Jo達o Sena
Sombras... nada mais! romance
1995
FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Vírgula (Chancela Sítio do Livro) TÍTULO: Sombras... nada mais! AUTOR: João Sena CAPA: Nuno Ferreira IMAGEM DA CAPA: João Sena PAGINAÇÃO: Nuno Ferreira 1.ª EDIÇÃO LISBOA, 2010 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Publidisa ISBN: 978-989-8413-05-5 DEPÓSITO LEGAL: 315412/10 © João Sena PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2 , Porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt
A J.E. Pires-Marques M谩rio Vit贸ria C. Diniz Miguel Vidal J.M. Dias de Almeida quatro pilares onde apoiei a minha vida.
Sombras... nada mais!
soy cantor, soy embustero me gusta el juego y el vino, tengo alma de marinero! Joan Manuel Serat
Todo o Mundo busca a vida e ninguĂŠm conhece a morte. Gil Vicente
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EPÍLOGO COMO PRÓLOGO
O tribunal está a abarrotar de gente e de jornalistas. As câmaras de televisão apontam os focos como o tinham feito durante aqueles quatro meses de julgamento. Filmaram tudo. Esventraram pormenores e devassaram expressões, tão íntimas e particulares, de cada um dos réus, sentados no banco corrido. A praça pública já os absolveu ou condenou não se sabe quantas vezes. Todos os dias os jornais contam os detalhes dos factos e dos depoimentos. Falta agora ouvir o Tribunal. A figura dos juízes é nítida e obsidiante. – Senhor Doutor Juiz, eu não matei a minha mulher. Juro por Deus que é verdade! Senhores Doutores Juízes, eu nunca disparei aquela arma ! As lágrimas caíram-lhe em catadupas pelas faces, com a barba branca de cinco dias a contrastar com o cabelo longo e acastanhado. As mãos, uma na outra, escorriam suor. – Uma vez mais lhe digo que só deve tomar a palavra quando eu lha der – disse com voz neutra o presidente do colectivo, continuando: – Já lhe foram dadas todas as oportunidades para que o senhor dissesse de sua justiça. Agora é hora do Tribunal decidir. Passo a ler a sentença deste Colectivo. Levantem-se os réus. O presidente iniciou a longa leitura sobre os factos e os considerandos de quase oito mil páginas do volumoso processo. O calor da sala, o respirar das gentes e a voz monótona do juiz diluíam-se, turvavam-lhe a vista e deixavam-no como que anestesiado. A realidade passava-lhe ao lado. Talvez o tocasse, mas só de raspão. Não mais. Tudo era demasiado cruel para ser real. 9
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“– Réu José Feliz, também conhecido por Félix Fernão Joanes... os factos acima descritos e apurados em audiência de julgamento integram os seguintes crimes de: a) Homicídio voluntário qualificado, previsto e punido pelo art. 132, n.º 1 do Código Penal, com referência à alínea h, do n.º 2 da mesma disposição legal; b) Tráfico de droga, previsto e punido pelo art.º 21, n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro; c) Contrabando, previsto e punido pelo art.º 9 do Decreto-lei n.º 187/83, de 13 de Maio. Da factologia dada como provada, ressalta como evidência que este arguido agiu com culpa grave, devendo ter-se em mente a prevenção da prática de futuros crimes pelo agente-arguido nestes autos. Por outro lado, o grau de ilicitude dos factos praticados pelo citado arguido, o modo de execução destes e a gravidade das consequências apontam para a aplicação de penas severas. Nestes termos, tendo em atenção as disposições legais citadas, bem como as disposições que regulam a escolha e a medida da pena, condeno o arguido: Pelo crime de Homicídio voluntário qualificado, na pena de dezassete anos de prisão maior. Pelo crime de Tráfico de Droga, na pena de seis anos de prisão. Pelo crime de Contrabando, na pena de um ano de prisão e 100 dias de multa a 200$00 por dia; Atento aos factos praticados e à personalidade deste arguido, tendo em conta o disposto no art..º 78.º, 40.º e 46.º do já citado Código Penal, condeno o arguido na pena única de dezoito anos e meio de prisão e em 100 dias de multa a 200$00 por dia, no total de multa de vinte mil escudos, ou, em alternativa dessa pena de multa, em 75 dias de prisão. Custas pelo arguido, fixando no mínimo a taxa de justiça. Notifique-se e remetam-se boletins ao C.I.C.C. Passe mandatos de condução à cadeia.” 10
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Deixou de ouvir. A voz do juiz fora na corrente da ribeira depois da chuvadas de Abril; não, não deixavam ouvir nada: ...“condenado, na pena única de dezoito anos e meio de prisão”... Ouviu bem? Parece que sim. Dezoito anos e meio!? Cinquenta e dois com dezoito são mais de setenta! Preso até ser um velho! Preso até à morte. O piscar das máquinas dos fotógrafos e os focos das televisões cegam-no. Não pode ser. Sente que o empurram. Julga que lhe pediram para estender os braços. Que é isto? Pulseiras? Não, são algemas. O escuro da carrinha e os bancos duros de madeira misturam-se com o rugido agaitado das sirenes. Tanto tempo de pé, que lhe doem as costas. – Hoje é o meu primeiro dia de velho! Parou a carrinha celular. Os portões rangem e fecham-se com estrondo. Não, isso não pode ser com ele. É um pesadelo e quando despertar já tudo passou. – Despe-te. As cuecas também. Baixa-te três vezes em cima do espelho. Veste esta roupa e põe todas as tuas coisas pessoais dentro deste envelope. Isso: o relógio, a carteira, o anel e o fio. Mete-os neste envelope. Então, só tens este dinheiro? Faz como lhe mandam. Veste as calças e a blusa de igual pano. As calças não têm cinto. A blusa tem um número no peito e os tamancos são de madeira. – Põe aqui os dedos em cima dessa tinta e, agora, aqui, nestes papéis. Os dedos viscosos de tinta negra são estendidos em cima da folha. Uma e outra vez. Os da mão direita e depois os da mão esquerda. Dedo a dedo. Aos pares. A mão toda. Encostam-no a uma parede. Tem um foco em cima da cara. O barulho dos disparos da máquina. – De frente. Agora, de lado. Do outro lado. Muito bem, acabou-se. Alguém o conduz por um corredor; comprido e frio. Subiram as escadas. Caminharam em cima de grelhas. Mais escadas. Novas grelhas. Um abrir de porta. Um fechar de porta. De novo a caminhar. – Tu é que és o tal Zé Feliz, não é? – Sou... era. – Tenho um recado de um amigo para te dar. Disse para não te preocupares. Já não há nada nesta conta. O recado fora dado em voz baixa. Na mão tinha um papel. Estava lá escrito um número. 11
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Fechou-se a porta. A chave deu várias voltas. Estava só. Sentou-se em cima do colchão e das mantas. Olhou para o papel. Não há dúvida. Era o número da sua conta na Suíça. A sua reserva. A garantia de sobrevivência de Joana. Tudo. Tinham-lhe ficado com tudo. Até com a liberdade. Quereriam também a sua própria vida? Uma dor, aguda e forte, percorreu-lhe, como um raio, o pescoço, o braço esquerdo e apunhalou-lhe o peito. O suor e o sangue tomaram-lhe a cara. Deixou de ver e deu um grito. – Meu Deus! Vou morrer... O corpo inerte caiu na cimento da cela. De imediato se abriu a porta. O carcereiro fez soar a campainha de socorro. Gritos e corridas soavam ecoando nas galerias da penitenciária. – O Feliz teve um enfarte. Chamem o médico. Tragam a maca... O guarda prisional debruçou-se e levantou a cabeça inerte de José Feliz. Num copo de lata, junto do lavatório, deitou meio frasco de um liquido que tirou do bolso. Juntou-lhe água. – Toma, bebe. Isto vai-te fazer muito bem... O enfermeiro da prisão chegou. José Feliz, o condenado, estava morto. O médico confirmou o óbito. A carrinha celular que o trouxera levou-o para a morgue. Ficou no gavetão 26 do Instituto de Medicina Legal. – O seu número de sorte!
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1 O factor do apeadeiro deu a partida ao comboio: – Partilha!... Partilha! A velha máquina a carvão estremeceu; apitou forte e, aos tropeços, iniciou a marcha, entre o crescente chiar das rodas e o cada vez mais rápido resfolegar. Ganhava alento e força para a escalada da serra. O vapor, as faúlhas e o vibrar dos vidros soltos da triste e velha carruagem de 3.ª classe sacudiam os sonolentos passageiros. Entrou um rapaz. Não teria mais de onze anos, magro e minguado de estatura. Quase menino! Trazia nas mãos a bolsa de chita, feita de retalhos, e um cesto, bem grande. Procurou colocar nas prateleiras a bolsa. Estavam já atulhadas de cestos, cestos e cabazes. Teve dificuldade na tarefa. Eram demasiado altas para a sua estatura. Não queria incomodar os que estavam sentados, mas parecia que não havia mais remédio! Esticou-se bem. As ceroulas, novinhas em folha, deram de si. Mala sorte! Ainda faltava arrumar o cesto carregado do farnel! Não havia espaço e não queria incomodar. Procurou um lugar para se sentar entre os instalados. Os bancos lustrosos e carcomidos pelo uso estavam colocados um em frente do outro na reduzida cabina. Pôs o cesto debaixo das pernas e puxou ainda mais a gorra preta para os olhos.
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A cavaqueira interrompida voltara a reanimar-se. Era gente que se dirigia ao mercado da vila, atafulhados de cabazes, cestos e bolsas de todos os tamanhos. – Atão rapaz, tamem vás à vila? Julgou não ser com ele; a pergunta vinha da mulher tisnada e pequena, sentada mesmo à sua frente. Pelo silêncio que se seguiu viu que, afinal, era. Em surdina respondeu: – Nã senhora... vou mas é a caminho de Lisboa. Vou servir! A necessidade do ter que falar e a aventura da viagem tinham-lhe corado as faces imberbes. – Atão estás de viagem p’ra Capital!... – repetiu a mulher duas vezes, a falar consigo mesma. – Grande aventura é a tua, moço! Eu, no próximo Natal, vou a cumprir já os quarenta anos e nunca tcheguei a lá pôr os pés! Ainda tive essa ideia quando fui às sortes! Os almas do diabo não quiseram lá de mim p’ra nada... Olhe, prova aqui um golito desta aguardente. Foi feita por mim! É rija! Com um figuito seco, a esta hora, sempre serve de mata-bicho, homem! Falava o homem, envelhecido, sentado ao lado da mulherzinha. Tirara o usado chapéu. Tinha a careca muito branca, cruzada por uma dúzia de cabelos, colados e dispersos pelo suor. A pelada fazia marcado contraste: era branca. A outra metade da testa, estava tisnada pelo sol. – Assim Nosso Senhor seja servido! – rematou o moço, depois de dar duas goladas na garrafa estendida e mastigava um figo seco. O tal tira-gosto. O comboio, quase parado, ia subindo os outeiros. Bufava, urrava e tossia, mas pouco andava. Uma fumarada negra carregada de fuligem invadia a carruagem. O outro homem, sentado junto da janela, limpou com o enorme lenço tabaqueiro a faúlha que lhe entrara para os olhos. Tinha seguido o diálogo. Aquela importante aventura do rapaz vencera-lhe a timidez: – Sabe, moço... eu tenho dous filhos a trabalhar lá na capital... e mai um, ainda na tropa! Se vossemecê desejar, aqui a minha Aninhas, a minha patroa, inté lhi pode indecar as ditas moradas... só Deus sabe se algum dia ainda vomecê nã vai mesmo precisar! Sempre se ouviu dezer que um 14
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amigo, inté nos infernos! O orgulho ou uma faúlha obrigara a nova passagem do enorme tabaqueiro pelos olhos. – Bem haja também vossemecê. Penso nã os vir a incomodar, mas, por se caso... A mulher voltou a falar: – Sabes, cachopo... sim, pois tu ainda és um chavalito, um crio! Bamos à vila. Bamos ao mercado. Vou lá mais... só para ver e p’ra vender três dúzias de ovos, que carrego ali na cesta. Se o mercado estiver de feição, o meu home compra uma junta de novilhas, para a engorda durante a invernia. Sabes, rapaz... nós temos erva e muito feno nas courelas do ribeiro! – Ó ti Perpétua, deixe lá a minha patroa dar a direcção ao moço! Diacho leve mulher tão faladora ela é! – disse o homem calado. Acto continuo estendeu-lhe as ditas direcções. Estavam escritas pela mulher num bocado de papel de cartucho. O marido da interpelada continuou, como se nada se houvesse passado: – À noite lá temos de voltar a casa caminhando. Agora é bom tempo para tal. Nestes mercados do fim do verão há muito gado a vender. Os preços são convidativos. Eu tamém vou à vila a ver a filha. Tem estado enferma no hospital. Estávamos a ver que se finava! – É grave a enfermedade, compadre Ambrósio? Era o outro camponês que, de vara na mão, casaco de serrobeco ao ombro e o colete desabotoado, com a camisa branca encharcada de suor, falava pela primeira vez: – Nã senhor compadre! Teve umas complicações do diacho quando na semana passada pariu um moço lá em casa. Mas já está tudo bem! Com a graça de Deus, ainda hoje conto vir mais ela de volta. – Menos mal, compadre. Quere-se dizer que volta atão no comboio da noite? – Desta vez lá terá de ser! A cachopa ainda está um tanto fraca para caminhar! – Não sei como vamos a seguir p’ra diante, com esta crise da guerra e esta seca terrível. Só Deus nos pode salvar! Não há meio de acabar o malva15
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do do racionamento! A mulher suspirou. Uma vez mais apertava o lenço negro, amarrado à cabeça. De lá saíam umas madeixas de cabelo já brancas. – Por aqui, têm sido anos do piorio! Atalhou o companheiro, falando de novo para o rapaz: – Atão quer-se intão dizer que cá o amigo vai fazer-se à vida p’rà capital? Aquilo lá sempre é melhor. Pelo menos nã há falta de trabalho, p’ra quem queira! – Nã sei se assim será. N’outro dia, um dos meus rapazes botou-nos uma carta. Contava que por lá tamém abunda muita fome. Nós por aqui ainda vamos tendo as batatinhas, o caldo e as couvitas p’ro passadio! De fome não morremos! Mas afinal, como é que é bem a sua graça? Perguntou, dirigindo-se ao rapaz, o outro companheiro de viagem. Tinha um fato preto muito usado e já carregado de nódoas. O rapaz seguia as conversas sem dizer palavra. Parecia ser só espectador. Pelo silêncio feito, deu-se conta de que toda aquela gente aguardava a sua resposta: – José. José Feliz! – Lindo nome! Nã há dúvida! Lindo nome! O povo de onde viera ficara já a três fartas horas. Tinha caminhado mais duas a pé, entre a aldeia e o cruzamento, onde se apanhava a camioneta da carreira. Depois fora mais uma hora larga na carreira a cair aos bocados. Tanta tragédia para fazer os vinte quilómetros de poeira e terra até à distante estação do caminho de ferro! Por duas vezes o Saraiva motorista tivera de lhe deitar água. Vinha a ferver! As conversas continuaram. O moço puxou a boina para os olhos e, de soslaio, foi mirando cada um dos seus companheiros de viagem. Era gente como os da sua aldeia! Eram assim mesmo! Eram como ele. Todos camponeses! Usavam os mesmos trajes de gorgorão ou serrobeco. Os chapéus estavam velhos e cambados por chuvas e estios. Tinham as mesmas caras tisnadas e precocemente envelhecidas do trabalhar todos os dias de sol a sol. As mulheres eram semelhantes. Envelhecidas antes do tempo. Vestiam-se de preto, o luto permanente das aldeias. Nos disformes pés, cheios de calos, usavam chinelas da mesma cor. 16
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Estavam gastas e remendadas, como o xaile que lhes cobria os ombros, desbotado pelo uso. As preocupações de agora eram as compras no mercado da vila. Numa das tabernas mais em conta da vila, iriam comer as sardinhas fritas ou assadas, acompanhadas do seu pão de centeio que traziam no farnel; vinha já para o efeito nas bolsas. Tudo muito bem regado com umas valentes litradas de vinho. O comboio estacou num brusco safanão. Era a estação da vila. Grandes mãozadas de despedida. Muita saudinha e que Nossa Senhora de Fátima o protegesse, mais todos os Santos do Céu e o senhor S. Cristóvão, o gigante protector dos viajantes que caminham pelos traiçoeiros caminhos do mundo e navegam nas profundas águas do mar. Carregando bolsas, sacos e bornais ficariam a acenar até que o comboio desaparecesse na curva. Estava só. Arrumou o cabaz e pela primeira vez naquela meia hora esticou as pernas entorpecidas. Olhou o verde dos pinheiros. Aproximou-se da janela para ver melhor. O que se passaria agora lá no povo? Não se podia deixar agarrar pelas saudades. O melhor era comer a bucha. A jornada tinha cara de vir a ser longa. Abriu a cesta onde a mãe lhe metera a merenda. Da bolsa, feita de remendos, tirou um naco de pão centeio e a talhada de toucinho. Do bolso das calças sacou a sua orgulhosa navalha de ponta e mola, comprada em Espanha. Fora a sua grande fortuna ganha numa das últimas viagens de oitos léguas de caminho a andar a pé e sempre de noite. Ganhara o jornal de carregador aos Saldanhas, contrabandistas de nomeada nas raias de Espanha. Levavam toucinho, açúcar e café para os espanhóis. Traziam, para vender aos portugueses, panas espanholas, boinas, alpercatas e navalhas; as de ponta e mola, de Albacete, eram as mais desejadas. Mas pouco ou nada desse dinheiro ficara para si. Os poucos mil réis tinham ido parar, direitinhos, à magra bolsa da sua mãe, viúva. Poupava para que ele pudesse pagar a viagem para ir servir em Lisboa. Lá na terra todos os companheiros de escola e das paródias lhe tinham gabado a sorte daquela aventura. Diziam-lhe, invejosos: – És mesmo o Zé Feliz! Um Zé Feliz! Valera-lhe a irmã mais velha. Tinha casado no verão passado com um pri17
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mo. Ele era um polícia muito importante em Lisboa. Toda a aldeia sabia que ele andava sempre à paisana; fazia serviço de fiscal, atrás das vendedoras ambulantes e das varinas! Ambos, e a duras penas, lá chegaram a convencer a velha a deixá-lo ir para aprendiz de marçano. Depois de muita zaragata, lá foi acordado que iria; mas tinha de ser só depois das vindimas, sentenciou a mãe. Sempre se ganhavam mais uns tostões para a casa. Agora ali estava ele, entregue à sua sorte, naquele comboio a fazer barulho, muito fumo e a caminhar, pouco ou nada, para uma terra de que só ouvira falar. O pai morrera com as maleitas, num dia de Inverno em que chovia a potes. Era ainda um crio e nem à escola tinha ido. Ficaram-lhe na memória os gritos lancinantes da mãe e das irmãs em cima das tábuas do caixão de pinho, feito às pressas pelo senhor Andrade. Depois, os prantos e os gritos foram ainda mais pungentes na hora do enterro. Foram chorados todos, em silêncio, durante os diários acompanhamentos, rezados pelo eterno descanso da sua alma, durante toda a semana, desde a igreja até à porta da casa. A partir desse triste dia, começara a vida sem sono nem descanso. Desde sempre se lembrava de ter dormido no palheiro do casebre. No curral. Ao lado da burra e da vaca. Entre as faixas de feno e palha do gado. Dormia na tarimba que já fora do seu pai e do irmão mais velho. Do outro lado estava a tulha do centeio, vazia durante a maior parte do ano. A seu lado roncava o porco, a engordar e a grunhir, à espera da matança no Natal. O primeiro andar, o sobrado, tinha de serventia o balcão feito de escadas toscas com pedras de xisto mal alinhadas. Num sobrado, sem forro, o travejamento do telhado, negro de tantos fumos, deixava entrar o frio e sair o fumo da lareira pelos muitos buracos das telhas de barro tosco já partidas. Quando o lume estava aceso a casa fumegava! Não tinha tabiques ou divisórias. Ali ficava a lareira e a panela de barro desbeiçada. Nas trempes, as panelas de ferro onde faziam a comida. Arrimada, a cantareira, com os púcaros esboroados, os copos de lata e os cântaros de barro com água de beber. A candeia de lata, enganchada na parede, alumiava as noites longas. Na arca, onde se guardava a fortuna, ou seja, as roupas limpas e o pão centeio do mês, era assento para quem vinha, na 18
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falta dos bancos. No canto, a dar para a única janela, ficavam as enxergas de palha arrepiada, suspensas em bancos com quatro pés, altos, por mor dos ratos, onde dormiam a mãe e duas irmãs enquanto foram solteiras. Aos pés das camas, ficavam os garbatos para o lume, as ferramentas velhas, as rodilhas entre a sostrice1 e o muito lixo que nem valia a pena limpar. No Inverno, o palheiro era menos mau. O catre e a manta tiravam o frio e só tinha de descalçar as botas aos domingos, para dormir regaladamente mais um bocado. O bafo dos animais aquecia o palheiro e nunca havia frio. No verão era insuportável. O calor, dentro do estábulo, não se podia aguentar. A maioria das noites, dormia ao relento na faixa de palha estendida cá fora. Naquelas noites em que não fazia luar e até que o sono chegasse, contava e recontava as estrelas do céu e até sonhava com os mundos que deviam existir para lá daquelas imensidades. Talvez o Céu de que falava o abade. Tinha de trabalhar todos os dias e desde que nascia o sol. Desde muito pequeno tivera que trabalhar para outrem e ir ao jornal, quando havia trabalho sobrado. Ganhava tanto como as mulheres, dez escudos. Nos intervalos da vida ainda tinha de ir à escola. A escola fora tempo muito bom. Pena ter sido tão curto! O professor Carchola – a alcunha do velho professor Fonseca – gostava dele e era muito seu amigo. Foi a muito custo que se deixara convencer pela viúva. A mãe teimou em que ele já sabia muito e tinha de sair da escola para ir trabalhar. Assim, nem sequer terminou a 4ª. classe. Não foram as duas ou três dúzias de bordoadas com a vara de marmeleiro, ou umas dúzias de puxadas palmatoadas, mais ou menos justamente aplicadas, que iam fazer com que ele quisesse mal ao tal Carchola. Tinha dele até muitas saudades! Faltava bastantes vezes à escola. Aparecia sempre que fazer e a mãe é que mandava. Quando regressava, o professor puxava-lhe as orelhas, com força. Nos dias de Inverno, quando a geada lhe regelava os pés descalços, doíam com’ó raio os puxões de orelha do saudoso mestre! Tinha muita pena de só ter feito o 1.º Grau, a 3ª. classe! Mas o que se havia de fazer!? Esperto e desenrascado teve de aprender à sua custa. Uma vez por mês, o 1
Regionalismo: porcaria.
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vendedor ambulante de peixe vinha ao povo. Trazia atadas na albarda do burro, as três caixas de sardinhas carregadas de sal. Tinham mais de uma semana de jornada, por veredas, serras e aldeias. – Peixe fresquinho! Peixe fresquinho, ainda a saltar! –apregoava com voz grossa. Enquanto aviava as freguesas, o sardinheiro deixava caídas no chão as folhas de papel de jornal com que embrulhava os chicharros e as sardinhas. Assim que desandava, o Zé apanhava-as e lia tudo quanto lá vinha escrito. A maioria das vezes não compreendia, mas sabia ler, sem soletrar, todas as palavras. Nunca contou à mãe esta proeza. Ela havia de descobrir mais alguma maneira de lhe ocupar o tempo, que, em seu entender, tão mal aproveitava! Sabia também de cor todas as casas da tabuada. Para contas sempre fora um génio! Esta proeza tinha-lhe dado fama. Proporcionava-lhe o ensejo de arrear nas mãos dos outros garotos valentes reguadas. Aqueles que as queriam mais suaves tinham de lhe dar rebuçados, todos melados, é certo, mas com os retratos dos jogadores da bola. Também servia se fosse um naco do conduto do que traziam para a merenda. Tanto melhor se fosse presunto ou chouriço. Era sempre um arraial, quando o Carchola dizia, batendo as palmas: – Rapazes, vamos hoje à roda da tabuada! Fazia-se roda. Entravam todos os alunos, da primeira, segunda e terceira classes. E cá vai disto! Os que não tinham a resposta na ponta da língua já sabiam as regras da batalha: o primeiro que acertasse na pergunta iria dar a justa reguada a cada um dos ignorantes que já tinham ficado para trás do apontar do mestre. A mão ficava à escolha do supliciado. O mestre exclamava entusiasmado com o ritmo das perguntas, os estampidos da régua, mais ou menos bem manejada, e os ai, ai, ai das vítimas da aritmética e da fraca memória! – Régua p’ràs unhas desse ignorante, safado, que ainda não sabe a tabuada! – gritava o mestre. – Vós não estudais, mas apanhais que vos consolais! Para ele era chegada a sonhada hora: a terrível vingança! Havia gajos a quem ele arreava sem dó nem piedade. Eram aqueles que nos recreios lhe davam fortes cachações e carolos na mona. Aquela corja não tinha mais com que se 20
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divertir e como era dos mais pequenos, faziam dele o bombo da festa. Quando os encontrava ali, de mão estendida – eram uns burros chapados! – a raiva que lhe subia de dentro até o fazia ver vermelho! Pegava então bem na régua – tinha um dedo de grossura – olhava-os bem nos olhos... punha-se nos bicos dos pés... naquela boa distância... e zás! – Lá vai roupa, seu cabrão! Isto era só para aprenderes! Já não tenho pai para me defender, mas de mim ninguém se fica a rir, seu filho da puta! – dizia para os seus botões, fazendo cara de sonso. Molhado na recordação da infância soube-lhe melhor o naco de toucinho levado à boca pela navalha. Cortava como uma lâmina! Limpou-a muito bem nas calças e guardou-a no apertado bolso do colete. Guardou o naco do centeio e do toucinho na taleiguinha que a mãe lhe fizera. A jornada estava com aspecto de ainda vir a ser longa. À memória vieram-lhe os conselhos dados e repetidos várias vezes pela velha: – Tens de ser sempre muito poupado, meu filho! Olha que quem não poupa nada tem! Pôs-se de pé, tinha de desentorpecer as pernas. As calças já lhe estavam mais curtas e apertadas. Tinham sido feitas pelo Coxo, o alfaiate lá do povo, para o casamento da irmã. Crescera pouco. Menos era nada! Mirou com satisfação as biqueiras luzidias das novas botas cardadas. Tinham sido feitas pelo Chico Miguel. Deu uns passos pelo encardido soalho da carruagem e assomou-se à janela para ver os pinheiros. Corriam seguidos e velozes. Passavam na brasa pelas janelas sem vidros. Quando quis ver a máquina, uma faúlha entrou-lhe para a vista. – Comboio dum filha da puta, que me cegaste! Tantas emoções! As estações e apeadeiros sucediam-se. Não entrava vivalma. Encostou-se às tábuas do assento. Já tolhido pelo sono, da larga madrugada, puxou a gorra para a frente. Dormiu a sesta, como um nababo! Quando acordou, estava sentado à sua frente um casal. – Isso é que foi dormir! – Foi um regalo ver dormir um moço tão novo, como é vossemecê! – acrescentou a mulher. 21
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– Parece que me deixei dormir antes de Castelo Branco. –ripostou o rapaz. Era um casal já de certa idade. Demandavam a capital. Iam visitar os filhos e os netos, disseram. Há muito eles tinham ido para Lisboa. Também em busca do futuro. Olhou além pela janela. O comboio ronceiro bordeava as vertentes, abruptas e alcantiladas, sobranceiras ao rio Tejo. Levantou-se e procurou um lugar mais próximo da janela. As Portas de Ródão ali estavam em toda a sua imponência. A rudeza da paisagem roqueira, com milénios de resistência aos ventos, às chuvas e às águas, adquirira aquele soturno aspecto, como de velhos guerreiros, vencedores de mil batalhas. As oliveiras empoleiram-se e trepam, agarradas por raízes centenárias à pouca terra que a erosão deixou nas rochas. Estão amarradas à vertente. Parece que será neste próximo Inverno que irão cair nas águas serenas do repousado Tejo. Morrendo e nascendo em cada Primavera, ali continuarão, por incontáveis milénios, a resistir e a dar frutos, luz e alimento ao Homem, indiferentes às geografias, aos que vivem e morrem, às modas, às importâncias, aos tempos, às injustiças, às alegrias e às desgraças. São árvores! O comboio, sem vertigens, continuava a sua lenta marcha. No rio, um homem puxa à sirga um batel ribeirinho. Como na sua aldeia distante, os bois puxam os carros, os arados e as sementes. Há que aproveitar e vencer a corrente, dominando-a. – Vossemecê não quer provar destes ovos fritos com chouriça? Foram feitos já hoje pela minha patroa! – Bem Haja! Antes de passar pelas brasas, tinha comido uma bucha aqui do meu farnel. – Respondeu o rapaz. – Vamos, não se faça de finório! Corte aqui um bocado e vai ver como é bom este conduto. Vossemecê sabe que nestas andanças pelo mundo de Deus, temos que ser uns para os outros. Vá lá, corte uma fatia de pão! Deve estar com fome. Tenho ainda lá em casa um filho da sua idade. Vá lá, sem cerimónia... A mulher falava, enquanto estendia no banco a toalha de linho alvo e grosseiro. Colocou-lhe em cima um bocado de duro queijo de cabra, um naco de presunto, curtido no sal, a malga das azeitonas e a garrafa de vinho. A garrafa foi 22
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correndo de boca em boca – o tal “clarim”, imortalizado nos poemas do grande poeta russo, Maiakovskyi . São simples, abundantes e generosos os banquetes dos pobres! O Tejo sempre presente, mais o pouca-terra, pouca-terra, do arfante comboio, e os rugidos estridentes do constante apitar, devido à boa disposição do maquinista, marcavam o ritmo da viagem. As gentes entravam. Ao saírem, eram já todos amigos. Os farnéis dividem-se e compartiam-se. As botelhas, as cabaças ou as garrafas andam de boca em boca, em constante rodopio. – Prove aqui do meu; fiz o ano passado umas quatro pipas! Ficaram uma maravilha! – Isto é que é uma pomada! Soltava-se um ah! e limpavam-se os beiços com as costas da mão. Naqueles momentos eram de todos e a todos pertenciam as novidades, as tristezas, as amarguras e as alegrias. Os votos sinceros de boa viagem, muita saudinha e muita sorte na vida, desejados pelos que aqui já ficavam, além de espontâneos e fartos, eram para quem os apanhasse. O comboio ronceiro parecia cada vez mais cansado. Parava, apitava, tossia, golfava negro ou branco, fazia soar campainhas e passavam cidades e casas e campos e rios e vinhas, a perder de vista, mais enormes terrenos de pastagem, onde até disseram haver touros muito bravos para serem corridos nas touradas. Pouca terra, pouca terra, pouca terra... O céu sempre azul e o Tejo sempre ali ao lado. A lezíria, verde e plana, irrompe matizada de diferentes tons. São os imensos milheirais e campos de batata, já esventrados, a aguardar novas colheitas. Os silenciosos e cinzentos olivais passam a galope. Estão aprumados e rectos em qualquer direcção que se olhe. As vinhas adormecidas ao sol do fim de tarde, já com as uvas a fermentarem novos vinhos no lagar das herdades, desfilavam ante os seus olhos maravilhados e surpresos. Tudo tão intenso e real. Tudo tão vertiginoso e novo ao mesmo tempo! Os barcos no Tejo são outra maravilha de espanto. Os “gaiatos”, os batéis e as canoas, cada qual para seu lado, estão em constante brincadeira. Os ronceiros e lentos batelões, carregados de gente, gado e até automóveis, unem as margens. 23
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São as fragatas, rio abaixo, rio acima, num constante vai e vem, para cá e para lá, de cada margem. Vila Franca de Xira. Ai, tantas coisas lindas! Muito gostaria ele de as poder contar aos atrasados e aos pacóvios lá da sua terra. Eles até nunca viram o mar! Nunca irão acreditar! O casario não pára de aumentar. As casas são cada vez mais altas, com muitos andares. Aparecem e desaparecem na janela. Voltam a aparecer, muitas, mais, com outras cores, formas e tamanhos. O comboio agora faz corridas com os camiões e os automóveis. Ganha sempre! Os outros ficaram para trás. Isto depois de um dia inteiro de tanta canseira e tanto caminhar. – Ah, comboio valente! As tímidas luzes da carruagem acenderam-se. De noite fez-se de repente, no túnel, quando ainda era só o entardecer. – Chegámos! – Olha o Rossio! Um mar de gente. Tantas caras e tão diferentes. A gente pensa que lhe vai dar uma coisa. Julga que vai enlouquecer. Anda tudo a correr. Empurram-se uns nos outros. Há uns miúdos fardados, com muitos botões amarelos na jaleca e um tacho na cabeça. Gritam por qualquer coisa, como hotéis ou pensões, ou o raio que os parta, e outros. A correr, outros garotos vendem os jornais. Finalmente a irmã e o tal cunhado. Acenam no meio de tanto povo. Ele nem consegue dar uns passos. Já ia pisando pessoas que até nem conhece. Por menos se armavam grandes cenas de porrada nos arraiais das festas da Senhora da Póvoa. O cunhado parece um senhor! Tem gravata e tudo! Os abraços. Os beijos lambuzados. As perguntas. Se não trazia muito farnel com as coisas lá da terra? Toda a gente a gritar. Todos a falarem ao mesmo tempo. O cargueiro parou à entrada da barra do Sado. Comunicou à Capitania do porto de Setúbal que ficava ao largo. Só entraria na segunda-feira. O porto estava repleto de navios de carga. A pouca pressa do cargueiro grego não mereceu especial atenção. Declarara vir carregar latas de conserva de peixe e que as fábricas, à 24
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última hora, tinham informado estarem atrasadas nas entregas das mercadorias no cais. Durante a noite de sábado, após uns sinais de luz vindos de terra, por duas vezes foi arreado um pequeno escaler. O mar profundo chegava até às arribas alcantiladas da costa sem perigo para encalhar. O comandante e dois marinheiros, em menos de dez minutos, alcançaram a pequena nesga de areia e burgalhão. O luar está magnífico! O recorte da costa íngreme é bem nítido no fundo silente do mar espelhado. Na madrugada de domingo, o contrabando foi sendo descarregado nas falésias de Alpertuche, em sucessivas idas e vindas das três baleeiras. Em menos de duas horas foram postas em terra 500 caixas de whisky, dez cartões de cigarros americanos, três caixotes com as recentes meias de vidro, a última moda feminina na América, cinco fardos de sedas diferentes, vindas de Hong-Kong, mais uns vidros que se não partiam, os pirex. A operação de desembarque e a imediata recolha das mercadorias para um grande e rústico armazém, escondido entre a vegetação densa da serra da Arrábida, fora executada sem ruídos e com a precisão de uma operação militar. O grego, Dimitrius Spanos, só por gestos e com umas reduzidas palavras em português, misturadas com outras em italiano e espanhol, quando não em inglês, comandava aquela dezena e meia de homens. Eram pescadores do Portinho. Em tempos difíceis de penúria, aquelas dezenas de escudos não se podiam deitar fora, como dizia a cantiga. Além do mais, ainda havia possibilidades de fazer “desaparecer” umas caixitas de whisky, para mais tarde se virem a recuperar. Vendiam-se a um dólar por garrafa, ou seja, a 25$00 aos senhores das casas de praia. Com a abertura da estrada, começavam a ser construídas as primeiras vivendas de verão nas encostas da serra do Portinho da Arrábida. Quando terminaram a primeira fase daquela tarefa, o grego juntou os homens e, naquele seu jeito, abriu um garrafão de vinho, logo passado de boca em boca, enquanto recomendava: – Manhã, nós, ter carregar camioneta. Todos vir fim de tarde! – Sim senhor. Amanhã voltamos todos para ajudar a carregar a camioneta. 25
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Está aqui ao fim da tarde. Não é assim, senhor Spanos? Foi traduzindo para os companheiros, o César, que funcionava como capataz do grego. Era ele que ajustava e contratava os pescadores para aqueles biscates tão lucrativos e, no final, lhes pagava. O grego era um personagem! Teria pouco mais de trinta anos e estatura maior que mediana. Era roliço e forte, com rosto largo, farfalhudo bigode, meio ruivo, – à kaiser – e as sobrancelhas de igual tonalidade, espessas e fartas, a cobrirem os olhos azuis, semicerrados. Nunca se conseguiu esclarecer se aquela estranha maneira de olhar era devida à habituação ao céu de intensa luminosidade da sua terra, ou se era este, o da Bacia do Sado, límpido e transparente, que o incomodava. Porém, o mais certo seria ser da permanente ressaca das diárias bebedeiras. O aspecto era agradável. Ninguém sabia como o homem aparecera, nem donde tinha vindo. Começaram por dizer que era, de certeza, espião dos alemães. Fora, porém, visto várias vezes nas tabernas do porto de Setúbal, a apanhar grandes pielas com o cônsul de Inglaterra. Era, sem dúvida nenhuma, grande espião, mas dos Aliados. Tudo ficara esclarecido. As curiosidades estavam já saciadas. Soube-se terem estado a passar uma semana inteira com o grego uns espanhóis que se encarregavam, à vista de Deus e todo o mundo, de mandar para Espanha muitas carne e outras mercadorias vindas da Argentina. Chegavam em cargueiros ao porto de Setúbal. Traziam trigo e milho a granel. Depois de ensacados em Setúbal, eram os cereais mandados para Espanha em comboios de mercadorias a caírem de podres. – O sacana do grego é, afinal, um fascista, um homem do Franco! – Repetiam os pescadores, para quem ele, quase todas as noites, pagava grandes rodadas de vinho e aguardente, nas sujas e toscas tascas do Portinho ou nas idênticas do porto de Setúbal. – Por isso os guardas fiscais fazem pouco caso dele! – Cala a boca, urso! Se não fosse o tal grego, já estavas morto de fome! Com esta merda do racionamento e ao tempo que não vais ao mar, já nem existias tu mais a filharada, – arrematava um dos mais chegados ao forasteiro. O grego, indiferente a estes comentários, por ali andava. Raramente ia a 26
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Lisboa e poucas vezes a Setúbal. Continuava a viver numa casa ou qualquer coisa parecida como tal, construída junto ao mar, no sopé das ravinas de Alpertuche. Muitas vezes aparecia cheio de mercúrio e tintura de iodo. Eram frequentes as quedas por aquelas ribanceiras abaixo, quando, pelas noites escuras, regressava a penates. Vinha bem carregado e já adornado pela genebra, cachaça, rum e as mil aguardentes secadas em trôpega peregrinação por todas as tabernas, enquanto ia fumando como uma chaminé. Nas longas tardes passadas a cavaquear nas tascas com os pescadores e enquanto ainda não estava muito carregado, contava coisas e acontecidos de deixarem um homem de boca aberta. Os pescadores tomavam assento para ouvirem aquelas narrativas, contadas num português macarrónico. Mesmo quando não entendiam, adivinhavam. Falava nas ilhas dos mares do sul, onde todo o ano é verão, as mulheres são novas, doces e acobreadas. O tempo passa, à sombra das palmeiras plantadas pelo mar adentro, com mornas águas transparentes, enquanto se bebe uma pipa de rum e se sonha sem fechar os olhos. Nos dias de chuva do Inverno, com os barcos varados na praia, açoitados pelo vento, e quando já estava bem a meio pau, falava ou soltava palavras. Era uma narrativa perturbante, estranha, turbulenta, em revolta salada de palavras, infernal, narradas em português, espanhol e italiano, ou, então, naquela língua soesa da sua Pátria. Eram relatos de mil naufrágios e gritos, em noites de breu e temporal, com metralha e morte, se calhar, até dos campos de batalha nas montanhas da sua terra. Então, os olhos fechavam-se-lhe ainda mais e ficavam com aquele estigma e brilho baço dos que assassinam e matam nas histórias do ódio. Mas as que tinham mais sucesso e mais ouvintes, eram as de um amor em cada porto. Falava de Pireu, de Nápoles, do Cairo, de Marselha e de Barcelona, como os pescadores falavam de Sines, Sesimbra, Setúbal ou Lisboa. Os detalhes de tantos amores, de sofridas e abrasantes paixões, eram contados numa narrativa onde as palavras eram só o suficiente para rascunhar sentimentos e paixões. Então os pescadores ficavam sem fala! 27
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A imaginação de cada um descobria o contorno e o cheiro das mulheres e o muito mais que ficara escondido nas palavras desconchavadas, frases sem sentido ou nos gestos bem explicativos. Os silêncios eram aproveitados para o afogar das mágoas no vinho, a correr livre pelos gargalos das garrafas. – Eh grego duma figa! Eh home d’um raio! O tempo tudo esclarece. Spanos podia ser tudo aquilo que cada um quisesse. De momento, não era mais do que simples contrabandista, pago por aqueles seus compatriotas, donos do barco, fundeado na baía. – Senhor Spanos, senhor Spanos, venha-se deitar. Já é quase manhã! Era a Maria, uma rapariguita de não mais de quinze anos, a servir de criada e mais para todo o serviço, compenetrada dos seus deveres de dona de casa. Também ela fora recrutada no cais de Setúbal. Fora demorado o acordo com o pai. A coisa esteve negra. O tal queria pela filha, ainda a deitar corpo – vejam lá o disparate! – dois garrafões de vinho de Palmela e mais quinhentos mil réis! O grego acabara por a comprar só por um garrafão. Deu, de boa vontade e sem quaisquer pressões, ainda mais uma garrafa de aguardente de medronho. Como estava de boa catadura, também não regateou o dinheiro. – Eram quinhentos escudos, meio conto? Pois muito bem. Aqui está a massa! O ganancioso pescador tinha agora com que matar a fome aos filhos. A massa ainda dava para umas quantas pielas, das rijas, para ele e para a parenta! Em casa sobravam mais duas cachopas, com onze e dez anos, quase prontas para o negócio. Isto sem contar com os quatro rapazes. Mais dia, menos dia, todos tinham nascido pelas festas do São João. Engrossavam assim o número dos meninos silvestres, nascidos por aqui e por ali, ao acaso. Cresceriam nas ruas, entre a bola de trapos, o estender da mão à caridade e o negócio de um qualquer cabaz de peixe dado ou ganho na lota a ajudar os pescadores. Nesses dias maldizia a sua sina ou a pouca sorte. Amaldiçoava-se a si e à falta da manta, nos malditos primeiros frios do Outono, a obrigarem-no a encostar-se ainda mais à patroa. Depois era um fadário. Aí pelos Santos, a companheira, indiferente, entre dois ais e já sem lágrimas nos olhos crestados, repetia-lhe, todos os anos: 28
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– Berto, s´tou prenha! Meses mais tarde, pelo São João e os tais Santos, ditos populares, afogavam-se as mágoas com umas litradas e sardinhas assadas com salada de tomate e pimentos. Festejavam a vinda de mais um. Afinal um homem não fica mais rico, quando lhe nasce um filho? Chegavam depois as negras horas da fome. Os dias de chuva. O temporal. O vento assobia ao entrar pelas gretas do barraco. O mar furioso dá cabeçadas na muralha. A muralha racha, mas não cede. Os barcos e as traineiras são cascas de noz na espuma das ondas em fúria. Os homens, mesmo os sem fé, rezam à Senhora dos Aflitos. Dos fundos da barraca açoitada pelo vento, a chuva fustiga a lata de zinco. Misturados com os choros da mulher e das crianças, vêm os vagidos daquele que tinha chegado agora. Reclama da teta seca da mãe. – É a hora da verdade! Corre-lhe um arrepio pela espinha e desabafa: – Puta de vida esta! Está o mar um cão! Em terra, as gaivotas procuram de comer, também, entre o líquido escuro do cano de esgoto da cidade, a descoberto pela maré vazia.
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2 – José, acabaram de telefonar da Calçada do Vale de Santo António. A freguesa pede para que tu leves lá esta lista de compras de mercearia. Quando tiveres tudo aviado, põe os cartuchos e os embrulhos num caixote. Depois eu digo-te onde é a casa. – Sim, senhor Gregório, eu já vou. Agora mesmo. Pegou na lista das compras e das quantidades escritas em gatafunhos no papel pardo dos embrulhos e começou a procurar nas tulhas, nos sacos e nas prateleiras. Quilo e meio de sabão azul, cinco quilos de feijão frade, mais três de feijão encarnado, três quilos de açúcar, cinco quilos de massa de segunda, três quilos de bacalhau miúdo, arroz de segunda cinco quilos, duas garrafas de óleo de amendoim – porque o azeite além de caro não aparece no mercado – uma lata de quilo de cavala em conserva e mais quinze quilos de batatas. Procurou um caixote para colocar toda aquela tralha. Não viu nenhum onde pudesse caber tanto rancho. – Que andas tu à procura, rapaz? – De um caixote onde se possa meter tudo isto, senhor Gregório. É rancho para um quartel! – Vai buscar lá dentro um daqueles grandes. Daqueles onde vem o tabaco. Levas os dois sacos de batatas mais o resto no carrinho de mão. Olha que a se-
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nhora mora num quarto andar e está à espera do farnel para o almoço. Não te atrases. – Sim senhor Gregório. Vossemecê a falar e este seu criado a bulir num pronto! – Se a freguesa quiser pagar, aqui está a factura; senão, eu aponto depois no livro o que deve ser o mais certo! Até ao fim do mês, é só para assentar no rol. Menos mal, estes ainda vão pagando! Com cuidado e pesando bem, como lhe fora ensinado pelo patrão, isto é, antes de que o ponteiro chegasse ao número certo, carregou tudo na enorme caixa de tabaco. Pediu a Deus para que a casa não fosse muito longe. Seria um regalo se ficasse na parte da calçada, lá para os lados do rio. Sempre era rua abaixo! De pouco lhe valeram as rezas. A casa era bem no cimo da rua e já bem perto do Largo de Sapadores. Com muito esforço empurrou o carro calçada a cima. – Raios partam Lisboa! Só tem ruas a subir! Quando chegou ao número da porta indicado, parou. Tentou pôr o caixote às costas. Não conseguiu. Era muito grande e tinha demasiado peso. Arrastou-o para dentro da porta. As mercadorias tinham de ser carregadas de duas vezes. Mas como podia ele ir ao quarto andar duas vezes e, ao mesmo tempo, guardar o que ficava no carrinho? O Gregório estava-lhe sempre a dizer que a cidade estava cheia de ladrões. – Que porra de sorte a minha! Tenho de subir estas merdas; tenho de guardar estas tralhas e, ainda por cima, não posso deixar levar sumiço ao malvado do carrinho! Um guarda-fiscal passava nesse momento na rua, com a inseparável pasta na mão. Era esta a sua grande oportunidade. – Faz favor, ó senhor polícia. O senhor polícia tem de me ajudar. Tenho grande aflição! Eu sou o cunhado do Arlindo, aqui da esquadra! Estou metido numa grande enrascada, que só Nossa Senhora da Póvoa me pode valer. Vossemecê deve conhecer muito bem o meu cunhado Arlindo, ele é uma autoridade muito importante! É o fiscal que mete muito medo às varinas! Toda a gente o conhece! – Eu sei lá quem é esse tal teu cunhado! Eu não sou polícia, sou da Guarda 32
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Fiscal. Diz lá, rapaz, o que precisas. – respondeu o gordo soldado interrompendo o seu caminhar. – Estou muito enrascado. Tenho de ir ao quarto andar a aviar a minha freguesa. Esta tralha pesa como o diabo! Eu não posso deixar levar caminho aqui ao carrito. Se vossemecê, uma autoridade, como se vê, mo guardar, por uns instantes, enquanto eu lá vou arriba... – Vai lá e não fiques preocupado. Eu tomo conta disto. Não te demores, porque estou com pressa. – Bem Haja, senhor guarda. Deus Nosso Senhor há-de lhe pagar. Carregou o caixote às costas, com metade das compras. Subiu, degrau a degrau, a escadaria para o quarto andar. Voltou abaixo. Agradeceu ao guarda e carregou o resto. Transpirava por todos os poros. O soldado disse-lhe que podia deixar ali mesmo o carrito de mão; ninguém lho levava. – Se é vossemecê a dezer-lo! Subiu e desceu mais uma vez as malditas escadas. Quando já tinha tudo no patamar, bateu à porta. Apareceu uma mulher nova. Vinha de avental, xaile pelas costas, peúgas de lã e tamancas nos pés. Estavam já fresquinhos os dias. Mas que raio de coisa, tinha uns ferros entalados nos cabelos, coisa nunca vista! Talvez fosse por mor de alguma doença? – Bom dia madama! Tinha aprendido aquela palavra com o rapaz da leitaria. Achava-a uma palavra porreira! Era a primeira vez que a usava a sério. – Tu és o novo rapaz da mercearia do Gregório? – Sou sim, senhora. – Então como é que é o teu nome? – José Feliz, um criado de vossoria, a bem dizer! – Então, ainda vieste há pouco tempo da província? – Vim da Beira! Estou na venda do senhor Gregório, ainda não faz bem um mês! – respondeu; e sem conter a curiosidade replicou: – Como é que vomecê se deu conta? – Pelas calças! Estão muito curtas. Também porque és ainda um rapazinho 33
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e ainda mais pela tua maneira de falar axim. – respondeu a mulher, acrescentando: – Vai lá abaixo buscar o resto. Traz depressa as batatas. Estão-me já a fazer uma falta danada para o almoço. Tentou levar os dois sacos de uma só vez. O maldito quarto andar tinha um horror de escadas. Não foi capaz. Acabou por ir mais duas vezes. – Diz ao senhor Gregório que aponte! Eu passo por lá no fim do mês a pagar. – Ah! sim senhora. Mande sempre, dona madama. Deus Nosso Senhor a guarde, mais a si e a todos os seus! – Toma. Isto é para ti. De novo com o carrinho de mão. Além de muito cansado e a transpirar como um bezerro, estava radiante e eufórico. A senhora do quarto andar tinha lhe dado cinco tostões de gorjeta. Uma fortuna! Atirou a gorra ao ar e desatou a correr calçada a baixo. Ele e o carrinho. Uns garotos, mais ou menos da sua idade, subiam a rua na galhofa uns com os outros. Ao verem-no, um deles gritou, a troçar, a frase então na moda: – Oh parolo, tira a boina! A outra canalha achara graça ao dito e à cara do rapaz. Num de repente eram todos a gritar atrás dele: – Oh parolo, oh parolo, tira a boina!2 Mirou-os e mediu-os. Ai se fossem menos... ou se os agarrasse nas rodas do Carchola, derretia-lhes as mãos com reguadas. Os gajos não tinham cara de quem soubesse a tabuada. Mas era a vida! Fez por esquecer e não fazer caso. – Oh parolo, tira a boina! Apressou o passo e voltou à venda. Fazia já um mês que ali estava a servir. Ganhava cem escudos, com cama e mesa e roupa lavada. Dormia nos fundos do armazém, entre os fardos do bacalhau, os sacos dos feijões, do açúcar e do arroz. Afinal sempre melhorara de catre. Tinha colchão, duas mantas de papo e até o armário para pôr as suas coisas. Não tinha fecho, mas era melhor do que nada. O patrão era conhecido do cunhado. Tinha a loja de sociedade com um irmão que vivia no Brasil. Mas era só ele 2
Refrão de uma canção em voga.
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quem levava o negócio. Vestia a diário o guarda-pó cinzento cheio de nódoas e já lustroso, que herdara do patrão. O “casaca”, como cá se dizia, era, acolitado pela mulher, Umbelina, no tocar da loja. Esta, além dos afazeres da cozinha e do arranjo da casa, no primeiro andar, dava também uma ajuda ao balcão nas horas de mais movimento. Tinham uma filha, a Gisela, raparigota de catorze anos, a estudar na Escola Comercial, lá para os lados de Sapadores. A nova família recebera-o bem. A comida era simples e farta. Havia, quase todos os dias, peixe ou carne, que sobravam na loja, a acompanhar o feijão, as batatas e o arroz. Massa, comiam poucas vezes. Era cara! Haviam dificuldades para se arranjar. Ouvira dizer que havia falta de farinha de racionamento. De manhã, quando se levantava para abrir a loja, davam-lhe uma mistela, a que ele não havia maneira de se habituar. Chamavam-lhe café. Juntava-lhe um pouco de leite baptizado e um bocado de pão de segunda, duro como os diabos. Fazia então migas, umas sopas. Com a caneca de folha, com que eram enchidos os cartuchos aos fregueses, o patrão deitava na mistela uns torrões de açúcar amarelo. Pelo menos a coisa ficava doce! Mais rápido do que se pensara, estava por dentro do negócio. Sabia onde estavam os produtos, quanto custavam e até já sabia ler os custos nas letras secretas marcadas pelo Gregório. Fazia muito bem as contas e começava a conhecer pelo nome toda a freguesia lá do bairro. – José, tens de começar a ler os jornais e deixar de falar à moda lá da província. Sabes, as freguesas, nas tuas costas, riem-se de ti. – Mas senhor Gregório, é este o meu modo de falar, como é que eu vou mudar? – Ouve o rádio. Repete da maneira como eles falam. Olha, porque não pedes à minha filha que te deixe ler os livros por onde ela estuda? – Parece-me que seja um bom caminho, aquele que vossemecê me está a alumiar. – Toma muita atenção aos fiscais da Intendência. Se eles aparecerem por aqui, corres e vais logo chamar-me. Olha que esses cães de má raça são a nossa desgraça! Metem o nariz em tudo. Se não temos tino, fazem-nos ir responder ao tribunal. 35
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– Mas como é que são esses fiscais, patrão? – Vêm sempre dois; andam aos pares, de chapéu e gabardina. Quando entram, começam logo a mandar vir. Só depois é que mostram os cartões. A partir daquela hora todos os seus esforços foram para mudar. Ouvia o rádio da taberna ao lado, sempre em altos gritos, e repetia o que eles diziam. Mas para quê? Para dizer o mesmo? Ele era algum parvo? À noite, depois do jantar, meteu conversa com a Gisela. A escanzelada rapariga, depois de primeiro ter dito que nem pensar, sempre se comoveu e foi na conversa. Emprestou-lhe os livros de leitura, por já não lhe fazerem falta. Mas só os do ano anterior. Quando já estavam pelas boas, disse-lhe até que lhe emprestava um dicionário, para ele saber o que as palavras queriam dizer. – Mas quando é que eu sou capaz de decorar tudo isso, menina? – É só para procurares as palavras! – Mas como é que eu vou encontrar as palavras que não entendo, num livro tão grosso como esse? – Oh Zé, não te faças mais parvo do que já és. Tu não conheces o abecedário? Olha que as palavras estão lá arrumadas pela mesma ordem; isto é, pela letra como começam. Por exemplo, tu queres saber o quer dizer estudar. Começas por procurar a letra: E. Sabes que fica depois do D e antes do F. Vês aqui no cimo das folhas, como estão escritas as palavras? Cá está! Agora procuras a segunda letra, o S, e depois, o T; e correndo assim com um dedo pela coluna abaixo, cá está: estudar. Agora lês o que está escrito à frente. Percebeste? – Só experimentando. A menina é muito boa pessoa! Nem sei como lhe agradecer todos estes seus cuidados. Como sabe tanto, podia ser a minha mestra! – Ai Zé, eu sei lá para ser tua mestra! José, pela primeira vez, verificou que com vinagre não se agarram moscas. A antipática rapariga, com uns elogios, levava-se. A partir dali e quando não havia que fazer na loja, passou a ler os jornais que havia. Lia “O Século”. O patrão comprava-o todos os dias. Depois, os jornais eram aproveitados e utilizados nos embrulhos dos clientes. A retrete, um buraco imundo no chão, era feita só de cimento. Ficava nos fundos escuros do armazém. Era a sua sala de leitura preferida, mas tinha pouca 36
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luz; a que entrava vinha por uma nesga feita na parede, onde o “casaca” tinha posto rede. Sempre que lá ia, era mais para ter um curto descanso. A jornada contínua era de mais de doze horas; tinha de estar sempre em pé, arrimado ao balcão ou caminhar, para baixo e para cima, na calçada e nos malditos andares, para entregar as encomendas, pesadas como o inferno. Até ficava com os pés inchados. Naqueles minutos de descanso e enquanto estava agachado, lia sempre os bocados de jornal que lá estavam pendurados. Às vezes distraía-se tanto nas leituras da bola, que o Gregório tinha de lhe dar um berro: – Então, José, foste pela pia abaixo? – Vou num pronto, senhor Gregório. Recebia o salário no fim do mês. Num sábado e numa meia hora à tarde, dispensado pelo Gregório, fora com a irmã a uma tenda de ferro velho, na Feira da Ladra. Compraram roupas novas, em segunda mão. Trouxeram dois pares de calças, duas camisas de popelina branca, um casaco à americana e um sobretudo usado, mas como novo. Ficava-lhe um pouco grande, mas o que importava agora isso? Além do mais estava na moda usarem-se bem compridos. Ao vendedor ambulante de gravatas, que todos os dias passava lá na rua, comprou ele, ao seu gosto, uma gravata vermelha, da cor do Benfica. – Um luxo! – Quando no domingo da folga se viu ao espelho, nem queria acreditar; parecia um pipi da tabela! Estava quase igual a uns tantos que havia lá no bairro e andavam sempre atrás das sopeiras. Ainda não eram dez horas, saiu de casa, fez-se encontrar com outros amigos marçanos. Tinham todos o dia de folga. Depois, para se mostrar, encaminhou-se para a praceta onde o cunhado tinha alugado um quarto, na sub-cave de um prédio. Como era domingo, foram todos à missa na Igreja da Penha de França. Valeu a pena. A igreja era enorme! Desde que estava em Lisboa nunca mais tinha ido à missa. Apesar da muita gente que estava e do ter tido que estar toda a missa de pé, até gostara do que o padre tinha dito. Muitas das coisas ele não entendeu. Deviam ser só para os alfacinhas! Quando cantaram – e com música! – sentiu, nuns instantes, saudades da terra e ainda mais da missa do domingo. Faltavam-lhe as prosas dos homens, mais as brincadeiras da rapaziada no adro da sua aldeia. E quando o sacristão o deixava ir tocar o sino? Aquilo de o fazer 37
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dar uma volta, era ser o melhor do mundo! Afastou estes pensamentos. Estava em Lisboa. A terrinha ficava já muito longe e agora era tempo de se fazer lisboeta! Quando acabou a missa foram almoçar todos juntos numa das tabernas da praceta, na Penha de França. O cunhado, muito cumprimentado pelo homem do balcão, encomendou chocos grelhados, com tinta, mais batatas cosidas. O galego afirmara por várias vezes que estavam uma maravilha de frescos: – “Boxê pode comer à confiança! Los fui a comprar à Ribeira!” Para rebater, o seu importante cunhado pedira uma litrada de uma riquíssima pinga: um tinto dos garrafões Sanguinhal. Ao princípio, os chocos meteram-lhe nojo: – Mas que raio de bicho mais raro! – Come e vais ver como é bom. Bota-lhe azeite, vinagre e esta cebola picada com salsa; põe-lhes um pouco destas malaguetas. Tens de te ir habituando também às comidas aqui de Lisboa, Zé! – Pois sim senhor, mano Arlindo. Faço tudo o que vossemecê disser. – Deixa lá essa porra do vossemecê. Isso é conversa lá da terra! Diz só você, como as pessoas finas aqui da Lisboa. – recomendou a irmã, que seguia a conversa enquanto ia ajudando o rapaz da taberna a colocar os talheres e a acabar de preparar a mesa. Provou a medo. Eram bons, aquela coisa dos chocos! Depois comeu à fartazana! O cunhado estava encantado com tanto apetite. O rapaz que os servia, à ordem do galego, trouxe um reforço de batatas e mais uns choquitos para acompanhar. Eram oferta da casa, disse o galego! O cunhado arrotou. Puxou de um cigarro e pediu ao rapaz um café e um “cheirinho”, dizendo: – Limpa os beiços, que os tens todos negros. – Mas limpo com quê, mano Arlindo? – Eh pá, com o lenço. – Mas vomecê... ai desculpe, você sabe que eu não tenho lenço... – Então vai ali dentro e lava os dentes com o dedo. 38
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– Deixa de implicar com o rapaz. Tu também tens a boca negra. – Mas nós, no fim, vamos lavar os dentes à torneira. Não é verdade, ó São? Pouco durou a ligeira controvérsia. O Zé estava deslumbrado com tanta novidade. Voltou-se para a irmã e disse, sorrindo: – Isto estava mesmo bom! Pois muito bem. Fiquei que nem um abade! Deitas-me mais um pouco desta sopa, Conceição? Muito eu gosto das sopas grossas! Aquelas que tu fazes lá em casa para toda a semana. Lá a minha patroa fázias muito ralas. Têm pouco entulho e muita água. Só uma águeta, dão pouca sustância! Ainda por cima dizem que são sopas à rico! A irmã serviu-o da sopa do tacho que o rapaz da taberna tinha posto em cima do oleado da mesa. – Vá lá, despacha-te, Zé! Temos de ir apanhar o autocarro na Praça do Chile para irmos à bola! Eu não quero chegar atrasado. Vamos ver o nosso Benfica dar uma abada nos pastéis de Belém. Hoje, esses gajos, as tais Torres de Belém, como chamam aos defesas lá do Belenenses, vão levar para tabaco. O Francisco Ferreira e o Rogério vão marcar dois golos cada um nas balizas do Capela, um alturas muito frangueiro! – foi dizendo o cunhado, enquanto apurava os restos da aguardente, que lhe fora oferecida pelo galego, e se punha de pé, pronto para a jornada vitoriosa. – Põe-te com gargantas e depois o nosso Benfica perde! – Tu estás maluca, mulher! Vai ser chapa cinco! – O que quer dizer chapa cinco, mano Arlindo? – Cinco a zero, estúpido! – Vê lá como falas ao rapaz. Não precisas de ser malcriado. – atalhou a Conceição. – Despacha mas é as unhas, que se o Benfica ganhar, quando voltarmos, vamos beber umas “imperiais” à Portugália. Anda lá, Zé, não faças caso, vais hoje ver como é bonito o Campo da Tapadinha, na Ajuda. – Sim, senhor, mano Arlindo! O cunhado pagou com uma nota de vinte escudos e recebeu o troco. Um dia também havia de os convidar, só para ser ele a pagar a conta. O dia 27 de Outubro de 1946 iria ficar assinalado para toda a sua vida. 39
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Andara de eléctrico. Vira pela primeira vez um jogo de futebol. O agora também seu glorioso Benfica, “O melhor do Mundo e arredores”, empatara a dois golos com o Belenenses, ante o desespero e a fúria do cunhado, contra o árbitro: “um grande ladrão e um filho da puta” e, ainda apanharam valente carga de chuva porque não levaram chapéus de chuva. Também com a tristeza do resultado, já nem foram beber as “imperiais” à Cervejaria Portugália. Consequência do resfriado apanhado, pelo muito tempo com a roupa encharcada no corpo, veio-lhe uma gripe e uma pneumonia. Menos mal, que o patrão era boa pessoa. Esteve de molho uma semana inteira. Até lhe deram uma data de injecções que lhe deixaram as nalgas como uma peneira. Para cúmulo do seu martírio e do querido cunhado, em contraste com o assinalado júbilo do senhor Gregório, “muito boa pessoa, mas um lagartão de merda”, como dizia o Arlindo, no domingo seguinte os sacanas do Sporting deram dois a zero ao Benfica e ficaram Campeões de Lisboa. Entretanto, aproveitou muito nas aulas particulares, dadas pela professorinha Gisela, agora também investida nas heróicas funções de enfermeira. Passaram-se os meses de Inverno frio e chuvoso. Os dias, sem história, iam-se arrastando. Na taberna do Mário Côdeas juntavam-se os pescadores. O Mariozinho era alto e balofo. Tinha ademanes de mulher. Nunca se tinha tido a certeza se ele seria ou não maricas. Porém, os trejeitos não deixavam lugar a dúvidas. Os pescadores, mas sobretudo os rapazolas, que tinham o desafortunado costume de começarem com graças e provocações, a qualquer momento, podiam contar com um insulto rasteiro. Bastava que ele estivesse com a telha ou não engraçasse com o piadista. Fora de si, usava nessas ocasiões o palavreado de qualquer legítima varina. As mães dos ditos, seus ascendentes e colaterais, levavam “uma corrida em osso” dada pelo Mário. Deitando fumo pelos olhos e com a tranca da porta em riste, tentava acometer quem o ofendera na sua limitada macheza. Porém, se o queriam ver derretido e babado, chegando até ao ponto de apontar no livro, sem refilar, bastava falarem-lhe no seu Benfica e no seu (dele!) querido Rogério! 40
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– Vejam lá o despautério! Agora querem-no levar, para ir jogar para o Brasil! Para um clube de merda! Parece que se chama Botafogo! A taberna era venda e loja. Vendia de tudo um pouco às pessoas que viviam todo o ano no Portinho. Do lado da tasca, estava a pipa de vinho, só para ornamentação. Desde que começara a guerra, nunca mais fora cheia. Nestes tempos difíceis, ter debaixo do balcão um garrafão de cinco litros, quase sempre cheio, era já grande fartura! No aparador estava um alguidar com água para enxaguar os copos. Pendurado de um prego havia um pano de limpar os copos. Já fora branco. A freguesia também não era de nenhuns fidalgos. Para eles, terem de beber era muito mais importante do que por onde se bebia, ou como estavam os copos de limpeza. O soalho era tosco e com as tábuas gastas de tão carcomidas pelos tamancos dos pescadores, pelas chuvas e pelas areias a entrarem por debaixo da porta, que mal se fechava. Desse mesmo lado, dois bancos corridos, onde se sentavam os pescadores a passar o tempo em amenas cavaqueiras ou numa que noutra partida com um baralho de cartas espanholas, sebentíssimas. Do outro lado, tinha quatro ou cinco prateleiras, cravadas na parede, onde se podia ver, ao lado das peças de chitas, riscados e flanelas, os fósforos, uma caixa de sabão, quando havia, os feijões num saco, isto além das tulhas para as massas e o arroz. O balcão corrido era o mesmo. As semanas passavam. Os pescadores não se faziam ao mar. O mar sempre revolto. As quatro traineiras, impedidas pelo temporal, não conseguiam sair a barra para a pesca. As sequelas da falta de alimentos e o racionamento castigavam ainda mais aquelas pobres gentes. A fome estava instalada nos rostos. Spanos, o grego, aparecia muito poucas vezes pela taberna. Logo que despontava o dia, era vê-lo a caminhar, lesto, apoiado no tosco varapau, pelas encostas acima. Levava um binóculo e a bússola a tiracolo. Perdia-se o dia inteiro. Calcorreava os caminho da serra, escalando fragas e rochedos. Olhava o horizonte e o mar. Media ângulos com a bússola. Quando regressava a casa passava 41
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as notas para uns papéis. Todas as semanas apanhava no cruzamento da serra a sempre atrasada camioneta da carreira. Sem horário certos, fazia a ligação entre Sesimbra e Setúbal. Na cidade do Sado dizia andar a procurar um local para escritório. Mas tinha de ficar próximo do porto. Perguntava preços e inspeccionava as instalações disponíveis. Até à data, nada encontrara a contento. Comia numa das tascas do porto, bebendo, para espanto de todos, ou água ou um pirolito. Pela tarde, ia aos correios para fazer umas quantas chamadas telefónicas. Muitas vezes, de táxi, regressava à Arrábida, era já noite cerrada. A criadita Maria, embrulhada no xaile negro das mulheres do mar, vinha durante a semana aviar-se à venda. Comprava fora das senhas do racionamento sem regatear preços. Quando a moça chegava, já o Mariozinho tinha preparado o farnel, encomendado no dia anterior. Maria comportava-se como mulher adulta. Não dava trela aos pescadores, desejosos de meter conversa. Depois, subia carregada a encosta de volta a Alpertuche. Em cada dia que passava, a vida estava a fazer dela mulher, sem ter em conta os seus anos. – Eh! Maria, atão o tal grego? Não há dúvida de que o gajo te tem bem tratada! Estás a ficar cada dia mais bonitona! – Era o taberneiro – Um peixão! – Exclamava o rapazola sentado no banco. O comerciante fez não ter ouvido. Tirava debaixo do balcão um alguidar com carne. – Então hoje não queres levar um garrafão de vinho? Guardei para ti dois quilos de borrego e três quilos de lombo de vaca. Já mos deixaram cá hoje. Queriasos levar? – Levo, sim senhor. Mas tome nota. Pago amanhã quando cá voltar. – Não faltava mais! – acrescentou o taberneiro. – Eh! Maria, queria pedir-te um favor. – Num gesto tantas vezes repetido, levou a mão a gorra: – Tu sabes, eu sou amigo do teu pai. Por causa da maldita invernia e do mar bravo, as coisas estão ficando feias. Os garotos já não comem há uns dias! Engolem umas sopas feitas com as cabeças de peixe, migadas com o pão duro do racionamento e bonda! Precisava que tu falasses lá ao grego. Era por mor de ele arranjar um trabalhito... ou, se me podia emprestar aí uns vinte 42
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mil réis, a descontar no próximo trabalho. Era o Ernesto, sobrinho do César. Levantara-se do banco, onde fumava um cigarro de tabaco forte, o mata-ratos. – Tem mesmo que ser vossemecê a falar com ele, ti Ernesto. Eu nada sei dos negócios e dinheiro. O que trago é só para a mercearia. Mas suba e vá falar com ele. – Tens de Ihe dar tu uma palavrinha. Toda a gente sabe como ele te estima. Tive falando ali com o cabo da Guarda, como sabes ele é meu primo, mas o gajo está mais teso do que a gente! Olha, sabes o que ele me disse? Que lá em casa dele, a coisa também está muito negra. As senhas do racionamento não dão para nada! O que aparece por fora, é só para quem tem dinheiro, como o teu... – Patrão. Rematou a rapariga, continuando: – Bem, cá vou indo à vida. Bom dia a todos! – Sendo assim, eu hoje pela tarde passo por lá para Ihe dar uma palavrinha. – Si senhor, ti Ernesto. – Eh, mulher bravia! Era o mesmo tonto a fazer-se notado. Maria pôs o xaile e, à cabeça, o cesto com as compras. Fez de conta nada ter ouvido. Deu um pequeno sorriso para os outros pescadores e saiu da venda. – Adeus, Senhor Mário. Bom dia a todos! – Fez-se um naco de primeira! – Comentou o rapaz que estava jogando a bisca com um velhote, sentados num dos bancos corridos da taberna. Lá fora a chuva caía a potes. Maria foi abrir a porta. Um homem embrulhado numa manta entrou de imediato. – Senhor Spanos, está aqui o ti Ernesto. O grego sentado à mesa, estava escrevendo sobre um monte de papéis. Levantou a cabeça e vendo o outro molhado como um pinto, sorriu e disse: – Please, entrar logo. Como vais, Ernesta? – Mal. Muito mal, senhor Spanos. Tenho muita precisão de falar com vos43
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semecê, sobre um assunto muito sério. – Marie, ma petite, ir cozinha buscar garrafa de whisky e copa para Ernesta. – Prefiro um copo de vinho, senhor Spanos! – Eu levo a garrafa, senhor Spanos. – disse Maria. – Senta aqui e conta ton ami. – Senhor Spanos, estou micha! – Que cosa volo dire, micha? – Teso, senhor Spanos. Sem dinheiro! – Ah! comprendo. Sin dinero. Certo? – Certo, senhor Spanos. Por isso pedia-lhe o favor se me podia emprestar... uns vinte escuditos! As coisas estão feias lá por casa e... – Não falar mais. – Tirou do bolso das calças um maço com uma quantidade de notas, amarrotadas e enroladas entre papéis e puxando uma nota de cinquenta escudos, estendeu-a ao Ernesto, continuando: – Você saber, amigo Spanos ser amigo. Right? – Muito obrigado. O senhor depois desconta-mos no próximo trabalhito. Eu... – Pas d’importance! Você falaste Marie, ma petite, primo, ser cabo de polícia, verdad? – É sim, senhor Spanos. Somos ambos os dois, primos irmãos, por parte da Lúcia, a mulher dele. Ele teve mais sorte que eu! Foi à tropa e depois, como tinha a caderneta limpa, foi p’ra Guarda Fiscal. Já é cabo há bem uns dois anos. Veio aqui p’ro Portinho, porque tem casa e sempre ganha uns trocados mais, junto da família da mulher. Compra caixas de sardinha à malta e depois a mulher vendi’as em Setúbal. Os irmãos dela têm lá banca de peixe na praça. – Muito interessanta. Muito interessanta! Ernesta és, pourtant, amigo grande, de teu prima, verdad? – Fomos, a bem dizer, criados por aqui... todos juntos... – E cabo ter mucha hambre... fome? – Têm também passado mal de verdade. Não há pexe! O mar tem estado bravo e ele só recebe o racionamento que lhe toca. 44
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O grego encheu o seu copo de whisky. Com a garrafa de vinho encheu o copo de Ernesto. Acendeu um cigarro tirado do maço “Três Vintes”. Tinha-o no bolso da camisa de flanela à pescador, que Maria comprara no mercado de Setúbal. O fósforo inflamado acendeu. Aspirou fundo e, como se estivesse a ganhar tempo, falou de novo: – Muito interessante, muito interessante! Ernesta, és meu amigo. Dizer tua primo que Dimitrius, pode ser amigo dele. Basta falar. Você, dizer teu prima, cabo, que quando quer, pode falar ou beber drink minha casa. Se faz falta, Marie, ma petite, pode ir falar mais vós. Entendida? Corect? – Senhor Spanos, o meu primo não pode vir a sua casa. Cá as coisas têm regras. O que é que as pessoas maldizentes iriam dizer!? – Mim não entender. Poder repitir, Ernesta? – Meu primo não pode vir aqui a sua casa. É comandante do posto da Guarda Fiscal. Eu nem quero adivinhar como seriam os falatórios dos outros guardas e mais do resto do pessoal cá do Portinho. São todos umas línguas! O grego levou uns segundos a entender. Sorriu e continuou: – Tem razão amigo. Você ser hombre previdente. A wisdam man! Faz favor. Falar com seu prima cabo e depois nós falar. Ok? – É fácil, senhor Spanos, arranjar solução. Podemos beber um copo todos juntos, mas em minha casa! É um barraco modesto, como o senhor sabe, mas como está já meio metida na mata... – Muito bem! Muito bem! Conforme. Conforme! O grego levantou-se. De um trago, acabou a bebida. Pousou o braço nas costas do Ernesto, acompanhando-o até à porta. – Fica aguardar notícias. Good bye, my friend? – Adeus, senhor Spanos! O primo ali estava a sua frente. Pousara o bivaque em cima da mesa. Estava nervoso. O grego dissera vir e até àquela hora ainda não tinha chegado. – Mas tu, Ernesto, pensas que o gajo ainda vem? – Tem calma! O tipo disse que vinha e não vai faltar. Posso-te garantir que 45
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ele é homem de palavra. O que o grego diz é uma escritura. Fixa bem isto para sempre. – Pois é. Tudo é muito bonito, mas se alguém me vê aqui com ele e depois o vai contar ao tenente... – Mantém-te calmo, Armindo. O grego não tarda. Os passos arrastados do grego soaram em cima da caruma da entrada. Empurrou a porta encostada e entrou sem cerimónias. – Amigo Ernesta, comment vá tu? – Senhor Spanos. Este é o meu primo Armindo. O grego estendeu a mão. A mão do cabo estava suada. – Muito prazer, senhor comandant!. Já ouvir falar muita de comandant. Isto és pequeno pueblo! Disse, enquanto se sentava num dos bancos postos a volta da arca. Servia de mesa. Em cima tinha o candeeiro a petróleo, três copos e a garrafa de vinho. Ernesto bebeu de um só trago o seu e a pretexto de tratar umas coisas no quintal deixou-os sós. – Eu já há muito sabia que o senhor Spanos estava vivendo aqui connosco. Retorquiu o cabo, com um ligeiro tique nervoso na face. Enquanto enchia os copos de vinho, o grego ia mirando o cabo Armindo. Devia ter à volta dos trinta anos. Era alto e trigueiro. As polainas, bem polidas, ainda o faziam mais alto. Usava patilhas. No meio dos subordinados devia parecer o “ Estica “ dos filmes americanos. Os outros seis soldados do posto eram todos gordos e mais velhos. Não parecia ser um bruto e tinha um olhar frio e calculista. Era preciso estar com atenção. – Senhor comandant. Eu estar muito contenta viver Portugal. Esta Portugal, país muito bonita, salvou mim da guerra. Aqui encontrar paz, bom vinho, e muiita mulher. Viver muito feliz! Bebeu um golo largo do vinho e continuou: – Comandant. Eu homem positiva. Eu fala directo. Eu ter sido muito bem recebida people desta terra. Eu ser rico e ter dinheiro. Tirou uma fumaça ao ar e continuou, arriscando, com o cabo a olhá-lo bem nos olhos: 46
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– Mim gosta ajudar. Vida muito difícil para gente pobre. Eu ter dinheiro. Se você, amiga de amiga Ernesto e sobrinho amiga César, precisar, nós ajudar. O cabo, sem exteriorizar qualquer emoção, disse, passados segundos: –– Muito obrigado, senhor Spanos. Agradeço a sua oferta, mas eu não preciso de nada. Temos que viver conforme as nossas posses e, com certas dificuldades, vai-se passando. – Ernesto falar que meninos estar passar mal. Eu pode ajudar. No domendicar! – Mais uma vez muito obrigado pela sua atenção. Armindo bebeu um sorvo do vinho. Uma vez mais olhou o grego nos olhos e continuou: – Como lhe disse, não necessito de nada. Para mim basta-me o meu ordenado. É com ele que eu e os meus teremos de ir vivendo. Era muito mais perigoso do que julgara antes. Tinha de estar com muita atenção. Pelo menos até que mordesse o anzol. Abriu um rasgado sorriso e continuou: – Comandant, gostar você. Mim recebe vinho muito boa de Grécia. Quando navio trouxer, você meu convidada. –– Muito obrigado! Apertaram as mãos depois de beberem o resto de vinho que cada um tinha nos copos. O grego encheu de novo o seu e, dum trago, despejou-o. Pôs o cigarro turco nos lábios e, com uns fósforos, tirados de um pequeno cartão, acendeu-o dizendo: – Well, eu ir! Verdade: ouvir falar, só comandant poder comprar mapa Alpertuche. Ser mapa militar! Possível? Gosta muita ter mapa! A sombra projectada pelo grego era enorme nas taipas da barraca. – É possível, senhor Spanos. Quando eu for à Companhia a Setúbal, já vejo se há lá a tal carta, essa que o senhor quer. Se não houver, eu peço uma como se fosse para mim, e eles mandam-na vir de Lisboa. – Muita obrigado. Ser grande favor, comandant, arranja tal mapa... Muito obrigado! Dimitrius já ir. No ser assim que falar corect em português? Sorriu pela primeira vez e respondeu: 47
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– É assim mesmo, senhor Spanos. Armindo pegou no bivaque e preparou-se para sair. À porta, o Ernesto perguntou-lhe: – Então, pá, que tal? Correu tudo bem? – Correu. Agora vou ao posto. Não sei se o sargento cá vem. Obrigado, Ernesto. – Adeus, Armindo. O grego, ao passar junto ao posto, cumprimentou o soldado de plantão. Enquanto subia a íngreme encosta até Alpertuche, ia fazendo o resumo daquele primeiro encontro. O cabo era frio, ambicioso, inteligente e calculista. Sabia muito bem o que queria. Dominava todos os outros soldados do posto. Tinha autoridade, não obstante ser novo. Havia-o subestimado, comparando-o com os guardas que já conhecera. Eram todos uns brutos e uns bêbados. Pensara que a coisa ia ser fácil mas revelara-se muito mais complicada. Tinha de ter o seu apoio, se queria ali continuar em paz e sossego. Porém ele, Dimitrius Spanos, não era homem para desalentos, nem recuos ante qualquer dificuldade. Era por demais importante, na missão de que fora incumbido, aquele porto de Setúbal, as ligações com a Espanha de Franco e, sobretudo, a praia onde instalara o armazém. Estava dissimulado na mata. As descargas dos navios em águas profundas podiam ser feitas com segurança. Tudo a menos de cinquenta metros. Havia hipóteses de montar guinchos ou mesmo pequenos guindastes nas arribas e tirar as cargas dos navios. Tinha a zona de costa onde não passava viva alma. A serra da Arrábida estava virgem. Quando ali chegara pela primeira vez, nem queria acreditar. Era o paraíso. Vista do lado do mar o panorama é maravilhoso: os rochedos em cutelo, fragas vivas, em alcantilados cortados a pique até às minúsculas praias rendilhadas de enseadas. Intercalam-se e sucedem-se, na harmonia de luz e sombra, no claro escuro, na pausa e no vendaval, do sonho e do efémero, onde as grutas profundas penetram na preamar para esponsais com o oceano. As encostas, de corcovas bizarras, são verdes de luxuriosa vegetação silvestre. Por toda a parte, arbustos nascidos no vento fazem-se árvores, aproveitando o orvalho e a geada que ficou 48
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da noite. Esconderam-se e erraram nas suas sombras, como noutros tempos os eremitas e pensadores, homens acossados e animais feridos. Entre as pedras cobertas por musgos e habitando as celas estreitas do Conventinho da Arrábida, santuário alcandorado no meio da encosta virada a sul, entre alcantis e ciprestes, passaram e também viveram e morreram sábios e ignorantes, filósofos, santos e pecadores. Presas e predadores. Quando o luar banha a baía e o vento de norte não encapela as águas, a baía é um lago espelhado. Mas nas noites de temporal, com o vento inclemente e duro, com a chuva impiedosa a entrar pelas árvores, pelos musgos e encharcando a terra, os medos acoitam-se nas fragas. São as noites dos lobos, dos carneiros chacinados e dos foragidos. Em nenhum lugar a noite é mais noite e o negrume mais negro. Quando a madrugada chega, se não há nevoeiro, o sol rompe as trevas e, com os seus raios rasantes, vai amolecendo a desgraça. Por fim, o mar fica tranquilo. Só o calor do fogo mitiga a desgraça. Era este o seu refúgio. A sua terra. O seu futuro. Viera e ficara. Com cuidado empurrou o batente da fraca porta. Não queria acordar Maria. No quarto, virado para o mar, ela dormia. Os cabelos acastanhados, longos e fartos, emolduravam o rosto perfeito e belo. Os sedosos olhos estavam encobertos por longas pestanas. A manta deixara a descoberto um seio arredondado e firme. Despiu-se. Deitou-se na ponta da cama de casal comprada há dias numa casa em Setúbal. O peso na enxerga, ao deitar-se, fizera com que ela se movesse. Sem acordar afastou o corpo para ele ter espaço para dormir. Ao de leve acariciou-lhe o rosto. Maria entreabriu os olhos. Sorrindo chegou-se. Sentiu o calor. Num sussurro ela balbuciou: – Ai eu hoje tive medo... é já tão de noite, senhor Spanos! – Não fala, ma petite! Dormir... dormir.... A moça cerrou os olhos e continuou a dormir. Spanos ajeitou-lhe a roupa. Acendeu um cigarro. A ponta incandescente do cometa acabou no tosco cinzeiro.
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3 Os meses sucediam-se no trabalho da loja, servir os clientes e o carregar às costas as encomendas. Sempre subindo e descendo escadas. As tais aulas de português eram cada dia mais raras. A moça tinha muito que estudar. Quando aconteciam, era mais para fazer mangação dele. Ultimamente, as coisas tinham-se modificado. Ela gozava com a sua maneira de falar, a sua ignorância e o seu desajustado viver citadino. Ele pouco caso fazia. Aproveitava e ia lendo, quase todas as noites, os livros de História que ela lhe emprestava. Cada dia sabia mais de reis, batalhas e descobertas. Tinha uma memória prodigiosa. Fixava tudo. Começou então a ler romances do Emilio Salgari. Ia buscá-los, alugados, a uma papelaria ali do bairro. Eram aventuras de tirar o fôlego, passadas em terras distantes. Gostava daqueles livros. Adorava as histórias. Mas muito mais formidável era pensar e sonhar com as mil aventuras que seriam se ele, um dia, pudesse viajar e conhecer tais paragens e viver aqueles mesmos perigos. Gostava também muito de ir com o cunhado à bola, para ver jogar o Benfica. Um domingo, depois do “glorioso” ter ganho, foram beber umas imperiais à Cervejaria Portugália. O muito esperar não empalideceu a novidade da estreia. Logo que entrou, ficou maravilhado. Eram tantas as mesas, as cadeiras e a gente a comer, a falar e a beber! Os atarefados criados, sempre a correrem, carregavam pesadas bandejas a abarrotar de canecas de cervejas. Só com uma mão!
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Para recolher, a penates e ao subir a butes a íngreme encosta da Penha de França, parecia que os pés escorregavam por ali abaixo. – Maldita cerveja que tão boa és! Quando ia entregar os ranchos ou por ali passava perto, tendo bem nítido e presente o perigo que corria e que se habilitava a levar uma descompostura do Gregório, gostava de ir dar uns pontapés na bola com uns miúdos. Jogavam no terreiro da Igreja de Santa Engrácia, na Calçada dos Barbadinhos. Isto, sempre e quando o chui não vinha chatear ou apreender a bola. Na já tradicional folga ao domingo, continuava a visitar a irmã e o cunhado. Era o dia da família. Desde que estava em Lisboa dera algum corpo, mas pouco. Continuava mais baixo que os rapazes da sua idade. Fizera, a cada dia, novos amigos entre os marçanos e empregados nas leitarias e carvoarias do bairro. À noite, depois de fecharem os estabelecimentos e cearem, encontravam-se para jogarem matraquilhos ou à bisca. Tinham até já fumado cigarros, surripiados ao patrão. Provou mais duas vezes. Não gostou. Ficava enjoado com os malditos cigarros. Com o correr dos dias foi dando conta de que as clientes gostavam dele. Achavam graça àquilo que ele lhes ia respondendo. Era um alho a dar conversa às freguesas enquanto pesava os cartuchos do racionamento ou aviava o vinho e o óleo. O patrão Gregório também andava contente com ele. Era divertido. Dizia umas pilhérias à moda da terrinha e aviava bem a freguesia, sem roubar muito nos pesos. As sopeiras das redondezas achavam-lhe muita graça! – Então, José, o teu Benfica... lá empatou outra vez! – Vomecê ainda me empata mais a mim! Olhe que eu, quando fico nervoso, me engano nos pesos. Marianinha, um destes dias vamos dar uma volta? – Qual volta nem meia volta, seu fedelho! Tu ainda cheiras mas é a cueiros! – Oh Marianinha, olhe que os homens não se medem aos palmos! Um dia, se quiser, faço-lhe uma surpresa! – Que surpresa? – perguntava a brejeira criadita do senhor Repolho, cheia de curvas e refegos muito bem distribuídos. – Se me emprestar a sua mão eu já lhe e explico... – Olha o sonso... o descarado do rapazinho atrevido! Deixa estar que eu vou 52
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contar ao Gregório. Querem lá ver o franganote! – Mas contar o quê? Vá lá, ponha aqui a sua mão! O rapaz estava cada dia mais ousado. Agora ali bem próximo, sentia-lhe o cheiro característico de suor, do sabão e das mercearias. A criadita, rebolona, sempre fazendo que fugia, dava abafados gritinhos: – Oh! senhor Gregório, o seu frangote pensa que está já a ficar galaripo, o atrevido! Gregório, ao entrar, viu que a criadita fugia na frente do marçano. Ia-lhe dando uma coisa má! – Oh José, mas que preparos são esses? Pensas que isto é o da Joana? Vais já pó meio da rua, alma do diabo! José e a perseguida Mariana, repondo as maneiras e os fôlegos, aprumaram-se de imediato: – Foi uma simples brincadeira. Não faça caso, senhor Gregório. Estávamos na paródia e como não havia mais ninguém e eu já estava aviada... A boazona da Mariana, “um regalo prós olhos” como dizia o Gregório, arregalou ainda mais os ditos brejeiros, pegou nas compras, meteu-as na alcofa e, em jeito laroca, rematou atirando um beijo ao merceeiro: – É sempre um prazer vir à sua loja. Nem que seja só pra o ver, senhor Gregório! Qualquer dia ainda sou eu a clamar p’!o Gregório! Um minuto bastou para que tudo voltasse ao normal. Gregório era boa pessoa. – Bem, Zé, que isto não volte a acontecer. Vamos receber hoje as novas senhas do racionamento. São as do próximo trimestre. Já tenho as guias para ir levantar os géneros ao armazém. Fica a tomar conta disto e deixa de te andares a meter com as sopeiras. Um dia ainda tens um desgosto! Se houver algum problema, chama a dona Lina para vir cá a baixo. – Sim, senhor, pode ficar descansado. Quando o patrão ia a sair, entrou, como um furacão, a viúva. Vinha, como sempre, vestida de negro. Era alta, mais parecendo um pau de virar tripas com óculos graduados. A devota dona Maria dos Prazeres, na plenitude dos seus trinta e poucos, tinha quase cinco anos de viuvez sofrida e chorada, só posta ao serviço 53
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do biatério e de todas as obras pias da paróquia. Vinha aviar-se do racionamento. Aparecia de dois em dois meses. Constava-se que era remediada ou até mesmo rica. Tinha residência no Algarve, donde era natural. O racionamento de pouca falta lhe fazia; assim se murmurava no bairro. – Então, está de saída, senhor Gregório? O senhor nunca pára na loja! Quem é que me vai atender? Vinha fazer as compras do racionamento para este mês. – Pois quem há-de ser, senão o José Feliz, este seu criado! – respondeu, com uma teatral vénia, o solícito rapaz. Com a oportuna intervenção pagava a recente generosidade do Gregório. O rapaz tinha parado a beata. Gregório encolheu os ombros e seguiu viagem. – Em primeiro lugar, rapaz atrevido, devias ter dito, quando entrei, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, como já te tinha ensinado e como o fazem todos os bons cristãos! – Mas ainda vou muito a tempo de emendar esse meu pecado. Louvado seja sempre Nosso Senhor Jesus Cristo. A senhora sabe como eu sou crente e muito religioso. Olhe que na minha santa terrinha até... – Dona Maria dos Prazeres, rapaz endiabrado e teimoso! Vamos então lá ao que interessa. Avia-me, bem e depressa, estas minhas necessidades. Tenho muita pressa e ainda muito mais coisas que fazer hoje. – Ai quem me dera ser bombeiro, para a socorrer e apagar tantas pressas! A senhora fez que não tinha ouvido. O rapaz pegou nas senhas e procurou a folha do racionamento da cliente. Tudo estava em ordem. Começou a pesar e a embrulhar os artigos, colocando-os em cima do aparador da loja. A dona Prazeres, porém, não havia maneira de estar sossegada. Não parava de falar, andando de um lado para o outro na loja. Parecia que tinha bichos carpinteiros no rabo, quando acrescentou: – Hoje ainda temos uma reunião da Acção Católica. Depois, antes do Santo Terço, tenho de preparar o altar-mor para a festa de amanhã. 0 senhor prior já me disse que, como vem o senhor bispo lá do Patriarcado, quer que tudo fique num brinquinho! Hoje não se pode confiar em ninguém. Tenho de ser eu sempre a fazer todo o trabalho. Deu um suspiro, sofrendo o intenso cansaço. O rapaz, sem tomar atenção à 54
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lengalenga da beata, continuava as pesagens. – Tenho notado, aliás com muita satisfação, que tu vais todos os domingos à missa do meio dia. Mas tens de ser muito mais crente e mais praticante. Estás com quantos anos? – Tenho treze, a bem dizer, quase catorze, dona Prazeres. – Estás na pior das idades! Quando o pecado mais apoquenta as almas! Tens de ir mais vezes à igreja. Tens de te acostumar. Depois, quando caminhares para homem, já lá não pões os pés. Ficas pecador e devasso! Enfim, como o são quase todos os homens desta cidade. Já foste crismado, rapaz? – Não, senhora. Estava p’ra ser lá, mas depois, como vim p’ra Lisboa... – Bem me queria a mim parecer. Tens de ir à doutrina para poderes ser crismado. – Agora... tenho pouco tempo. Há muito que fazer, dona Prazeres. – Dona Maria dos Prazeres. – Isso mesmo, dona Maria dos Prazeres. Só se a senhora for falar com o meu patrão e ele me deixar ir lá a essa tal doutrina. Está aqui tudo pronto. Quer que aponte? – Eu pago todas as minhas contas a pronto. Não quero nada fiado. Desde que morreu o meu querido marido, não quero contas em parte nenhuma. – Quere-se dizer que a dona ficou viúva... Nada. Aqui está. São quarenta e oito mil e trezentos. A dona tirou o dinheiro do porta moedas da carteira preta. Deu, para pagamento, a conta exacta. – Há mais de cinco anos! Um largo suspiro fez arfar aquele peito amordaçado e aquela castidade santa, assumida. – 0 meu marido faleceu num acidente de automóvel. Tinha ficado em terra para fazer ligeiras reparações! – Quem? 0 seu marido? – Tu és burro, ou quê? 0 meu falecido marido, que Deus guarde em Sua Divina Glória, estava sempre em forma. Era uma máquina. Sem falhas... ouviste? Tomaras tu... 55
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– Eu não quis ofender... – O barco, seu atrevido! O navio onde ele andava embarcado é que estava no estaleiro. 0 barco, não ele. Era muito macho, muito homem!. – Horas negras. Grandes infelicidades. – Provações do Senhor! – Não somos nada. Em paz descanse! A parvoíce da sentença quase o fazia morrer de riso na frente da mulher. – Bem. Cá vou andando. Não te esqueças, José, de te inscreveres lá na paróquia, nas aulas da catequese para o Santo Crisma. Mas eu depois falarei com o senhor Gregório. – Boas tardes, dona Prazeres. – Dona Maria dos Prazeres! Não há maneira de aprenderes... Olha, fiz uma rima! Fica com Deus, José Feliz! Assim que a beata saiu para a rua, o José deu dois pulos e fez uma data de manguitos: – Esta gaja é chata c’mó peixe espada! As clientes que entretanto tinham entrado na loja, quase todas criadas de servir do bairro, continuaram a algaraviada interrompida. Falavam de tudo e mal das patroas, de umas das outras, como era hábito e costume. Eram já quase sete horas quando fechou a loja. Subiu a entregar as chaves à patroa. Disse que nessa noite não jantava. Um amigo lá da terra, a trabalhar nas obras das avenidas novas, tinha vindo da terra e trazia-lhe uma encomenda para a irmã. Vestiu-se todo janota com a roupa nova. Levou dez minutos a pôr a gravata. O maldito nó não havia maneira de ficar bem; ou ficava muito fininho ou ficava parecido com os nós da gravata do professor Carchola. Por fim lá ficou mais ou menos. Para poupar dinheiro, foi a pé até à nova Praça de Londres. Adorava ver as montras e as avenidas! Gostava de as ver cheias de gente. Naquele fim de tarde, com uma temperatura amena, podia ainda ver acender as luzes da cidade, uma coisa maravilhosa a que poucas vezes assistia. Meteu a Sapadores e desceu a Calçada do Poço dos Mouros. A Morais Soares era o máximo! Tantas lojas e tantas 56
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luzes, mais os carros eléctricos, sempre a bulir e a tocar as campainhas, os automóveis e os autocarros, uns para baixo outros para cima. Era preciso olho fino e pé ligeiro para não ser atropelado. Quando chegou à Praça do Chile, ficou na dúvida. Não sabia se era para a direita se para a esquerda. Nada melhor do que perguntar. Iria pôr à prova os seus novos conhecimentos lisboetas. Afinou a voz e repetiu baixinho a entoação que tinha de dar. De forma alguma queria passar por ser mais um parolo da província. Abordou um polícia e perguntou: – Ora faz favor, Oh! sô guarda. A Praça de Londres para que lado fica? – Xuba a Almirante Reis. Depoix de cruzar a Alameda, vire na Guerra Junqueiro. Ao fundo é a Praça de Londrex. – Muito obrigado, Oh! xô guarda! Seguindo o conselho do polícia, – o alma do diabo parecia ser lá dos seus sítios – encontrou a igreja de S. João de Deus e o amigo. O conterrâneo estava vestido como andava lá na terra: calças de bombazina e camisa, grosseira e enrugada, de estopa. Bem... ele era já, um janota, um pipi da tabela, mas não era pessoa para ter vergonha do amigo. Mas o gajo desde que viera da terra em nada tinha mudado; apenas tinha tirado a gorra da cabeça! – Então, Zé, como é que tens passado? E a terrinha? – Tudo na mesma. Tu estás feito um engenheiro! Pareces um pipi da tabela! – Já cá estou há muito tempo, sabes? A gente tem que se adaptar... – Não te trouxe o cabaz que a tua mãe mandou, porque o teu cunhado, o Arlindo polícia, passou lá pela obra e já o levou. – Menos mal. Assim foi mais rápido. Não temos nós que alombar. – Então vamos dar uma volta a ver a cidade? – É boa ideia! Desceram as avenidas conversando e mirando. Comeram umas sandes de presunto com um copo de três, numa tasca da Almirante Reis. Recordaram as pessoas da aldeia e falaram dos seus novos empregos. – Atão e o teu trabalho? – Não fazes ideia. Os gajos tiram-nos o samarro das costas! Só falta esfolarem-nos vivos, lá nas malditas obras. Pegamos às oito. Depois é a dar no duro, serventia aos pedreiros, durante todo o dia, p’ra até às sete! Depois, ainda temos 57
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de amanhar o comer, numas latas lá na obra. – E onde é que tu dormes? – Dormimos todos ao monte no barracão, o que é que querias? Daqueles feitos com as tábuas velhas da construção. Aquela merda está carregada de percevejos, pulgas e ratos. – De ratos? – É verdade! Olha que os há lá do tamanho de coelhos! O Carrapiço, um gajo alentejano, começou a dar migalhas a um ratinho branco e o sacana agora até lhe vai comer à mão! – Como é que isso pode ser? – Podendo! Não se te passa pela ideia do que se sofre para que no fim de semana arreceberamos aqueles malvados cento e cinquenta escudos! Tens alguma ideia de quanto isso custa? Voltou a beber do copo de vinho e sem esperar resposta continuou: – Nem se te passa pela cabeça. Aquilo é pão do diabo! Esfolam um homem vivo! Pousou o copo vazio em cima da pedra negra da mesa da taberna. – É como te digo. Não fora os cento e cinquenta paus e eu já me tinha largado desta merda e ido, de vez, lá p’rá terra. José Feliz pediu mais dois copos de três ao rapazola. O Zé Madeira continuou: – Queria mandar vir a patroa, mas não tendo quarto e a ganhar tão pouco dinheiro não sei quando poderá ser. Estive lá agora uns dias. Fui à Senhora da Póvoa a pagar a promessa. Tive uma data de trabalho para convencer a minha a ainda não vir desta. O diabo da mulher meteu nos cornos que eu já cá tenho outra e que a não quero cá. Vê lá tu, ó Zé! Um gajo aqui nem parece ser gente. Ninguém olha para nós. Com os copitos, o amigo Zé Madeira estava muito falador. – Eu ganho pouco, mas o serviço é limpo e não me posso queixar. Lá vou safando umas gorjetas e já estou a juntar uns dinheirinhos. – Pois é! Pareces um engenheiro! Sempre foste um homem feliz! E se fôramos dar uma volta pela tal Baixa? 58
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– Não te esqueças que amanhã é dia de trabalho. Temos de nos erguer cedo. Eu tenho de abrir a loja. O “casaca” não vai lá de manhã. – Vamos, mas voltamos cedo. Já cá estou há uma data de tempo e, queres crer, ainda nunca fui à Baixa. Se não for contigo... – Está bem. Apanhamos o eléctrico até à Praça da Figueira e às dez e meia voltamos. Andaram perdidos pela Baixa. O Rossio, iluminado e cheio de gente, parecia uma festa. Na rua das Portas de Santo Antão, os bares e os restaurantes estavam cheios de gente. Muitas pessoas e todas bem vestidas. Uns estrangeiros, muitos homens e mulheres, falavam línguas que eles não entendiam. As luzes do Arcádia exibiam o garboso e enorme porteiro, cheio de cordões dourados e de boné na cabeça. O Olímpia e o Cristal, cabarets de luxo, ali ao lado, tinham à porta enormes cartazes dos espectáculos da noite. As fascinantes fotografias das mulheres, com ramagens na cabeças e as pernas ao léu, eram de um gajo perder a cabeça. Aquilo sim! Aquilo era Lisboa! – Vá, toca a andar. Desanda que os clientes estão a chegar e não queremos mirones aqui à porta. Muito menos miúdos e parolos! – Quais parolos, qual merda! Você é por acaso o dono da rua? – Desanda, miúdo. Parece que ainda tenho de te dar uma palmada. – Disse o matulão do porteiro a meia voz. – Qual miúdo qual porra! Experimente você tocar-me e já vai ver o que Ihe acontece. Fique você sabendo que o meu cunhado é polícia. – Mete o teu cunhado no cu e desanda. Olha que levas uma palmada, meu puto reguila! – voltou a repetir o porteiro, dando um passo ameaçador na direcção do rapaz. – Vamos embora Zé, este filho da puta é muito grande! O gajo ainda chama a polícia. Eu não posso perder o meu trabalho. Zé Madeira falava ao puxá-lo por um braço. – Mas este sacana não se pode ficar a rir de nós! – Anda embora, que o gajo é muito grande.
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– Olhe, você seu sacana de merda, seu paneleiro arrebentado, ainda um dia eu hei-de cá voltar para te partir os cornos e acertar estas contas contigo, seu filho da puta! As derradeiras sílabas da terrível ameaça já foram ditas com as pernas em alta aceleração e velocidade, não fosse o bruto arrancar atrás deles. Só pararam quando chegaram à Praça da Figueira. Iam já sem fôlego de tanto correr. – Ah, maldito “portas”! – Eh pá! Se não visse, não acreditava! Foste um macho! O cabrão era grande, mas tu, oh Zé, chegaste para ele! Meteste-lhe o colhão na virilha, àquele filho da puta! – Nesta maldita cidade, quem não sabe defender-se está fodido! Comem-nos vivos! – Mas tu sabes! Lá na terra ninguém acreditava que já és um lisboeta! Quem diria! Em tão pouco tempo! – Eh pá, é a vida! O eléctrico para o Alto de S. João acabou por chegar. Poucos eram os passageiros. Sentaram-se num dos bancos de trás. O velho cobrador meio ensonado e arrastando os pés, aproximou-se. – Ora faz favor. – Dois de oito! – encomendou o José Feliz, estendendo uma moeda de vinte cinco tostões. O “pica” alterou a ordem das carteiras dos bilhetes que tinha entre os dedos da mão e escolheu os amarelos. Tirou dois. Com o alicate furou o quadrado referente à zona e estendeu o troco. Fora tudo feito num ápice e o troco estava certo. Tocou a campainha e com a voz ronceira: – Pooode seguir! O guarda freio pôs em marcha o eléctrico. – Eh pá, estás um lisboeta! – Disse embevecido o Zé Madeira. No quarto dos fundos da mercearia e enquanto se despia e meditava no agitado dia que tivera, José estava de facto feliz. A admiração do Zé Madeira e o
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ter enfrentado aquele bruto deram-lhe um grande momento de glória. Antes de dormir, ainda exclamou a meia voz: – Não há dúvida. Já sou um lisboeta! – Marie, ma petite, hoje nós ir Setúbal. Ir comprar comida. Levar grande cesto. Correct? – Sim, senhor Spanos. Na cidade foram à loja onde o grego era conhecido e compraram um grande farnel. O grego pagou sem hesitar as centenas de escudos pedidas pelo dono. Depois de ter pago e recebido os trocos, disse, deixando dez tostões para o rapaz da mercearia e dando uma das suas sonoras gargalhadas: – Comprar rebuçadas para mininas! Oferta tio Spanos! – Obrigado. Muito obrigado, senhor Spanos. O senhor é um santo! – agradeceu, às vénias, o homem da loja. – Santa! Mim?! E deu outra sonora gargalhada: – Marie, ma petite, ir outra loja comprar roupa mininos. Tu saber onde ser loja? – Sei sim, senhor! Caminharam lado a lado pelo pequeno burgo até encontrar a dita loja. Não disseram palavra. O grego à frente e ela, – a criadita ou a filha, como se quisesse – sempre uns metros atrás. – Marie, ma petite, caminhar lado Dimitrius. – O senhor caminha muito depressa! Compraram três bons cobertores de lã, vários agasalhos de criança para o Inverno e dois dos bonecos de papelão expostos na montra da loja. O grego pagou o que lhe foi pedido. Como era costume, tirou as notas amarrotadas do molho que trazia no bolso das calças. Carregados com tantos embrulhos, voltaram até à paragem da camioneta para regresso a casa.
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– Marie, ma petite, não ter fome? Nós ter vontade drink. Vamos tasca Videira. – O senhor podia esperar um pouco e, quando chegássemos a casa, bebia até fartar. – Marie, ma petite, Dimitrius ter fome bebida, agora! Quando chegar casa, ter mais bebida, ter mais fome! – Não é fome, é sede, senhor Spanos! – Entonces ter sede!. Findava a tarde quando chegaram. Spanos vinha já bem aviado. A bebida fora transformada em almoço: um robalo de quilo, acabado de pescar, grelhado com sal, limão e muito, mas muito, vinho, mais umas aguardentes e vários cafés, para rebater. O taberneiro, com artes nunca reveladas, até tinha café de altíssima qualidade! Maria comera enorme bife, frito em banha, carregado com dois ovos estrelados e muitas batatas fritas. Não gostava de vinho. Pediu uma laranjada. Tinha sido uma boda! Até tinha comido, no final, uma banana das da Madeira! Milagres dos tempos do racionamento! – Marie, ma petite, Dimitrius ir dormir siesta. Manhana nós falar... Maria ajudou-o a deitar. Descalçou-lhe as botas, despiu-o e meteu-o na cama. Parecia a filha a tratar do pai borracho! – Tu es... mon amour, mia Marie... ma petite! Passados uns minutos, o grego roncava. Maria foi sentar-se numa das pedras da pequena praia. Como de costume embalava a triste e deformada boneca de trapo, a Lindinha. Fora o seu dote, a sua herança. Desde o dia em que saíra da barraca dos pais, conservara aquela boneca. Durante os muitos dias e noites em que ficava só, era ela a sua companhia e a sua confidente. Com os trapos velhos de limpar a pouca louça, fazia-lhe a cama e cantava para ela poder dormir. Ficava serena, a contemplar o sono da Lindinha! Um dia, ela parecera mais enxovalhada e suja. Levou-a ao mar e deu-lhe banho. A pobre não gostou. Ficou doente. Foram dias de sofrimento e preocupação. Com a ajuda do pai, o grego, acabou por voltar a sorrir e a dizer mamã, quando Maria a embalava. Levou tempo a recuperar e a ficar boa e sorridente. Maria ajeitou o xaile à sua volta, não fosse a Lindinha voltar a constipar-se. Como todas as filhas dos pescadores, adorava o mar. Aquela hora do pôr-do62
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-sol tinha nela um especial fascínio. Os sentidos ficavam muito mais despertos. Como sempre fazia, murmurou uma prece: – Meu Deus, dai muita saúde a este bom homem, ao pai da Lindinha. Ele é tão nosso amigo! Nunca me deixes voltar para o meu pai. O sol foi mergulhando para lá das arribas. Era já noite quando Maria entrou em casa. Bateram à porta. – Vá entrando. Está aberta! – Respondeu de dentro uma voz de mulher. Pousaram os cestos na entrada. – Somos nós, Lúcia. – Ah, és tu, Ernesto. Vossemecê é a Maria, a do grego, não é? Entrem, não façam cerimónia. A casa está um pouco desalinhada, por mor dos pequenos. – Não se preocupe. Está tudo mais que bem. Trazemos-lhe aqui umas poucas coisas para os seus miúdos. a mando do senhor Spanos. – disse Maria. – Para os pequenos? – Todos nós sabemos como está a vida... e isto sempre é uma pequena ajuda. Deve dar para uns tempos. Coisa sem importância! O senhor Spanos pede desculpa de ser tão pouco, vai por aí uma falta de tudo... – Ai Nossa Senhora! Tanta coisa! Lúcia nem queria acreditar no que seus olhos viam! Açúcar, ovos, farinha, azeite e ainda mais bacalhau! – Tanta fartura, Deus meu! – Não faça caso, isso é p’rós garotos. Vamos indo, que tenho uma certa pressa! Maria estendeu a cara e deu dois beijos de despedida, enquanto Ernesto dizia já da rua: – Eu depois falo com o Armindo. Até logo, Lúcia. Armindo pousou a cesta. Nela levava dois robalos e a grande corvina. Esperava que o tenente Antunes o mandasse entrar. O ordenança abriu a porta. 63
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O tenente, comandante da secção da G.F., estava à sua espera. Ao entrar, fez a continência. – Dá licença, meu tenente? Apresenta-se a vossa senhoria, o comandante do posto do Portinho da Arrábida. – Entre, Armindo. Está apresentado. Como vai essa saúde e a dos seus? Tenho sempre muito gosto em o ver! O tenente devia ter vinte e cinco anos. Era magro, alto e usava um bigodito à Clark Gable. Fardado de botas altas reluzentes, usava o cinturão com o talabarte de oficial. Nascera numa aldeia da raia, próxima do Sabugal e era filho de modesto comerciante raiano. Para fazer o curso dos liceus na Guarda, tiveram dificuldades económica, mas ele fora sempre bom estudante. Com o apoio da Mocidade Portuguesa, de que fora dedicado e competente comandante de castelo, conseguira entrar na Escola do Exército. O pai endividara-se em trinta contos para que ele pudesse fazer o curso de Infantaria. Depois de ter estado os três anos regulamentares em Mafra, na Escola Prática de Infantaria, fora colocado, no início da carreira, no Regimento de Infantaria 11, em Setúbal. Na pequena cidade, como era a cidade do Sado, conhecera, nos bailes de sociedade, as moças casadoiras. Acabara por casar com a filha de um industrial de conservas. Com esta nova situação e, sobretudo, com o dinheiro do sogro, alargaram a convivência social e as amizades. A nova vida de casado revelara-se bem diferente do tempo de solteiro no Regimento. Tinha agora muito mais contactos com as pessoas civis importantes da cidade e com as autoridades de vária ordem. Conhecera o Governador Civil, o Presidente da Câmara e até Sua Excelência Reverendíssima o Bispo de Évora. Para o regular convívio social, juntavam-se todas as noites no Café Central ou no Café Avenida, para tomarem o café. Assim designavam aquela águeta, só parecida com café. Outros, de gostos menos subtis, apreciavam uma xícara de cevada, com cheirinho de aguardente. Passavam então horas a cavaquear. Falavam do futebol, da guerra e suas consequências, e das coisas que iam acontecendo na cidade e com uma ponta de má língua, de algum escondido escândalo que 64
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quebrasse a modorra dos dias. As opiniões do tenente Arlindo Antunes eram escutadas por ser uma autoridade em futebol e também pelos seus conhecimentos de táctica militar que ajudavam a melhor conhecer e explicar as situações e frentes de combate no gravoso conflito mundial. A sua admiração por Salazar e as obras implementadas pelo governo eram ouvidas com respeito. Todos enalteciam o entusiasmo como eram defendidas com a acrescida importância do uniforme. Aparecia todas as noites fardado. Dava gosto vê-lo, no Inverno, a usar a peliça militar de azul ferrete, com gola e punhos de astracan, um dos presentes de casamento do querido sogro. As suas opiniões e o facto de o Governador Civil também ser do Sporting, fizeram nascer entre eles mútua simpatia, que pronto se transformou em amizade. Desta comunhão de ideais nasceu a proposta para prestar serviço na Guarda Fiscal. A informação decisiva, senão determinante, do Governador Civil, feita à proposta do capitão Couto, situacionista de reconhecido mérito e comandante local da Legião Portuguesa, fora decisiva para que a requisição ao Exército tivesse sido bem sucedida. Só os afilhados do poderoso ministro tinham assento nas sinecuras fora dos quartéis. Comandava com autoridade a Secção da Guarda Fiscal há cerca de dois anos. Merecia de todos consideração e estima pelo trabalho desenvolvido com discrição e eficiência. Quando intervinha na aprovação de obras a construir na zona de domínio público marítimo, para a construção de casas, restaurantes ou até indústrias, fazia-o com rigorosa isenção. Não havia ninguém que se pudesse gabar de lhe ter pago o que quer que fosse por uma decisão. Começou também a ser para todos notória a forma sensata, e sobretudo, incorruptível, com que julgava, em primeira instância, as infracções sobre contrabando, casos fiscais, aduaneiros e marítimos. Se era rigoroso no cumprimento da lei, era, porém, humano e compreensivo com eventuais casos de gente pobre e necessitada. A disciplina que mantinha sobre os militares da Guarda Fiscal, em toda a área do seu comando, fora muito melhorada. A sua acção de comando tinha já sido objecto de público louvor, dado 65
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pelo comandante de Batalhão sob a proposta do comandante da Companhia de Cacilhas, a que estava subordinado. Toda a boa gente de Setúbal reconhecia no tenente Antunes um aprumado e competente oficial, um exemplar chefe de família, um bom amigo e uma óptima pessoa. A amizade do cabo Armindo com o superior imediato começara logo que este veio comandar a secção. Eram ambos da mesma região e o tenente gostava de ouvir o subordinado contar as aventuras dos anos passados na fronteira, enquanto este estivera num dos postos do Sabugal. – É verdade, meu tenente. Tive de vir aqui à secção para tratar de uns assuntos lá do posto e não me queria ir embora sem lhe dar uma palavrinha. – Pois então diga, meu caro amigo. – Trago-lhe aqui, meu tenente, para a sua senhora, três peixitos, pescados esta noite. Parece que ainda estão vivos! Pensei que, com todas estas faltas de comida, lhe podiam dar jeito. – Mas para que é que se esteve a incomodar? Claro que dão jeito! Muito obrigado. E como é que vão as coisas lá pelo posto? – Normal, sem qualquer novidade. Têm estado dias bravos de mar e só ontem conseguiram pescar. O resto é sempre a mesma coisa. Não há problemas. São as vigias na costa e as patrulhas pelas estradas e caminhos, onde, a bem dizer, ninguém passa. Na primeira vez que vossa senhoria vá lá rondar, gostaria que me mandasse avisar e arranjasse um pouco de tempo para lá almoçar. O soldado 40 faz um robalo no forno que é uma maravilha! – Pois fica desde já combinado. Vou dizer ao nosso capitão Couto, para ver se ele também quer ir. Ele é doido por uma patuscada! Não quer que levemos um garrafão dum vinho muito bom, de um lavrador amigo aqui de Palmela? – Seria boa oportunidade para o nosso capitão ir. Ele também me distingue com a sua amizade. Quanto ao vinho não vou dizer que não... – Nunca entendi como é que você, um rapaz novo e ainda a tempo de fazer carreira, não quer vir para aqui, para o serviço marítimo do porto de Setúbal. Isto está sempre cheio de navios e, como sabe, os plantões a bordo sempre lá vão orientando uns quilos de açúcar e de arroz. 66
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– Pois é, mas lá no posto também tenho mais tempo para estudar para o concurso de sargento. O meu tenente já sabe quando é que o vão abrir? – Julgo que até ao fim do ano. O nosso capitão, disse-me que eu até devia fazer parte do júri, em substituição de um capitão. – Isso era uma boa ideia! Eu sempre estava safo, pois vossa senhoria dava-me, por certo, uma ajuda, dentro daquilo que está regulamentado, é certo! – Você merece tudo, Armindo. Você tem sido um bom comandante de posto. Deixámos de ter problemas com os contrabandistas. Também há pouca coisa a passar por ali. A não ser a costumeira fuga dos pescadores à venda do peixe na lota ou a pagarem o imposto do pescado. Os gajos no mercado negro sempre ganham mais uns tostões! – É verdade, dão pouco trabalho. A sua maioria são velhos. Agora havia uma coisa que gostava de lhe pedir, meu tenente. – Diga, amigo Armindo. Não se acanhe. – Para estudar topografia, queria ver se arranjava uma carta, de um para vinte cinco mil, lá da área do posto. Daquelas cartas militares que têm tudo. – É fácil. Quando for à companhia já lá vejo se eles a lá têm, senão, mando-a vir do Comando Geral, ou eu mesmo a trago quando for a Lisboa. – Ficava-lhe muito agradecido, meu tenente. – Quem sabe se lha não levo na próxima vez que for rondar! – Bem, meu tenente, vou andando. Tenho de apanhar a camioneta. Não se preocupe com o cesto. Da próxima vez eu levo-o. – É boa ideia, ou então o meu impedido manda-lho pela camioneta. Mas para quê tanta pressa? Ainda tem de me contar aquelas histórias lá da raia! – Eu não queria ocupar mais o tempo de vossa senhoria. Sabe que tenho sempre muito prazer em conversar sobre esses belos tempos. Não era que fossem fáceis! Aquilo de andar em coluna volante, três e quatro dias, dormindo ao relento e ter de comer a comidita, ou melhor, a bucha, quase sempre fria, não são tempos assim tão saudosos! – Mas tinham outra animação. Principalmente durante a Guerra Civil de Espanha? – Oh meu tenente, eu pouco mais velho sou do que o senhor! Nesses tempos 67
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eu quase que ainda não tinha nascido! – Mas isso não invalida que você tivesse conhecido muitas praças desse tempo. – Ouvi contar muitas histórias dos terríveis anos da Guerra Civil. A fome era tanta e tamanha, que as patrulhas chegaram a ver gente já verde, de tanta erva comerem. Isso mesmo, ervas silvestres. Havia raparigas, das mais novitas, que se entregavam por um pão de centeio! – Tenho lido uns livros sobre a Guerra Civil, mas penso que todos eles só contam o que fizeram os outros, os vermelhos!. A verdade foi bem mais terrível! Graças a Deus e ao Senhor Presidente do Conselho, que nós dessa escapámos a tempo! – Também é verdade. Como o meu tenente sabe eu fui voluntário para a tropa com dezassete anos. Havia pouco de comer lá em casa e assim foi muito melhor. Sempre consegui fugir ao cajado. Tinha só vinte anos quando me alistei na Guarda Fiscal. Colocaram-me em Penamacor. Era uma vilória de barrocos com um castelo em cima, onde só havia corrécios da tropa. Aqueles gajos vindos do barril do Forte de Elvas. Os contrabandistas eram mais para os nossos lados, para os lados de Quadrazais. Penamacor era terra de boa gente! – Mas diz-se que vocês atiravam neles? – Não é verdade, meu tenente. Quando os encontrávamos a caminho de Espanha, fazíamos-lhes alto; eles abandonavam os carregos e estava a coisa resolvida. Nunca ninguém dava um tiro e, se davam, era só para o ar. Não há contrabando que valha a vida de um homem, meu tenente! – É sempre um prazer conversar consigo, Armindo. O cabo pôs-se de pé e colocou o boné na cabeça. Fez a continência, dizendo: – Vossa senhoria dá licença que me retire? O tenente estendeu-lhe a mão. Na tropa isso seria impossível. Um soldado nunca apertava a mão a um oficial! – Adeus, Armindo. – Cumprimentos à senhora e aos meninos. Cá fora e enquanto aguardava a camioneta para regressar a casa, acendeu o cigarro dando umas fumadas. Era uma chatice ter de fumar às escondidas. Os gajos não gostavam que os praças fumassem. 68
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4 Os meses foram passando. Uns iguais aos outros. Os “amarelos” da Indochina davam água pelas barbas aos franceses. Os judeus na Palestina faziam correr os ingleses com bombas e raptos de militares. Franco via-se e desejava-se para matar a fome aos espanhóis e resistir aos vencedores da Grande Guerra. Por cá, foram inauguradas 320 moradias de um bairro de pescadores em Setúbal. As casas eram de três tipos, com cinco, seis e sete divisões e tinham de renda quarenta, setenta e cem escudos mensais. – Uma exploração! Salazar fizera uma remodelação ministerial e ficou tudo na mesma. Um tipo ganhou os 600 contos da sorte grande. Foi abaixo a Praça da Figueira para fazerem uma praça moderna naqueles terrenos. No primeiro jogo de futebol realizado após a Guerra Civil, Portugal deu quatro a um à Espanha. No campeonato nacional, o Sporting dos cinco violinos, deu seis a um ao Benfica. O racionamento para cada pessoa continuava a ser, por mês, de um quilo de açúcar, 350 gramas de arroz, 400 gramas de massa, pouco mais de meio quilo de bacalhau, 250 gramas de sabão, e uma garrafa de laranjada era a medida do azeite e do óleo. Tudo registado na caderneta paroquial e bastas vezes fiscalizado pelos fiscais da Intendência. Houve mais um Inverno com chuvas e frios violentos. Na Primavera, as flores rebentaram nas árvores. No Verão, com muito calor e poucas praias, faltou
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a água. O Outono decorreu com as colheitas a serem melhores que em anos anteriores. O país ia prosperando. José Feliz ia alargando as amizades, atendendo os clientes da loja, carregando e levando caixotes, mais ou menos pesados, rua e escada acima, jogava à bola com os outros garotos da sua idade no largo da igreja e ia, sempre que possível, isto é, quando o cunhado estava de boa catadura, ver o Benfica ao Campo Grande. A irmã Conceição, agora, integrada na cidade, era chamada de dona São, tal qual a patroa dona Lina! Era ela que lhe administrava os dinheiros e lhe comprava roupas, quase novas, na Feira da Ladra. Para ele sobrava o dinheiro das gorjetas. Era muito pouco, mas lá ia dando. O patrão Gregório estava cada vez menos tempo na loja. Tinha agora um negócio muito secreto e do qual não gostava de que se falasse. Vendia bebidas para os bares e cafés de uns amigos. Ao princípio, aqueles negócios intrigavamno bastante. – Por que raio é que o “casaca” não quer falar nem quer que eu saiba do tal negócio? Eu passo aqui o tempo na loja e o gajo até tem a máxima confiança em mim! E tem razão para isso. Eu, a única coisa que roubo são amendoins e rebuçados, e isso, só às vezes. O “casaca” até disse que nem se importava! Por muita ser a curiosidade começou a tomar maior atenção. Viu que ele, antes de sair, telefonava para um tipo qualquer de Setúbal. Depois ia até Cacilhas. Ai que bela recordação! Fora uma vez com a irmã e o cunhado até ao Ginjal; no barco, o vento a bater-lhe nas ventas, os golfinhos aos pulos na água e ele quase a enjoar com os balanços daquela merda... aquilo é que fora uma aventura! Apanhava a camioneta dos Belos e regressava ao estabelecimento depois de fecharem, comia qualquer coisita e ia dormir. Dizia que vinha muito cansado. O negócio devia ser bom. O tipo tinha agora muito mais dinheiro. Para que lhe fizessem todos os descontos, pagava as mercadorias a pronto. Uma vez até já lhe tinha falado em adquirir o trespasse de uma loja ali bem perto. Era de certeza qualquer coisa de contrabando. Tinha de confirmar. O mistério devorava-lhe a alma. Numa tarde em que ambos estavam na loja e não havia fregueses, meteu conversa com a patroa, a dona Lina. Ela ou não sabia ou então fez-se sonsa. Tinha de saber o que era o tal negócio. 70
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Entretanto a chata da Prazeres, a senhora dona Maria dos Prazeres, sempre a exigir de ser tratada daquela maneira, tinha conseguido que o Gregório o fizesse ir todas as tardes de sábado à doutrina, na igreja. Ao princípio gostava daquilo. Fazia-lhe recordar as aulas do Carchola. Era só pena que não houvessem também os grandes arraiais de porrada. A catequista era uma velha, quase surda; fazia-os repetir, milhares de vezes, os mandamentos e o resto da doutrina. Havia alturas em que ele não aguentava nem a mestra catequista, nem o cheiro das velas, mais a perda de tempo e, ainda por cima, o não poder ir jogar à bola. Mas os conselhos da dona Lina, mais as pressões da beata e a bondade e boa disposição do prior – um porreiraço! – faziam com que ele não tivesse mais remédio do que ir aguentando aquelas secas. Os amigos e a bola foram determinantes. Sem crisma nem doutrina acabou um dia com aquilo. Nunca mais lá pôs os pés. O Gregório refilou uns dias, mas depois acabou por se esquecer . Um dia a tal chata da viúva voltou à loja. – Então, José Feliz, quantos anos tens tu agora? – Saiba a senhora que já tenho quase dezassete. – Tu chegaste a ser crismado? – Bem... quer-se dizer... andei lá uns tempos na doutrina, mas lá, os miúdos eram muito burros... e eu... – Não posso acreditar. Então o sô Gregório não te obrigou a lá ir? – O sô Gregório não manda em mim... – Não manda em ti? Um miúdo... – Bem, ele é só meu patrão; não me pode obrigar a ir à doutrina, dona Prazeres. – Dona Maria dos Prazeres, seu ateu, sua alma perdida! A dona estava furiosa. Voltou à carga: – Pois quando eu o encontrar, ele agora nunca pára cá na loja, havemos de conversar. Se ele não tomar uma atitude e não te obrigar a ir à força à doutrina, mesmo a pontapé, eu deixo de cá pôr os pés! Esta loja de ateus! Ficas ainda a saber que eu, lá na igreja, vou contar a toda a gente. Hei-de acabar com a vossa freguesia! 71
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A deitar fogo pelos olhos e chispas pelo rabo, foi porta fora, sem sequer ter feito qualquer compra. A santa fúria acabara-lhe a razão e os apostólicos propósitos! – Maldita beata. Estou feito com o “casaca” quando ele souber disto. A gaja vai de certeza encher-lhe as orelhas! Um raio de sol entrou naquela tarde tenebrosa. Era a Mariana. Vinha radiante e bela como era habitual. Trazia o vestido negro, a touca e o avental, cheios de rendas, engomados e resplandecentes! Assim que entrou, piscou o olho para o ainda perturbado José. Sem lhe dar tempo, disse: – Então, o meu lindinho, tem tido muitas saudades minhas? José recuperou de imediato a boa e permanente disposição: – Ai Marianinha da minha alma, só você me podia fazer ainda mais feliz! Eu a si... comia-a toda com ervilhas! – Veja lá, não vá deixar queimar o refogado, seu lambão das dúzias! Você, seu aprendiz de cozinheiro, não é já o tal feliz? – Agora, desde que a vejo e a sinto aqui tão perto, sou muito mais. O que é que hoje vai levar, minha coisinha fofa? – Nada, que estou com muita pressa. A minha senhora pediu para você levar lá a casa esta lista de compras, que já estão a fazer muita falta. Entendeu? José olhou a lista, mirou os olhos sedosos da rapariga e disse: – Mas tudo isto você já pode levar, agora mesmo. Tenha dó! Estou cá sozinho na loja. Não posso lá ir com as compras, senão depois de fechar a loja. – Eu ainda tenho de ir à praça, a Sapadores, e se me levar lá as compras eu prometo que lhe dou um beijinho como paga. Poupava-se assim do carregar das compras, a sabidona da criada. – Por um beijinho seu irei até ao fim do mundo! Mas se mo der agora, serei o rapaz mais feliz à face da terra! – Eu ontem fui com uma amiga minha ao Eden ver “O Fado”. Olhe, fartei-me de chorar. É um filme com a Amália e o Virgílio Teixeira. Tantos fados bonitos... A minha amiga está também a servir numa casa da rua da Madalena. Gosta muito de cinema. Olhe, ela até já viu a Hermínia Silva cantar o “reza-te a sina” no “O Homem do Ribatejo” e o filme “Camões”, duas vezes! Ela diz que o 72
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António Vilar e o Virgílio Teixeira são os homens mais bonitos do mundo! – Não sabia que gostava tanto de cinema, senão já a tinha convidado para irmos juntos a uma matiné de domingo. Nunca tenho com quem ir. Só vou à bola, e quando o meu cunhado quer! – Se assim é, um domingo destes venho desafiá-lo para irmos ver a Amália ao Apolo. Ela está a fazer uma revista que se chama “Ai Mouraria”. A minha senhora já foi ver e disse que é uma maravilha. Ela canta como ninguém! As pessoas fartam-se de chorar! – Mas isso é no teatro, não é? – Claro que é! É muito melhor do que o cinema! Ali vemos as pessoas ao natural e batemos palmas. No cinema é só ilusão. – Pois então fica combinado. Eu pago os bilhetes. – Você? Ainda ganha menos do que eu! Cada um paga o seu. Olhe que a geral é muito cara, são vinte e quatro tostões! – Não faz mal. Se você for comigo eu pago o lanche. Vamos a uma das pastelarias da Baixa comer doces, ou, como aqui se diz, comer pastéis! – Avie então essas coisas, meu galã de bairro, e leve-as lá a casa! – Ai Marianinha do meu coração, o que é que eu não faço por si? Fez o gesto de sair de trás do balcão. – Então despache-se e veja se não se esquece de aviar o tal toucinho argentino que a minha patroa quer. – Ela ainda quer mais toucinho? Não lhe bondam3 as cinco arrobas que já tem? O raio da mulher nem se consegue mexer! – Não diga isso. Ela é muito minha amiga e até me deixa ir passear de tarde aos domingos. Só não vou quando tem a visita do filho, que é engenheiro e se planta lá em casa toda a tarde! – A senhora tem um filho engenheiro? – Pensava que já lho tinha dito. Trabalha na Carris e é uma pessoa muito importante. Até conhece ministros. A mulher dele também é doutora, mas eu não sei de quê. Só sei que tenho de lhe chamar assim. Passa o tempo a implicar comigo. Se estivesse na casa dela, já me tinha despedido. 3
Regionalismo: chegam.
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Dirigiu-se para a porta para sair. O José ainda tentou detê-la: – Marianinha, não se esqueça do que me prometeu. Quando levar a cesta das compras já sabe! Tem de me dar... – Deixe de ser parvo! Eu não dou nada a ninguém. Só empresto e aos bocadinhos a quem eu quero. Mas em certas condições! Agora ainda tenho de ir a Sapadores. Leve lá as compras a casa, rápido, que eu já estou muito atrasada. Ponho-me à conversa consigo e depois é isto! Foi mais tarde entregar as compras da patroa da Marianinha na rua do Mato Grosso. A dita patroa, toda emproada, abriu-lhe a porta, disse que tudo chegava atrasado e nem um tostão lhe deu. Nem sequer lhe disse obrigado. Farto de atender todo o dia mulheres e rapazes, preparou-se para fechar. Ainda tinha de varrer a loja. Uma vez mais o patrão Gregório não estava. Passava semanas sem estar um dia na loja. Estava a fechar o cadeado por dentro, quando bateram no vidro da porta. Era o Zé Madeira Ribeiro. Voltou a abrir a porta para o amigo entrar. – Então, pá, o que andas tu a fazer por aqui a esta hora? Julgava que largavas mais tarde. Não foste trabalhar? – Hoje pedi para sair mais cedo. Queria dar-te uma palavrinha... – A mim? – Sim, a ti. Muito embora sejas bastante mais novo do que eu, tu sabes mais da vida da cidade. – Nem posso acreditar. Deixa-me fechar bem a porta. Vem comigo. Saímos lá por trás. Aguenta uns minutos que eu vou lá a cima levar o dinheiro da loja e a chave à dona Lina. Volto já. Zé Madeira ficou junto à porta do quarto do amigo. Espreitou. Era muito pequeno, mas tinha um divã só para ele. O fidalgo não tinha que dormir como lá na obra, com os outros em cima, como se fossem andaimes. José estava de volta. Foi dizendo, enquanto tirava o guarda-pó de marçano: – Conta lá então essas novidades! Sentaram-se ambos em cima das sacas do arroz ali arrumadas. – Por intermédio de um tipo lá da obra, conheci noutro dia um chinês. O homem está cá há pouco tempo. Nunca na minha vida tinha visto um tipo como 74
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aquele. Baixinho, muito amarelo e sempre a rir-se. O diabo do homem parece que não tem outra cara! Veio para cá não sei de onde, e vive ou tem um quarto lá para os lados da Baixa. Fala muito mal o português, mas dá para se entender o que o tipo diz. O meu companheiro conheceu-o, pois comem aos domingos na mesma tasca do Poço do Borratém, e fizeram conversa. Eu conheci-o um destes dias. Pusemo-nos à conversa, palavra puxa palavra, mas eu sem entender muito bem o que é que o gajo queria de mim. – E afinal o que é que ele queria? – Não entendi. Na palestra disse-lhe que já era casado, que ainda tinha de ir para a tropa e que a minha não me larga em querer vir para cá, para Lisboa. O amarelito disse-me logo: “ tu ile alanjal qualto”. Olha a novidade! Isso já eu sabia! – Oh Zé Madeira, e tu vens aqui de propósito para me contares essa história e, ainda por cima, faltas ao trabalho? – Ouve o resto e não chateies. O chinês quer que eu o ajude a vender gravatas aí pelas ruas da cidade. Disse-me que me dá percentagem e que eu posso ganhar muito mais do que na obra. Disse-me até que, num pronto, posso mandar vir a Maria. – Mas porque é que o chinês não vende ele as gravatas? Tu nem conheces as ruas da cidade, a bem dizer! – É isso mesmo! Até lhe disse que nunca tinha vendido nada na minha vida! Além da rabiça do arado e do dar serventia aos pedreiros, nada mais sabia fazer. – E ele o que é que disse? – Que não fazia mal. Que ele me ensinava. Que tenho cara de ser esperto e vê lá tu, que o principal era começar! – Mas tu a vender gravatas? Com uma ripa pendurada ao pescoço por um cordel? – Isso mesmo. Sem tirar nem pôr! – Então e agora? – O tipo já me apareceu mais duas vezes. Está mesmo interessado. Aparece lá pela obra ao fim do dia... 75
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– Se calhar, o gajo é paneleiro e quer-te engatar! – A mim?... Tu és doido! Nem te admito que fales nisso. Eu sou muito homem e nem quero ouvir falar em tal gente. Eu sou casado na igreja, ouviste? – Não te queria ofender, pá! Era só um supônhamos! Bem e o tal chinês? – Ontem falou mais um bocadinho da sua ideia. Parece que o gajo não pode andar a vender as gravatas na rua. Tem medo que a polícia o meta dentro. – Mas tanto o prende a ele como te prende a ti! – Pois é, mas, como o gajo é chinês, pode ter mais problemas! – Se calhar é isso. E agora? – Agora não sei que hei-de fazer à minha vida. O homem já me amostrou caixas enormes com uma data de dúzias de gravatas, lá no quarto onde mora. – Ah, tu já foste a casa dele! – Tive de lá ir ontem à noite. Apanhámos o eléctrico até ao Terreiro do Paço e depois fomos a caminhar. É ali perto. – E quanto é que o chinês te quer dar? – Falou em trinta por cento. – Mas trinta por cento do quê? Do preço por que vais vender as gravatas, ou dos lucros que as gravatas derem? – Eu sei lá. Trinta por cento, pá! – Tens de dizer ao chinês que isso é muito pouco. Que não podes deixar um trabalho certo por uma aventura em que nem sabes quanto vais ganhar. Que é um grande risco, pois tens mulher e filhos... enfim, o choradinho, mas bem cantado. O gajo, ao oferecer-te trinta, pode dar-te de certeza até cinquenta! – E lá na terra, o que é que irão dizer, quando souberem que ando cá a vender gravatas? Se calhar vão dizer que eu já virei cigano! – Deixa-te de parvoíces! Na merda de trabalho onde estás, não perdes grande fortuna se estiveres uma semana sem trabalhar. Depois, para servente de pedreiro, não falta trabalho nas construções das avenidas novas, se a coisa não resultar... – E se a minha sabe? Vai pintar o diabo quando lhe disserem que ando a vender gravatas, pentes e camisas-de-vénus. Não é isso que eles andam sempre a oferecer a toda a gente? 76
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– Se estás com medo que eu escreva lá para a terra a contar, podes ficar descansado. Desde que de lá vim, e já lá vão quase três anos, nunca escrevi uma letra. Quem se encarrega de dar notícias é a minha irmã, a Lina. – Atão, quer-se dizer que isto fica um segredo entre nós, não é verdade? – Podes ficar descansado! Eu até nem tenho dessas conversas com a minha irmã. – Tu és um gajo porreiro, oh Zé. Quem era aquela sopeira boazona, que ia a sair e a rebolar-se toda quando eu vinha a entrar? – Não te metas nisso. É criada de uma senhora fina que mora ali na rua Mato Grosso. – Tu andas atrás dela, meu sacana? – Eu? Aqui à loja vêm uma data de gajas. Elas é que andam atrás de mim! – Tens mais sorte do que eu. Para mim ninguém olha. Deve-se ver logo que, além de ser um teso, ainda por cima sou casado! Oh Zé, tu já disseste a alguém aquilo? – Qual aquilo, Zé Madeira? – O que se contava lá na terra! Que tu tens uma com’à de um burro! – Eh pá, não fales nessa merda. Já sabes que isso me chateia. – Não sei porquê, até devias ter orgulho! – Qual orgulho, qual porra!? Vamos mas é beber um copo ali à leitaria. Parece que o teu problema com o chinês já está arranjado! – Não há mais remédio. Tenho de me despedir lá da obra. Tinham acabado de jantar. Gisela ia sair. Como em quase todas as noites, – ia estudar para casa de uma colega e amiga na rua de Washington. Gregório acendeu um cigarro enquanto a Lina levantava a mesa. – Ai homem, passas agora os dias por esse mundo de Deus, sem que ninguém saiba por onde tu andas! Todos os dias dizes que vais escrever ao teu irmão, lá do Brasil, as semanas passam e nada. É sempre a caminhar para Setúbal, para esse maldito negócio! – O que é que tu queres, mulher? Julgas que a vida se ganha dentro de casa? 77
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O lugar dos homens é na rua. Achas mal eu andar todo o dia por fora, mas já achas bem quando trago o dinheirinho para casa! – Isso é bem certo. Muito tu tens feito pela nossa vida! Tudo quanto temos em casa está pago e, se Deus quiser, até já podíamos comprar a quota do teu irmão do Brasil. A ele, isto não lhe faz falta, e a nós, dava-nos bastante jeito o não termos mais sócios. – Deves estar doida! Então cuidas que eu era capaz de escrever ao meu irmão, que nos deu todas estas oportunidades, para lhe dizer que o não queria mais na sociedade do estabelecimento? Que lhe queria comprar a quota dele? Nem pensar. Vou-lhe mas é escrever para dizer que lhe quero pagar o dinheiro que lhe devo. Os trinta contos que ele emprestou para a minha quota. – Eu pensava que ele te tinha dado a entrada! – Pois deu, mas eu agora, que já posso, quero-lha pagar. O Cunha da leitaria, noutro dia, falou-me que estava velho e queria ver se arranjava alguém que lhe quisesse ficar com o trespasse da leitaria. Para nós aquilo tinha interesse. Alargávamos o negócio e, como está aqui ao lado, até podíamos... – Mas tu não queres desenvolver muito mais o tal teu negócio? – Uma coisa não tem nada que ver com a outra. Como tu sabes, o meu negócio é feito por mim e só por mim. O grego não confia em mais ninguém. Está farto de me dizer que tem muito medo que a polícia, a Guarda ou a PIDE o ponham daqui para fora. O tipo dá-me crédito, deixa-me vender à consignação e tem confiança em mim. Mas este negócio só é possível tendo um apoio no ramo. – O que é que tu entendes por apoio do ramo? – Tem de haver uma firma, um estabelecimento, a vender legal o whisky. O grego está a ver se me arranja a representação de marcas na Escócia, para nós podermos vir a importar. Isto enquanto ele não monta lá em Setúbal o seu escritório de representações. – Não percebo nada do que me estás a dizer. – Também não é preciso! Deixa o assunto comigo. Toma mas é conta aqui da loja, pois já sabes como se faz a contabilidade. O tal Leitão tem de ter as contas e os livros sempre em ordem. – E tem. Vem cá todas as semanas a recolher os saldos e já ensinou ao José 78
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como é que quer as contas do apuro diário. – Tenho de aumentar esse gajo. É bom tipo e não rouba como os outros. – Mas tu ainda no final do ano o aumentaste... – Oh Lina, tu achas que é muito, os tostões que o rapaz ganha? Não é bem pior para nós se ele dá com a língua nos dentes ao cunhado? – Isso ele pode fazer tanto ganhando dez como ganhando cem, que é quanto ele ganha cá em casa! – Também é verdade. De todas as formas, o José é bom rapaz, dá conta do negócio e tem-se desenvolto como a mim nunca me passou pela cabeça. É fino como a pólvora! – A propósito disso. Tu sabes quem é que anda num falatório contra nós? É essa tal Prazeres, a viúva. Arrastou-nos pelas ruas da amargura lá entre o beatério da paróquia, porque não deixamos o rapaz ir à doutrina. Diz que não somos tementes a Deus e que as boas almas e as boas consciências da paróquia não deviam pôr os pés na nossa loja. – A viúva anda a dizer isso? – E muito mais! Porque que é que tu, homem, não lhe dizes, num domingo, à saída da missa e diante de toda a gente, que, se ela quiser ou se estiver muito interessada, até deixas ir o marçano todas as noites a casa dela, para aprender a doutrina? Que nos importa a nós que o rapaz se crisme, se case ou se faça padre? Era só para poder calar aquela gaja! – Deixa estar, que eu resolvo o assunto. Amanhã fala ao José e diz-lhe que a partir do fim do mês passa a ganhar trezentos escudos. E desviando o assunto: – Quero ver se um destes dias vamos ver o filme “Sol e Touros”. Dizem que é muito bom. – Aos anos que andas a dizer que levas ao cinema! – É desta, Lina. É desta. Desciam lado a lado a encosta do Portinho. Enquanto caminhavam, livres de ouvidos curiosos, Dimitrius e César acertavam os detalhes das vendas das cai79
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xas de whisky do último desembarque. Tinha decorrido da mesma maneira dos anteriores. As condições eram ideais e a mercadoria enchia o barracão da praia. – César, tu vigiar mercancia. Não poder deixar roubar e muito periga por causa de guardas. Tu agora ir fazer caldeirada, – muita! – tasca Mário e pagar vinho que guardas querer. Guardas não poder ir armazém. Haver muito dinheiro negócio! Mim hoje vai Setúbal, falar advogada para fazer sociedada e abrir nosso office. Entende? – Esteja descansado, senhor Spanos, eu entendo muito bem o que o preocupa. Não podemos de forma alguma deixar que os guardas-fiscais metam o nariz no armazém. Mas temos de despachar a mercadoria. Pode aparecer por aí alguém e lá se vai o negócio. – Isso mesma. Ter vender muito rápida mercancia. Sim senhor. Mas ser também necessária receber dinheiro, money, entender, César? Capitão de barco quer dinheiro contado na mão. Como vocês dizer, não fiar! – Mas não ficou combinado com aquele tipo de Lisboa virem hoje levantar as vinte e cinco caixas na camioneta do Chico Peixeiro, de Cacilhas? – Tu pode entregar. Se ele não traz dinheira, no importa, dá igual. É bom homem e pagar bem. Eu ir direitinha Setúbal. Muita trabalho fazer hoje. A camioneta da carreira vinha do Portinho. Parou ao sinal do César. O grego entrou e lá seguiu para Setúbal. Toda a gente gostava daquele desconchavado grego, sempre bem humorado e sorridente e disposto a pagar uns copos onde tal fosse requerido. – Um mãos rotas! César deixou a camioneta partir e no posto da Guarda Fiscal perguntou ao soldado de plantão onde estava o cabo. – Está ali dentro. Sempre a estudar, o diabo do rapaz! Pode escrever, senhor César. Aquele seu sobrinho vai muito longe! Passe, ele está lá sentado na secretaria do posto. Ao entrar no posto, o César disse a meia voz: – Dás licença? 80
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Armindo levantou-se e enquanto lhe estendia um banco, disse: – Então o que o traz por cá? – Já não te via há uns dias e queria saber como vai a Lúcia e os pequenos. – Lá vamos como Deus é servido! Os garotos andam regalados com a comida e com os bonecos de papelão que deu o senhor Spanos. Sabe, tio, os garotos noutro dia estavam a dar mergulhos de mar aos bonecos de papelão. Menos mal que cheguei a tempo. Doutra forma tinham ficado nas mãos com um monte de pasta de papelão molhada! – Os garotos são assim, mas eu hoje vim cá para falar contigo. Aqui não. Tu não queres ir dar um passeio pela praia? – Estava aqui a estudar umas coisas de armamento para sargento. Mas sempre se podem tirar uns minutos. Tanto estudar até faz doer a cabeça. Agarrou o bivaque pendurado no prego e, ao sair, disse ao plantão: – Vou espairecer um pouco. Vou dar uma volta pela praia. Se houver novidade, já sabe onde me encontrar. Caminharam largas centenas de metros pela praia. Nenhum dos dois queria quebrar o silêncio. O mar, nos dias de Inverno, era muito mais lindo. As ondas mansas, cansadas de tanto pelejar em tempestades consecutivas, aproveitavam aqueles dias de sol para se espraiarem. Espreguiçavam-se, enquanto a brisa serena e as algas perdidas lhes coçavam as costas nuas. As rochas, tolhidas pelos frios, estavam reduzidas à sua condição de pedras. Eram isso e só isso. As areias procuravam o repouso que os temporais tinham quebrado. As gaivotas buscavam os insectos enterrados ou um qualquer caranguejo que, tresloucado por mor de uma qualquer paixão fugaz, se perdera pela praia adentro. Bem vistas as coisas, quem é que se pode enamorar de um caranguejo? Os barcos, varados na praia, esperavam outros dias e outras fainas. O sol, a pique, não queimava nem incomodava. Pedia desculpa de ir alumiando a Terra. – Armindo, ando há muito tempo para ter uma conversa contigo. Uma conversa muito séria. Queria que antes de tudo saibas que como a Lúcia é filha do meu irmão mais novo, que Deus tão cedo levou, me sinto por isso como se teu sogro fosse. 81
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– Eu sei, tio! – Tu, melhor do que ninguém, sabes como estes tempos estão difíceis e as faltas que há de tudo. Todos temos passado mal, mas os garotos têm sido os mais sacrificados. Sabes também como eu tenho sido amigo do grego. É um bom homem! Muito tem ajudado toda a gente! Não sei se sabes, o negócio dele é mandar coisas para a Espanha. Serve assim, mais ou menos, de intermediário. Manda vir a comida da Argentina e depois embarcam-na no caminho de ferro até ao Setil e dali para Espanha. – Eu sei disso tudo, tio César. – Eu tinha de te dizer um segredo. O nosso governo mandou fazer vista grossa e até ajuda o grego! – Também já tinha ouvido. – O próprio Salazar deu essas ordens aos tipos da PIDE. É essa a razão por que ninguém chateia o grego. Ora bem, o tipo simpatiza muito contigo e, como não tem filhos, gosta muito dos teus garotos. – Tem-nos ajudado muito. É bem verdade! – Ora ainda bem que assim pensas. Ele quer ajudar-te mais. Há oportunidades na vida que não se podem perder e nós, os pobres, temos de ter tento na bola pois a sorte só dá uma vez. Deu um pontapé num borgalhão maior e continuou: – Por causa das más línguas e dos falatórios é melhor que vocês não se encontrem muito. Para isso sirvo eu. Pediu-me outra vez aquele mapa aqui da costa. – Já o cá tenho. Trouxe-mo o tenente ontem. Esteve cá a rondar. Se quiser, pode-lho levar já agora. – É um grande favor que lhe fizeste! Vais ver como ele te vai agradecer. Não é homem para meias medidas nem forretices! – Mas afinal o que é que ele quer? – Não sei, mas penso que um dia ele te dirá. Parece que não quer que os outros guardas lá do posto venham a saber disto. Sabes como são, umas autênticas lavadeiras. Contam a toda a gente o feito e o por fazer! – Nisso não há problema. Eu sei como os controlar. 82
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– Há ainda uma outra particularidade. Tu não andas a estudar para sargento? – Nem queira saber. Estudo de noite e de dia. Para poder concorrer e ter bastante tempo para estudar, eu vim aqui parar. Sabia bem que aqui eu posso estudar a valer. – E quantas vagas há este ano em toda a Guarda Fiscal? – Penso que umas dezassete. – Para todo o país, não é verdade? – É isso mesmo. – Quere-se dizer que se não ficares nos primeiros vinte, não tens a mínima esperança de entrar, pois os outros concorrentes devem ser mais que muitos! – Também é verdade! Mas aonde é que quer chegar com todas essas perguntas? – É simples, rapaz! Tu e a tua mulher não tendens onde cair mortos e para seres sargento, além do muito que possas saber e estudar, falta-te o principal: o dinheiro! Sabes muito bem que se não untares as mãos aos gajos que fazem o concurso, não tens qualquer hipótese. Não foi sempre assim? – Eu tenho estudado e sei bastante. Isto além de ser dos mais novos. Parece que este ano o tenente Antunes vai fazer parte do júri. Nomearam-no por ele ser da Arma, quer dizer, da Escola do Exército. Como ele é lá dos meus sítios e gosta muito de mim, tenho, este ano, uma grande oportunidade. – Que será tanto maior quanto melhor o engraxares e untares com presentes. Eu sei que tu, noutro dia, até andaste à procura de uns robalos e de uma garoupa. Eram para ele? – Vossemecê sabe tudo o que se passa cá no Portinho! – Sabes bem que assim é. Bem, para concluir, pois já por aqui andamos há bastante tempo a passear, abre os olhos. Não deites fora as oportunidades. Elas podem nunca mais voltar! Aproveita esta maré. És esperto e novo, podes chegar muito longe! Sabes bem que podes contar comigo e com o meu silêncio. Sou um homem de honra! Sou um homem de palavra! O posto estava ali outra vez ao lado. Faltava ainda cumprir a outra parte do trabalho para o grego. Tinha de ter 83
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uma converseta com os guardas e, para isso, iria ter de lhes encher o bandulho com umas litradas e um petisco que mandara preparar ao Mariozinho; comprara febras de porco na candonga. Iriam comê-las agora, bem assadas nas brasas. Estava com pouca disposição para paródias, mas trabalho era trabalho. Ao entrar na tasca já lá estavam à espera os quatro guardas. Eram os que estavam de folga ou não tinham que fazer fora do posto. – Eh César, julgava que te tinhas baldado! – disse um dos soldados já à vontade para a festança. Tinha as golas e os botões da farda desabotoados. Gesticulava com um copo de meio quartilho cheio de vinho. – Você sabe que eu nunca falto. Mas olha lá, oh Mariozinho, não tens o petisco ainda pronto? – Eu sou como vossemecê, ti César. Nunca falto. Está tudo em ordem! Os nossos amigos já estão a ser bem aviados há mais de meia hora. Como você não vinha foram adiantando serviço. Enquanto esperam, já estão bebendo! – Assim é que é falar! Traz lá o petisco. Encontraram-se à entrada do porto de pesca. Spanos fora pontual. Não terminara de acender um dos seus cigarros “três-vintes” quando apareceu o Gregório. O grego apreciava aquele pequeno homem, sempre respeitador, de poucas palavras, sério e correcto em todos os negócios. Conhecera-o e fora difícil convencê-lo a entrar no negócio. Agora as coisas corriam da melhor maneira. Tinha-lhe dado cada vez mais crédito e as vendas subiam na medida em que ele ia alargando os contactos entre os gerentes ou donos dos bares e cabarets da capital. Gostava de negociar com o Gregório. Era rápido na encomenda. Vinha com o dinheiro da última logo na mão e, para mais, aparecia com a camioneta do Chico Peixeiro de Cacilhas e carregavam as caixas do whisky entre as canastras. Tudo eficácia. Vendia-lhe cada caixa por duzentos e oitenta ou trezentos escudos e ele chegava a vender cada garrafa a quarenta e cinco escudos. Um altíssimo negócio! Quase meio por meio. – Gregório, hoje quantos caixas vás querer, amiga? – Ainda lá tenho algumas da última vez. Mas como isto não azeda, o se84
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nhor Spanos pode contar com duas remessas de dez. Levantava uma ainda hoje à noite, e a outra deixávamos para os primeiros dias de Dezembro, para o Natal. Que lhe parece? – Mim pensar... deixar ver Gregório... tu não pode levar, today, hoje, vinte caixas? – Não tenho onde as guardar. O senhor sabe que eu não as posso ter lá no armazém da minha loja. Não é mais pelo marçano, pois o rapaz até é de confiança, mas por mor dos fiscais da Intendência. Aqueles filhos da puta parecem cães a farejar! Eu tenho estado a guardá-las numa casa do meu irmão. É uma pequena vivenda no Alto de Algés. Está sempre vazia! Mas não posso lá pôr muita tralha dessa, ou mesmo andar por lá todos os dias. A vizinhança pode desconfiar. – Sabes, Gregório, nós ter armazém, lá de praia, muito cheia de material, como você fala! É muita perigoso! Pode vir guardas... – Senhor Spanos, eu entendo muito bem. Vou falar com o Chico, a ver se ele hoje pode mandar lá ir a camioneta. Mas deixe estar, que eu desenrasco o assunto. O mal é depois vender toda essa mercadoria, mas como se aproxima o Natal... – Nós fala dinheiro outra ocasião. No preocupa, Gregório. – Sendo assim, está tudo arranjado. Senhor Spanos quer ir beber alguma coisa? – Nunca beber quando trabalhar! Ter hoje fazer sociedade com advogado e alugar armazém. Vai importar material, como você dizer, do Escócia. – Assim vai acabar com o nosso negócio? – Qual acabar, Gregório! Nós vai aumentar negócio. Nós vai ficar ricos! – Deus o oiça, senhor Spanos! Passou o dia a arrumar e limpar a casa. Aproveitava quando o grego estava fora para fazer a faxina. Varreu a casa, lavou os vidros das janelas, cheios de salitre da água do mar arrastada pelo vento. Limpou o pó e, como estava só e não gostava de fazer comida só para ela, pôs ao lume o tacho com água e cozeu 85
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umas batatas. Descascou-lhes a pele e abriu uma lata de atum. Adorava atum com uma rodela de cebola! O grego não gostava muito. Gostava mais de peixe nas brasas e de carne, a toda a hora e todos os dias. O sol de Inverno estava quente. Nem a brisa corria. Adorava a casa, a praia e o grego. Parecia-lhe sempre muito bonito. Sobretudo, quando se levantava de manhã e dava o mergulho na água do mar, fosse Inverno ou Verão. Quando vinha correndo, agitando os braços, aos gritos como se fora uma criança, e a escorrer água daqueles cabelos alourados, ela podia ver as marcas da guerra. Eram as grandes cicatrizes nas costas, roxas, de tanto frio. Parecia então estar a ver um dos deuses de que ele falava, quando borracho. Depois cuidara da Lindinha. Estava outra com o ar do mar. A comida a tempo e horas e os cuidados da carinhosa mãe, faziam-na crescer a olhos vistos. Num pronto estaria a falar! O grego já uma vez tinha dito que, no estrangeiro, havia de comprar uma boneca, mas uma linda de verdade! Como gostava muito, mas muito, dela, nem ouviu. Poderia ela trocar a sua Lindinha, mesmo feia e encardida, por uma qualquer boneca, por mais bonita, por mais loura ou mais elegante ou cosmopolita que fosse? Não entendia também uma outra coisa. Por que razão o grego nunca a tinha querido fazer sua mulher, mas mulher de verdade? Dormiam juntos, fazialhe carinhos e festas e meiguices e beijos, mas... como fazem os homens e as mulheres, ele nunca tinha querido, nem sequer tentado. Dizia sempre que isso era para quando ela fosse maior. Mas ela era já maior! Em todo o resto era mesmo a sua mulher. Fora o pai, – esse mesmo! – quem um dia lho dissera: – Maria, d’ hoje in diante passas a ser aqui do senhor Spanos! Ele agora é que é o teu dono. Assustara-se. Ou, a bem dizer, fora até melhor assim. Vira-se livre da miséria, da barraca e do pai. Desde que começara a deitar corpo notara o olhar diferente, arrastado e peganhento do pai, quando se vestia ou por força do reduzido espaço se tinha de lavar. Como todos os irmãos dormiam juntos na mesma esteira, o Chico, logo a seguir a ela, também começara há uns tempos, a aproveitar a falta de espaço. Fazia-se dormido. Depois encostava-se a ela cada vez mais. Noutras 86
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noites ia tentando passar-lhe a mão pelas pernas e pelos peitos a nascerem. Tinha de lhe dar sempre um safanão ou uma joelhada no meio das pernas. Isto para que o malvado se acomodasse. Sempre a chatear e a não deixar dormir! A alma ficava-lhe presa e o coração batia-lhe mais depressa, mas só por um seu vizinho. Um aprendiz de pescador, que também jogava futebol no Vitória. Às vezes ficava horas a pensar como seria diferente se fosse esse e não o irmão a afagar-lhe o corpo: Ai como seria bom! Mas aparecera o grego e tudo ficara muito melhor. Sem qualquer comparação. Aquela vida de miséria e fome modificara-se e, graças a Deus Bendito, tudo para bem melhor! – Nossa Senhora da Penha, olhai por mim e pela minha Lindinha. Ainda era dia quando Spanos recebeu a carta topográfica dada pelo Armindo. O César, depois de ter emborrachado os quatro soldados que estavam no posto, tinha passado por lá e trouxera-a. O grego ficara eufórico. A carta topográfica da região de Alpertuche permitia-lhe concretizar uma das mais importantes missões de que fora incumbido. Podia agora, sem nenhumas pressas, estudar melhor o terreno da região, localizar pontos importantes e assinalar ou escrever todos os detalhes e informações que fora recolhendo durante as caminhadas pelas serras e pelas arribas da costa. Podia também informar muito melhor os navios que lhe traziam o contrabando, dando-lhes os rumos e azimutes, conjugados com as fases da lua e as marés. Tinha assinalado todos os baixios, por forma a que eles pudessem abicar no melhor ponto, mais seguro e com as melhores condições para descarregar o contrabando, quando se encostassem às ravinas. A ideia de montar um guincho nas ravinas parecia-lhe agora muito mais próxima; então as descargas seriam muito mais rápidas. Muito mais contente estava ainda pelo facto de a mesma carta topográfica ter sido conseguida pelo cabo. Armindo estava disposto a colaborar. Agora era só questão de tempo o aumentar da confiança. A amizade entre ambos viria depois. Gostava do cabo. Tinha boa pinta. Estava claro que tal colaboração, fazendo que não via e impedindo os soldados de verem, iria ter preço. Mas o que é que 87
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na vida o não tem? Estava também encantado com a discrição de César e a sua eficácia como emissário. – César, Dimitrius, estar muito contento. Mim, vai dar já cem paus César comer as copas. – Beber? Mas não é preciso, senhor Spanos! O senhor sabe que eu estou cá para o que der e vier! – Isso mesma. Beber. Mas não importar. Nós estar muito contento. Aqui estão cem paus. O grego tirou duas notas de cinquenta escudos do costumado molho de notas que trazia no bolso, acrescentando: – Agora nós ter dar pequeno regalo meninos cabo Armindo. Quando vier Natal, você vai entregar, senhora de cabo, mas só senhora, não cabo Armindo, cinco notas de mil escudos! São para meninos ter conta futuro no banco! – Mas isso é muito dinheiro, senhor Spanos! Isso é mais do que o cabo recebe em meio ano de trabalho! – Não importar. Favor grande, ser bem pago! Mas nós, César, ter também pagar Armindo e outros guardas! – Mas como, senhor Spanos? – Muito simples. Você ir Azeiton – o grego tinha muita dificuldade de pronunciar os zês e os ãos! – e alugar barracon ou loja. Dizer ser muito precisa para amigos e pagar logo, três meses alquiler, renda, como dizer aqui. – Mas em nome de quem se vai alugar? – Inventa nome e paga logo. Com dinheiro não haver perguntas! Depois ir mais Ernesta e pôr lá cinco caixas whisky, mais fardo bacalau, lata cinco litras azeite, mais duas sacos arroz, outras tantas de açúcar e quatro caixas de tabaco estrangeira. Eu arranjar tudo em Setúbal. Quando eu fala, você telefona posto para cabo Armindo. Fala como outra pessoa. Dizer sabe onde estar contrabandistas. Indica local de mercancias. Depois, desligar rápido. Não dizer quem falar. Entender? Correct? – Eu entendo o que o senhor diz. Só não entendo porque é que somos nós a telefonar? 88
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– Para cabo Armindo apreende contrabando e fazer bela serviço! Tenente de Setúbal ficar muito contenta com Armindo! – Mas se o tenente sabe, o Armindo e os guardas que ele lá levar não vão poder “capar” aquela parte que lhes cabe por fazerem a apreensão... – Não ser bobo, César! Para tenente, interessar fazer serviço! Todo gente ficar contento e nem refilar ou querer saber. Nós vai ficar muito contenta quando Armindo for louvado por general! – Estou a compreender! Se eles quiserem tirar uma parte, muito bem! O que importa é apresentarem serviço. Não é verdade, senhor Spanos? O grego deu-lhe uma palmada nas costas enquanto se dirigia para o armário da sala, donde tirou uma garrafa escura de um conhaque francês. – Vamos tomar copa Marie, ma petite, no voltar pronto. Poder celebrar reeleição teu Presidente. Carmona! O grego, ao falar, deu uma gargalhada. – O senhor está a fazer troça? Ele ganhou em toda a parte. Todo o país votou como manda o Salazar. Pelo menos assim estavam a dizer na tasca do Mariozinho. Mas há um assunto de que muito queria falar consigo, senhor Spanos. Esteve cá a levantar quase trinta caixas aquele tal de Lisboa. Não deixou dinheiro. Disse-me que já tinha falado com vossemecê. É verdade? – Claro ser verdade, Amiga César! Tu, tal pessoa, em qualquer hora, dia ou noite, poder dar tudo. Entender! Tudo? Mesmo sem minha ordem. Marie, ma petite, saber muito bem deste meu vontade.
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