“Sou feliz assim” - O sentido da vida

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Amélia A méliaa MarƟ MarƟns

Se quisermos quisse sermos rm m s e abrirmos abr brir i mo ir mos o coração, c ra co raçã ção çã o, tudo o, tud do naa vida é imbuído imbu b íd bu ído o dee espiritualidade. espiritualidad de. A literatura, litter erat era atura, a, a música, música, a poesia, poesia, a pintura, pin in ntura r ,o teatro, cinema, respiração, nascer, teatro o, o cinema m , a resp ma pirração, o na nasc s er, o ccrescer, ressce c r, o aaprender pren en nderr a aandar, an nd daar, a vida, v da vi da, o nosso noss sso o próprio própriio envelhecimento. enveelh lhecim men nto t .

Amélia Martins

“Sou feliz assim”

O sentido da vida

“seriaa eu u tão t o pobre tã po obre sem m Deus Deuss na na minha minh ha vida” vida da”” Isabel, Issab bel, 87 aanos noss no

Acompanhamento Acom Ac o panh om paan am mento o espiritual espirrit ituall de d idosos ido d so soss

“Sou “Sou feliz feliz assim” asssim”” O senƟ seenƟdo da vida viida

Acompanhamento espiritual de idosos

A Auto Autora: A u ora ra: Amélia MarƟ Amél Am élia él ia Mar arrƟns n Nascida Maio N scida em Na mM aio dee 1974. ai 197 974. Religiosa 974. Rel e iggio osa da da Congregação Cong Co n re reggação o das da Irmãs Irrmã m s Concepcionistas Co onc ncep epci ep cion ci onisstaas ao Serviço on Ser ervi erv viço dos dos Pobres Pob obrees desdee 1996. 1996 19 96 96. Licenciada L cencia Li iada ia daa em em Serviço Serv Se rvviç iço Social Sociial e Pós-graduação So Pós ós-g -gra -g radu du uaçção o em NeuropsicoNeurropsiccologia logi lo g a Clínica. gi Clín Cl nic i a. Doutoranda Dou outo t ra to r nda em m Psicologia Psi sico colo co logi lo g a CogniƟ gi Cogn Co gniƟ gn iƟ Ɵvvaa na Faculdade Fac aculda ul ade de de Psicologia Psi sico colo co logi lo giaa e Ciências gi C ên Ci ênci cias ci ass da da Educação Educ Ed ucaç uc ação aç ão de de Coimbra. Coim Co imbr im mb a. É Directora Dire Dire Di rect ctor ct oraa Técnica or Técn Té cnic cn i a do Lar ic Lar ar Santa San ntaa Beatriz Beaatr triz izz da da Silva Silvva desde Si d sd de s e 2004. 20 2 004 04.

Prefácio de Monsenhor Victor Feytor Pinto



AMÉLIA MARTINS

“Sou feliz assim”

O SENTIDO DA VIDA Acompanhamento espiritual de idosos


FICHA TÉCNICA Edição: Maria Amélia Nabais Martins Título: “Sou feliz assim” O sentido da vida – Acompanhamento espiritual de idosos Autora: Amélia Martins Capa: Sítio do Livro Paginação: Paulo Silva Resende 1.ª edição Lisboa, Janeiro 2012 Impressão e Acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-97252-1-8 Depósito Legal: 335661/11 © AMÉLIA MARTINS Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


“Sou feliz assim”

O SENTIDO DA VIDA Acompanhamento espiritual de idosos



PREFÁCIO É no limiar de 2012 que se publica o livro, “Sinto-me feliz – o sentido da vida”, dedicado à atenção dos mais velhos, pessoas que, com a sua história, são indispensáveis à comunidade de que fazem parte. Este é o Ano europeu do Envelhecimento Activo, um tempo privilegiado para repensar o apoio que se dá a quantos, no outono da vida, continuam a lutar pela dignidade e plena realização. Amélia Martins, a autora, dedicou a sua vida toda ao cuidado dos maiores, seniores e, eventualmente, debilitados, sentindo, por isso, necessidade imperiosa de ser auxiliados, nos limites que a idade lhes impõe. É uma obra de grande alcance, viver para os outros a tempo inteiro. Curiosamente, longe de se instalar na rotina de uma actividade assistencialista quis apresentar a riqueza destas vidas que lhe foram confiadas. Então, estuda a importância da espiritualidade, na plena realização da pessoa. É o problema da vida espiritual, com dimensão de terapia, o que a faz escrever esta obra, cheia de reflexões surgidas na atenção às pessoas, mas que também 7


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dá sugestões práticas para um cuidar integral. Num mundo profundamente materialista, começam a surgir sinais de um certo cansaço das pessoas que acabam por sentir necessidade de dar importância à espiritualidade. O facto é que o ser humano é um ser espiritual, dotado de inteligência, de vontade e de sensibilidade. O mundo centrado na matéria não faz ninguém feliz. Uma sociedade de sabor racionalista deixa as pessoas vazias de afectos, o que as empobrece profundamente. Neste mundo assim, sente-se a urgência desse voltar ao espiritual, uma vez que o ser humano é muito mais do que matéria, mesmo com as certezas que a razão assegura. A humanidade está a voltar-se definitivamente, para o espiritual. Perguntar-se-á, porém, o que é a espiritualidade, quais as suas componentes, como é que se acompanha, quem pode desenvolvê-la. Há muita gente que centra a espiritualidade na dimensão religiosa do ser humano. Mas a espiritualidade é muito mais. - É cultura, para que o ser humano se realize no conhecimento, na arte, na beleza, nos valores éticos e sociais, na capacidade de dar-se e de ser feliz. - É também relações, uma vez que o ser humano é ser social e, enquanto tal, só é feliz se se encontra com os outros. A solidão é o drama maior do homem contemporâneo. Então, só a relação com os demais lhe dá sentido à vida, o liberta dos egoísmos, lhe abre o coração ao serviço dos outros, na alegria do dom. - É, finalmente, transcendência, porque só pela espiritualidade pode o ser humano ultrapassar os próprios limites. É claro que, à transcendência, pertence também o religioso da vida. Pela transcendência, a pessoa encontra-se com Deus, na


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imagem que d’Ele faz, e descobre tempos novos que só um ser superior pode oferecer. É verdade que o ser humano é global, não é só corpo, é um complexo bio-psico-social cultural-espiritual e religioso, em complementaridade perfeita. Ortega e Gasset escreveu um livro a que deu este título “El hombre y su circunstancia”. Esta visão global da pessoa reclama a importância da espiritualidade integral. Hoje, nas universidades, fala-se muito da gerontotranscendência. Foi um filósofo americano Tornstam que, em 1989, desenvolveu o conceito de gerontotranscendência no processo de envelhecimento. Neste estudo, refere que as pessoas, ao avançarem na idade, vão descobrindo a importância da espiritualidade. Desprendendo-se das futilidades, sentem a necessidade do silêncio e mesmo de contemplação, entram no processo de interiorização que outra coisa não é do que a procura do essencial. O silêncio dos idosos não é sinal de “depressão”, pode ao contrário revelar a procura do que é importante. Traduzindo este fenómeno, em palavras simples, os idosos encontram na espiritualidade, ao nível do transcendente, a riqueza maior das suas vidas. É ali que vão buscar as grandes sínteses de vida que, depois, podem transmitir às gerações mais novas. Os seniores vão-se desinteressando das coisas supérfluas, dedicam-se mais à “meditação”, redefinem a percepção do tempo, do espaço e dos objectos. Vão perdendo o medo da morte. Nesta fase de vida, os mais velhos entram num diálogo profundo com Deus que lhes dá sentido à vida. Amélia Martins, autora desta obra, revela que está a aprofundar o mistério da gerontotranscendência. Não esgota o

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tema na simples resposta de natureza religiosa, mas vai ao ponto de querer construir um paradigma pastoral para toda a acção que se desenvolve, em unidades de cuidados para pessoas mais velhas. Partindo da ideia de que tudo na vida está imbuído de espiritualidade, ou não fôramos seres espirituais, pergunta-se se a procura do sobrenatural não será sinal de maturidade ou até um desejo de imortalidade. Para superar esta maneira de ver, a autora leva-nos a reconhecer a finitude do ser humano, a ensaiar formas de viver a espiritualidade no concreto da vida. São quatro os grandes capítulos por onde Amélia Martins nos conduz: o envelhecimento e o sentido da vida, a consciência da finitude, o compromisso de vida no Plano Individual e a missão espiritual com presença orante. Na afirmação do religioso, a autora não tem medo de colocar-se numa quase catequese “iniciação à vida cristã”, no seu trabalho com os idosos. Por isso, fala de Jesus Cristo, no anúncio do Reino de Deus, fala do processo de libertação que Jesus veio trazer aos mais pobres e que mais sofrem e, fala mesmo da comunidade dos discípulos, como gérmen da Igreja. São três dinâmicas de uma iniciação cristã: o Kerigma, a Diaconia e a Koinonia, isto é o anúncio, o serviço e a comunhão. Todo este trabalho reflecte uma acção no terreno, no meio das pessoas com os seus problemas. Em última análise pretende-se valorizar, promover e resgatar a pessoa idosa, através da criação de grupos de interesse. A espiritualidade, assumida na sua missão integral, é o motor de uma acção que permite às pessoas sentirem-se felizes no seu envelhecimento. Um grande autor, Anselm Grün fala


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com frequência da sublime arte de envelhecer, mas é a espiritualidade que torna possível esta arte sublime. Agradeço à Amélia Martins a obra de pastoral que nos deixa. Lê-la abre portas de acção a quem quiser dedicar-se ao cuidado com os mais idosos. Lisboa, 11-12-09 Monsenhor Vítor Feytor Pinto

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“Sou feliz assim� O sentido da vida



INTRODUÇÃO Se quisermos e abrirmos o coração, vemos que tudo na vida é imbuído de espiritualidade. A literatura, a música, a poesia, a pintura, o teatro, o cinema, a respiração, o nascer, o crescer, o aprender a andar, a vida, o nosso próprio envelhecimento. Neste opúsculo sobre a relação espiritualidade e envelhecimento, quisemos partilhar com o leitor a nossa experiência. Colocamo-nos, primeiramente, algumas questões a que tentaremos dar resposta ao longo do texto, querendo sempre priorizar o encanto pela vida. Será a espiritualidade um sinal de maturidade ou um desejo que o idoso tem de se eternizar? A dimensão da espiritualidade aparece com maior preocupação por ver chegar o fim da vida? Mesmo na demência e/ou dependência há vivência espiritual? Apresentaremos, também no nosso texto propostas de reflexão, oração e trabalho com grupos de idosos ou individualmente. 15


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No entanto, antes de mais, deveremos prevenir o leitor de que não somos especialistas em espiritualidade, nem gerontólogos. O texto que aqui surge, é tão simplesmente a partilha do que experimentamos viver no Lar Santa Beatriz da Silva (Fátima) e o que desejamos para o futuro. O nosso interesse por este tema da espiritualidade surgiu a partir de nossa prática do dia a dia de acompanhamento de idosos, desde a sua fase de integração/adaptação ao Lar até ao fim. A espiritualidade constituiu-se um poderoso factor de suporte para enfrentar desafios, frustrações e sofrimentos, além de melhorar consideravelmente a saúde e a qualidade de vida. É possível encontrar sinais de que a busca de um sentido para a vida, a presença da fé, a prática de virtudes e a crença na transcendência, com o avançar da idade, pode actuar como um recurso para melhoria de condições de saúde e prolongamento da vida (Negreiros, 2003). Não realizámos entrevistas com finalidades de descobertas de categorias e sub-categorias, nem definimos nenhum caminho metodológico com preocupações científicas para concretizar este texto, no entanto, pela prática do dia a dia verificamos a evidência da afirmação:


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“Sei que tenho de passar por esta provação (a vida), mas ofereço-o pelos meus netos, podem não saber, mas a mim basta-me que o saiba eu e Deus”. Maria, 90 anos São expressões como esta que fundamentam a nossa partilha – reflexão. Ao longo deste percurso apresentaremos outras que ilustram o pensamento que se vai expressando (os nomes são fictícios). Dividimos o opúsculo em três partes. Numa primeira apresentamos uma breve abordagem sobre o conceito de espiritualidade, na segunda a finitude e temporalidade do homem e por fim, propostas concretas de actividades pastorais, actividades estas, que pretendem elevar a consciência espiritual, a descoberta do próprio ADN espiritual1 dos idosos institucionalizados e dos cuidadores. Mesmo sabendo que a dimensão da espiritualidade não se pode confundir com nenhuma religião em particular, que é inerente a qualquer ser humano, não podemos afastar-nos da sua ligação (em todo o texto) à Igreja Católica pelo facto de sermos uma Instituição de uma Congregação Religiosa (Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres). Antes de iniciar o caminho lembremos o que diz Beethoven: “as vibrações no ar são a música de Deus que fala à alma dos Homens. Música é o idioma de Deus. Os músicos são aqueles que mais se aproximam de Deus, ouvem sua voz, lêem os seus lábios, dão glória a Deus (...) os músicos 1

Se percorrermos o caminho interior do homem, descobrimos que a sua árvore genealógica, o seu ADN, é essencialmente espiritual. «A vossa vida está escondida com Cristo em Deus.» (Cl 3,1-4)

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são assim, se não formos assim, não somos nada”. Na música da vida, que todos tocamos, precisamos tocar a sinfonia da espiritualidade, precisamos ser os músicos da beleza, da esperança, da eternidade que começa aqui.


1 – ESPIRITUALIDADE ENVELHECIMENTO E SENTIDO DA VIDA Para entrarmos mais profundamente neste ambiente não importa tanto, abordar teoricamente o que é o envelhecimento, pois sobre este assunto outros profissionais o fazem e muita literatura poderá ajudar o leitor, que pretenda, esse aprofundamento, por conseguinte, destacaremos sim a relação: envelhecimento e espiritualidade numa Instituição. Queremos relacionar o envelhecimento com o processo de amadurecimento ou aquisição de uma característica considerada positiva, como a sabedoria, a virtude (Negreiros, 2003). Aquela sabedoria e virtude que ouvimos falar nos provérbios africanos ou orientais. Aquela sabedoria e virtude próprias da vida no espírito. “ ... O rio atinge seus objectivos porque aprendeu a contornar obstáculos ...” Lao Tzu

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Espiritualidade, por vezes, é considerada um conceito metafísico, não passível de inserção na literatura científica, isto é, sem as credenciais do rigor científico para legitimar o termo. Embora as actuais evidências sejam tão expressivas e numerosas que já não há possibilidades de ignorar nem o termo, nem sua relação com o envelhecimento (Goldestein & Sommerhalder, 2002, cit in Negreiros, 2003). De qualquer forma, não se trata de um tema sobre o qual profissionais cuidadores de idosos, se sentem confortáveis em falar e partilhar. Além do preconceito que ainda perpetua nalgumas Instituições de que a dimensão espiritual não é da competência dos profissionais da área das ciências sociais e humanas... como se a dimensão espiritual não fosse “tão humana”. Algumas pesquisas têm sido desenvolvidas sobre a relação entre espiritualidade e envelhecimento, em diversos contextos, desde aquelas direccionadas para a melhoria de condições de vida e de saúde – pelo auto-conhecimento, prática de virtudes, adaptação a condições adversas, interacção social, devoção religiosa, etc. – até à aceitação e preparação para a morte – crença na manutenção do espírito, apesar da decadência corporal; transcendência de si próprio, do tempo e do espaço; desapego, etc. (Negreiros, 2003: 278). Apresentamos aqui, à semelhança da autora acima citada, as duas dimensões da espiritualidade do estudo de Moberg e Brusek (1978)2, que destaca: a vertente horizontal, representada como um recurso interno e subjectivo, mobilizado pela experiência de doação de si, de fraternidade, através do encontro consigo mesmo, com a natureza, arte, poesia, ou 2

Cf. http://findarticles.com/p/articles/mi_hb1416/is_3_28/ai_n2927 9925/?tag=mantle_skin;content acedido a 1/08/2010


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quaisquer ideais visando o bem-estar social, a solidariedade, o cuidado, a tolerância. E a vertente vertical que caracteriza um movimento em direcção a Deus, a um Poder Superior, ao grande Outro, “Àquele que É”3. De qualquer modo, ambas as dimensões não seriam excludentes entre si, e cada uma, a seu modo, estaria ligada à alteridade4. É preciso colocarmo-nos 3

«Moisés apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã. Um dia em que conduzira o rebanho para além do deserto, chegou até a montanha de Deus, Horeb. O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama (que saía) do meio a uma sarça. Moisés olhava: a sarça ardia, mas não se consumia. “Vou me aproximar, disse ele consigo, para contemplar esse extraordinário espetáculo, e saber porque a sarça não se consome.” Vendo o Senhor que ele se aproximou para ver, chamou-o do meio da sarça: “Moisés, Moisés!” “Eis-me aqui!” respondeu ele. E Deus: “Não te aproximes daqui. Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa. Eu sou, ajuntou ele, o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”. Moisés escondeu o rosto, e não ousava olhar para Deus. O Senhor disse: “Eu vi, eu vi a aflição de meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa de seus opressores. Sim, eu conheço seus sofrimentos. E desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir do Egito para uma terra fértil e espaçosa, uma terra que mana leite e mel, lá onde habitam os cananeus, os hiteus, os amorreus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus. Agora, eis que os clamores dos israelitas chegaram até mim, e vi a opressão que lhes fazem os egípcios. Vai, eu te envio ao faraó para tirar do Egito os israelitas, meu povo”. Moisés disse a Deus: “Quem sou eu para ir ter com o faraó e tirar do Egito os israelitas?” “Eu estarei contigo, respondeu Deus; e eis aqui um sinal de que sou eu que te envio: quando tiveres tirado o povo do Egito, servireis a Deus sobre esta montanha”. Moisés disse a Deus: “Quando eu for para junto dos israelitas e lhes disser que o Deus de seus pais me enviou a eles, que lhes responderei se me perguntarem qual é o seu nome?” Deus respondeu a Moisés: “EU SOU AQUELE QUE SOU” (YAWEH).» Ex. 3, 1 e ss.

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Alteridade (ou outridade) é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afirmam, a existência do “eu-individual” só é permitida mediante um contacto com o outro (que em

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no lugar do outro, na relação interpessoal, com consideração, valorização para chegar a Deus. Não é possível desligar estas duas dimensões. Na sociedade actual vemos, muitas vezes, preocupação apenas com a primeira, a horizontal... mas só essa direcção não responde à busca do ser humano. O caminho da espiritualidade é a encruzilhada das duas linhas: horizontal e vertical. Esta perpendicularidade é fundamental para a realização plena e para o encontro com o Absoluto. Para nós, católicos, o Absoluto que é Deus. E bem sabemos que o encontro com Este, só é possível se o caminho horizontal também for feito5. Só assim se experimenta a verdadeira Ternura de Deus que se revela a todo o homem. O ser humano é uma expressão de vida, emana luz e reflecte o amor em qualquer dimensão que decida tocar. A humanidade não é apenas mente humana e divina que faz com que o homem, longe de se sentir um “anjo infeliz”, se uma visão expandida se torna o Outro – a própria sociedade diferente do indivíduo) in http://pt.wikipedia.org/wiki/Alteridade acedido a 13/04/2011 5

Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, não entrareis no Reino do Céu.» «Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás. Aquele que matar terá de responder em juízo. Eu, porém, digo-vos: Quem se irritar contra o seu irmão será réu perante o tribunal; quem lhe chamar ‘imbecil’ será réu diante do Conselho; e quem lhe chamar ‘louco’ será réu da Geena do fogo. Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta. Com o teu adversário mostra-te conciliador, enquanto caminhardes juntos, para não acontecer que ele te entregue ao juiz e este à guarda e te mandem para a prisão. Mt 5, 20-26


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contemple como criatura de Deus numa harmonia integral com o mundo, com a natureza, com o seu corpo, a sua sexualidade, o seu trabalho, a arte, a ciência, a política, o sofrimento, o seu sentir, com o outro, em suma com a vida. Estamos todos conscientes da existência de uma relação entre espiritualidade e envelhecimento saudáveis, manifestados tanto na forma física como na emocional e a partir da definição da Organização Mundial da Saúde que advoga que a saúde é um estado de completo bem estar físico, mental, social e não meramente a ausência de doenças ou enfermidade. A natureza holística da saúde é uma certeza. O ser humano é um ser holístico em suas dimensões: física, mental e espiritual; por isso, é fundamental, um envolvimento com actividades que elevem a consciência espiritual, que proporcionem o bem estar, ou a prática de valores fundamentais, como a bondade, a caridade e a compaixão. Estas surgem como uma forma alternativa e complementar à actividade da ciência médica e à atenção dos cuidadores. A humanitude, de que tanto se fala hoje, mais do que os cuidados humanizados ao idoso deve contemplar a dimensão espiritual, em ordem à integralidade. Somos um todo: biopsiquico-fisico-social e espiritual. A espiritualidade é a dimensão humana que sustenta em seu seio os valores da solidariedade, da compaixão, do cuidado e do amor, indispensáveis ao desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente humana (Volcan, 2003). A espiritualidade é inata ao ser humano e não um monopólio das religiões. O suprimento das necessidades espirituais e de transcendência vem através da arte, do amor, da prática de determinados valores, de relacionamentos interpessoais, sentido de vida e não somente de práticas religiosas

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(Oro, 1993), mas estas são essenciais6. Lembremos aqui Viktor Frankl7 a quem chamaram o salmista do século 20. Viktor 6

«De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda: poderá alguém alegar sensatamente: «Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé. Tu crês que há um só Deus? Fazes bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-se de terror.» Queres tu saber, ó homem insensato, como é que a fé sem obras é estéril? Não foi porventura pelas obras que Abraão, nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaac? Repara que a fé cooperava com as suas obras e que, pelas obras, a sua fé se tornou perfeita. E assim se cumpriu a Escritura que diz: Abraão acreditou em Deus e isso foi-lhe contado como justiça, e foi chamado amigo de Deus. Vedes, pois, como o homem fica justificado pelas obras e não somente pela fé. Do mesmo modo, a prostituta Raab não foi ela também justificada pelas suas obras, ao receber os mensageiros e ao fazê-los sair por outro caminho? Assim como o corpo sem alma está morto, assim também a fé sem obras está morta.» Tg 2, 14 -26.

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Viktor Emil Frankl (Viena, 26 de Março de 1905 — 2 de Setembro de 1997) foi um médico e psiquiatra austríaco, fundador da escola da Logoterapia, que explora o sentido existencial do indivíduo e a dimensão espiritual da existência. No seu livro A Busca do Homem por Sentido (publicado pela primeira vez em 1946), Frankl relata suas experiências como interno de campo de concentração, descrevendo seu método psicoterapêutico para encontrar sentido em todas as formas de existência (mesmo as mais sórdidas) e, daí, uma razão para continuar vivendo. Em suas próprias palavras “O homem, por força de sua dimensão espiritual, pode encontrar sentido em cada situação da vida e dar-lhe uma resposta adequada. Em setembro de 1942, Viktor, sua mulher grávida e família, porque judeus, são deportados para diferentes campos de concentração, tendo ele recebido a tatuagem de prisioneiro nº 119.104. Libertado somente ao fim da guerra, Frankl toma conhecimento de que sua mulher morreu de esgotamento simultaneamente à liberação do campo de Bergen-Belsen. Perdeu além dela, seus pais e irmão no


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Frankl, garante que sobreviveu aos campos de concentração por causa de sua fé pessoal em Deus, que lhe dava e mostrava o sentido da vida. Num dos primeiros discursos públicos depois da guerra, Frankl testemunhou o poder sustentador da fé num Deus pessoal e vivo. Ele poderia parafrasear David na situação difícil em que este se encontrava: “Todo o meu ser anseia por ti nesse campo de concentração, sem nome, sem família, sem consultório, sem cartas, sem livros, sem nada”8. Religião e espiritualidade são recursos utilizados com frequência pelos idosos diante de diversos problemas, especialmente quando se trata de doenças. No dia a dia é comum ouvirmos expressões tais como: “…se Deus quiser vou melhorar…” “…hoje sinto-me melhor, graças a Deus…” “…é preciso ter fé em Deus, Ele é que sabe o que é melhor…” “…a minha cruz é grande, mas a Dele foi maior…” “…é preciso sofrer com paciência, o fardo torna-se mais leve…”

Holocausto nazista. Esta indelével experiência pessoal será marcante em sua obra terapêutica e em seus escritos, tendo sido capaz de manter, em tal situação desumanizadora, a capacidade de manter a liberdade do espírito. In http://pt.wikipedia.org/wiki/Viktor_Frankl acedido a 2/08/2010. 8

«Como suspira a corça pelas águas correntes, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo! Quando poderei contemplar a face de Deus?» Sl 42, 2-3

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Tais frases apontam para a relação da espiritualidade com optimismo, esperança, na busca de força interior que se fundamenta em Deus. Esta fé ajuda a enfrentar procedimentos invasivos, a alimentar-se mesmo quando não há apetite, a alegrar-se no meio da tristeza, a sentir-se pessoa no meio de muitos, a sentir vida mesmo vendo partir as pessoas significativas. “Deus faz a sua parte, eu tenho de fazer a minha.” Lurdes, 90 anos Este tipo de pensamento auxilia o trabalho dos cuidadores, pois dependemos do querer, da aceitação do idoso em ser atendido, das suas disposições interiores. Aldwin, (2000) cita sete funções adaptativas principais para enfrentar doenças: lidar com consequências fisiológicas de doenças, como dor, sintomas e incapacidade; lidar com o tratamento e o ambiente institucional; desenvolver e manter boas relações com a equipe coordenadora, de saúde e de cuidados de higiene; manter o equilíbrio emocional; manter um senso de self, incluindo competência e controle; manter boas relações com família e amigos e preparação para futuras exigências (Duarte e Wanderley, 2011). Uma das nossas intervenções, junto dos idosos, tal como das autoras acima referidas no estudo que publicaram9, é justamente, auxiliar o idoso a desenvolver tais funções adaptativas, para que o período de vida no Lar seja o menos desconfortável e aversivo possível, na intenção de propiciar bem-estar psicológico, emocional e 9

Religião e espiritualidade dos Idosos em uma enfermaria geriátrica – ver Bibliografia


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espiritual. Ao acolher os idosos aquando da sua integração, observa-se se há procura para atendimento religioso, por meio da relevância que o mesmo atribui à religião, principalmente se associado com sentimentos de desesperança originados pela doença e consequente dependência, mas também de esperança em que os últimos dias da sua vida possa sentir o conforto espiritual há muito desejado... Como este Lar é orientado por Religiosas10, dispõe de serviço e actividades de capelania e Assistente Espiritual, caso o idoso ou familiar demonstre o desejo de colocar em prática a sua vida de fé, é informado quanto à disponibilidade do serviço, deixando-o à vontade para escolher se quer ou não o atendimento e participação. A experiência no Lar tem demonstrado que os idosos querem de bom grado o atendimento religioso e alguns relatam sentirem-se melhor após tal assistência. “Não me confessava desde os 9 anos de idade, nem comungava, hoje, depois de me confessar, estou feliz”. Manuel, 79 anos Com ética e respeito pelos valores religiosos e espirituais dos utentes, o cuidador pode encontrar na religião e espiritualidade ferramentas úteis que podem auxiliar no atendimento a idosos institucionalizados, que encontram na fé optimismo, esperança e motivação para implicar-se e envolver-se com a vida, aspectos de extrema relevância para sua adaptação, 10

Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres – www.concepcionistas. pt

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para continuar a sentir-se parte integrante da sociedade, do mundo. “Desde a idade de seis anos eu tinha mania de desenhar a forma dos objectos. Por volta dos cinquenta havia publicado uma infinidade de desenhos, mas tudo o que produzi antes dos sessenta não deve ser levado em conta. Aos setenta e três compreendi mais ou menos a estrutura da verdadeira natureza, as plantas, as árvores, os pássaros, os peixes e os insectos. Em consequência, aos oitenta terei feito ainda mais progresso. Aos noventa penetrarei no mistério das coisas; aos cem, terei decididamente chegado a um grau de maravilhamento — e quando eu tiver cento e dez anos, para mim, seja um ponto ou uma linha, tudo será vivo. “ Katsushika Hokusai, sécs. 18-19 Aplicámos a 7 idosos11 a Escala de Religiosidade DUREL (Duke Religious Index) para avaliar o índice de religiosidade12 (Duarte e Wanderley, 2011). Esta escala, conforme as autoras, compreende três das dimensões de religiosidade que mais se relacionam com saúde: organizacional (RO), não-organizacional (RNO) e religiosidade intrínseca (RI). É composta por cinco itens e na análise dos resultados, as pontuações nas três dimensões (RO, RNO e RI) são analisadas isoladamente13. 11

7 idosas do Lar Santa Beatriz da Silva. Esta aplicação teve por objectivo inicial validar se a mesma teria aplicabilidade à nossa Instituição. No futuro (em 2012), desejamos fazer um estudo mais exaustivo e mais científico sobre a mesma

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Tal como no estudo já referido

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Ver anexo I


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Religiosidade Organizacional (RO) refere-se à participação e frequência em igrejas, templos ou encontros religiosos, ou seja, a Religiosidade Organizacional está relacionada com uma forte componente social. Religiosidade Não-Organizacional (RNO), diz respeito às actividades religiosas que podem ser realizadas a partir da privacidade do lar como orações, leituras e programas de TV e/ou rádio e que não dependem da interacção com outras pessoas. Finalmente, a Religiosidade Intrínseca (RI) avalia o quanto a religião pode motivar ou influenciar nos comportamentos, decisões e, de forma geral, na vida do sujeito. Trata-se de uma dimensão subjectiva, do quanto e como o indivíduo percebe a importância da religião em sua vida. (Koenig e Cols., 2004 cit in Duarte e Wanderley, 2011). Não são somados totais dessas três dimensões. O procedimento utilizado foi simples, dada a empatia e conhecimento já fortalecido, pois todas as idosas residem há mais de 5 anos no Lar. servimo-nos de uma conversa informal estabelecida inicialmente para introduzir o assunto – escala e livremente participaram. Não apresentamos aqui percentagens, dado que o número de participantes é insignificante, mas a experiência retirada da vivência deste momento não pode deixar de ser aqui escrita. É que a dimensão da fé, da frequência da igreja, do sentido da presença de Deus e do Espírito Santo nas suas vidas não pode cingir-se a estudos, a percentagens... “seria eu tão pobre sem Deus na minha vida” Isabel, 87 anos

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“ai se eu não fosse à Igreja, já viste como eu sou, se não fosse seria muito pior, Deus faz maravilhas em nós” Ana, 84 anos “Eu já não posso andar como queria e gostaria, mas aqui somos uma comunidade (os que nos juntamos) a rezar o terço, a participar na missa” Teresa, 88 anos “Eu vim para este Lar, porque queria rezar, participar na vida litúrgica, rezar e ler a Palavra de Deus, e sobretudo estar perto do Santuário de Nossa Senhora de Fátima, posso não ir lá todos os dias porque as pernas não me ajudam mas estou aqui ao pé, e ouço tudo, os sinos, os cânticos...” Emília, 87 anos “Todos os dias tenho meu tempo dedicado à oração, organizo-me conforme o meu coração me dita, só sei que preciso de me dedicar a Ele…” Antónia, 85 anos São estes excertos registados da conversa informal que envolveu a aplicação da escala que valorizam a mesma, e ao mesmo tempo, a relativizam, face à sua necessidade de dar cumprimento aos seus anseios espirituais. Além do mais, estes dados sugerem que a importância que a religião ocupa na vida destas pessoas, não pode ser mensurada pelo quanto se frequenta uma igreja e sim, pelo significado atribuído aos mesmos e as práticas religiosas individuais. E, com o avançar da idade, o idoso depara-se com limitações físicas, como


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dificuldade de locomoção, decorrentes de doenças crónicas, de sequelas de acidente vascular cerebral/encefálico, da própria idade entre outros factores. Soma-se a isto, o medo de quedas, medo de sair sem companhia... o ingresso em Lar com apoio espiritual é o principal critério de escolha (no caso do Lar Santa Beatriz da Silva). A religião e espiritualidade ajudam a preencher a distância da família, dos amigos, dos vizinhos, da rotina antiga; presta acolhimento, alento para suportar as vicissitudes impostas pela rotina institucional. Num cenário em que a humanização dos cuidados tem vindo a ganhar forças, a atenção à religião e espiritualidade é prestar esse atendimento humanizado tão desejado. Olhar o idoso com a ternura de Deus e não como um corpo desfigurado que adoece, envelhece e sim, ter em conta toda a sua história de vida, hábitos, costumes, cultura e ajudar a evitar a sensação de ser apenas mais uma vaga ocupada, alguém despersonalizado, com um número. Uma das nossas preocupações no sentido de caminhar para a humanitude14 dos cuidados é proporcionar aos profis14

(...) a humanitude representa o tesouro de compreensões, de emoções e sobretudo de exigências que existe graças a nós e que desaparecerá se nós desaparecermos, pelo que, o Homem tem a tarefa de aproveitar esse tesouro, já acumulado, e continuar a enriquece-lo. Esta perspectiva de Jacquard acerca das oferendas que os homens dão uns aos outros, depois de terem consciência de ser, e que se podem fazer mutuamente num enriquecimento sem limites, conjuga-se com a ideia central de Archer (2002, p. 8), que propõe o regresso a uma ética da lembrança da humanitude holística, através da triangulação de ciência, tecnocosmos e humanitude, dando valor ao mistério humano, enquanto domínio do sagrado. A humanitude, enquanto filosofia e ética, assume um valor teórico e prático no contexto dos cuidados de enfermagem oferecidos em espaços de intimidade, a pessoas doentes vulneráveis e dependentes,

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sionais formação para que estes sejam capazes de promover a humanização no serviço e a espiritualização do cuidado. Para tanto, sugere-se que os profissionais independentemente da área (ajudantes de acção directa, enfermeiros, psicólogos, trabalhadores auxiliares, assistentes sociais, fisioterapeutas, animadores, etc.) que trabalham com o público idoso estejam familiarizados com o tema e cientes da relevância na vida dos mesmos. O plano de formação definido anualmente na Instituição, tem de contemplar esta dimensão. É no processo de formação que se podem enraizar valores e atitudes de respeito à vida humana, indispensáveis à consolidação e à sustentação de uma nova cultura de atendimento à saúde (Duarte e Wanderley, 2011), (e lembramos o que a OMS diz relativamente ao significado do que é saúde). No entanto, se, por um lado falamos da necessidade dos cuidadores de idosos terem formação adequada sobre a dimensão espiritual, como factor intrínseco aos cuidados a prestar, por outro, os agentes de acompanhamento espiritual em condições de respeito e igualdade, Simões (2005, p. 9). O conceito humanitude, na reflexão crítica sobre a natureza dos cuidados de enfermagem situa-se, assim, numa dimensão conceptual organizadora e integradora. No limite do sofrimento humano, o enfermeiro eleva-se a uma acção práxica complexa e organizada, onde o corpo e a mente do cuidador e da pessoa cuidada, confluem para uma dinâmica harmoniosa, metódica e respeitadora. Nesta oferta mútua, o mais pequeno detalhe é valorizado, de modo que quanto mais vulnerável e dependente é a pessoa doente, mais delicado, fino e leve é o gesto, o olhar, o movimento, a voz e o contacto do enfermeiro cuidador. In http://rihuc.huc.min-saude.pt/bitstream/10400.4/482/1/Artigo_ de_Revisão [1].pdf acedido a 01/07/2010. Embora este artigo seja direccionado aos enfermeiros, vemos nele aplicação prática a qualquer cuidador de idosos.


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necessitam sólida formação sobre a psicologia-biologia-sociologia do envelhecimento. Aqui não se pretende, nunca é demais lembrar, suscitar novos esquemas, revisitar fundamentos teóricos, trata-se sobretudo, de detectar, em pessoas idosas concretas, em acompanhantes espirituais e em cuidadores, a expressão das suas vivências mais interiores, as suas interrogações existenciais, consequentemente a sua dimensão espiritual ou transcendental. Com efeito, para quem envelhece existe um horizonte último que, de alguma maneira, remete para a reflexão mais profunda sobre o ser humano, sobre o sentido da sua existência. “No meu aniversário não me ponham nenhum bolo nem me cantem os parabéns... eu quero antes que me dêem os parabéns no dia em que faço anos de baptismo, aí sim foi o meu verdadeiro nascimento” Olívia, 88 anos E, no nosso trabalho, parece-nos importante partir de certa “insuficiência” dos cientistas na sua pretensão de explicar a complexidade do envelhecimento humano e da sua finitude. Mas precisamos recorrer à psicologia, à biologia, à sociologia... e outras disciplinas, para que, com as ferramentas de todas, possamos abordar de maneira integral (e holística) e interdisciplinar o cuidado da pessoa idosa, para a partir daí chegarmos à dimensão transcendente da pessoa, da morte, da experiência do sentido (cf. Puigdengolas, 2010: 16-17) real da vida.

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A sociedade, os media, o ambiente que nos rodeia tornaram a palavra espiritualidade como algo démodé, no entanto desde sempre o homem caminha nesta busca de saber quem é... Ouvimos muitos reparos quando falamos de transcendência ou de espiritual. Trata-se apenas de reconhecer que, em situações de crise, como é a do envelhecimento, a interrogação: quem sou?, ultrapassa-nos e remete-nos para um horizonte de valores que estão fora de nós, que nos transcendem. Por isso, é que falamos de dimensão espiritual, quando falamos do homem como aquele que se interroga sobre o que o mantém vivo, que sentido dá à sua existência (Puigdengolas, 2010). E escutamos muitas vezes expressões como esta: “(...)agora tenho tempo de rezar, passei a vida a trabalhar, agora preciso de parar e preparar-me para o encontro final.” Rosário, 87 anos Em qualquer resposta social de hoje vocacionada para o cuidado de idosos devem ser abordadas as suas necessidades de maneira integral o que pressupõe também que se detecte e atenda às suas buscas espirituais e/ou religiosas. Todos temos o direito de compartilhar a nossa experiência única e irrepetível de sentido vital referido a Deus. A gerontologia e a geriatria deve formar os profissionais para responder a estas necessidades ou pelo menos, para serem intercessores entre os idosos e os que podem prestar a atenção de modo a suprir essas necessidades. Longe de nos imiscuirmos num campo alheio ao ser humano, a religião toca algo profundamente humano (Puigdengolas, 2010) e Humani nibil alienum15. 15

Nada do que é humano nos é estranho


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“(...) não há razão para se ter pena de pessoas velhas. Em vez disso, as pessoas jovens deveriam invejá-las. É verdade que os velhos já não têm oportunidades nem possibilidades no futuro. Mas eles têm mais do que isso. Em vez de possibilidades no futuro, eles têm realidades no passado – as potencialidades que efectivaram, os sentidos que realizaram, os valores que viveram – e nada nem ninguém pode remover jamais seu património do passado. “ Viktor Frankl (1905-1997) Não podemos deixar de referir aqui um estudo, que de alguma maneira, ilustra o que temos vindo a reflectir acima. Na pesquisa empírica efectuada por Freitas (2010) os dados foram recolhidos através de história oral com oito mulheres entre 80 e 100 anos de idade. As narrativas deram origem a três temas principais: velhice, espiritualidade e sentido de vida, que foram desdobrados em categorias. A análise permitiu, em síntese, concluir que a espiritualidade se mostrou um factor contribuinte fundamental para a elaboração do sentido de vida na velhice tardia. Sempre, em todas as dificuldades, a espiritualidade está presente como factor indispensável não só no enfrentar das mesmas, como também – e principalmente – como colaboradora de sentido para suas vidas. O grupo pesquisado também demonstrou que se pode viver uma velhice tardia com qualidade de vida, dependendo do estilo de vida, da prática espiritual e da consciência temporal, ou seja, é possível manter uma vida com sentido. Fazendo memória da psicologia e dos estádios de desenvolvimento de Erikson vemos que este fundamenta esta ideia do sentido da vida como preocupação no final da vida.

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Lembremos o 8º estádio o da Integridade versus desespero. É o tempo do ser humano reflectir, rever sua vida, o que fez, o que deixou de fazer. Pensa principalmente em termos de ordem e significado de suas realizações. Essa retrospectiva pode ser vivenciada de diferentes formas. A pessoa pode simplesmente entrar em desespero ao ver a morte a aproximar-se. Surge um sentimento de que o tempo acabou, que agora resta o fim de tudo, que nada mais pode fazer pela sociedade, pela família, por nada. São aquelas pessoas que vivem em eterna nostalgia e tristeza por sua velhice. Em oposição ao desespero a vivência também pode ser positiva. A pessoa sente a sensação de dever cumprido, experimenta o sentimento de dignidade e integridade, e partilha sua experiência e sabedoria. Erikson fala de duas principais possibilidades: procurar novas formas de estruturar o tempo e utilizar sua experiência de vida em prol de viver bem os últimos anos ou estagnar diante “do terrível fim”, quando desaparecem pouco a pouco todas as fontes de carícia e o desespero toma conta da pessoa. Para este autor, a definição de um plano de vida é fundamental para compreender e definir ao longo da existência quem somos, e o que faremos da nossa vida16. Consolida-se o plano de vida, dia após dia, até ao fim das nossas vidas. Afinal que nos trás de novo a exigência de um projecto de vida pessoal ou o plano individual que tanto nos apregoam os manuais da Qualidade da Segurança Social? Afinal o caminho é ou não perpendicular? É-o sem dúvida, por diversas formas... Não podemos chegar à transcendência sem passar pelo humano. Não podemos chegar a ver Deus, 16

In http://www.josesilveira.com/artigos/erikson.pdf 13/05/2011

acedido

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sem ver a minha relação comigo mesmo e com o outro que me rodeia. O estado de integração pessoal, de desprendimento das coisas não essenciais, a valorização da natureza, do cosmos, da minha respiração, o estado nirvana, não basta para me transcender... pode ser que só tenha percorrido o caminho horizontal e mesmo assim fica pobre se o tiver feito sozinho. É preciso pois, colocar-se a caminho do vertical... no entanto, são dois caminhos que se fazem em simultâneo. Quanto mais caminharmos na horizontal mais capacitados estamos de caminhar na vertical, para a integridade total, para o viver com sentido. Apenas quando nos abrimos para a percepção e para o sentimento do outro é que podemos começar a elaborar alguma acção transformadora para colaborar em seu benefício e a caminhar para o Absoluto. Ainda, voltando a Erikson, mais concretamente à sua esposa Joan Erikson que nos seus 93 anos acrescentou aos 8 estádios um 9º, o da gerotranscendência. A essência da gerotranscendência é o senso de integridade do ego e a sabedoria; um senso de comunhão cósmica com o espírito do Universo; uma redução da perspectiva de tempo e espaço; a consideração da morte como um evento sintónico à vida, ou seja, o desfecho natural de todos os seres vivos, e um senso de self ampliado, pois passa a incluir uma variedade mais ampla dos outros, quiçá a própria Humanidade. A construção da gerotranscendência implica um retraimento consentido em que o idoso mantém seu envolvimento vital e se aplica à busca da paz de espírito.

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“Fiz o meu caminho, as pernas e o coração não me ajudam, agora a caminhada é outra.” Ana, 89 anos Longe de tentar manter-se produtivo e de negar a velhice, o idoso que encontra esse nível de maturidade, busca um novo self, que reconhece os próprios limites, não busca estar à altura das experiências dos outros, mas envolve-se com a busca da perfeição pessoal que parece significativa. É importante estar alerta para a diferença entre esse retraimento consentido, que classifica como algo venturoso, do afastamento provocado por doenças e incapacidade que, a seu ver, implica uma limitação à possibilidade de realizar a gerotranscendência. (Neri, 2007) Erikson (1998), nos seus robustos 90 anos disse-nos que a sabedoria depende da capacidade de ver, olhar e lembrar, assim como de escutar, ouvir e lembrar. A integridade, afirmamos, exige tacto, contacto e toque. Esta é uma demanda séria aos sentidos dos anciãos. É necessário o tempo de uma vida para se aprender a ter tacto e isso exige paciência e habilidade; é muito fácil ficar cansado e desencorajado. Aos noventa anos, o simples facto de ter de localizar os óculos que foram colocados em lugar errado é um desafio. A virtude da primeira fase do desenvolvimento no diagrama epigenético de Erikson17 é a esperança e o elemento distónico da última fase é o desespero. Ao analisar o diagrama a partir da última fase, os autores dizem que a esperança conota a qualidade mais básica da condição do “eu”, sem a qual a vida não poderia começar ou terminar de forma significativa, e, quando ascendemos para o quadrado vazio, 17

Ver Anexo II


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percebemos que lá precisamos de uma palavra para a última forma possível de esperança, uma forma amadurecida ao longo da vertical ascendente: para isso, certamente, sugere-se a palavra fé (Erikson, 1998). “A minha vida foi só trabalho e sofrimento, Deus pôs-me sempre à prova, mas nunca perdi a fé.” João, 90 anos O estádio da integridade versus desespero leva a que o idoso faça uma revisão de como foi toda a vida, e caso não aceite a vida que teve, o desespero está associado à consciência de que o tempo que agora resta é muito pequeno para refazê-la. No nono estádio, segundo Joan Erikson já não há preocupação com essa retrospectiva, o foco está em viver o melhor possível cada dia. Ela acredita que os anciãos que chegam ao nono estádio em harmonia com os elementos distónicos de suas vidas, encontrarão êxito ao transpor o “caminho que leva a gerotranscendência”. E a morte, no nono estágio é vista como o “presente final” de quem chega a ser aquilo que doou. (cf. Freitas, 2010: 34). “(...)grandes riquezas que se apresentam e iluminam todas as partes do meu corpo e alcançam a beleza em todos os lugares. (...) Envelhecer é um grande privilégio” (Erikson, 1998: 106-107) E na dependência, na demência, há consciência do “presente final”? Há consciência de que o sentido da vida seja visto de forma positiva? Para estes, o passado e o presente

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misturam-se como os vemos? Em muitos casos a memória não se faz presente e a sensação será de abandono? O sentido da existência é realizado por nós que cuidamos. A patologia tira do indivíduo o direito de existir enquanto sujeito e por períodos, às vezes curtos, às vezes longos demais, pode permitir-lhe a vida, mas retira-lhe a existência. Será? Deixar de lembrar traduz a visão de um ser sem fonte: alguém tem que se lembrar por ele. As palavras de Viktor Frankl, podem soar como um conforto frente a tal estado: (...) Assim, o tempo, a caducidade da vida, em nada poderão afectar o seu sentido e valor. “Ter-sido” é também um modo de ser, talvez o mais seguro (cit in Freitas, 2003).


2 – A CONSCIÊNCIA DA FINITUDE O SENTIDO DA VIDA “(a cantar)Parabéns a você D. Joana e muitos anos de vida... Cá estarei, até que Deus queira, se são muitos ou poucos Ele é que sabe” Joana, 88 anos Na sociedade em que vivemos é-nos exigida uma compreensão cada vez maior sobre as questões do envelhecimento, principalmente quando se convive com uma constante valorização do novo e do belo, como evitar as rugas, como rejuvenescer a pele, neste contexto a compreensão da morte torna-se um tema cada vez mais distante da realidade geral de cada um de nós. Beauvoir, ao comentar sobre o período da velhice de Victor Hugo, apresenta uma citação do mesmo, escrita numa carta: “Oh! Eu sei bem que não envelheço, e que, ao contrário, cresço; e é por isso que sinto que a morte se avizinha. Que 41


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prova da alma! Meu corpo declina, meu pensamento cresce; na minha velhice, há uma eclosão” (Beauvoir, 1990) Mas será a morte inimiga do sentido da vida? A existência de cada um de nós é tão limitada e frágil, conforta-nos o pensamento que, graças à alma espiritual, sobrevivemos à morte. Aliás, a fé oferece-nos uma “esperança que não confunde” (Rom, 5,5), descerrando-nos a perspectiva da ressurreição final. Não é sem motivo que a Igreja, na solene Vigília Pascal, usa estas letras para se referir a Cristo vivo, ontem, hoje e sempre: “Princípio e fim, Alfa e Ómega. A Ele pertence o tempo e a eternidade“. A existência humana, apesar de sujeita ao tempo, é colocada por Cristo no horizonte da imortalidade. (João Paulo II, 1999). Muitos autores, e o próprio João Paulo II se questionam: O que é a velhice? Às vezes fala-se dela como do outono da vida — assim fazia Cícero — seguindo a analogia sugerida pelas estações e pelo andamento das fases da natureza. Basta olhar, ao longo do ano, para a mudança da paisagem nas montanhas e nas planícies, nos prados, nos vales, nos bosques, nas árvores e nas plantas. Há uma estreita semelhança entre o biorritmo do homem e os ciclos da natureza, à qual ele pertence. E uma vez chegados ao Inverno, a morte é real. É preciso morrer para dar vida. A árvore não dará fruto doutra forma. “sinto uma força interior capaz de passar pelas adversidades e com elas crescer internamente. A alegria e a certeza de que a vida é uma aventura, um risco que vale a pena correr.


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(...) estou mais confiante em Deus e em mim. Tudo agora é muito melhor para mim, pois vivia uma solidão muito grande. ” Patrícia, 75 anos A finitude em si mesma, não pode ser vista meramente, do ponto de vista biológico. Pois sabemos que uma das teorias, durante muito tempo aceite, e até recentemente uma das mais divulgada e estudada, é a teoria de “Wear and Tear”. Ela é a percursora do conceito de “falhas na reparação” e persiste até hoje pois é reforçada pelas nossas observações de todos os dias. Todos os organismos estão constantemente a ser expostos a infecções, feridas ou doenças que causam danos menores nas células e tecidos, que nunca chegam a ser reparados completamente. Por exemplo, um membro fracturado, pode ser reparado, mas nunca volta a ser tão forte como inicialmente. À medida que um organismo vive e envelhece vai acumulando mais e mais destes danos menores. Esta erosão progressiva contribui para uma diminuição da eficiência funcional de todo o sistema, que é inevitável. Coloquemos agora ao nível espiritual esta mesma realidade, por analogia. A não vivência de valores, a negação do sentido da vida, a negação de Deus, a relativização do essencial são as infecções que contaminam o espírito. Causam danos, mas a diferença é que são danos reparáveis, porque os “neurónios” do espírito, ao contrário das corporais reproduzem-se sempre e bem, se encontrarem o ambiente propício. As “sinapses18” acontecem sempre porque há a certeza de que a morte é apenas a da matéria. 18

Sinapses são as regiões de comunicação entre os neurónios, ou mesmo entre neurónios e células musculares e epiteliais glandulares. Aqui

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Dalai Lama, diz que a “espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança interior”. Só não podemos ficar na mudança interior.... onde nos leva essa mudança interior? A encontrar o sentido último da vida – a morte do corpo para o encontro de Vida com Deus. A finitude na sua essência. Na espiritualidade, como conceito, encontramos sempre a dimensão transcendental independentemente da religião. Então não podemos ficar no sentido da finitude meramente corporal/material. Ainda que ouçamos muitas vezes dizer: “já não sirvo para nada, agora que estou assim, mais valia morrer” Conceição, 85 anos “Deus permita que nunca fique dependente, que triste vida” Sara, 88 anos “O Senhor me leve antes de dar trabalho a alguém” Antónia, 75 anos Claramente vemos aqui o sentido da finitude material e desprovido da transcendência, desprovido do verdadeiro sentido da vida. O que faltou durante a vida destas pessoas? Importa o presente. Mas, sentimos a alma encher-se de alegria quando ouvimos expressões como esta:

utilizamos o termo por analogia pois o sentido da vida comunica-se, transforma, energiza e transcende.


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“Oferecer a minha vida por amor a Deus é o que me alegra” Joana, 85 anos “No coração da Igreja, atrevo-me a dizer como Santa Teresa, agora serei o amor, porque já não posso fazer mais nada senão rezar e amar” Maria, 85 anos “perdi tanto tempo da minha vida, sem saber que Deus me fazia falta” João, 95 Para entender a finitude na sua totalidade não a podemos desprover de espiritualidade. Do Sopro19 que dá vida. Essa compreensão valoriza um lado dinâmico que impulsiona expressões de vida. Esta noção de espírito como sopro induz a uma reflexão sobre os diversos movimentos que compõe o viver em sua complexidade, colocando ênfase principalmente na interpretação que cada indivíduo-idoso lhe vai atribuir. 19

A palavra espírito tem sua raiz etimológica do Latim “spiritus”, significando “respiração” ou “sopro”, mas também pode ser “alma”, “coragem”, “vigor” e finalmente, fazer referência a sua raiz no idioma Proto Indo Europeu *(s)peis– (“soprar”). Na Vulgata, a palavra em Latim é traduzida a partir do grego “pneuma” (πνευμα), (em Hebreu (‫ )חור‬ruah), e está em oposição ao termo anima, traduzido por “psykhē”. A distinção entre a alma e o espírito somente ocorreu com a actual terminologia judaico-cristã (ex. Grego. “psykhe” vs. “pneuma”, Latim “anima” vs. “spiritus”, Hebreu “ruach” vs. “neshama”, “nephesh” ou ainda “neshama” da raíz “NSHM”, respiração.) in http://pt.wikipedia. org/wiki/Esp %C3%ADrito#Etimologia acedido a 5/08/2011 “soprou sobre os Apóstolos, dizendo-lhes: Recebei o Espírito Santo!” (Jo 20, 22). Sim, o Espírito Santo é o Alento de Vida.

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O conceito de espiritualidade adoptado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e que é citado por Neri (2005 cit in Freitas, 2010) vem ao encontro da reflexão que acabamos de fazer: (...) “espiritualidade é o conjunto de todas as emoções e convicções de natureza não material que pressupõem que há mais no viver do que se pode ser percebido ou plenamente compreendido, remetendo o indivíduo a questões como o significado e o sentido da vida, (...). Reconhecendo a sua importância para a qualidade de vida, a OMS incluiu a espiritualidade no âmbito dos domínios que devem ser levados em conta na avaliação e na promoção de saúde em todas as idades”. Compreender a finitude da vida é viver a espiritualidade, é viver o verdadeiro “testemunho da esperança”, o “sim à vida”, que está em contínuo processo de renovação. Diz Teixeira (2005), que a espiritualidade não é algo que ocorre para além da esfera do humano, mas algo que toca em profundidade sua vida e experiência. A espiritualidade traduz a força de uma presença que escapa à percepção do humano, mas ao mesmo tempo provoca-nos para o exercício de percorrer e captar esse sentido omnipresente. Daí se poder falar em experiência espiritual enquanto movimento e busca do sentido verdadeiro que emana serenidade e paz nos últimos dias da vida...


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“Sinto que estou pronto, se Deus quiser vir buscar-me posso partir em paz, não é que deseje a morte, mas já vivi tanto, agora só me falta ir ao Seu encontro” Maria, 85 anos “Estou no céu, ficarei aqui” Marta, 94 anos Para o monge Anselm Grün, a espiritualidade apresenta duas tendências: a espiritualidade de cima e a espiritualidade de baixo20: “A espiritualidade de baixo significa que Deus não nos fala unicamente através da Bíblia e da Igreja, mas também através de nós mesmos, daquilo que nós pensamos e sentimos, através do nosso corpo, de nossos sonhos, e ainda através de nossas feridas e de nossas supostas fraquezas. (...) Evágrio Pôntico formula a espiritualidade de baixo21 na clássica frase: «Se queres chegar ao conhecimento de Deus, trata de antes conheceres-te a ti mesmo.» (...) A espiritualidade de cima começa pelos ideais que nós nos impomos. Parte das metas que o homem deve alcançar (...) Mas um dia chega o momento em que a espiritualidade de cima tem que unir-se com a espiritualidade de baixo para permanecer viva.” (2004: 7-16).

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Lembremos o que já referimos atrás.... linha/caminho horizontal e vertical

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A espiritualidade de baixo é o caminho da humildade e a de cima é a que busca alcançar Deus.

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Por fim, lembramos mais uma vez que não pretendemos explorar estas dimensões e conceitos do ponto de vista teológico, filosófico. Não queremos confundir religião, sentido de vida, espiritualidade, igreja católica, mas tão somente olhar para a realidade que nos rodeia e descrever o que aí encontramos. “Dizer sim à morte não significa resignar-me com ela, mas sim transformá-la num acto de amor” (Grün, 2009: 152). Contou uma cuidadora a Anselm Grün: “algumas pessoas, idosas, não conseguem morrer porque ainda não perdoaram”. Dizia Pedro (94 anos) no hospital, após um enfarte: “Não posso morrer, quem vai olhar pelo meu filho, os irmãos não se importam com ele, (...) fez tantas asneiras, ainda não se endireitou, os meus filhos têm de se entender entre eles e comigo(...) Irmã, eu não posso morrer, tenho as minhas obrigações de pai.”


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