frente do computador, percebi que não avançava para além do segundo parágrafo… O problema não está na forma, está no conteúdo. Durante anos, acreditei que o meu dom era escrever e escrevi muita coisa. E bem, na opinião de muita gente. E na minha também, sem modéstia, e era mesmo um prazer e uma coisa que fazia por gosto. Mas, de repente, vi-me na posse de tanta informação – quase sempre contraditória, paradoxal e controversa –, tantas opiniões, comentários, conselhos, piropos, estudos, pareceres, teorias, propostas… que desisti de tentar organizá-los verbalmente. Descobri que as mandalas exprimem mil vezes melhor o que quer que eu tenha para dizer ou mostrar ao mundo do que qualquer conjunto de palavras, por mais bem organizado que esteja. Na impossibilidade, porém, de mandalar um prefácio – e querendo absolutamente honrar o meu compromisso com o Emídio – achei que
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fazia sentido deixar-vos o primeiro texto que escrevi quando regressei da Escola de Verão, em Marco de Canavezes, em Julho de 2011. E dizer-vos que, neste caso, honrar o compromisso com o Emídio significa, sobretudo, testemunhar o quanto, na minha experiência pessoal, ele foi importante na descoberta de uma das ferramentas mais úteis para o meu processo de autoconhecimento. Aqui fica o texto. «nenhuma teoria, nenhum livro, nenhuma frase, palestra ou explicação foram nunca tão eficazes a mostrar-me o caminho que nos conduz da mente ao coração como um simples movimento das mãos. ao observar o Emídio a fazer estrebuchar a mão direita que, como a mente – esquizofrénica por natureza –, quer tudo menos aquietar-se e ficar sossegada e, logo a seguir, a trazer a esquerda à sua presença, descendo como uma bênção capaz de acalmar tempestades, foi aquilo a que chamo de “clic”. como se, de repente, tivesse ficado visível – e acessível – o mecanismo que, a cada momento, me pode acordar, me pode acalmar e fazer perceber como é ridículo insistir em sofrer, como é realmente esquizóide a mente que se compraz com as histórias que inventa e nos conta – a nosso respeito e a respeito dos outros. realizei, talvez pela primeira vez, que esta mão, esta mente que constantemente se agita e estrebucha, não irá nunca abdicar do seu movimento esquizóide, não irá nunca parar de andar loucamente para trás e para a frente, aos solavancos para cima e para baixo, em busca de provas para o seu sofrimento. e que acreditar que um dia nos irá dar sossego é uma enorme ilusão!… e, no entanto, senti como se acalma – ou talvez como deixo de dar pela agitação de que padece por natureza – quando o coração, sem se impor, se manifesta a bater no presente. como o pulsar do agora, sem nunca querer ter outro ritmo para além do que tem neste exacto momento, revela a magia e o milagre da vida.
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sem esforço nenhum, reparei que respiro sem ter de saber ou de compreender quantos músculos ou órgãos estão envolvidos para que isso aconteça. senti como é possível ter paz, nem que seja por um brevíssimo instante, quando não dou ouvidos à mente que mente e que quer ter razão, quando não luto com ela, quando estrebucha e não lhe dou importância, quando permito que o coração desça como uma bênção sobre a loucura das tempestades e pulse, benigno e tranquilo. e é isto que trago de uma semana na Escola. dias inteiros e intensos esgravatando memórias e remexendo nas sombras, ao mesmo tempo que o sol derretia os nossos corpos de dor, que iluminava o rio Tâmega e o recorte das serras em volta, sentindo como era inútil e estúpido pedir-lhe para nascer um pouco mais cedo ou para se pôr um pouco mais tarde, exigir-lhe que não estivesse tão quente. histórias e histórias e histórias contadas na popular e humana versão do “coitadinho de mim”, lágrimas e sofrimentos e abandonos e violações e desesperos comuns a nós todos. uma semana envolta nos dramas que, de repente, se tornam comédias, o paradoxo de sermos tantos num só, as crenças que defendemos com unhas e dentes e que num instante caem por terra, a resistência em abrir mão de nos identificarmos com as nossas máscaras, não vá dar-se o perigo de não sobrar nada, afinal, para contar sobre quem somos sem elas. uma semana na Escola a descobrir como é inocente o sentimento da culpa, como expor a vergonha de nos termos sentido nojentos torna o ar limpo, como foi que embarcámos em histórias para irmos naufragar no mar alto, como acreditámos que nos lançaram às feras e nos deixaram sozinhos, como foi que nos convencemos que o pai e a mãe e a avó e o tio e o mundo em geral não gostavam de nós nem nos amaram o suficiente e, coitadinhos de nós!, ficámos cheiinhos de traumas e de carências e de coisas mal resolvidas. ah, tantas mentiras! que a mente nos jura serem verdade, há-de jurar para sempre… é mentira e não há sempre, só há dia a dia.
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e reparo que estou sempre onde paro. estou sempre onde avanço. não estou nunca nem mais à frente, nem mais atrás: não é possível! não estou nem melhor do que estava antes da Escola, nem pior do que eventualmente vou estar no próximo mês – caso lá chegue. não estou nem mais evoluída nem menos. e observo. observo a mão louca, a mente a agitar-se, a ameaçar estrebuchar, a minar-me o presente com as dores do passado, a oferecer-me o doce veneno das projecções no futuro. a mente que mente a querer ter razão e que para isso vai buscar provas, exemplos, acontecimentos… “claro que estás mais evoluída!…”, elogia-me, “repara como até já és capaz de desmontar-me…” ahaha! a mente esquizóide, tão querida, que até consegue imitar o doce pulsar do coração quando a isso se atreve, fingir-se quietinha, todos os truques são válidos para chamar a atenção. observo a mão quieta. observo o coração que, sem se impor, se aproxima. não quer nada a não ser pulsar-me no peito. tanto lhe faz que eu seja mais evoluída – provavelmente nem sabe o que é isso. não quer convencer-me de nada, provar-me coisa nenhuma, apenas pulsar-me no peito e é tudo. não exige sequer que eu saiba o que é isso – pulsar-me no peito –, não me seduz para lhe alterar os batimentos, o ritmo. não me diz “se me fizeres bater mais depressa, podes ser mais feliz” ou “lembras-te quando parei de bater e quase morreste?”. pode durar um segundo, mas a paz que sinto é imensa… observo então que a vida é a Escola perfeita. que o papel da mente esquizóide é estrebuchar na loucura e que bom ser perita a fazê-lo!, ora deitando-me abaixo com todas as provas de que não sou boa aluna, ora mostrando-me onde é que já devia ser mais evoluída, ora enredando-me toda, confusa, no labirinto das suas mentiras, ora passando-me a mão pelo pêlo e, com falinhas mansas, elogiando-me a inteligência e a clarividência. tudo mentira e, no entanto, o que seria de mim sem estes seus estremecimentos? como seria possível saber a verdade se nunca me tivesse contado mentiras? como poderia apren-
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der fosse o que fosse sem ela? e vejo que incha de orgulho, importante da sua importância, e que estrebucha, agora mais mansa, para que eu acredite que até é bom, afinal, dar ouvidos à sua loucura… sem dizer nada, o coração aproxima-se. e mostra-me como nunca foi necessário, afinal, aprender coisa nenhuma para estar aqui, viva e presente. como diz o Emídio, a vida acontece sempre sem a nossa autorização. e é um descanso sabê-lo, mesmo que daqui a nada volte a esquecer-me.
Inês de Barros Baptista 7 de agosto de 2011 in ahumanidadedosporques.blogspot.pt
Nota do autor: A Escola de Verão é um retiro de uma semana que organizo todos os anos na última semana de Julho. Um retiro onde o sofrimento humano tem uma oportunidade de se resolver.
Aviso à navegação
A experiência humana neste planeta é feita de eventos intensos. Há situações de crianças que passam fome, adolescentes que são violadas, pais que morrem deixando filhos pequenos, mulheres usadas para o tráfico de droga, adultos que abusam de crianças de variadas maneiras. Este livro não pretende ser a solução para esses desafios. Enquanto ser humano, permite-te a humildade suficiente para ajudar apenas a pessoa mais próxima de ti. Ou permite-te estender a mão e pedir ajuda. Ninguém é independente, e ninguém possui a solução para os desafios da humanidade. Mas podes começar por ti mesmo. Hoje. Se consegues ler este livro, então já és beneficiado o suficiente para poder fazer uma diferença. Podes parar a violência em ti. Podes começar por ti. E depois poderás ajudar outros. Há sofrimento na humanidade e não é minha intenção desvalorizar esse sofrimento. É real. A minha intenção é partilhar com quem está preparado para se questionar e descobrir como pode terminar o seu sofrimento pessoal. Se conseguires dissolver o teu sofrimento serás menos um ser humano a participar no sofrimento da humanidade, e um exemplo para outros. E isto é tudo. Já tive o privilégio de me sentar com pessoas que perderam todos os seus bens, que perderam os seus filhos, que foram maltratadas na infância de maneiras violentas, pessoas que não tinham uma cama onde dormir. Pessoas que foram literalmente abandonadas pelos pais quando ti-
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nham quatro ou cinco anos de idade. Pessoas que viram um ente querido morrer devido aos efeitos das drogas que consumiam. Pessoas que foram violadas por um progenitor. Pessoas que realmente sofreram. E no entanto a razão deste livro é apenas aliviar um pouco do sofrimento na tua vida. Questiona aquilo em que acreditas. É tudo o que te peço, se fores capaz. Se não fores capaz, ok. A vida é perfeita neste momento, para ti apenas. E é neste momento que tu podes começar a descobrir-te. A fazer as pazes com a vida. Independentemente do que te aconteceu, agora é o único momento que existe. Permite-te por vezes não saber. Permite-te perder a razão. Permite-te ficar em silêncio quando à tua volta parece existir apenas caos. Desejo-te uma boa viagem.
Parte Um
A origem do drama
Nesta primeira parte iremos explorar os motivos porque agimos como agimos. Compreender porque, apesar dos manuais de desenvolvimento pessoal, workshops de auto-ajuda e toda uma gama de produtos e serviços existentes para tornar a nossa experiência neste planeta mais pacífica e feliz, continuamos a sofrer. Ao longo de todo o livro irão surgir afirmações que te podem causar stress, deixar-te incomodado ou num estado de incredulidade. Quando isto te acontecer, por favor tira algum tempo para ti, para reflectir. Observa a diferença entre aquilo em que acreditas e a realidade. Observa ainda como a mente necessita de ter razão e de separar a experiência da vida entre o que está correcto e aquilo que realmente acontece. Idealmente experimenta ler apenas um tema a cada dois ou três dias, por forma a integrar a informação. Um exemplo desta necessidade de ter razão sem investigar é acreditar que os pais deveriam amar incondicionalmente os filhos. A realidade é que muitos pais não amam incondicionalmente os filhos. Então, quando observo pais a gritar com um filho e acredito que não deveriam gritar, eu sofro. Antes de eu acreditar nisto, havia duas ou três pessoas a sofrer (as que gritam e as que são o alvo dos gritos), mas quando eu acredito nesse mito do amor incondicional dos pais pelos filhos, acrescento mais uma pessoa ao sofrimento que já existe (eu). Este livro não é para tu compreenderes os outros ou ajudar os outros. É para ti. Para te compreenderes a ti e ajudares-te a ti. Pela minha expe
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riência, quando tu estás em paz com a vida, tornas-te um exemplo do que é viver em paz. Queres ser aquele que ensina a viver em paz, ou preferes ser aquele que tem a experiência completa de viver em paz? Qualquer resposta que eu te dê será sempre a minha resposta. Mas se tu parares e investigares por ti, se tu deres a resposta a ti próprio, então essa resposta será tua. O mais importante neste livro não são as respostas ou explicações que se vão sucedendo. O mais importante são as questões que te são colocadas. Dá-te algum tempo, e silêncio, para ouvires as tuas respostas às questões. Deixa que a resposta te encontre. Isto significa não responder imediatamente a seguir a uma questão, mas dar tempo a que a questão viva em ti. Permanece presente para a questão. Eventualmente, a resposta encontrar-te-á. Pode por vezes parecer que sou contra uma terapia ou um modo de vida. Não sou. Acredito que a vida é totalmente inclusiva, tudo existe porque é para existir. Adoro que cada ser humano acredite no que acredita. Não espero nada de quem quer que seja. Ninguém tem de mudar. Cada ser humano está no seu processo único e maravilhoso de crescimento. A pessoa que resolve o seu sofrimento agredindo outro não consegue compreender o conceito do silêncio como resposta ao stress. É esse o nível de consciência em que se encontra, não é possível esperar mais dessa pessoa. Podemos apenas mostrar o nosso exemplo. Condenar outro ser humano por não saber mais do que sabe é cruel. E isto não significa que sou a favor da violência. Não sou. Poderei apenas eu parar a minha violência para com as pessoas que apenas conhecem a violência? Desejo-te um bom despertar. Bem hajas por existires.
A vida acontece sem a tua autorização.
«O que causa sofrimento não é o que acontece, mas o significado que atribuímos ao que acontece.»
Este livro é para as pessoas que se encontram cansadas de livros de auto-ajuda, de seminários dedicados à «deusa interior», de workshops sobre o «guerreiro da luz», e de conferências sobre vidas passadas. Ou seja, para aqueles que se estão a passar com tanta teoria que em nada facilita esta coisa a que se chama vida. Ouvimos muitos gurus e mestres discursar sobre tudo o que é quântico, como se soubessem do que falam. Agora a física quântica é o bode expiatório que tudo explica e em que tudo se encaixa na perfeição. Depois de dois anos a estudar esta ciência, apenas posso afirmar isto: nem os próprios cientistas que dedicam a sua vida ao assunto compreendem muito bem o que se está a passar. Lemos acerca de matéria, iões, fotões, energia e universos paralelos. Mas o que raio é tudo isso? E será que preciso de compreender isso para estar bem com a vida? Depois, para os mais sofredores entre nós, temos ainda a oferta de almas gémeas. E os karmas familiares. Se isto não é masoquismo, só pode ser sadismo. O karma, muito resumidamente, e para o comum dos mortais, resume-se a isto: numa outra vida passada fizeste asneira e agora estás a pagar. É o mesmo que meterem-te na prisão por um crime que cometeste mas nem tu nem ninguém sabe qual foi o crime. Vais pagar por
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um crime, mas não sabes que crime foi esse! Se isto não é uma aberração, só pode ser humor negro. Permitimos, inconscientemente, que a nossa vida se tornasse tão rápida, tão agitada, que vivemos continuamente em modo reactivo. A reagir ao relógio, aos telemóveis, ao emprego, ao companheiro, aos filhos, à televisão, ao trânsito, às promoções nas lojas. Sempre a reagir a algo. Reagimos ao que a mãe diz. Reagimos ao que a amiga faz. Reagimos ao que acontece e ao que não acontece. E isto é viver um inferno. Experimenta parar um pouco e observar. Cinco minutos são suficientes. Observa os pensamentos que se sucedem, sem decidires que são bons ou maus. Simplesmente mantém-te presente para os pensamentos que vão surgindo. Experimentação: faz uma lista das coisas, pessoas e situações às quais reages negativamente. Experimenta depois travar-te, não reagir.
Observa como a respiração acontece sem a tua intervenção consciente. Os músculos contraem-se e relaxam em sintonia, o cérebro produz químicos específicos para que esses músculos funcionem de maneira correcta, o ar entra e sai. Tudo na perfeição. E tudo sem a tua intervenção directa. Observa como levas a comida à boca, a digeres e separas os nutrientes que necessitas daqueles que não são precisos. E mais uma vez sem a tua intervenção directa. Não tens de saber quais são os órgãos que produzem enzimas para que a digestão aconteça! E observa ainda o sangue. A forma como o sangue leva nutrientes e oxigénio a todo o corpo. Como o coração abranda ou acelera sem que dês qualquer instrução consciente. A vida vive em ti sem a tua autorização. Pára o tempo suficiente para te tornares consciente de tudo isto. Uma tarde, um dia. Não faças nada excepto observar a vida a acontecer. Observa agora os teus pensamentos. Observa como vão surgindo do nada e regressam ao nada. «Está a chover», «O meu pai não gosta
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de mim», «preciso de mais dinheiro», «não sei o que fazer», «isto está difícil», etc. Esses pensamentos que vão aparecendo ao longo do dia… Será que és tu a pensar, a escolher cada pensamento, ou será que os pensamentos simplesmente surgem? Observa como os pensamentos que surgem e causam sofrimento são repetidos. São a história que afirma: «coitado de mim». De onde surgem esses pensamentos? Os pensamentos que afirmam que não és capaz, que não mereces, que a vida é injusta, que ninguém te compreende, que estás só. Talvez estes pensamentos não sejam teus. Talvez alguém te tenha ensinado a acreditar neles. Pondera um pouco isto: se fosses o único ser humano no planeta, alguma vez terias estes pensamentos? Talvez tu não penses, talvez sejas pensado. Talvez os pensamentos que causam sofrimento tenham origem na sociedade à tua volta. Já te deste conta de que a mesma situação pode ser causa de alegria numa sociedade, e tristeza noutra? E talvez nem sequer consigas controlar esta coisa de pensar. Talvez os pensamentos surjam, as histórias se construam e tu sejas um mero espectador. Pela manhã despertas. E nem sequer pensas: «Agora vou pensar no dia entediante que tenho pela frente! Vou aborrecer-me de morte, e assim consigo sair da cama de mau humor!». O que acontece é que os pensamentos simplesmente aparecem. Um atrás do outro. E há pensamentos que não te afectam, e outros que te afectam. Para descobrires por que motivo uns pensamentos te afectam e outros não, descobre a tua «história de coitadinho». Por exemplo, talvez acredites que ninguém gosta de ti, ou que não vales nada, que estás só, que a vida é dura, que nunca fazes nada bem feito. Mais adiante iremos ver quais são as histórias em que acreditamos e são a causa do nosso sofrimento. Para já, e para começares a descobrir-te, imagina que a tua história anda à volta de «ninguém gosta de mim».
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Experimentação: tenta pensar aquilo que estás a fazer no momento. Por exemplo, «eu agora estou a caminhar para a sala. Os meus pés avançam, um após o outro. Agora acendo a luz».
Acordas pela manhã e os pensamentos vão surgindo. Qualquer coisa como «Oh, tenho de me levantar! Não me apetece nada ir trabalhar hoje. Deixa ver como está o tempo. Não sei se vista a camisa azul ou a verde. Talvez a azul ,se estiver bom tempo. Tenho de comer mais fruta, estou a engordar. Deixa-me ir beber um copo de água». Pensamentos inocentes vão surgindo. Sem interrupção. Nem te apercebes quando te levantas, ou quando já estás na casa de banho, ou a tomar o pequeno-almoço. Tudo vai acontecendo, enquanto os pensamentos acerca do que não está a acontecer vão surgindo na mente. Mais ou menos pacificamente, até surgir um pensamento que tu identifiques como sendo a tua história. Aparece, por exemplo, o pensamento: «O meu colega não respondeu à mensagem que lhe enviei ontem!» – e este pensamento confirma a tua história de que ninguém gosta de ti, por exemplo. A partir daí a mente começa a carregar outros pensamentos que ajudam a manter a história: «Talvez esteja zangado comigo! Também, pudera, quem é que suporta aquele idiota? Ainda por cima fala mal de mim nas minhas costas!». E por aí fora. E assim um bom começo de dia transforma-se num inferno. Todavia, fica atento a observar como, apesar dos pensamentos que vão surgindo na mente, a vida se vai vivendo. Levantas-te, cuidas de ti, comes, preparas-te para ir trabalhar, e nem sequer te apercebes de que tens pés! Ou de que as tuas mãos fizeram tantas coisas ainda antes de sair de casa! Ou de que tens casa! Para já, não é necessário ficares a pensar em como escapar disto. Não é possível escapar. Não há uma estratégia. Não há pensamento positivo algum que te ajude. Porque pensar é automático. Mais tarde poderás descobrir-te e os pensamentos que antes te causavam sofrimento deixarão de te visitar com tanta frequência.
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Presta ainda atenção ao facto de, independentemente do que tu consideras certo ou errado, cada ser humano se encontra a fazer o que faz. Talvez muito do certo e do errado seja uma questão de educação, ou cultural. Observação: a vida acontece à tua volta. Presta atenção apenas. Desde as nuvens ao autocarro, da criança que chora ao mendigo que pede esmola. Limita-te a observar a vida durante algum tempo.
Há pessoas que gritam, se atravessam à tua frente, ficam doentes, enriquecem, se casam, perdem o emprego, se zangam. Tudo isso está a acontecer à tua volta. E tu não tens nenhum poder para mudar o que quer que seja neste preciso momento. Então, para quê ficar magoado? Consegues que a criança doente melhore só porque tu ficas preocupado? Não me parece. Consegues que a amiga deixe de falar mal de ti nas tuas costas só porque amuas à frente dela? Também não me parece. E consegues que a tua mãe goste mais de ti porque lhe ofereces flores? Pois é. Não controlas nada à tua volta. Então, para quê reagir ao que acontece de aparentemente mau à tua volta? A tua vida seria melhor se reagisses sempre ao que os outros fazem ou dizem? Acreditas mesmo nisso? Talvez a vida não aconteça para te provocar ou magoar. Talvez a vida aconteça como acontece para te acordar. A única coisa que te peço por agora é que estejas atento a esta constatação: toda a vida acontece sem o teu envolvimento consciente. O coração bate, o estômago recebe alimentos, os dedos mexem-se. E nem uma vez estiveste consciente de que isso estava a acontecer. Amigos afastam-se, casais separam-se, empregos desaparecem, doenças acontecem. E, mais uma vez, não houve nisso nenhum envolvimento consciente da tua parte. É verdade que há uma corrente de pensamento que afirma que tu crias a tua realidade e tudo o que te acontece. Considero que isso é uma absoluta ingenuidade. Pondera a possibilidade de essa filosofia ser incompleta e reducionista. Se nós criamos a nossa própria realidade, então
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o que podemos dizer do cancro, da guerra, do divórcio? Talvez essa filosofia apenas ajude a aumentar o sentimento de culpa e vergonha. Porque, se és tu quem cria o cancro, então também tu podes eliminar esse cancro, segundo esta filosofia. Talvez não seja assim. Talvez seja ainda mais simples. Por agora, vai prestando apenas atenção à vida a acontecer. Observa como os teus olhos vêem estas palavras e o cérebro as interpreta. Observa como os dedos tocam estas folhas, e as sensações que daí surgem. Observa os sons à tua volta. A sensação da roupa a tocar-te na pele. Os pés a suportarem o peso do corpo. Tudo a acontecer sem teres de dar uma ordem. Sem saberes o nome de um músculo, de um som, de um cheiro.
Prática Durante um dia não fales. Não digas nada. É um dia para estares atento e observares como a vida se desenrola sem a tua intervenção directa. Um dia de silêncio permite-te estar mais consciente dos processos que decorrem à tua volta. Será ainda um dia para te aperceberes do efeito das queixas, das necessidades, das obrigações. Observa o que te incomoda no comportamento dos outros. E mantém o silêncio. Podes escrever num diário o que fores descobrindo. Observa os pensamentos que surgem e toma nota.
A sombra humana
«Tudo o que não queres ser não te deixará ser.»
Por que motivo agimos como agimos? Como é que, mesmo sabendo e tendo aprendido como viver em paz, continuamos a sofrer? Porque não conseguimos viver uma vida livre de dor? Porque é tão difícil mudar? Observação: quando sentires stress, seja raiva ou frustração, pergunta-te o que queres nessa situação. O que queres da vida e não estás a ter. Toma nota. E, em vez de reagir, observa as sensações físicas que acontecem.
Uma criança quando nasce não sabe o que está certo ou errado, o que é bom ou mau. Exprime-se através da emoção. Comunica com os adultos à sua volta através da emoção. Nascemos seres emocionais e permanecemos seres emocionais. Uma criança é capaz de fazer uma birra às duas da manhã, acordar os vizinhos, espernear, até ter a atenção do adulto, que irá pegar nela ao colo, ou dar-lhe de mamar. É o instinto de sobrevivência em acção. Um recém-nascido não quer saber se o pai está cansado, se a mãe está deprimida ou se o irmão precisa de dormir. Berra quando berra. É a vida a viver em si. Não tem consciência de um «eu». Um recém-nascido não pensa: «Tenho fome, é melhor acordar os gigantes para que me alimentem». Em realidade, um recém-nascido, tanto quanto se sabe, é incapaz de formular pensamentos. Algo em si desperta,
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algo em si berra, e algo em si acalma. A vida vive-se plenamente num recém-nascido. Há uma sensação de fome, ou de desconforto, ou de cansaço. E o recém-nascido faz o que é para fazer, sem nunca ter aprendido que é assim que se faz. Aos dois anos de idade já aprendemos que há coisas que fazemos e provocam uma reacção amorosa nos gigantes à nossa volta (pai, mãe, irmão, tia), e há coisas que fazemos e provocam uma reacção de rejeição. Os adultos têm as ideias confusas e misturam a acção com o sujeito. A criança que cai quando está a aprender a andar não é «trapalhona» nem «apressada» – é apenas uma criança a aprender a andar. A criança que arranca as cabeças das bonecas da irmã não é má, o acto cometido é que pode ser mau (ou bom, se os pais comprarem bonecas novas à irmã!). Claro que para um adulto é mais fácil, nesta situação das bonecas decapitadas, dizer que a criança foi má do que sentar-se com a criança e explorar as emoções que a levaram ao acto. Há depois situações mais complexas, como a da criança que não é desejada, ou que é responsabilizada pela infelicidade dos progenitores. Em realidade, muitas crianças acreditam que são responsáveis pelo bem-estar emocional dos pais. Mais adiante iremos ver como. O importante a saber sobre os primeiros seis anos de vida é isto: quando a criança tiver um comportamento aceite pelos adultos, irá experienciar o afecto destes. E, quando tiver um comportamento que não é aceite pelos adultos, irá experienciar o afastamento desse afecto. A criança aprende ainda como obter a atenção dos adultos. Torna-se boazinha, ou torna-se rebelde. De qualquer forma, irá ter a atenção dos adultos. Afecto ou rejeição. E assim a criança aprende que, quando é estúpida, ou burra, ou má, ou egoísta, ou mal-educada, ou gananciosa, os adultos se afastam ou repreendem ou castigam. E, recordo, a criança não é nenhum destes adjectivos. No pior dos casos, a acção cometida pode ser rotulada com um destes adjectivos. A criança aprende ainda que quando é inteligente, carinhosa, amigável, altruísta, os adultos batem palmas ou oferecem-lhe o seu afecto.
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E assim a criança aprende que há uma parte de si que é má, ou está errada, e que o melhor a fazer é esconder essa parte de si. No fundo, aprende que há algo de errado consigo. Outro aspecto importante é que a criança nasce com necessidades básicas. Precisa de alimento, fraldas limpas, dormir, banho. À medida que a criança cresce é-lhe ensinado que precisa de outras coisas: brinquedos, rebuçados, roupa, etc. Aos cinco anos de idade, a criança já acredita que precisa de muitas coisas fora de si para estar bem. Nota que inicialmente essas coisas eram muito básicas: comida, dormida, bebida (de preferência leite e água). Agora acredita que é da Playstation ou da Xbox que precisa para estar bem. Aos 15 anos até acredita que precisa de namorado para estar bem! Aos 20 precisa de namorado (um que a compreenda, obviamente), um bom emprego, uma boa casa, e muitas outras coisas boas. Nota como de algo tão básico como alimento e sono passamos a acreditar que este planeta tem de nos dar tudo aquilo de que acreditamos precisar! E, de cada vez que é negado algo à criança, ela irá acreditar que ou não é merecedora, ou é má, ou os pais são maus, etc. Ou seja, o foco da sua atenção continua fora de si. Como seres emocionais, procuramos experienciar emoções. Mesmo a pessoa que se afirma «racional» é emocional (normalmente estas pessoas querem dizer que não se envolvem emocionalmente nas situações, embora o facto de se manterem insensíveis ou distantes, seja em si mesmo, um estado emocional). Muito do que fazemos, fazemo-lo para poder experienciar determinadas emoções. Quando dizemos que amamos alguém, em realidade estamos a afirmar a experiência de certas emoções com esse alguém. Entretanto, à medida que vamos crescendo, vamos tendo comportamentos que para nós são naturais, e que no entanto são interpretados pelos adultos à nossa volta como inapropriados. É assim que aprendemos a viver num inferno. Alguns exemplos deste processo:
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• A tia pede um beijinho à criança e a criança diz que não quer dar. A resposta dos adultos irá desde insistir que dê o beijo à tia até ao insulto («má», «feia», «não gosto de ti»). A criança estava a respeitar-se apenas. Não lhe apetecia dar um beijo. Isto é um comportamento perfeitamente natural. Por vezes não nos apetece fazer algo. E como é que os adultos reagem à criança que se está a respeitar? • Oferecem à criança uma caixa de chocolates e depois é-lhe pedido que partilhe com o irmão. A criança acredita que os chocolates lhe foram oferecidos e são apenas para ela, daí não querer partilhar. E como reagem os adultos? Desde «egoísta» a «só pensas em ti» até um «de castigo para o teu quarto por seres mau», tudo pode acontecer. E a criança aprende que é má, egoísta. Como adulto, esta criança irá fazer muitas coisas para agradar aos outros, mas que na realidade não lhe apetece fazer. Os chamados «fretes». • A criança, enquanto brinca, deixa cair o jarrão favorito da mãe. Foi um acto desajeitado, distraído. Mas, para os adultos, o drama é o jarrão quebrado e não a criança, o jarrão torna-se mais importante que a criança. Então a criança é desajeitada, distraída, inquieta, rebelde, etc. E esta criança irá aprender a ter muito cuidado com o que os outros pensam dela! E irá tentar esconder qualquer falha, qualquer coisa que considere mal feita ou errada em si. • A criança diz que a avó, acamada, cheira mal. É uma informação que pode ser verdadeira, apesar de desnecessária. E os adultos irão reprovar a criança, chamar-lhe mal-educada ou castigá-la. Já tive o privilégio de trabalhar com muitas pessoas rotuladas de mentirosas compulsivas e todas têm o mesmo em comum: foram punidas em criança por dizerem a verdade. A sombra humana foi assim apelidada por Carl Jung para se referir aos aspectos deserdados do ser humano. Aquelas qualidades que aprendemos que são más ou erradas e não devem existir. O estúpido, o burro, o egoísta. Daí a nossa reacção quando alguém nos qualifica com um des-
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tes adjectivos. Não queremos ser burros, nem mentirosos, nem invejosos. Escondemos estas qualidades. Ninguém nos explica que todas estas qualidades podem ser úteis em determinadas situações. Observação: o que consideras mau ou errado em ti? Como tentas esconder essas qualidades dos outros?
Aos vinte anos já são muitas as qualidades que não temos. Não somos desonestos, nem injustos, nem burros, nem estúpidos. Escondemos tudo isto e esperamos que ninguém descubra. No fundo sabemos que somos desonestos ou falsos. E ficamos aterrados se outros descobrem. Somos falsos quando fazemos algo apenas para agradar. Somos desonestos sempre que dizemos «sim», mas queremos dizer «não». Somos burros quando fingimos compreender o que não compreendemos. E somos muito estúpidos porque acreditamos em muitas regras sociais que simplesmente servem para nos manipular e fazer parte de um grupo do qual muitas vezes nem queremos fazer parte. O que podemos fazer com estas qualidades rejeitadas? Projectamos sobre outros. Enquanto tu fores o estúpido ou burro, eu não terei de o ser. O fenómeno da projecção é relativamente fácil de reconhecer. Sempre que a tua reacção ao comportamento de outro for inapropriada, estarás a projectar uma qualidade tua que rejeitas. Alguém pode mentir, e podes reconhecer que mente simplesmente. Podes ainda dizer-lhe: «Sabes, essa não é a minha experiência». Mas, se a tua reacção for alterar o tom de voz, acusar o outro de ser mentiroso, gritar, então estarás perante uma projecção tua. Ou seja, estarás perante uma qualidade tua que vês como má e não queres reconhecer. A pergunta a fazer-te, neste caso, é simples: onde é que eu já menti? Mentimos muito quando procuramos a aprovação dos outros. Dizemos sim quando queremos dizer não, fazemos coisas que não queremos fazer, criticamos pessoas que nem sequer conhecemos.
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Experimentação: da próxima vez que não concordares com a opinião de outra pessoa, experimenta dizer «estou a ouvir-te, mas a minha experiência é diferente».
O processo de resgatar estas qualidades rejeitadas é feito de muitas maneiras. Num grupo torna-se bastante intenso, mas ao mesmo tempo muito eficaz. Uma forma de descobrires o que escondes na tua sombra é começar por anotar as qualidades positivas que gostas que outros vejam em ti. Por exemplo, eu gostava que vissem que sou uma pessoa inteligente, bem humorada, perspicaz, financeiramente auto-suficiente e com estilo. Só depois de escreveres as qualidades que tentas mostrar ao mundo é que te aconselho a continuar a ler. A sério. Faz uma pausa. Toma nota. Afinal são qualidades positivas que todos gostamos de ter. Agora observa as pessoas que tens à tua volta, que conheces, e que te mostram o oposto dessas qualidades. No meu caso, vivia rodeado de pessoas burras, que não compreendiam as coisas à primeira, tristes, estúpidas e com dificuldades financeiras. E eu era o seu salvador, obviamente. Depois de anotar as qualidades negativas que vês nos outros, dedica alguns dias a descobrir onde é que expressas essas mesmas qualidades. Permite-te sentir algum carinho por ti por fazeres este trabalho. Não se trata de culpa ou condenação, mas apenas de despertar. Continuando com o meu exemplo, eu era muito burro porque raramente tinha tempo para mim, envolvido que estava a resolver os problemas dos outros. Era burro porque, quando ia a restaurantes com amigos, era quase sempre eu quem pagava a factura total (eles tinham problemas financeiros e eu não), era burro quando não cobrava pelos meus serviços (não queria que pensassem que era ganancioso), e era burro quando acreditava que o que os outros pensavam de mim era mais importante do que o que eu pensava de mim. Ficava deprimido quando estava só. Várias vezes contemplei o suicídio. Sozinho, era invadido por uma tristeza
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imensa, que só desaparecia quando me tornava burro e saía com amigos a quem pagava tudo. No fundo, vivia uma vida muito estúpida. Uma vez que descubras as qualidades negativas que tens andado a rejeitar, dedica mais algum tempo a ver onde é que estas qualidades te podem ser úteis. Por exemplo, quando estou em paz com o burro que há em mim, é fácil pedir a outro que se explique melhor porque não estou a compreender. O mentiroso em mim pode ser útil quando se trata de uma situação mais dramática; por exemplo, se estiver a andar sozinho à noite e desconfiar de estar a ser seguido, posso fingir ao telemóvel que um amigo está mesmo ao virar da esquina. O triste em mim pode ser muito útil para aprender a estar presente para mim. Quando reconheço que tudo aquilo de que acuso os outros está já em mim e consigo fazer as pazes com estes aspectos, a vida torna-se mais pacífica. Sem necessidade de ser vítima. A pergunta a fazer-te mais frequentemente, quando alguém tem um comportamento que não te agrada, é esta: onde é que eu sou assim? Sempre que falo de outros, mostro quem eu sou. Isto é a sombra e as projecções em acção. Observa-se muito facilmente na política, no desporto, na religião. Alguns exemplos de sombra em acção: • O bom pai de família que em casa maltrata a esposa ou tem uma amante; • O líder religioso que condena o sexo extramarital e abusa sexualmente de crianças; • A mãe exemplar que se dedica à má-língua ou esquece as necessidades dos filhos; • O patrão que dirige uma empresa bem reputada e se dedica a maltratar os funcionários; • O banqueiro exemplar que se mete em negociatas ilegais; • O filho bom estudante que consome drogas; • A professora moralista que passa horas a ver pornografia na Internet;
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• O político que pretende liderar a nação e rouba dinheiro dos contribuintes. Quanto mais moralista uma pessoa for, maior será a sua sombra e mais a projectará sobre outros. Já alguma vez te aconteceu teres um comportamento que mais tarde consideraste inapropriado («onde é que eu tinha a cabeça?» costuma ser o desabafo)? É que nós projectamos e somos a projecção de outros, continuamente. Há pessoas que provocam em nós medo, ou raiva, ou pena. Estamos a ser a projecção dessa pessoa. Sempre que alguém fica emocionalmente alterado, esse é um sinal da sua sombra activa. Nessa situação, a melhor atitude que podemos tomar é respeitar a sombra. É acreditar, por exemplo, que todas as mulheres são muito emotivas, ou que os políticos são todos corruptos, ou que eu não te amo, ou que não deveria chover. Porque, quando tu afirmas algo assim, estás possuído pela tua sombra e eu não estarei a falar contigo, com a pessoa que conheço, mas apenas com aspectos teus que rejeitas há muito tempo. O meu «ok» não significa que concordo contigo, mas apenas que respeito o facto de pensares assim.
Prática Dedica mais um dia ao silêncio. Fala apenas quando for necessário. E aproveita o silêncio para tomar nota de todos os comportamentos e situações que te causam stress. É a tua sombra, os aspectos de ti que rejeitas. Dedica-te depois a descobrir onde, no presente ou no passado, já demonstraste esses aspectos. E por agora apenas anota as descobertas, não faças mais nada.
A sombra humana alimenta-se da vergonha
«A vergonha maior do ser humano é fingir ser quem não é.»
Há vergonhas presentes em nós que podem ser úteis. Por exemplo, a vergonha de atirar com lixo para o chão impede que o chão fique sujo. Ou a vergonha de que os outros nos vejam como gulosos impede-nos de comer mais doces. Há depois vergonhas que possuímos e não queremos que outros descubram. Por exemplo, a vergonha de limpar o nariz com o dedo, ou a vergonha de fantasiar com a vizinha do lado. Estas vergonhas também são úteis, porque nos impedem de magoar outros ou a nós mesmos. E depois há as vergonhas que já esquecemos e nos prejudicam, levando-nos a actos de auto-sabotagem. Verifica se te identificas em alguma das vergonhas apresentadas a seguir. • A vergonha de ser inteligente. Uma criança que gosta da leitura e de estudar, mas que nasce no seio de uma família que preza a actividade física, ou que dá mais valor a ganhar dinheiro. Esta criança é gozada, ou até humilhada, por não saber fazer outra coisa a não ser estudar. Os pais olham para ela e afirmam coisas como «coitada, nunca chegará a ser alguém», ou «não és capaz de fazer nada bem feito». Por mostrar a sua inteligência, a criança é acusada de estar enganada e irá crescer com esta vergonha. Irá criar problemas na sua vida, irá sabotar qualquer oportunidade de sucesso,
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porque escondida no passado está a vergonha de ser diferente, de estar enganada. • A vergonha de ser carinhoso. É a da criança que é muito afectuosa, que gosta de dar mimos, muitos beijos e festas. Numa família em que o contacto íntimo é mal visto, esta criança será envergonhada. Ser-lhe-á dito para não tocar nos outros, que é mau fazer festas a outros. E esta criança irá crescer com a vergonha de ser emocionalmente carente. E irá esconder essa vergonha tornando-se uma pessoa fria, distante, a detestar o contacto físico íntimo. • A vergonha de ser criativo. É a da criança que adora experimentar e é capaz de colocar detergente da loiça no aquário para lavar os peixinhos. Os adultos não irão querer saber porque o fez. E, se perguntarem porque o fez será com o tom de voz que indica à criança que qualquer que seja a resposta, será errada. Depois de algumas experiências em que é humilhada ou a fazem ver que é má, a criança irá sentir vergonha da sua capacidade inventiva e da sua maneira diferente de ver a vida. E irá crescer com esta vergonha de ser criativa. Irá esconder esta vergonha num emprego desenxabido onde fará todos os dias as mesmas coisas sem necessidade de recorrer ao seu espírito criativo. • A vergonha de ser independente. É a da criança que é criticada por não ter amigos, ou por não brincar com os irmãos. Como adultos, consideramos uma criança que gosta de estar na sua companhia como sendo uma criança sem aptidões sociais. Iremos forçar a criança a socializar. Esta criança irá ser envergonhada por ser «anti-social». Como adulto irá tornar-se dependente da aprovação dos outros. Será incapaz de dizer «não», estará sempre disponível para os outros e nunca para si. A nossa maior vergonha, e a causa de muita auto-sabotagem e repetição de padrões que causam sofrimento, tem origem numa qualidade muito positiva: o nosso dom.
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Experimentação: uma forma rápida de ficares em paz com as tuas qualidades negativas é assumi-las perante aqueles que são importantes para ti. Eu descobri que por vezes sou burro e estúpido, e também posso ser mesquinho.
Para descobrires qual é o teu dom, a qualidade que te é inata e que te ajudará a viver a vida na totalidade, começa por dedicar algum tempo a observar qual é a qualidade negativa que se repete na tua vida. Talvez seja a preguiça, a inveja, a mentira, a frieza, a desorganização, a desobediência, a tristeza, a solidão, a mesquinhez, a insegurança, a desconfiança, o medo de arriscar. Observa qual é a qualidade negativa que está em ti e que te prejudica. Para muitas pessoas, é uma qualidade tão simples como a necessidade de estar certo, de ter razão. Pedia-te para parares de ler até descobrires a tua qualidade negativa número um. Pede ajuda a amigos e familiares. Diz-lhes que não ficarás magoado, mas que precisas da sua ajuda e que te digam qual é o maior defeito que vêem em ti. Outra forma de descobrires essa qualidade negativa é dedicares algum tempo àquilo que mais te envergonharia que outros dissessem de ti. Qual é a qualidade negativa que mais vergonha te poderia causar? Quando tiveres a certeza da tua qualidade negativa, a que mais danos te causa, faz uma visita rápida ao teu passado. Pega em dez situações dolorosas do passado e verifica se essa qualidade estava presente. Outra forma de descobrires essa qualidade é perguntares-te porque fizeste o que fizeste, porque reagiste como reagiste. O motivo por que essa qualidade se manifesta na tua vida é simplesmente o facto de, quando demonstraste o seu oposto, teres sido envergonhado, humilhado ou castigado. Pode ser que te recordes desse acontecimento inicial ou não. A qualidade negativa que domina as nossas vidas tende a ser um padrão que se repete na família. Nalgumas famílias é a mentira, noutras a violência, noutras ainda é a arrogância. Normalmente, essa qualidade só se encontra bem visível num membro da família. É a chamada «ovelha
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negra» da família. Na realidade, essa é a pessoa que carrega a sombra da família e que permite que ela funcione na sua disfuncionalidade. Na família trabalhadora há um preguiçoso. Na família honesta há um mentiroso ou um ladrão. Na família poupada há um gastador. Na família sóbria há um alcoólico. Se soubéssemos como a sombra actua no seio da família, não haveria necessidade de um membro carregar a vergonha de todos os outros membros. E como resgatar a qualidade que projectamos nesse membro da família? Podemos começar pela compaixão para com essa pessoa. Não recriminar, antes estar grato. Parece um paradoxo. Mas, diz-me, se tu mesmo fores uma pessoa violenta ou dependente do álcool, quem ouvirias mais facilmente: a pessoa que te ama, te respeita e não julga, ou a pessoa que te critica, que se zanga contigo e te condena?
Prática Qual é a tua maior vergonha? Qual é a vergonha que escondes dos outros e tens medo que seja descoberta? Essa é a vergonha que te limita. Estarias preparado para te abrires, disponível para ser criticado e julgado? O que ganhas ao esconder a tua vergonha? Quais os benefícios aparentes de esconderes a tua vergonha? E quem é que tu serias se essa vergonha se tornasse pública e não precisasses de te esconder? Se assumisses a tua vulnerabilidade? Medita sobre estas palavras da escritora francesa Anais Nin: «a vergonha é a mentira que te contaram acerca de quem tu és».
Um coitadinho à solta
«Sim, há maus momentos na vida. As boas notícias é que estão todos no passado.»
Desde muito cedo, devido em parte às experiências de vergonha, começamos a acreditar numa história falsa acerca de quem somos. É a história do coitadinho. Ninguém gosta de mim. Eu não sou merecedor. Eu estou só. Eu não sou importante. Eu estou perdido. Eu não valho nada. Eu não presto. Eu sou um produto danificado. Há algo de errado comigo. Esta é a história que contamos: há algo de errado comigo. E tenho as provas todas em como isto é verdade. Claro que há algo de errado comigo, quando: • Não tenho amigos; • Não tenho namorada/mulher; • Não tenho saúde; • Sou obeso; • Não tenho dinheiro; • Não consigo fazer as coisas bem feitas; • Ninguém me compreende; • Odeio o meu emprego e não consigo mudar; • A minha mulher pediu o divórcio; • O meu filho não fala comigo; • _____________________ (acrescenta a tua desculpa favorita).