Triangular Conceitos

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Triangular Conceitos Desenvolvimento, maturidade, competĂŞncia


Edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) Título: Triangular Conceitos – Desenvolvimento, maturidade, competência Autores: Carlos Marques Simões e Helena Ralha-Simões Capa: Rute Ralha Paginação: Sítio do Livro 1.ª Edição Lisboa, julho de 2015 ISBN: 978-989-8714-50-3 Depósito legal: 394449/15 © Carlos Marques Simões e Helena Ralha-Simões PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt


Carlos Marques Simões Helena Ralha-Simões

Triangular Conceitos Desenvolvimento, maturidade, competência



Índice

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Preâmbulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Cap. 1 – Questões fundamentais sobre o desenvolvimento . . . . . . . . . 21 Carlos Marques Simões e Helena Ralha-Simões 1. O que é o desenvolvimento? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 2. Condições de desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 3. Estádios de desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

Cap. 2 – Da psicologia da criança à psicologia do desenvolvimento . . . . Helena Ralha-Simões e Carlos Marques Simões

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1. Evolução histórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Desenvolvimento e crescimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Psicologia da criança e psicologia genética . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Correntes em psicologia do desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . 4.1. Corrente maturacionista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.2. Corrente psicanalítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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4.3. Corrente comportamentalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 4.4. Corrente construtivista/desenvolvimentista . . . . . . . . . . . . . 53

Cap. 3 – A noção de competência e o desenvolvimento da criança – a perspetiva motivacional de Robert White . . . . . . . . . . . . . . 57 Helena Ralha-Simões 1. Noção e génese da competência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Competência psicológica e competência social . . . . . . . . . . . . . . 2.1. Competência e inteligência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.2. Competência e desempenho (performance) . . . . . . . . . . . . . 3. O sentido de competência (sense of competence) . . . . . . . . . . . . . 4. Competência e motivação escolar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Cap. 4 – Maturidade, competência e contexto profissional . . . . . . . . . 77 Carlos Marques Simões e Helena Ralha-Simões 1. A maturidade segundo o modelo de Heath . . . . . . . . . . . . . . . 2. A maturidade como matriz de competência . . . . . . . . . . . . . . . 3. O sistema-pessoa e a construção da competência . . . . . . . . . . . . 4. O desenvolvimento profissional no quadro de um modelo ecológico . . . 5. Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Cap. 5 – Cognição social e desenvolvimento do ego – contributos para uma nova perspetiva sobre a competência . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Carlos Marques Simões e Helena Ralha-Simões 1. Cognição social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 1.1. Abordagens teóricas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 1.1.1. Abordagem desenvolvimental-cognitiva . . . . . . . . . . . . . 98 1.1.2.Teorias da perceção de pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101


2. O desenvolvimento do ego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.1. Fases do desenvolvimento do ego . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.2. Avaliação do nível do ego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Desenvolvimento pessoal e competência pedagógica . . . . . . . . . .

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Cap. 6 – Maturidade e competência dos professores . . . . . . . . . . . 113 Carlos Marques Simões 1. O conceito de competência pedagógica . . . . . . . . . . . . . . . . 1.1. Competência, “performance” e eficácia . . . . . . . . . . . . . . 1.2. Estádios de desenvolvimento e competência . . . . . . . . . . . 1.3. O modelo de Medley . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.4. O modelo de Zimpher e Howey . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. O desenvolvimento como fator de competência . . . . . . . . . . . .

114 115 116 119 120 122

Cap. 7 – Nível de desenvolvimento do ego e competência pedagógica . . 127 Carlos Marques Simões e Helena Ralha-Simões 1. Enquadramento conceptual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Contexto da investigação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Procedimento metodológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.1. Amostra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.2. Instrumentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Resultados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. Conclusões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prefácio

Quando aceitei escrever o prefácio deste livro tive consciência de dois aspetos que conduziram a tal decisão. Em primeiro lugar pelo título que só por si é desafiante numa altura em que muitas vezes se pensa que o “novo” conhecimento nos permite esquecer de forma imperial as suas bases. A montante de uma nova teoria existem sempre as suas bases. Em segundo lugar em saber se este “montante” é estático ou dinâmico. Confesso que a coragem e legitimidade que os autores abraçaram ao revisitar de forma crítica e produtiva os seus textos, já com uma marcação temporal visível, me proporcionou uma experiência de agrado e de (re)aprendizagem. Tenho a certeza que os leitores passarão pela mesma experiência. Há coisas simples que sabemos, que pensamos mas que por vezes preferimos ignorar numa voracidade – por vezes inconsequente – quantitativa de produção científica. E o que é? O conhecimento já produzido nem sempre (ou quase nunca) é descartável. Contém sempre um património epistemológico “aproveitável”. Por vezes necessita de ser revisitado numa perspetiva recuperante, crítica e capitalizante. É o que fazem os autores deste livro munidos de uma arma essencial que é a busca da coerência epistemológica da sua produção. É este exercício que agora os autores nos oferecem de forma séria, descomprometida com as agendas políticas da investigação e produção do conhecimento científico e que tem como título “TRIANGULAR CONCEITOS: desenvolvimento, maturidade e competência”. Um exercício de síntese, com uma visita a textos que possuem atualidade, é sem11


pre bem-vindo. Ainda por cima quando sabemos que muitas vezes o esquecimento (ou armazenamento) dos textos numa qualquer prateleira não lhes retira valor epistemológico nem tão pouco atualidade. É esta a crença (implícita) dos autores e com a qual coincidimos. Fazem então sentido as palavras dos autores que no preâmbulo desta obra dizem “Tal seleção [dos textos] representa uma síntese que resultou do seu [dos autores] empenhamento no aprofundar de uma triangulação de raiz epistemológica, subordinada aos lemas do desenvolvimento humano ao longo da vida e da formação psicológica dos profissionais de ajuda, em particular de professores e educadores.”. Há autores que escrevem como se de obras acabadas se tratasse. Há outros autores que cultivam a natureza histórica, social, cultural e ideológica do conhecimento, sem esquecer (e aceitar) que ele próprio será sempre produto de uma atividade em que a sistémica, que embora possa ser determinante e limitadora, exige a revisita constante a esse mesmo conhecimento no sentido de o resgatar e superar. Esta perspetiva, que é a dos autores, confere ao conhecimento um carácter de inacabado e, por isso, impõe a necessidade de revisitar conceitos, teorias e modelos fazendo justiça ao carácter revisível do conhecimento. Por isso a “cruzada”, nas palavras dos autores, que este livro encarna rumo ao conhecimento sustentável e que se traduz no aprofundamento de uma triangulação de raiz epistemológica. Acresce, nesta obra, ainda a consciência da interação entre conceitos na altura em que se pretender passar de teorias e conclusões contextualizadas a propostas (que por vezes são chamadas de modelos) mais integradoras. Talvez seja esta consciência epistemológica que leva a obras como esta e ao culto (por vezes injustamente polémico) de perspetivas epistemológicas compaginantes com conceitos como sejam a interdisciplinaridade e multidisplinaridade, entendendo-se estes como atitudes de abordagem, compreensão e tentativa de abordar situações em que o elemento humano é o polo e núcleo. Não será difícil àqueles com uma experiência pessoal e profissional suficiente, rever-se nestes textos e nas intenções desta obra. Quase que como uma evidência muitas vezes menosprezada (e/ou rejeitada) durante o nosso percurso pessoal e profissional. Por isso, o “locus” de causalidade é tantas vezes errático durante o nosso percurso pessoal e profissional a tal ponto de falarmos de desenvolvimento profissional como se o desenvolvimento pessoal estivesse do outro lado da fronteira. Esta “promiscuidade” positiva é o ponto de partida deste livro. 12


Na sua substância, este livro, conduz-nos por um caminho onde a procura da coerência epistemológica de uma produção pessoal é resgatada do tempo e plasmada num discurso atual. Tal exercício, é partilhado pelos autores através da organização estrutural deste livro em sete capítulos – os quais só estão separados por questões de forma e não de substância – em que os conceitos, teorias, conclusões e propostas levarão os professores e educadores a entenderem como a qualidade das suas práticas profissionais tem raízes não só no seu processo formativo mas também no processo do seu desenvolvimento pessoal. São estes os capítulos: 1 – Questões fundamentais do desenvolvimento Neste primeiro capítulo somos confrontados com a noção de desenvolvimento humano. Aqui os autores, após deambularem por várias definições e concepções, encaram a questão do desenvolvimento humano como algo que é produto auto-regulável e cuja tónica deve ser colocada tanto no património inato como no adquirido. 2 – Da psicologia da criança à psicologia do desenvolvimento Em coerência com o primeiro capítulo, encontramos a defesa de que o sujeito deve ser entendido como alguém que está em processo de constante mudança ao longo de toda a vida. 3 – A noção de competência e o desenvolvimento da criança Os autores ao introduzirem a noção de competência relacionada de forma inequívoca com a de desenvolvimento, acrescentam a motivação como um conceito também estritamente ligado ao de competência a tal ponto de considerarem que o conceito de capacidade (em termos académicos) só se materializa em competência eficaz se houver uma componente motivacional que produza um nível de realização satisfatório. 4 – Maturidade, competência e contexto profissional É neste ambiente de síntese integradora que os autores chegam ao seu quarto capítulo onde o conceito de maturidade do sujeito interage de forma produtiva (e/ou inibidora) com o conceito de competência profissional. O profissional é alguém que traz consigo uma experiência acumulada de situações 13


interativas entre vários sistemas e que é essa mesma experiência (com seus contributos para o conceito de competência), na qual o sujeito não é um processador de informação passivo, que estabelece a rede entre maturidade, competência e contextos profissionais. Assim, propõem os autores que a ação eficaz nos contextos organizacionais depende de vários fatores estruturantes como sejam as representações construídas pelos sujeitos, o seu estilo de vida, as suas crenças, os seus valores e atitudes. 5 – Cognição social e desenvolvimento do ego: contributos para uma nova perspetiva sobre a competência Neste capítulo os autores defendem que a competência pedagógica não depende só dos conhecimentos e técnicas adquiridas ao longo da sua formação mas (e essencialmente) do modo como esses conhecimentos e técnicas são processados no quadro das capacidades, atitudes e comportamentos que o professor pode mobilizar em situações de intervenção docente. 6 – Maturidade e competência dos professores Aqui, os autores – de forma coerente com a sua “cruzada” epistemológica – defendem que professores diferentes e com resultados semelhantes nas classificações obtidas no seu processo formativo podem ter níveis de eficácia profissional diferentes devido ao seu trajeto de vida. Sustentam os autores que existem relações de determinação entre a prática eficaz dos professores e as suas características pessoais, e por consequência, o seu desenvolvimento pessoal. Neste aspeto, embora não seja sugerido neste livro, haveria que pensar na relação explicativa que deveria acontecer num processo de avaliação docente em que a auto-observação e a hétero-observação se deveriam complementar numa, e utilizando a expressão dos autores, “cruzada” pela qualidade das práticas pedagógicas. 7 – Nível de desenvolvimento do ego e competência pedagógica Os autores terminam esta obra com a apresentação de dados empíricos através dos quais se procura defender que a competência profissional dos professores em muito beneficiaria com um processo de formação que tivesse em conta o estádio de desenvolvimento em que se encontra cada um dos aspirantes a professor no início do seu processo de formação, bem assim como a evolução do mesmo. 14


Consuma-se assim, deste modo, a natureza deste livro que assenta fundamentalmente numa prática reflexiva, crítica e sistematizante na qual pontuam não só a apresentação de dados empíricos mas também a síntese agregadora com pontes epistemológicas entre os vários conceitos e teorias escrutinadas nesta obra. Em resumo, trata-se de um livro que se recomenda tanto a profissionais como a aspirantes a profissionais da educação. Nele, o leitor identificará de forma auto-reflexiva as razões dos seus comportamentos, das suas decisões, das suas (des) motivações e até dos seus êxitos e fracassos profissionais. Março de 2015

Fernando Ribeiro Gonçalves Professor Catedrático da Universidade do Algarve

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Preâmbulo

Este livro é constituído por um conjunto de alguns escritos que abordam tópicos como o desenvolvimento, a maturidade e a competência, os quais foram produzidos pelos autores no decurso das anteriores décadas de 80 e de 90. Tal seleção representa uma síntese que resultou do seu empenhamento no aprofundar de uma triangulação de raiz epistemológica, subordinada aos lemas do desenvolvimento humano ao longo da vida e da formação psicológica dos profissionais de ajuda, em particular de professores e educadores. Este esforço – que se traduziu quase numa cruzada conceptual – acabou por se concretizar num núcleo sólido de fundamentos teóricos e metodológicos que permitiram terminar com sucesso as nossas teses de doutoramento nesses já distantes anos. Talvez por esse motivo, no prefácio ao livro Contextos de desenvolvimento e teorias psicológicas publicado por nós em 1999, o Prof. Leandro Almeida, da Universidade do Minho, sublinhasse “(…) a persistência deste dois colegas nos temas do desenvolvimento humano e da formação de professores”, afirmando, mais adiante: “Os últimos anos da investigação psicológica, marcados pelas confluências das abordagens cognitiva, construtivista, ecológica e fenomenológica, apontam para a necessidade de se ser pessoa (…) para se poder ter algum impacto positivo de ajudar alguém a ser pessoa”. De facto, até esse momento, havíamos assumido tal postura que, nos dias de hoje, ainda mantemos com firmeza, prosseguindo no demandar destas e doutras metas, por vezes utópicas mas desejáveis, tão bem assinaladas pelo referido prefa17


ciador no seu conciso mas revelador texto, o qual sintetiza um significado intrínseco que nos permite a veleidade de nos elevarmos a uma “psicologia das alturas”, se usarmos a expressão do ilustre e saudoso logoterapeuta Viktor Frankl. “Resta-me desejar à obra e ao seu autor os maiores êxitos no diálogo e na interacção com os leitores e os críticos, para que ela possa continuar a ser completada, reescrita e recriada”, são votos, ditos palavras relevantes – cuja significação não é desejável omitir –, transcritos do final do prefácio ao livro O desenvolvimento do professor e a construção do conhecimento pedagógico, publicado em 1996 pelo primeiro autor da presente edição, cujos desideratos – que igualmente poderiam ser usados para ilustrar a tese da segunda autora – exprimem a amável opinião do Prof. José Tavares, catedrático da Universidade de Aveiro e nosso estimado orientador das teses de doutoramento. Todavia, na presente fase do nosso trajeto pessoal, passados cerca de 20 anos sobre o seu enunciado, podemos argumentar que tais anseios exprimem um desejo cuja formulação, no que respeita ao primeiro considerando, estamos cientes de não ter tido sequer uma singela repercussão, a qual nos poderia ter motivado para outras longas caminhadas; apesar disso, a obra continuou a ser completada, reescrita e recriada. Desse labor resultou algo que consideramos válido e que nos levou a definir como objetivo vir a publicar, para além deste, mais dois volumes que permitam sintetizar o resultado do completamento, da reelaboração e da abertura a novos horizontes teóricos que, desde então, prosseguimos nas décadas posteriores, umas vezes com desânimo outras com euforia, e que, no momento atual, tem o seu culminar no projeto em que se integra este livro, isto é, no GREI – Grupo de Estudos Interdisciplinares. Nesta perspetiva, é fundamental sublinhar a razão principal que presidiu à decisão formulada, designadamente tornar disponível, para o público interessado, uma coletânea de textos – ainda não divulgados ou de difícil acesso – que apresentam uma panorâmica das conceções teóricas que elaborámos no decorrer do nosso percurso como formadores e investigadores, de modo a possibilitar uma reflexão sobre o seu eventual impacto no âmbito dos contextos educacionais. Finalmente importa ainda referir alguns pontos de natureza mais específica, em particular no que concerne ao momento da escrita dos textos agora publicados, os quais seguem uma sequência cronológica determinada apenas pela temá18


tica problematizada, partindo-se de enquadramentos mais amplos para domínios mais específicos. Por outro lado, tentou-se evitar uma excessiva redundância, de modo a eliminar, na medida do possível, as repetições de conteúdos relativos aos temas abordados nos diferentes capítulos; por conseguinte, cada um deles foi sistematizado e adaptado de acordo com as suas características próprias, tendo mesmo, nalguns casos, sido eliminados alguns aspetos parcelares.

Carlos Marques Simões e Helena Ralha-Simões Professores Coordenadores aposentados da Universidade do Algarve

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Capítulo 1

Questões fundamentais sobre o desenvolvimento(*) Carlos Marques Simões Helena Ralha-Simões

As diferentes conceções de desenvolvimento traduzem, em geral, uma ausência de reflexão sobre o seu conteúdo o que, por vezes, leva ao uso e abuso de uma pretensa significação implícita que é suscetível de ser confundida com um consenso esmagador. Tal facto, assente numa falsa ideia de unanimidade, implica geralmente deixar por definir tal conceito, limitando-se os autores que se lhe referem a invocar esta noção apenas em confronto com outras como as de crescimento, maturação, aprendizagem ou experiência, evitando assim assumir a complexidade que lhe é inerente. Neste contexto, parece oportuno salientar que é também habitual, entre os teóricos do desenvolvimento, estabelecer comparações entre as leis que lhe são próprias e as que presidem a outros tipos de processo evolutivo, tais como o que é relativo às espécies animais, às sociedades humanas ou ao indivíduo doente. (*) Este texto reproduz – com algumas alterações e correções formais – um documento policopiado produzido no contexto dum projeto que os autores realizaram, em 1980, no âmbito do Centro de Medicina Pedagógica do Porto.

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Entre as analogias mais comuns inclui-se a que defende que o embrião humano recapitularia uma sucessão de etapas que a espécie percorreu no decurso da evolução. Embora polémicas, frutuosas para uns, inconsistentes para outros – e diferindo largamente consoante a tónica é posta no inato ou no adquirido, ou seja, conforme se acentuam os aspetos assentes na hereditariedade por oposição aos dependentes do meio – tais comparações revelam-se, todavia, bastante úteis para entender as abordagens daqueles que se debruçaram sobre o conteúdo da noção de desenvolvimento, como foi o caso de Jean Piaget e de Henri Wallon.

1. O que é o desenvolvimento? Charlotte Bühler alerta para a necessidade de nos interrogarmos sobre o que efetivamente se pretende dizer quando falamos de desenvolvimento, embora as questões que são mais frequentemente enunciadas sobre este assunto digam principalmente respeito ao modo como este se processa; sem apresentar uma solução concisa para o problema em apreço, refere-se a este conceito para designar quer modificações que se processam gradualmente em continuidade quer modificações repentinas que surgem em descontinuidade com as características anteriores, sublinhando, por outro lado, que esses progressos se caracterizam por serem desigualmente rápidos, não só em cada campo em que os podemos situar, mas também em cada período da vida dos indivíduos. Esta autora afirma igualmente que o desenvolvimento constitui um processo que, além de não ser simples, depende de influências de ordem diversa, carecendo por isso de ser focalizado de um modo mais abrangente, pois que “só quando se considerar o desenvolvimento como uma história de uma personalidade” se conseguirá apreender mais do que “uma multiplicidade de processos psicossomáticos reunidos num indivíduo” (Bühler, 1971, p. 232). Ainda no seu entender, é possível evidenciar uma idêntica perspetiva de análise das afirmações de François Jacob, o qual tem em conta o carácter diacrónico do desenvolvimento que pode assim ser equacionado, com base na suposição de que cada sistema vivente é o resultado de um certo equilíbrio entre os elementos duma organização na qual podemos reconhecer certas relações proeminentes; no entanto, seja qual for o nível de complexidade considerado, a história desse siste22


ma tem de ser apresentada como uma perspetiva necessária para que seja possível entender a respetiva sucessão que pode ser assumida como sistema de explicação (Bühler, 1971). Na verdade, nesta ótica, cada sistema pode ser focado segundo dois planos de análise – um horizontal e outro vertical –, os quais se encontram estreitamente relacionados, podendo distinguir-se, por um lado, não só os princípios que regem a construção do sistema, como o seu funcionamento e a sua integração e, por outro, aqueles que presidem às transformações e à sucessão das transformações que ocorrem no seu seio. Consequentemente descrever um sistema implicaria sempre, inevitavelmente, tanto a lógica da sua organização como da sua evolução (Jacob, 1971). Por seu turno, Piaget entende este conceito como algo que é incentivado por uma necessidade interna de equilíbrio que, tanto a nível biológico como psicológico, vem complementar outra, intrínseca, que impulsiona o sujeito na sua direção, a qual está patente, na fase inicial do processo evolutivo, num mecanismo – alicerçado nas montagens hereditárias próprias da espécie humana – que este autor designou por assimilação. São essas necessidades subjacentes à definição da própria vida que vão subordinar cada órgão, dando origem a uma operação segundo a qual determinado organismo já organizado se consolida funcionando; desse processo vai resultar uma ulterior diversificação das estruturas que lhe estavam subjacentes ocasionando, por sua vez, novas necessidades nesse mesmo sentido (Reuchlin & Huteau, 1978). Salientando também a ambiguidade e a falta de precisão do termo desenvolvimento face aos de maturação e de crescimento, Bergeron (1972, p. 54) define-o como “toda a transformação que resulta numa organização mais complexa”, podendo esta transformação ser concebida como uma integração de um nível superior que supõe, no entanto, a apreciação da organização e da diferenciação que, de nível em nível, irão conduzir ao final do processo evolutivo, implicando este, por outro lado, a individualização progressiva que assegura a unidade do ser. Do seu ponto de vista – e se nos fundamentarmos, como faz o autor, numa posição como a perspetiva maturacionista de Arnold Gesell – o desenvolvimento, assim concebido, constitui um processo unificante. Com efeito, é interessante salientar que, tal como Gesell e Ilg (1972) sublinham a este propósito, é muito importante compreender a unidade dessa coisa 23


complexa que é o desenvolvimento, que pode ser entendido como um processo caracterizado por uma mistura paradoxal de criação e de continuidade, em que a criança, no decurso da sucessão de estádio em estádio, se tornaria sempre em qualquer coisa de novo, na qual não estariam ausentes as suas aquisições anteriores, pois neste processo gradual se encontra resumida a essência do seu passado. Gesell e Ilg sugerem além disso que se conceba o psiquismo como um sistema de ação orgânico, em crescimento, que permanece estruturado em toda a sua organização, ao mesmo tempo que se mantém latente em todas as formas da sucessiva diversificação das suas estruturas, as quais, ao longo desse percurso evolutivo, são regidas por leis profundas, unificadoras e estáveis. Todavia, este sistema de ação desenvolve-se como uma unidade, como um todo, não se constituindo por uma mera adição de camadas sucessivas; por conseguinte, o processo de desenvolvimento é caracterizado pela elaboração de estruturas cada vez mais complexas, não obstante estas se mantenham incorporadas numa só individualidade (Gesell & Ilg, 1972). Saliente-se que este modo de encarar o desenvolvimento apresenta analogias com o princípio que, segundo Jacob (1971) rege a construção de todo o sistema vivente, seja qual for o seu grau de organização, de acordo com o qual os organismos se constituiriam segundo uma série sucessiva de integrações em que os elementos semelhantes se iriam agrupando em cada nível para edificarem conjuntos que, por seu turno, se iriam associar de modo a formarem outros de nível superior. A complexidade crescente dos sistemas seria portanto uma clara consequência desta combinação de estruturas gradualmente mais elaboradas que, no decurso da sua diferenciação, se iriam articulando umas com as outras segundo uma hierarquia de conjuntos descontínuos. Sobre esta mesma questão, Piaget (1978, p.76) lembra que em biologia, a noção de desenvolvimento, no seu sentido lato, designa “a transformação temporal das estruturas, no duplo sentido da transformação das subestruturas e da sua interação em totalidades”, dizendo portanto respeito, essencialmente, à dimensão diacrónica dos fenómenos vitais, enquanto a dimensão que é possível evidenciar, sincrónica – que se pode colocar quer no domínio da filogénese quer no da ontogénese – corresponderia à noção de organização. Este autor contrapõe assim um tipo de desenvolvimento a que chama genealógico ou coletivo a um outro, orgânico ou individual, o qual, do seu ponto de vista, intervém na ontogénese; esta reuniria 24


os já referidos processos de integração e de diferenciação num todo funcional, os quais surgiriam mais desligados uns dos outros no âmbito do processo de desenvolvimento filogenético. Neste enquadramento, o desenvolvimento psicológico – que não ocorre em descontinuidade funcional com o biológico – guiar-se-ia pelos mesmos princípios, denotando ligações a estes dois aspetos diacrónicos da evolução individual e coletiva. De facto, certas reações cognitivas que dizem respeito, por exemplo, aos instintos e às modalidades de aprendizagem, comuns a diversos indivíduos da espécie humana, dependeriam do desenvolvimento genealógico e de certas variedades de inteligência ou conteúdos de pensamento. Por sua vez, a formação da inteligência estaria diretamente relacionada com o desenvolvimento orgânico ou individual, facto que nos permite estabelecer uma analogia entre as questões usualmente levantadas pela embriogénese e as que são inerentes à embriologia mental, a qual, no prolongamento do desenvolvimento a nível biológico, se consubstancia no estudo do desenvolvimento psicológico (Piaget, 1978). Henri Wallon tem uma posição um pouco diferente da que é manifestada por Jean Piaget, uma vez que não equaciona a evolução genética em termos de filogénese e de ontogénese. Assim, o primeiro destes autores estende este conceito à própria evolução da matéria como unidade substancial de todos os fenómenos do universo, contrariamente ao último que concebe o desenvolvimento mental e o biológico como sendo decorrentes de processos que denotam continuidade funcional, não obstante alertar para que é necessário demarcar as origens biológicas da vida psíquica, uma vez que não é possível admitir a existência inicial e contínua do psiquismo e da vida. De facto, para Wallon, a evolução psicológica – termo que adota em lugar de desenvolvimento, procurando deste modo salientar a sua dimensão mais lata – implicaria mudanças cuja sequência ou resultado não pode nunca ser conhecido à partida, pois se o fizéssemos restringir-se-ia então o seu papel a um mero crescimento ou ao desenvolvimento dum processo. Na sua ótica, a evolução seguiria pelos caminhos que se lhe foram tornando possíveis, os quais não estão nunca pré-determinados pois que, embora alguns dos seus passos sejam previsíveis, são sempre – no individual e no coletivo – desconhecidos na sua globalidade, dada a existência hipotética de uma multiplicidade de alternativas possíveis (Merani, 1977). 25


Por conseguinte, no pensamento de Wallon, a coesão do ser – organizada através de todas essas ruturas e descontinuidades no decurso da evolução – é assegurada pela estrutura anatómica e funcional do indivíduo, quer através das suas estruturas materiais, dos órgãos e das funções, mas também pelo que designou como estruturas circunstanciais, que corresponderiam às condutas que se prosseguem ao longo da vida tendo sempre em vista atingir um maior grau de adaptação. Contudo, apesar das diferenças entre as teorias de Piaget e de Wallon, no que respeita à noção de desenvolvimento, estas têm em comum o facto de contribuírem para abrir uma nova dimensão na psicologia da criança dado que entendem o desenvolvimento já não apenas enquanto meta a alcançar, mas também como uma situação a construir, localizando-se as principais divergências entre os dois teóricos nas suas respetivas conceções sobre o modo como o desenvolvimento se processa, assim como relativamente aos fatores a que cada um deles imputa a responsabilidade principal por esse mesmo processo (Merani,1977).

2. Condições de desenvolvimento Embora a simples existência de estruturas que asseguram o funcionamento biológico elementar não seja ainda suficiente para que se possa considerar o recém-nascido como uma pessoa, o desenvolvimento da criança faz-se a partir das formações anatómicas e das organizações fisiológicas que esta possui ao nascer. Por esse motivo, Ajuriaguerra (1974) chama a atenção para o facto da ontogénese se referir a processos de modificação morfológica que a estrutura anatómica do ser vivo sofre no decurso do processo de desenvolvimento, na sequência do exercício de diversos tipos de estrutura do comportamento que se sucedem ao longo de vários períodos cronológicos. Deste ponto de vista, com a finalidade de evitar equívocos acerca dos fatores que intervêm no desenvolvimento, este autor propõe que se estabeleça uma distinção entre a morfologia – referente aos aspetos anatómicos do organismo –, as funções – encaradas como sistemas potenciais – e o funcionamento – ao qual corresponde a atividade efetiva desses sistemas. Assim, embora muitas vezes se aceite que o desenvolvimento psicológico é um mero resultado da sucessão maturacional do sistema nervoso, menosprezando as mudanças que o exercício e o uso da função nele desencadeia, o referido autor – 26


apesar de reconhecer que alguns comportamentos podem aparecer fora de toda a possibilidade de aprendizagem – sublinha, todavia, que a maturação, se bem que importante, não constitui condição suficiente para explicar o processo de desenvolvimento (Ajuriaguerra, 1974). Também Wallon (1968) considerou que a atividade mental infantil não é algo que se desenvolve linearmente nem num único plano, entendendo que esta se processa segundo um aumento contínuo que evolui de sistema em sistema. Daí decorre que uma determinada ação do sujeito só tenha sentido enquanto a reportarmos ao sistema a que pertence e se a situarmos no instante em que se manifesta; deste modo, as causas do desenvolvimento ultrapassam sempre o momento presente dado que cada etapa não é um sistema fechado mas constitui, juntamente com as outras, um conjunto de manifestações interdependentes. Por outro lado, as trocas que se estabelecem entre estes sistemas abertos e os meios circundantes que os configuram materializam-se sempre mediante um complexo sistema de relações, o que faz com que a criança em desenvolvimento e o meio exterior, no quadro do qual esse processo ocorre, se especifiquem mutuamente, tanto mais que se incluem num quadro evolutivo em que se defrontam e se encontram reciprocamente implicados fatores biológicos e fatores sociais. Bühler (1971), ao abordar os fatores responsáveis pelo desenvolvimento, esclarece que, no homem, mais do que em qualquer outro ser vivo, este processo não é nunca o resultado exclusivo da maturação, uma vez que a experiência é um importante fator que também intervém substancialmente na diferenciação do ser em desenvolvimento. No entanto, do seu ponto de vista, aquilo em que o organismo, como tal, contribui para o progresso do desenvolvimento é, em grande parte, condicionado pela maturação, sendo ainda de destacar neste processo o papel da atuação do mundo circundante no âmbito do qual a maturação se torna em experiência. Além disso, nos verdadeiros processos de maturação, cada uma das fases que se vai sucedendo necessita sempre dos pressupostos adquiridos nas fases anteriores pois as transformações sofridas ao nível das estruturas corporais e das funções – assim como as que se efetuam no plano do comportamento – representam uma série que se processa num só sentido, não sendo pois suscetível de sofrer as regressões, nem as descontinuidades – ou sequer os caminhos diversos – que caracterizam a evolução em qualquer dos seus aspetos (Bühler, 1971). 27


Gesell e Ilg (1972) também acentuam o carácter interno inerente ao desenvolvimento, defendendo que as determinantes culturais, embora sejam importantes influenciadores deste processo, não são tão poderosas como pode parecer à primeira vista. Com efeito, se bem que não lhes neguem uma certa contribuição para este percurso evolutivo, caracterizando o papel preponderante que pode aí ser atribuído à maturação, os autores afirmam que a natureza apenas realiza o essencial da obra, convidando-nos depois, simplesmente, a secundá-la. Todavia, durante o desenvolvimento, quanto mais complexas se tornam as estruturas de comportamento, maior é a marca que contêm em si das influências culturais, não obstante os mecanismos de desenvolvimento não mudarem, continuando a criança a ser fiel aos tipos de crescimento e de adaptação que lhe são particulares; por outro lado, os fatores ambientais favorecem, influenciam e modificam as progressões do desenvolvimento, mas não lhes dão origem, encontrando-se a origem destas progressões no próprio organismo mediante a sua atualização, que é ela própria atingida através de processos maturacionais. Pode igualmente constatar-se que, no que se refere aos fatores de desenvolvimento que são destacados e descritos, cada perspetiva teórica enunciada neste domínio é norteada pelos pressupostos de que cada investigador se socorre, o que por sua vez se vai repercutir na enunciação de uma determinada noção de desenvolvimento, bem como nas respetivas convicções acerca das condições que são imputados como estando na base desse processo. Neste mesmo sentido e recuando às bases biológicas do desenvolvimento, Mussen (1972) assinala que todas as definições dadas sobre a maturação acentuam os processos orgânicos e as mudanças estruturais que ocorrem no indivíduo a nível biológico, entendendo por isso que dizem respeito ao desenvolvimento do organismo em função da idade, o que implica muito em especial as modificações neurofisiológicas e psíquicas que se vão sucedendo desde o nascimento. Ora, como referem Ruch e Zimbardo (1971), a maturação constituiria, deste modo, um processo através do qual a hereditariedade continua a funcionar após o nascimento, sendo portanto desta forma que as potencialidades hereditárias para seguir certas sequências de crescimento e para exibir muitos tipos de comportamento típico da espécie humana continuariam a desenvolver-se durante meses ou mesmo anos após o nascimento do indivíduo. 28


Valorizando esse papel da maturação, Wallon (1968) chegou mesmo a afirmar que a infância constitui o período da vida em que se acaba de se realizar no indivíduo o tipo da espécie, assumindo que o desenvolvimento psicológico da criança supõe como que uma imitação mútua entre fatores internos e externos, em que não é contudo possível discernir o papel respetivo de cada um deles. Nesta ótica, poder-se-ia defender que é aos primeiros anos que se deve a ordem das fases de desenvolvimento psicológico humano, para a qual o crescimento dos órgãos vai representar uma condição fundamental. Quando assumimos a maturação como um importante motor do processo de desenvolvimento, a referência à ideia de período crítico de desenvolvimento torna-se especialmente pertinente. Ora esta noção, originária da embriologia, pressupõe a presença de um relógio interno que tornaria a criança particularmente suscetível a certas influências do meio em certas alturas do desenvolvimento, tendo por isso a estimulação que ocorre nesse exato momento um efeito máximo em relação ao ativar de uma dada função com ela ligada, podendo tornar-se ineficaz ou muito menos eficaz se essa estimulação for exercida fora desse período temporal (Ferguson, 1970). Todavia, importa igualmente referir que, para muitos, não é sobretudo o aspeto maturacional que se destaca como a principal condição do desenvolvimento. Assim, por exemplo Piaget (1978), embora aceite que a hereditariedade e a maturação abrem possibilidades consideráveis à criança, salienta porém que estas necessitam de ser consolidadas mediante a interação com o meio. Na sua perspetiva, ao nível biológico, existiriam três fatores fundamentais enquanto condições de desenvolvimento: o primeiro dos quais consistiria na programação contida no genoma – que assenta as suas bases na hereditariedade –, o segundo referir-se-ia às influências do meio e o último a fatores de autorregulação ou de equilibração que não se pode dizer que sejam hereditários nem que provenham do meio exterior. Assim, o referido autor (Piaget,1971, p. 63), no que respeita à evolução psicológica da criança, defende que “o desenvolvimento individual é (...) função de atividades múltiplas nos seus aspetos de exercício, de experiência ou de ação do meio” em que intervêm funções particulares, cada vez mais gerais e que dependem de sistemas de regulação. Neste sentido, a maturação é apenas um de entre os vários fatores de desenvolvimento que podem ser implicados nesse processo, como 29


é um bom exemplo disso a tomada em consideração dos aspetos biológicos que incidem sobre o amadurecimento do sistema nervoso; todavia, apesar de bastante relevante, este fator não é suficiente para o explicar dado que nunca atua no estado puro ou isolado, tendo de ser associado a outro, a experiência adquirida, a qual também é por si só insuficiente para explicar o desenvolvimento apesar de aí desempenhar um papel importante, uma vez que a parte ativa do indivíduo é fundamental, não bastando ter em conta a experiência que lhe é possível extrair linearmente dos objetos do mundo exterior. Um outro fator de desenvolvimento, que decorre das interações sociais que se desenrolam no confronto do sujeito com o seu meio circundante, não obstante o seu carácter determinante, encontra-se igualmente condicionado, neste caso pelas possibilidades de assimilação por parte do indivíduo daquilo que se pretende transmitir; consequentemente, tal como nos casos anteriores, apesar de constituir condição necessária para que o desenvolvimento ocorra não constitui, no entanto, uma condição suficiente. Por tudo isto – e a fim de explicar este processo – é necessário introduzir uma quarta condição, designada por Piaget (1962) como equilibração, que completa as anteriores e que, acima de tudo, as integra, a qual consiste na compensação, por reação do indivíduo, às perturbações exteriores, definindo o próprio desenvolvimento. Este último, de facto, não é mais do que o resultado de processos de equilibração em que os períodos sucessivos são degraus a tenderem para o equilíbrio no quadro do desenvolvimento individual, o qual é função de atividades múltiplas que são objeto de uma coordenação geral assumida pelo fator de autorregulação, na teoria piagetiana designado equilibração.

3. Estádios de desenvolvimento Reuchlin (1972), na sua obra História da Psicologia, refere que muitos estudiosos propuseram a divisão ou o reagrupamento das aquisições realizadas durante o desenvolvimento em períodos ou estádios, de tal modo que cada um destes englobasse aquilo que lhe parecia poder ser considerado como uma forma provisória de equilíbrio. Cada período caracterizar-se-ia assim por um conjunto de traços coerentes e estruturados que corresponderiam ao equilíbrio referido. 30


Com efeito, esta maneira de descrever o desenvolvimento infantil constitui uma dos mais usualmente adotadas pelos psicólogos que abordam este tema. No entanto, coexiste com uma outra que equaciona este processo segundo fases etárias, uma vez que alguns autores – entre os quais Arnold Gesell – preferiram o agrupamento segundo as idades cronológicas, fornecendo então um quadro detalhado das condutas que podem ser observadas em cada idade; estas descrições, em geral bastante minuciosas, algumas vezes, são ainda subdivididas em categorias – tais como a motricidade, a linguagem, a destreza manual, etc. – a fim de tornar mais clara a leitura do quadro da evolução psicológica. De qualquer modo, aqueles que optaram por uma divisão segundo etapas sucessivas procuraram definir, nas várias idades, a natureza dos laços que unem certo tipo de condutas, sendo, no caso da divisão do desenvolvimento segundo o modelo de estádios sucessivos, cada um deles entendido como o equilíbrio resultante entre esses tipos de conduta considerados. Acresce ainda que essa divisão do desenvolvimento em etapas subsequentes pode ainda presumir que estas se referem quer a funções quer a atividades independentes ou ainda, como é o caso da teoria enunciada por Henri Wallon, em alternativa, pretender traçar a evolução da criança em termos mais globais (Reuchlin & Huteau, 1978). Bühler (1971) pronuncia-se sobre a utilidade da divisão em estádios, que designa por modelo por fases, no qual a evolução seria concebida como dividida em passos ou degraus, defendendo que é esta a que, no seu entender, permite estabelecer melhor um paralelo entre o desenvolvimento psicológico da criança e a sua evolução biológica, constituindo, além disso, o modelo que apresenta uma maior correspondência com o modo como pensamos e como estruturamos os conhecimentos. A este respeito, Tanner (1962) acha que é duvidosa a existência efetiva de estádios caracterizados por vários progressos anatómicos, fisiológicos e psicológicos ocorrendo em simultâneo, dado que a descontinuidade que permitiu que se evidenciassem estádios no decurso do desenvolvimento psicológico não lhe parece ser tão nítida no biológico. Compara assim o desenvolvimento físico a um mosaico de processos sucessivos, sobrepostos no tempo, mas que se encontram pouco ligados entre si. Por outro lado, do seu ponto de vista, as velocidades de mudança variariam de época para época nas diferentes partes do mosaico, traduzindo-se a evolução, em consequência disso, por uma tal complexidade que um modelo 31


segundo estádios dificilmente se conseguiria aperceber da totalidade das diversas ordens de forças em equilíbrio existentes num dado momento da evolução. De modo idêntico Zazzo (1972), apesar de considerar que a divisão da vida humana em períodos ou estádios é, incontestavelmente, uma exigência do espírito do investigador, que assim procura descrever, compreender e explicar a realidade psicológica, mostra-se, contudo, mais reservado acerca da utilidade básica da escolha deste modelo, questionando-se se ele corresponderá realmente à evolução biológica e psíquica da criança. A esta divisão em estádios o referido autor opõe uma outra posição, em alternativa, que faz a descrição da infância como uma evolução gradual, salientando que quer esta conceção quer a que a perspetiva em termos de eventuais metamorfoses sucessivas – que constituiriam as passagens de um estádio a outro – lhe parecem conter apenas uma parte da verdade, sendo, por isso qualquer delas, provavelmente falsa, se tomada isoladamente uma da outra. Na sua opinião, a primeira pode ter o inconveniente de descrever a infância como um mero acrescentamento qualitativo consequente à sucessão cronológica, mas a segunda corre o risco de destacar e dividir demasiado os diversos aspetos do desenvolvimento da criança, esquecendo-a enquanto totalidade. Por outro lado, Zazzo (1972) recorda que qualquer aumento tem tanto um aspeto quantitativo quanto um qualitativo e que a transformação qualitativa pode ser gradual mas também se pode exprimir de modo súbito. Por tudo isto, mais do que escolher uma única destas vias, prefere reter a dupla perspetiva que configuram, opção essa que se torna mais pertinente quando focamos, mais aprofundadamente, os múltiplos sectores em que o desenvolvimento ocorre e cuja sincronia nem sempre é uma realidade. Com efeito, Zazzo (1972) considera que a complexidade do processo de desenvolvimento é pontuada pela evolução de sectores isolados com ausência de sincronismo das transformações que se vão sucedendo. Neste enquadramento, não obstante haver estádios na evolução biológica e psíquica da criança, estes são caracterizados precisamente por essas diferenças de ritmos intraindividuais, a que os fisiologistas chamaram alométricas, não significando porém esta falta de simultaneidade entre os diversos aspetos do desenvolvimento que estes não estabeleçam certas relações entre si que nos permitem equacioná-los de modo integrado. Por conseguinte, considerando que não seria impossível compatibilizar tal complexidade com a delimitação de estádios, este autor decide optar pela perspe32


tiva de Wallon para quem cada período se caracteriza pelo aparecimento de uma função que é dominante sobre todas as outras, constituindo, assim, não só um momento da evolução mental, mas também um determinado tipo de comportamento que se torna mais fácil de destacar e de caracterizar. Efetivamente, as teorias gerais do desenvolvimento enunciadas ou aceites por cada teórico que aprofundou este assunto influenciam a valorização dos aspetos que são privilegiados bem como o seu modo de encarar os processos, o que vai influenciar, por seu turno, a escolha do critério que preside à sua divisão dos períodos e à respetiva descrição; no entanto, para além desses critérios, também as terminologias utilizadas e as perspetivas delineadas consubstanciam pontos de vista marcados pela controvérsia e pelo desacordo entre os diversos teóricos que abordam uma determinada questão neste âmbito. Podem ainda ser mencionadas outras fontes de polémica que resultam do facto de muitas das suas respetivas constatações serem baseadas em dados recolhidos junto de populações muitas vezes pouco comparáveis entre si (Zazzo, 1972). De tudo isto resulta uma proliferação de classificações extensa e diversa mas pouco clarificadora. Efetivamente, Paul Osterrieth e outros (1956, citado por Reuchlin, 1972), ao confrontarem dezoito sistemas de estádios de vários autores americanos e europeus, puderam constatar que era possível evidenciar nada menos do que sessenta e um períodos cronológicos distintos, sem grande correlação de uma formulação para outra, verificando-se apenas um acordo quase unânime relativamente ao primeiro ano de vida que a todos parecia dever figurar como uma etapa da vida bem demarcada. Acrescente-se que, para além da disparidade, não só quanto à divisão em períodos cronológicos como quanto à sua especificação, a própria noção de estádio não goza de acordo no que concerne à sua significação, verificando-se que não só é muito variável, como por vezes é simplesmente empregue como sinónimo de outros termos como etapa, período, fase ou idade. Ajuriaguerra (1974) opta por não estabelecer diferenciação quando se refere a qualquer um destes conceitos, preferindo, em vez disso, elucidar a noção de estádio que distingue, fundamentalmente, da noção de escala, a qual associa a um modo de conceber o desenvolvimento de um ponto de vista mais estritamente quantitativo e cronológico, inerente ao já referido modelo assente na fase etária. No seu entender, as escalas de desenvolvimento caracterizar-se-iam por serem des33


critivas e permitirem situar, em virtude da sua possibilidade de validação estatística, se uma determinada criança teria um nível de desenvolvimento de acordo com o que seria de esperar dada a sua idade cronológica. Saliente-se que tal precisão não é o objetivo da divisão em estádios, a qual visa definir níveis funcionais com um carácter operacional cuja finalidade principal é aprofundar o conhecimento do modo de organização da criança e a maneira como as suas novas possibilidades se vão traduzindo em comportamentos mais complexos, de tal maneira que cada estádio, em lugar de obedecer a uma cronologia pré-determinada, consubstancia antes uma sucessão de funções cada vez mais complexas. Para Gesell e Ilg (1972) – cuja abordagem do desenvolvimento da criança privilegia a descrição detalhada das suas características comportamentais segundo a idade cronológica – o modelo segundo fases etárias não obedece a um padrão rígido em que as séries de idades constituiriam normas absolutas, sendo apenas aproximativas. Esclarecem ainda que, embora seguindo uma abordagem que considera a criança segundo as idades, não pretendem criar normas cronológicas rígidas com um escalonamento estatístico que permita prever o que teria de acontecer num desenvolvimento dito normal, sendo as suas escalas apenas um ponto de referência no situar da evolução individual de cada criança. Foi Piaget (1972) quem forneceu uma definição mais precisa da noção de estádio, a qual se encontra, por vezes, apenas implícita nalguns outros autores, deixando todavia bem claro que o seu contributo relativamente à apresentação de estádios de desenvolvimento se restringe às operações intelectuais, embora possa ser generalizado a outros domínios, nomeadamente à perceção, na qual se encontra uma continuidade que considera típica do desenvolvimento orgânico; no entanto, esta continuidade relativamente a este domínio, não obstante possa ser fragmentada de uma maneira convencional, não apresenta cortes bem nítidos, o que não acontece no domínio do desenvolvimento intelectual em que se assiste, por um lado, à formação de estruturas que podem ser seguidas desde os seus esboços e, por outro lado, ao seu acabamento, isto é, à sua constituição final enquanto degraus de equilíbrio. Segundo Piaget (1978), nestes estádios, os cortes obedeceriam às seguintes características que tipificariam a noção piagetiana de estádio: 1) Para que possamos falar de estádios é preciso que a ordem das aquisições seja constante; trata-se assim não de uma certa cronologia mas de uma ordem segundo a qual se sucederiam as aquisições; 34


2) Devem denotar um carácter integrado, de tal modo que as estruturas construídas numa dada idade vêm a fazer parte integrante das estruturas que serão elaboradas na etapa seguinte; 3) A diferenciação das estruturas não se caracteriza por uma justaposição de propriedades estranhas umas às outras, mas pela sua inclusão numa estrutura de conjunto suscetível de ser apreendida na sua totalidade; 4) Em cada estádio, pode-se evidenciar um nível de preparação e um outro de consecução; 5) É possível destacar, em toda a sequência de estádios, os processos de formação ou de génese e as formas de equilíbrio finais. Estabelecida esta definição de estádio é importante referir que Piaget (1978, p. 28) é de opinião que “os psicólogos abusaram da noção de estádio” que, em muitos autores mais não é do que “uma sucessão de condutas cuja ordem não é sempre constante (mas apenas em geral), caracterizando-se por um carácter dominante, o que naturalmente abre as portas à arbitrariedade” Por sua vez, Wallon (1968) opõe-se à posição que considera o desenvolvimento como a atualização progressiva de funções pré-determinadas independentemente do meio, embora, tal como Piaget, encare o desenvolvimento como uma construção progressiva que se efetua mediante a interação entre o indivíduo e o meio, situando-se ambas as conceções na procura da determinação da verdadeira génese do psiquismo. No entanto, existem divergências importantes nas teorias destes dois autores que aliás eles próprios sublinharam. Na verdade, apesar de qualquer deles não se limitar à descrição das etapas da evolução psíquica da criança, procurando também explicá-la através dos processos fundamentais que presidiram à sua génese, não valorizam de modo igual os diferentes aspetos do desenvolvimento, nem os estádios que distinguem no decurso do desenvolvimento psicológico coincidem cronologicamente ou do ponto de vista das suas particularidades. Por outro lado, Piaget não só aprofundou sobretudo o desenvolvimento cognitivo – não obstante as etapas enunciadas a respeito deste possam ser relacionadas com outros aspetos da evolução do psiquismo humano – como utiliza a divisão em estádios não como uma finalidade em si mas como um instrumento para a análise e compreensão dos processos de construção do pensamento. Além disso, mostra-se cético acerca da possibilidade de ge35


neralização dos estádios das operações intelectuais, com exceção talvez de certos aspetos afetivos que considera serem uma espécie de substrato energético e funcional subjacente às estruturas intelectuais. Tal distinção não aparece em Wallon que aborda o desenvolvimento infantil na sua globalidade, sem isolar a dimensão cognitiva da afetiva. (Ajuriaguerra, 1974). A propósito da existência de estádios, Wallon (1968) considera que estes são evidentes através das transformações que se operam no decurso do desenvolvimento, quer ao nível das condições de existência da criança, quer no que se refere ao seu comportamento (Ajuriaguerra, 1974). Merani (1977) entende que Piaget vê nos estádios um tipo de operação de natureza idêntica, que se vai repetindo ao transformar-se de maneira específica nos diferentes níveis da vida mental – de tal modo que as várias operações se sucederiam, imutavelmente, traçando uma progressão de estádio em estádio – enquanto Wallon, pelo contrário, concebe esta sucessão de modo descontínuo, aceitando que os diversos períodos ou estádios se entrecruzam e se opõem dialeticamente, para virem em seguida a reestruturar-se, traduzindo-se este processo por acelerações, paragem e retrocessos ou, mesmo, por saltos bruscos de uma etapa a outra, sem se ter passado por outras que supostamente seriam intermediárias entre ambas. Esta divergência de posições representa uma questão relevante face ao modo como Piaget e Wallon concebem o desenvolvimento pronunciando-se acerca sua continuidade ou descontinuidade. Reuchlin (1972) defende que, na teoria piagetiana, o desenvolvimento é progressivo, marcado por uma profunda unidade funcional, constituindo, por conseguinte, os estádios delimitados quase meros marcos arbitrários. Tal interpretação é talvez excessiva dado que, se bem que Piaget tenha de facto defendido a existência de uma continuidade funcional no modo como cada estrutura prepara as seguintes utilizando as precedentes, não deixou de salientar que a sucessão das condutas características de cada fase não ocorre de forma linear. De facto, Com efeito, Piaget (1975a, p. 279) assume que “a sucessão de fases é concebível (…) como uma série de diferenciações sucessivas ou neoformações, constituídas no seio das antigas, sem que estas sejam imediatamente abolidas”. Deste modo, estas diferenciações não seriam incompatíveis com uma certa descontinuidade estrutural, embora os processos que regem a vida mental denotem a continuidade funcional referida, a qual não é incongruente com a distinção de estruturas sucessivas. 36


Ajuriaguerra chama a atenção que, embora na maior parte dos autores a noção de estádio seja pouco sistemática, estes não deixam em geral de notar aquelas modificações, quer as retenham como bruscas e súbitas ou as vejam como realizadas em ligação com períodos de transição. Deste modo, nas suas descrições surgem constantemente os termos etapas, estádios, períodos ou fases, comprovando que o desenvolvimento é por eles aceite como contendo cortes, os quais têm uma especificidade e significado próprios, consoante a conceção de evolução psíquica perfilhada por cada investigador. Para Gesell e Ilg (1972) o desenvolvimento é contínuo uma vez que toda a aquisição se baseia num dado desenvolvimento anterior; no entanto, o seu curso é desigual, avançando de modo sinuoso e às vezes em espiral – isto é, voltando a cobrir o mesmo percurso de um modo que poderia sugerir regressão – não obstante esta espiral seja ascendente, pois que conduz a um nível de complexificação crescente, embora em numerosos aspetos os comportamentos manifestados pela criança possam continuar a assemelhar-se aos que evidenciava em estádios anteriores. No pensamento de Wallon (1968) o desenvolvimento é entendido como sendo essencialmente descontínuo, num enquadramento em que a passagem de um estádio a outro não se efetua mediante simples acrescentamentos mas através de novas ligações entre cada estádio, numa situação em que, após terem competido para predominar um sobre o outro, aquele que se submete ao outro transformar-se-á inevitavelmente, perdendo a capacidade de regulamentar o tipo de comportamento que caracteriza cada etapa da evolução psicológica. Compreensivelmente este é um processo que não se verifica sem conflitos, pelo que o autor compara as diversas crises que ocorrem durante o desenvolvimento com mutações ou revoluções, que correspondem a momentos em que dois estádios se contrapõem até que bruscamente se estabeleça entre elas um tipo de interação até aí inexistente. Por conseguinte, o desenvolvimento não se faria mediante meras adições de progressos sempre num mesmo sentido, podendo apresentar oscilações tais como as manifestações antecipadas de uma certa função ou, pelo contrário, manifestando regressões. Diferente é a opinião de Tran-Thong (1967) que afirma ser o desenvolvimento da criança, em termos de estádios, simultaneamente contínuo e descontínuo, sucedendo-se níveis qualitativamente diferentes mas com ligação estreita entre si. 37


É pois necessário estabelecer também uma distinção entre a noção de estádio e a noção de crise, considerando-se que esta última introduz uma reorganização importante em cada etapa qualitativamente definida. Note-se, porém, que esta reorganização se encontra implícita já na noção de estádio em Piaget e que, a par com a noção de estádio e de crise, é o problema da descontinuidade ou da continuidade no desenvolvimento que parece verdadeiramente assumir uma importância privilegiada (Ajuriaguerra,1974). Todavia, para Wallon (1968), seria a própria evolução que acarretaria modificações bruscas, constituindo-se assim num fator de descontinuidade relativamente às estruturas anteriores. Do seu ponto de vista, seria esta evolução que, facultando à criança a imersão em estruturas diferentes – com a concomitante diversificação que aquela é levada a assumir preponderância num dado momento – que irá precipitar as reorganizações sucessivas que darão origem aos novos estádios. A noção de crise em Wallon pressupõe, ainda, que tudo se passaria como se, de idade para idade, “as estruturas sociais nas quais a criança se vê integrada [se modificassem] em amplitude, complexidade, tonalidade intelectual e afectiva”, pontuando o desenvolvimento de crises cujas reorganizações são o motor que irá dar origem ao aparecimento de novos estádios (Zazzo,1972, p. 46). Do exposto decorre que é preciso ir em busca de soluções mais abrangentes, não só dados os problemas que a divisão em estádios coloca que dificultam a compreensão da evolução psicológica do indivíduo desde o início da vida, visto ser urgente ultrapassar a mera descrição de fatores isolados, os quais, embora não estejam estritamente sincronizados, se encontram relacionados, tanto mais que as descrições parcelares e demasiado destacadas de variáveis influenciam os fatores descritos fazendo correr o risco de perder a unidade funcional dos estádios de desenvolvimento (Osterrieth et al., 1956). No entanto, isto não implica que se considere que a existência de estádios é apenas uma ilusão, nem que a utilização de um modelo neles baseado se revele necessariamente ineficaz, desde que esses estádios sejam enunciados sem um esquematismo excessivo. Efetivamente seria apressado e simplista pensar que os desacordos que se verificam entre os diversos autores – quer na identificação dos estádios quer dos fatores que lhes estão subjacentes – constituem prova suficiente da sua não utilidade ou mesmo da sua não existência. Consequentemente, como refere Zazzo (1972, p. 46) “no atual estado da psicologia da criança a me38


lhor atitude é (…) afrouxar os sistemas demasiado rígidos que não deixam bastante margem às diferenças individuais e sócio-culturais, na expressão dos estádios e das crises”; finalmente o autor propõe ainda, com esse mesmo objetivo, que se estruturem as descrições que são por vezes demasiado desligadas, a fim de que não se perca nem a unidade funcional nem a originalidade fundamental dos estádios de desenvolvimento.

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