Troviscal Republicano (1922-1939) - Banda Excomungada, Clero Interdito

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BANDA EXCOMUNGADA, CLERO (1922-1939)

SILAS GRANJO

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EXCOMUNGADA , CLERO INTERDITO (1922-1939)

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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

Edição do Autor Troviscal Republicano: Banda excomungada, clero interdito (1922-1939) AUTOR: Silas Granjo PREFÁCIO: António Pedro Vicente TÍTULO:

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CAPA E

Aguarela de Leal da Câmara para a 1.ª Edição Ilustrada (1912) de «A Velhice do Padre Eterno», de Guerra Junqueiro PAGINAÇÃO: Paulo Silva Resende

1.ª EDIÇÃO LISBOA, 2010 IMPRESSÃO E ACABAMENTO:

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Troviscal Republicano: Banda excomungada, clero interdito (1922-1939) . , SILAS GRANJO

Pref谩cio Ant贸nio Pedro Vicente



José de Oliveira Pinto de Sousa (1879-1944) nasceu em Aveiro e faleceu no Troviscal. Estudou violino e tirou o Curso do Magistério Primário no Porto, onde também tinha frequentado o Seminário. Dirigiu a Banda de Fermentelos, a Tuna de Aguim, a Banda de Paredes do Bairro, e a Banda Escolar do Troviscal, que fundou em 1911. Nesta freguesia casou, teve sete filhos e foi Professor, Juiz de Paz e Delegado do Registo Civil.



. Prefácio , Estamos no ano de 1922. A República prosseguia os seus dias perturbados, sujeita a crises, recordando a guerra recente, Sidónio assassinado, Afonso Costa em França, receando formar governo mas, caso curioso, pela primeira vez com um presidente que iria cumprir o seu mandato – António José de Almeida, que, nesse ano, fora ao Brasil em viagem apoteótica, após os 100 anos de independência da colónia. No meio das greves dos conserveiros de Setúbal, e com a cidade do Porto em grande convulsão por questões laborais. António Maria da Silva, na chefia do governo, no meio de tantos problemas, acompanhara a população na alegria sentida pelo êxito de Gago Coutinho e Sacadura Cabral na célebre viagem aérea à antiga colónia. Se o ambiente geral fervia no âmago de tantos problemas, uma questão, já antiga, ensombrava, acutilantemente, a sociedade portuguesa. Tratava-se das hostilidades entre monárquicos e republicanos. O país 7


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lembrava, então, as incursões anti-republicanas, a monarquia do Norte, e por toda a parte se agudizavam as rivalidades. Este valioso e esclarecedor trabalho vem-nos avivar a memória sobre o que se passou numa pequena aldeia da Bairrada no distrito de Aveiro e concelho de Oliveira do Bairro – o Troviscal. Nessa povoação, acentuaram-se efectivos sentimentos republicanos que, aliás, se assinalavam nas velhas tradições liberais com que Aveiro alimentava a sua história*. Aí se deu um evento significativo das tradições que então acirravam os ânimos. Sem querer pormenorizar, num simples Prefácio, a riqueza descritiva do Professor Silas Granjo, ligado, aliás, por laços familiares a alguns dos intervenientes na famosa querela, diremos que tudo começa simplesmente. Sucede que, em altercação numa tasca da aldeia, um indivíduo é assassinado. De uma família de tradição monárquica, pai e filho são acusados do crime. Preparase o enterro. A viúva solicitou que o acto tivesse cariz religioso. Combinou-se com o padre o enterro. Falou-se à banda de música, soaram os sinos e o povo compareceu. Porém, no último instante, família enlutada e Irmandade das Almas não se entendem quanto a honorários. Sem a presença da irmandade e do sacerdote, a banda, acompanhando o féretro e o povo, marcha agora para o cemitério, isto num tempo em que os ideais republicanos fomentavam os funerais civis. Este foi o pretexto para uma história que diríamos ser rocambolesca se não tivesse tido tão dilatadas consequências. O padre Basílio, de configuração ideológica 8


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totalmente monárquica e, pelos vistos, com alguma influência na hierarquia, consegue que, por decreto bispal, de 18 de Novembro de 1922, a banda fosse interdita, aí se afirmando “que esta música não pode ser convidada nem tomar parte em actos religiosos” e os Rev.os Sacerdotes devem não só recusar-se a assistir a festas ou actos religiosos quando saibam que a respectiva filarmónica aí toca, mas também não devem tomar parte “em festas ou actos religiosos em que tome parte qualquer músico da filarmónica de Troviscal, embora incorporado noutra filarmónica”. Aqui começa uma guerra que irá perdurar pelo espaço de 17 anos. Das peripécias de uma luta que, então, se iniciou, não nos compete dar notícia pormenorizada. Disso se encarregará o autor que, munido de precioso suporte documental e sabedoria, por um lado, e, por outro, com conhecimento pessoal de participantes com quem ainda teve ocasião de contactar, nos traça, com primor, os acontecimentos que nesta terra, de fortes tradições ideológicas republicanas, então sucederam. O ataque das autoridades religiosas consistiu em individualizar a banda, pois o povo não foi excomungado por acompanhar o defunto à sua derradeira morada. Comícios irão ter lugar, ânimos irão exaltar-se, pois, ainda hoje, se considera que a banda foi interdita por ódio político e pessoal ao seu regente, o professor primário José de Oliveira, que, a partir daí, encetou tenaz luta pela reconquista dos seus direitos – “Afonso Costa garante as liberdades de pensamento e do trabalho,” afirmou um articulista, entre os muitos 9


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que, por toda a região e um pouco por todo o país, inscreveram nos órgãos de informação o seu protesto. Aliás, na sua maioria, afirmavam estes articulistas que a banda jamais ofendeu a fé católica e só exclusivamente o ódio político e pessoal recaíam sobre ela. A partir daí, a banda excomungada adquiriu, por terras distantes, de Lisboa a Lamego, de Viseu a Coimbra, o maior prestígio, tornando-se num símbolo da luta pela liberdade, face à opressão, e por todo o país era chamada a actuar. As opiniões que, então, se levantaram discutiam o carácter da interdição, chegando o Arcebispo de Mitilene, a propósito de uma actuação que, em 1923, a Banda do Troviscal realizou em Lisboa (Olivais), a alegar que o facto de a banda se “incorporar num enterro” não era motivo para interdição. Nas festas da Rainha Santa, em Coimbra, os elementos da banda chegaram a ser presos com os seus instrumentos. Curiosíssimo é o facto de, em Coimbra, a atitude do Governador Civil, Dr. Vieira Coelho, ter tido fortes repercussões no governo central. Era ministro do interior o Dr. Ribeiro Castanho, que na altura, e após várias vicissitudes, acaba por pedir a demissão, sendo substituído pelo coronel Adriano da Costa Macedo. A descrição do autor deste curioso estudo e o cuidado por ele colocado na escolha dos anexos profundamente significativos e explicativos, tornariam despropositada e até entediante a nossa narrativa. Escritores respeitados na época, como Tomás da Fonseca, Geraldino de Brites e outros, envolveram-se, então, na querela. O primeiro destes, num discurso exaltado, dirigindo-se ao povo de Troviscal, coloca, 10


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curiosamente, todo o ênfase no papel da mulher na nova sociedade. Era dilatado o perigo e profundas as repercussões que a questão estava provocando, inclusive, dando origem a comícios dos partidários da República ou da Monarquia. Só em pleno Estado Novo a questão se resolveu. Foram muitos anos em que as arrojadas convicções dos habitantes deste pequeno burgo, teimosa e honradamente, lutaram contra as poderosas investidas de uma igreja, onde alguns dos seus servidores expandiam o maior rancor e ódio sobre os seus filhos. Terminamos os nossos considerandos neste Prefácio, que já vai longo, embora correndo o perigo de ocupar o espaço do excelente e esclarecedor estudo de Silas Granjo, anotando a acção de Frei Gil Alferes, um bairradino que, por dezenas de anos, espargiu, por todo o país, o bálsamo da sua generosidade para com os mais carentes. D. João Evangelista de Lima Vidal, primeiro bispo da restaurada diocese de Aveiro, e um excelente escritor, merece particular referência. Efectivamente, quando aí entrou, em 1939, o arcebispo encontrou pela frente um problema que desde logo desejou resolver, dado o carácter conciliatório da sua rica personalidade de semeador da paz. A sua decisão de conseguir terminar com a interdição correu célere por toda a parte. O Arcebispo escreveria, mais tarde, esta “é uma notícia imensa, não só para a Diocese, que sofria a dor de mais perto, como até para o país inteiro (…). A música do Troviscal entrou outra vez, e pela porta da 11


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frente, com toda a nobreza, na comunhão da igreja. Dizia-nos um dia, se não é indiscrição repeti-lo, o Exmº Sr. Cardeal Patriarca: ‘Ainda que a Diocese de Aveiro não fosse restaurada por outro motivo, este bastava’”. Lisboa, 20 de Junho de 2010 António Pedro Vicente

*

Em 12 de Agosto de 1910, realizou-se no Troviscal o que por alguns foi considerado a primeira manifestação pública republicana do Concelho de Oliveira do Bairro. Nesse comício, participaram como oradores Alberto Souto Ratola, Manuel Alegre, Abílio Nápoles, António Breda e Albano Coutinho. Esta manifestação foi presidida por Eugénio Ribeiro (Cf. O Ideal, 27-08-1910)

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.1, Causas circunstanciais da interdição 12 de Novembro de 1922. Em obscura taberna da paróquia do Troviscal, concelho de Oliveira do Bairro, tem lugar uma altercação de que resulta, mais ou menos acidental, o homicídio de Manuel Brito, pessoa de arreigadas convicções republicanas, e, provavelmente, anticlericais. Os presumíveis autores, da família Santiago, em cuja companhia se encontra um criado, de nome Ciríaco, são monárquicos. Na origem do incidente não estão, porém, questões de ordem política ou religiosa; apenas uns pinheiros do Santiago que o temporal derrubou para cima de um terreno do Brito e que tardaram a ser removidos. Tudo leva a crer que foi o Ciríaco quem vibrou o golpe de navalha que atingiu no coração o infeliz Brito, mas, por interesses materiais, primeiro, dado que os

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Santiagos eram gente mais abastada a quem se poderia exigir uma indemnização significativa, e depois, por interesses materiais e antipatia partidária, logo correu, e a tradição consagrou, que os homicidas eram os Santiagos, pai e filho. Existe, por notável coincidência, um registo pormenorizado de todo o processo, publicado pelo advogado de defesa num recurso ao tribunal da Relação de Coimbra.1 O caso, que só foi julgado três anos depois, resultou na condenação de inocentes e prolongou-se ainda durante longos anos na relação. As suas consequências na história do Troviscal foram, porém, imediatas. Devido à ausência da viúva, na Costa Nova, foi encarregado do funeral um cunhado que, a seu pedido, lhe preparou um enterro católico. Falou ao padre, falou à irmandade, falou à banda de música, tocaram os sinos e todos compareceram. Quando, porém, se aprestava para pagar à Irmandade das Almas — o prépagamento parece ter sido sempre uma exigência em cerimónias deste tipo — é-lhe exigido um montante muitas vezes superior ao habitualmente praticado. Constou que foi por acerba animosidade do juiz da irmandade para com o defunto, animosidade que nem a morte nem a fé conseguem, muitas vezes, aplacar mesmo em tais circunstâncias, mas o mais provável é que, em vida, o finado se tenha repetidamente furtado a pertencer à dita irmandade, arrostando agora, na morte, com as agravadas contrapartidas económicas 1

José S. da Cunha e Costa, Um Erro Judiciário: Minuta de Apelação Crime, Coimbra, 1925.

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da sua irreverente teimosia. Não compreendendo as razões de tão desmedida exigência, ou desde logo pouco decidido a aceder aos desejos da viúva sobre o funeral católico — os funerais civis estavam perigosamente a entrar na moda — o organizador recusa-se a pagar a elevada sobretaxa e, preparando-se para prosseguir o enterro sem os aconchegos da religião, abeira-se do regente da música, explica-lhe a situação e pergunta-lhe se, em todo o caso, a banda acompanhará, tocando, o cortejo. A resposta é afirmativa e, enquanto opas e luvas regressam às respectivas sacas; cruzes, lanternas e restantes alfaias às suas caixas; e o padre Basílio monta na sua bicicleta para regressar a casa, o cortejo fúnebre muito concorrido, mas acompanhado, agora, apenas pela Banda Escolar do Troviscal, põe-se em movimento em direcção ao cemitério. Tudo teria, provavelmente, terminado aqui se não se verificasse toda uma complexa conjuntura em que se misturavam ódios políticos e pessoais, orgulhos feridos, privilégios impiedosamente abolidos, feridas ainda não cicatrizadas. Refiro-me, evidentemente, à queda da monarquia e à lei da Separação da Igreja do Estado, que logo lhe sucedeu. Os ódios pessoais envolvem principalmente o regente da Banda do Troviscal, José de Oliveira Pinto de Sousa, nascido em 1879 em Aveiro, mas trazido de tenra idade para Oiã onde seu pai, Manuel José de Oliveira, veio ocupar os lugares de professor do ensino primário e de regente da Banda de Fermentelos. No Troviscal viera José de Oliveira a casar em 1906, fixando-se também 17


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como professor do ensino primário oficial, e a fundar, em 1911, aquela a que chamou Banda Escolar do Troviscal, por ser formada por alunos da sua escola, a quem ministrava também os rudimentos da leitura musical. A sua família era católica e monárquica. O padre Abel da Conceição, figura central em todo o processo desencadeado pelo enterro civil que referimos, era um amigo lá de casa com tanta intimidade que conquistou as simpatias das meninas, deixando numa delas o fruto visível das suas atenções. Se os amores do padre não conseguiram abalar a fé do pai das jovens, já o mesmo não aconteceu com o irmão mais velho, José, que oportunamente sovou o lúbrico sacerdote. Mas o padre Abel tinha outra paixão: a política. Tinha colaborado activamente no frustrado atentado da Ponte do Pano, onde, dinamitando-a, tinha planeado fazer descarrilar um comboio que transportava, de Lisboa para o Porto, as mais destacadas figuras do regime republicano de então; tinha sido julgado, condenado e amnistiado. A dinamite tinha sido, de facto, colocada, mas a guarda da linha, alertada, tinha conseguido fazer parar o comboio, evitando assim o acidente. José de Oliveira, católico e de tradição monárquica, sentira, por certo, profundamente abalados os alicerces das suas convicções com a prática desta figura eclesiástica, cuja sotaina lhe deveria parecer a parte menos negra do seu carácter, e deixara-se convencer, pelos muitos amigos republicanos que fizera no Troviscal, a pegar em armas e defender, nos arredores de Águeda, a República, ameaçada pelas tropas do Reino da Traulitânia. 18


.2, Interdição mútua

2.1. O decreto de interdição Ocasião soberana para saldar umas velhas contas com o seu figadal inimigo de agora deve, então, o acidentado enterro do Troviscal ter parecido ao padre Abel, que, enquanto arcipreste de Oliveira do Bairro, promoveu a imediata reunião do clero local donde emanaria a proposta de interdição da Banda do Troviscal. Saiu assim o decreto episcopal2:

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Anunciado pela primeira vez no Boletim da Diocese de Coimbra, Ano VIII, N.os 17 e 18 (1 e 15 de Dezembro, 1922) p. 245, é publicado na íntegra no Amigo do Povo de 24 de Dezembro e no Boletim da Diocese de Coimbra, Ano VIII, N.os 19 e 20 (1 e 15 de Janeiro, 1923) p. 260.

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Música do Troviscal Por decreto de 18 de Novembro de 1922 foi lançado interdito à música do Troviscal. Em vista disso: 1.° - Esta música não pode ser convidada nem tomar parte em actos religiosos. 2.° - Os Rev.os Sacerdotes devem recusar-se a assistir às festas ou actos religiosos, não só quando saibam que neles toma parte aquela filarmónica interdita, mas também quando lhes não seja garantido que tal filarmónica não aparecerá a tocar no local e dia da festa, ainda que seja antes ou depois de concluída a parte religiosa. 3.° - Atendendo às circunstancias especiais deste caso, também os Rev.os Sacerdotes não devem tomar parte em festas ou actos religiosos em que tome parte qualquer músico da filarmónica do Troviscal, embora incorporado noutra filarmónica. 4.° - Se alguma outra música tomar parte em alguma pretendida procissão ou paródia aos actos religiosos, fica ipso facto interdita. Coimbra, 15 de Dezembro de 1922 Manuel, Bispo de Coimbra

Causou grande estranheza, primeiro, revolta depois, esta decisão do Bispo de Coimbra, até porque a Banda do Troviscal tomara parte anteriormente em outros 20


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enterros civis, e não se compreendia bem o alcance e o teor do artigo 4.° do decreto3. A reacção imediata que nos traz o Alma Popular de 2 de Dezembro, ainda antes de conhecer o exacto teor do decreto episcopal, dá o tom que predominaria durante os cinco anos desta primeira interdição: a excomunhão é disparatada e por isso o povo não a respeitará, preferindo sempre a presença da banda ao concurso dos padres, sempre que aquela tenha sido convidada. Um exemplo disso são precisamente os festejos no então lugar, agora vizinha freguesia de Amoreira da Gândara a que alude este artigo do Alma Popular, assinado por Celas4. Sob o título “Em volta de uma interdição” surge a primeira reacção, escrita, à histórica interdição, de que seleccionamos alguns passos mais significativos: [A] interdição da filarmónica do Troviscal, pelo facto de se incorporar em um enterro civil, sugere-nos algumas considerações que, sem o fim malévolo de 3

Mais tarde veio a saber-se que fora propalada uma versão dos acontecimentos, tão disparatada e sem fundamento que só Bispo poderia nela ter “acreditado,” em que José de Oliveira aparecia mascarado de padre vestindo um gabão do avesso e uma saia, macaqueando um sacerdote nas exéquias. Ora é difícil de acreditar que alguém em seu juízo perfeito se prestasse a um papel destes quanto mais um homem cuja estatura moral, pela palavra e pelo exemplo, veio a exercer nas centenas de pessoas que com ele privaram uma influência benéfica de vastas repercussões, geralmente reconhecida por sucessivas gerações.

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Celas é o pseudónimo jornalístico de Adelino de Macedo, também ele professor do ensino primário e cunhado de José de Oliveira. O nome adoptara-o por um seu avô ser oriundo daquela zona de Coimbra. Apesar de pertencer ao Partido Republicano e ter algumas reservas em relação ao clero, a quem assaca as culpas do crescente desinteresse do povo pela religião católica, e a cuja prática tão pouco cristã, em seu entender, atribui a sua própria perda da fé, trata-se de uma voz muito moderada, tendencialmente objectiva, tolerante e conciliadora, o que lhe chega a acarretar censuras provenientes do seu próprio quadrante ideológico. É através dele (até 1927, ano em que faleceu) que nos chega muito do que hoje sabemos sobre este período conturbado, mas também heróico, desta freguesia obscura, subitamente catapultada para a ribalta das lutas político-religiosas da primeira república. Para o efeito cf. anexos 1 a 7.

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irritar, servirão para demonstrar o quanto é inútil e revoltante um acto, embora rodeado de todo o poder espiritual, quando não é ditado pelo bom senso, e pela razão. A filarmónica do Troviscal assistiu e assiste sempre a actos civis e religiosos, venham de onde vierem, porque se não encontra enfeudada a qualquer credo politico ou religioso [...] os seus executantes não militam todos no credo católico, e todavia nunca disseram ao seu regente que não cooperavam em qualquer solenidade religiosa. Mas que a interdição foi absurda e disparatada, provou-o o facto dos crentes se terem mostrado rebeldes a esse acto, fazendo uma manifestação à música, e, em Amoreira, prescindirem dos serviços sacerdotais mas não prescindirem da música. Disparatada, porque a interdição, em lugar de ser aplicada a pessoas, foi aplicada aos instrumentos, que culpa alguma têm do uso que deles fazem! Porque a interdição às pessoas dos músicos, deixando em salvo os crentes — que bastantes foram — que se incorporaram no préstito, seria absurda e injusta, se não fosse essencialmente afrontosa para uma colectividade que, para desempenhar o papel educativo que se impôs, precisa manter o principio de autoridade no seu seio, como o pretende manter a igreja, sem que ela lho conteste (Alma Popular, 2.12.22). Uma das pontas do véu começa a ser levantada também neste artigo. Então a banda que acompanhou 22


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até ao cemitério o préstito fúnebre é excomungada e o muito povo que formava o resto do cortejo não? Deve tratar-se, pois, de ataque pessoal à banda ou ao seu regente! A referência aos instrumentos excomungados, que nenhum decreto episcopal anatematiza, é obscura e deve ter a ver com as justificações que o padre de Sangalhos teria apresentado para possibilitar que a banda tomasse parte nos actos religiosos dirigida, não por José de Oliveira, mas por seu irmão Jaime, ao tempo regente da Banda da Mamarrosa. É que, perante a insistência da comissão de festas, e do povo, para que a banda tocasse, e tendo ele próprio manifestado que assim estaria impedido de celebrar quaisquer cerimónias religiosas sob pena de incorrer, também ele padre, na censura eclesiástica, sem que isso causasse qualquer efeito na opinião pública, que assim claramente preferia a música ao clero, ver-se-ia na penosa situação de verificar a total inoperância de um acto que à partida se pretendia fulminante. Deverá, então, ter explicado, muito confusamente, que quem realmente estava interdito era o regente e os instrumentos que tinham tocado no enterro, sopros e percussão, essencialmente diferentes daqueles que eram habitualmente utilizados pela orquestra “sacra,” cordas e madeiras. Era uma saída muito pouco airosa que, para ter algum sucesso, contava com o fraquejar conivente da inteligência popular, que, infelizmente para ele, se não verificou.5 5

Sobre este assunto, pode ler-se mais desenvolvidamente um artigo inédito nosso, abaixo publicado como Anexo 35, artigo esse escrito para publicação no Jornal da Bairrada em 13 de Junho de 2002. Nele se rebatem algumas afirmações que Armor Pires Mota faz no seu livro Alma e Memória, Câmara

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Mas o mais extraordinário e impensável estava ainda para vir.

2.2. A Réplica Cerca de dois meses volvidos sobre a excomunhão, podia ler-se, no Alma Popular, o seguinte anúncio intitulado “Comício Republicano.” O seu teor era já de inspirar alguns cuidados ao arciprestado pois o tema extravasava um pouco o domínio político-partidário: No próximo dia 4 de Fevereiro, pelas 14 horas (2 da tarde), realizar-se-á no Troviscal, deste concelho de Oliveira do Bairro, um grandioso comício de propaganda republicana, em que falarão os denodados democratas, srs. drs. Fernandes Martins e Gualberto de Melo; ex-padre Camilo de Oliveira, mártir do Éden Teatro; e Tomaz da Fonseca, antigo propagandista do ideal republicano. O ex-padre Camilo de Oliveira, com a sua inteligência e conhecimentos de causa, falará sobre a interdição — excomunhão da filarmónica do Troviscal; tornando-se deveras interessante a sua conferência. O povo republicano desta encantadora e ridente Bairrada não deve faltar, no próximo dia 4 de Municipal de Oliveira do Bairro, 2002, sobre a Banda Escolar do Troviscal e seu regente. Como ao tempo Pires Mota chefiava a redacção, o artigo não foi publicado. Mesmo podendo imediatamente rebater todos os nossos comentários, não se atreveu a fazê-lo, preferindo, como ainda faz, falar sem contraditório da tribuna de que dispõe nesse periódico, vociferando e esbracejando, pasme-se, contra a asfixia da comunicação social.

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Fevereiro, ao comício, assim como a imprensa republicana do distrito deve mandar ao Troviscal os seus representantes, a fim de colherem notas e propagá-las nos jornais, porta-voz da família republicana. Ao comício, pois! Pela Pátria e pela República! (Alma Popular, 25.1.23).

O relato do que foi este comício enche o melhor das quarto páginas do quinzenário oliveirense, uma delas totalmente ocupada com publicidade comercial. Tudo fora preparado para dar ao clero uma resposta de formidáveis proporções que servisse de exemplo a outras paróquias onde a sua vertente mais retrógrada se esforçava por manter um ascendente milenar sobre populações que, mais ilustradas e politizadas do que outrora, estrebuchavam agora sob o peso opressivo da autoridade eclesiástica, já sem a completa e incondicional conivência do poder secular. Respiguemos os passos mais relevantes deste interessante documento, que daremos na íntegra em anexo.6 Glorioso, sublime e imponente foi o comício de propaganda republicana e de protesto contra a interdição da música do Troviscal, realizado no domingo, dia 4 de Fevereiro, naquele lugar, sede de freguesia. 6

Vide Anexo 8.

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Milhares de pessoas acorreram ao Troviscal a ouvir os fluentes oradores, fecundos em imagens, hinos do amor pela República. A seguir damos uma pequena resenha do que foi essa imorredoira tarde de apoteose à República, às suas leis libertadoras e de protesto contra a interdição da filarmónica do Troviscal: Falando em primeiro lugar o sr.: Capitão José Gomes Gasta [-se] tanto tempo a ir da religião do povo à religião do padre, como directamente da religião do povo à religião de Deus. A religião é da consciência. Para se ser religioso não é necessário andar pelas igrejas a bater no peito e beijar a mão ao padre, basta possuir os sentimentos da bondade, da honra e da verdade, pois é esta a verdadeira religião, e assim não precisamos de outros homens que se mostrem nossos amigos, que se tornem nossos intermediários perante Deus. Em seguida fala o sr.: Dr. Fernandes Martins Referindo-se à interdição, diz que a sua indignação não vai contra aqueles templos de campanários ao alto, nem contra os santos de pedra e de madeira, mas contra os roupetas negras que se têm acobertado nesses mesmos templos, os roupetas que debaixo da capa negra trazem sempre um punhal de 26


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dois gumes embebido em ácido prússico. Abordando a lei do registo civil, [...] pergunta ainda quem manda na República, se é a igreja ou os homens que por ela verteram o seu sangue. Por último usa da palavra o sr.: Dr. Gualberto De Melo A banda do Troviscal, diz, tomou parte num acto civil, para o que não podia recusar-se. A lei de Afonso Costa garante as liberdades de pensamento e de trabalho. Os padres que aconselharam o sr. Bispo de Coimbra a interditar a música, diz o orador, têm filhos que deixam morrer à fome. Padre quer dizer pai, portanto o bom pai não aconselha o mal; os homens que fazem parte da música do Troviscal são homens de bem. Nesta altura foram lançadas sobre o povo muitas centenas de manifestos contendo os decretos de excomunhão, cujo conteúdo era o seguinte: Considerando que esta filarmónica foi interdita por ódio político e pessoal e não por qualquer acto ofensivo da religião católica; Considerando que a sua linha de conduta, fora e dentro dos templos, nunca tem merecido censura ou repreensão de quem quer que seja, porque sempre se tem sabido manter dentro da compostura e da decência; Considerando que outro tanto se não pode 27


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dizer daqueles Srs. padres que planearam e propuseram a interdição, visto a sua vida moral e social merecer a reprovação de toda a gente de bem e honesta; Considerando que, embora os Srs. padres reconheçam que erraram, querem tiranicamente forçar os ofendidos a uma humilhação que não é cristã nem humana; Considerando que as leis do Estado garantem a todo o cidadão a liberdade de consciência, de pensar e de trabalho e que interditar a filarmónica é atentar contra essa liberdade; O povo liberal da freguesia do Troviscal, ofendido com o procedimento dos Srs. padres e Ex.m° Bispo de Coimbra, escudado não na força da lei, mas na lei da força, resolve: 1° Lançar o interdito sobre todos os padres, que dentro das limites desta freguesia não poderão praticar qualquer cerimónia religiosa. 2.º O interdito cessa quando à música seja permitido exercer a sua profissão em toda a parte sem pressão ou coacção de espécie alguma. Troviscal, 4 de Fevereiro de 1923. O Povo liberal. (Alma Popular, 10.2.23)

A preparada surpresa aí estava: a interdição, aprovada por aclamação7, lançada sobre todos os padres, que 7

Persistem ainda algumas dúvidas quanto ao momento exacto em que os paroquianos tomaram a grave decisão de interditar também o clero nos limites da sua freguesia. O primeiro de uma série de artigos

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dentro dos limites desta freguesia não poderão praticar qualquer cerimónia religiosa. Decisão corajosa, sem dúvida, que atesta bem da indignação que lhe esteve na origem. E durante cinco anos e seis meses apenas uma vez foi desacatada esta determinação popular, e com humilhante agravo para o prevaricador, que ousou entrar na freguesia do Troviscal para ministrar os últimos sacramentos a uma crente. E que a indignação era plenamente justificada, testemunha também cabalmente o facto de, nem por uma vez durante esse período, o clero ter solicitado o concurso da autoridade civil para fazer respeitar a sua liberdade de culto. Imagine-se — exercício bem difícil nos tempos de hoje — cinco anos sem casamentos católicos, baptizados, enterros, confissões, festas religiosas, missas e sermões, em toda a freguesia! Enfim, todos os actos que requeressem um sacerdote, porque os outros, os que os crentes pudessem realizar sem o concurso daquele, estariam em condições de o fazer livremente. intitulados “Em volta de uma interdição,” (2.12.1922) assinados por Celas no Alma Popular, refere, sem desenvolver, uma manifestação do povo em apoio à banda agravada pelo interdito. No entanto, não parece ter sido tomada, nesta manifestação, qualquer decisão quanto à permanência do pároco, por duas razões. Primeiro, não há qualquer referência a esse facto; e, segundo, tanto nesse artigo (Anexo 1) como no seguinte (14.12.22, Anexo 2) o sacerdote é referido como tendo falado do púlpito ou na sacristia. Intrigante, porém, é, sem dúvida, o facto de o artigo de 30.12.22 (Anexo 3), referir, nos quatro últimos parágrafos, o padre como tendo já saído “por entre a indiferença de toda a gente.” Poderia, então, pensar-se que o Pe Basílio da Costa Morgado, sentindo a situação deteriorar-se, se antecipara ao que se lhe afigurava como inevitável, se não fosse o facto do Sr. Amadeu Rato, testemunha presencial de muitos destes acontecimentos, ter afirmado que o prior, tendo ouvido de viva voz o tomar da decisão que directamente o afectava, decisão esta tomada numa manifestação ou comício que se realizava a cinquenta ou sessenta metros da sua residência (propriedade alugada do pai do sr. Amadeu), abandonara para sempre a dita residência, pedindo que depois lhe enviassem as malas, que deixava já feitas, para uma povoação nas imediações de Mira, de onde era natural. Lamentavelmente, o sr. Amadeu Rato faleceu em 2001, com noventa e sete anos, tornando, assim, impossível qualquer aprofundamento da questão por esta via.

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Criou-se até uma comissão de melhoramentos, bastante apoiada pela população, para alindar a igreja, que, ao que parece, se encontrava, ao tempo, bastante degradada. E receava-se que sobre este povo insubordinado se abatesse a ira divina? Pois tal não aconteceu, como ilustra o seguinte episódio intitulado “Questão do Troviscal”: Perguntando, há dias, a um amigo e dedicado republicano do Troviscal em que pé se encontrava a questão da freguesia, respondeu-nos, como que surpreendido: – Mas qual questão?! – A do interdito à música. – Ah! Isso, como todas as novidades, durou três dias. Hoje quase se não fala em tal assunto. – Mas então todo o povo dispensa de bom grado o culto católico na freguesia? – Aqueles que o não dispensam recorrem a ele... – Então como? – Sem padres. E olhe que certas solenidades fazem-se com a mesma devoção e religiosidade, e tudo corre na mais doce paz e harmonia... Incontestavelmente, os srs. priores devem, a estas horas, ter reconhecido mil vezes a mea culpa por tentarem subjugar uma das freguesias mais republicanas de Portugal. Que lhes sirva de emenda... (Alma Popular, 21.4.23).

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É uma nota que se vai repetir com algumas variações ao longo destes tempos de excomunhão: os efeitos do anátema, se alguns há, são benéficos. Mais tarde, fazendo-se o balanço deste período, chegar-se-á à conclusão que nunca se viveram anos de tanta paz, harmonia e prosperidade como estes, em que os crentes, que nunca deixou de haver, puderam contactar com a divindade sem intermediários. A banda desdobra-se em actuações. Por toda a parte, principalmente no litoral e interior beirão, se quer vitoriar a banda excomungada. Os músicos, subitamente ganhando o estatuto de heróis, sentem assim recompensado o esforço adicional que a música vem trazer ao seu já assaz fatigante labor agrícola. As viagens, cada vez para mais longe, fazem-se em desconfortáveis camionetas, de comboio, de bicicleta e, quem não tem bicicleta, a pé. Quantas vezes regressam a casa de manhã e partem para mais um dia de trabalho, sem um minuto de repouso! Mas a admiração que provocam por onde passam é um bálsamo que tudo cura ou ameniza. A confiança no seu regente, que é, mais do que um regente, um chefe, é ilimitada. Nele se revêem, dele procuram copiar as melhores qualidades: honra, seriedade, verticalidade, disciplina pessoal, respeito pelo seu semelhante, pelo saber, pela arte. Isto os fará diferentes do homem comum e os habitantes das aldeias vizinhas o virão a reconhecer. Por vezes há conflitos, e os padres, seguindo as directivas diocesanas, recusam-se a tomar parte nos festejos. Pior para eles, porque a música essa é que não pode faltar. Alguns episódios, dos muitos que tiveram 31


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lugar, ilustram bem o que foram esses tempos gloriosos. Muitas vezes, como se disse, forçado a escolher entre a banda e o padre, o povo optava por aquela. Outras vezes, mesmo dentro da diocese de Coimbra, o clero fechava os olhos. Em uma ou duas ocasiões, caso curioso, abrilhantou todas as cerimónias religiosas numa paróquia do bispado em que o padre, que também se encontrava interdito8, ali continuava, por desejo e imposição dos seus paroquianos, a exercer o seu múnus. Fora da diocese, na de Lamego, por exemplo, chegou a participar em procissões, e, em Lisboa, mais propriamente nos Olivais9, tocou durante a missa. Aí, mesmo alertado para a situação da Banda do Troviscal perante as autoridades eclesiásticas de Coimbra, o patriarcado aceitou a sua prestação, considerando que a interdição da banda não tinha tido razão de ser nas circunstâncias em que fora decretada. A notícia deste interessante acontecimento originou até uma carta do prelado de Coimbra à direcção do Alma Popular a prometer para breve um desmentido que esperava obter de Lisboa em resposta a uma carta para lá remetida nesse sentido. Tal desmentido, porém, nunca se veio a verificar, embora, 8

Em 29 de Junho de 1923, a música do Troviscal foi convidada para fazer a festa a S. Pedro, em Chelo, uma aldeia da freguesia de Lorvão, concelho de Penacova. Tratava-se de uma festa cismática, pois nela oficiavam três sacerdotes, também eles interditos. Não obstante o inusitado da situação, tudo correu sem incidentes.

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9 De 25 de Agosto: “Foi há dias a Lisboa (Olivais), tomar parte numa festividade religiosa, a filarmónica do Troviscal. Não obstante o clero dali haver sido previamente informado (até por um denunciante) de que a referida banda estava interdita, o Sr. Arcebispo de Mitilene permitiu que a música assistisse a todas as solenidades, alegando que o facto de se incorporar num enterro civil não é motivo para interdição” (Alma Popular, n.º 127 [25.08.1923]).

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por mais de uma vez, o peri贸dico de Oliveira do Bairro tivesse recordado, nas suas colunas, ao nobre prelado conimbricense o incumprimento dessa promessa.

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.3, Festas da Rainha Santa em Coimbra Em 1924 a Banda Escolar do Troviscal é convidada para actuar, em Coimbra, nos Festejos da Rainha Santa, que se irão realizar, como habitualmente de dois em dois anos, em Julho. Prevendo ou mesmo constatando que não tem a cumplicidade do Governador Civil para impedir tão indesejada vinda, o Bispo decide alterar significativamente os termos do seu decreto de interdição (de 15 de Dezembro de 1922)10 de forma a minimizar consequências adversas. Em novo decreto, datado de 7 de Janeiro de 1924, ao n.º 2 do decreto de 15 de Dezembro, acrescenta o prelado que o impedimento à realização das festas religiosas pelos senhores padres cessa desde que “seja garantido que tal filarmónica não aparecerá a tocar no local e dia da festa, ainda que seja antes ou depois de concluída a parte religiosa, isto no caso de ser convidada pelas Confrarias ou Comissões que promovem as 10

Cf. Anexo 3.

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festas e para elas paga”. E acrescenta um outro número (4) que desenvolve e clarifica a condição expressa pela porção de texto sublinhada no n.º 2: Se, porém, algumas pessoas não católicas, estranhas aos promotores da festa religiosa, convidarem aquela Música para algum acto profano, como é o arraial, e lhe pagarem à sua custa, ou ela aparecer por acinte a tocar no arraial, mesmo no dia da festa religiosa, poderá esta fazer-se se houver a certeza moral de que aquela Música não tocará na igreja ou capela nem se incorporará na procissão (Boletim da Diocese de Coimbra, Ano IX, 1 e 15 de Jan. — 1924 N.os 19 e 20, p. 205)11. A banda interdita lá dá o seu concerto para quem a quer ouvir. Quando se aproxima a procissão, os músicos param de tocar e tiram os bonés em sinal de respeito, não certamente pelo clero, mas pela fé religiosa dos milhares de crentes presentes12. Não se regista qualquer incidente desagradável, o exemplar comportamento dos músicos é muito comentado, e as alterações estratégicas ao decreto de interdição atempadamente introduzidas em Janeiro desse ano permitem que a Banda do Troviscal se exiba nos dias que a Comissão pretende e as solenidades religiosas também se efectuem sem impedimento episcopal13. 11

Cf. Anexo 15.

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Cf. Anexo 16.

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Cf. Anexo 10.

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Banda Escolar do Troviscal em 1926: quarta fila (de pé) António Correia (sax-tenor), Joaquim Gala (Sax-baixo), Amândio Carreto (sax-barítono), Mário Briosa (Clarinete Baixo), Manuel Silva (sax-tenor), Silvino Carreto (contrabaixo), Manuel Mexo (Contrabaixo), Abel Pinhal (Bombardino), João Barbosa (Bombardino), Afonso Silva (Bombardino) terceira fila António Overa (Cornetim), Manuel Pinhal (Fliscorne), Manuel Martins (Fliscorne), Manuel Carreto (Cornetim), João Condesso (Porta-Bandeira, António Pinhal (Cornetim), Alberto Portovedo (Trombone), António Barbosa (Trombone), António Oliveira (Trombone), Amadeu Rato (Trombone), Prof. José d’Oliveira (Regente) segunda fila João Pereira (Requinta), António Pereira (Clarinete), Ferreira da Silva (Clarinete), Ilídio Rato (Clarinete), Albertino Azevedo (Clarinete), António Gabriel (Clarinete), António Carvalho (Clarinete), Manuel Viúvo (Clarinete), Flávio Pato (Clarinete), Manuel Pato Oliveira (Clarinete), Manuel Pereira (Clarinete) primeira fila Manuel Marques (Fliscorne), Jaime Pereira (Flauta), Manuel José Casau (Flautim), Virgílio Ribeiro (Fliscorne), Manuel Ferreira Martins (Bombo), Emídio Pato (Pratos), Manuel Mota Sol (Caixa), Manuel Moreira Calho (SaxSoprano), Manuel Caetano (Clavicorne), António Oliveira Pato (Caixa), Floro Ferreira Martins (Clavicorne), Mário Pinhal (Clavicorne).

Dois anos volvidos, volta a excomungada a ser convidada para os mesmos festejos. De passagem para a Beira interior, os autocarros que transportam a

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banda param no parque da baixa coimbrã e a comissão de festas que os havia convidado pede-lhes que subam ao coreto e toquem uma peça para que possam ser ouvidos por dois militares chefes de música, para o efeito ali presentes, e a comissão possa, com seu conselho, decidir que lugar destinar à banda quando for chegado o dia dos festejos da Rainha Santa, que assim é a tradição: dar às melhores bandas os locais mais concorridos. Foi então deliberado que a Banda do Troviscal ocuparia o coreto situado na Praça do Comércio, junto à Igreja de Santiago, um pouco ainda sobre as escadas que para lá descem da Rua Visconde da Luz. Findo o concerto dali, atravessaria o Mondego, ainda por uma ponte de madeira, e iria abrilhantar a tourada. O Bispo, esquecido dos termos do seu próprio decreto de 1924, volta a tentar impedir o concurso da banda interdita. O Governador Civil mudara. Os tempos eram já outros. Estava-se em 1926 e, embora o regime saído da revolução do 28 de Maio tivesse pouco mais de um mês de vigência, já se respiravam outros ares, mais favoráveis ao clero. O Governador Civil acede aos desejos do Bispo e decide mandar prender a banda e forçá-la a regressar a casa no dia seguinte, a menos que os músicos entregassem voluntariamente os seus instrumentos. Acabado o concerto na Praça do Comércio e depois de ter jantado no Centro Republicano, sedeado num antigo convento da Rua da Sofia, a banda marchava ao toque da caixa para a improvisada praça de touros em Santa Clara, quando uma numerosa força policial 38


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a tenta interceptar. A multidão, porém, era enorme — “não se rompia,” conta-nos o nonagenário Sr. Amadeu Rato, que junto a José de Oliveira seguiu de perto todos os movimentos e trocas de palavras — e o povo não deixou abeirar-se da música esta primeira força, que retrocedeu. No meio da multidão compacta, a música põe-se em marcha a caminho da ponte, e eis que vem na sua direcção uma segunda força, desta vez da Guarda Nacional Republicana, que o povo de novo impede que chegue ao contacto com a música. Quando se preparavam para entrar na ponte, uma terceira força, desta vez a cavalo, consegue arredar a multidão e chegar à fala com o regente. Logo, porém, irrompem os acordes do hino nacional, que os músicos, como que obedecendo a um sinal combinado, fazem ouvir, vibrantes, pelo ar. A força imobiliza-se respeitosa, mas o alferes que a comanda tenta abeirar-se do regente quando é interpelado pelo porta-bandeira da música que lhe brada: “Não ouve o hino nacional? Ponha-se em sentido!” ao mesmo tempo que tenta empunhar uma pistola, a que alguém, no entanto, consegue deitar mão sem ser vista. O hino nacional soou durante mais de uma hora mas acabou por extinguir-se mercê do cansaço dos instrumentistas e do nervosismo dos cavalos, que ameaçavam a qualquer momento desorganizar as fileiras da banda. Perante a recusa de José de Oliveira a entregar os instrumentos, a banda é conduzida aos calabouços do governo civil debaixo dos ruidosos protestos dos 39


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milhares de pessoas que, não arredando pé, enchiam o Largo da Portagem. São distribuídos 5 ou 6 por cada cela, cujo chão alvíssimo exala um acentuado odor a cloreto. As celas estão completamente despidas de qualquer mobiliário ou agasalho. Vale-lhes um tenaz republicano de Poiares que, encontrando-se presente, os acompanha e adquire esteiras para poderem estender no chão. Por colchão têm os próprios casacos com o forro voltado para baixo. O regente segue para local diferente. Ainda antes do alvorecer do dia seguinte são bruscamente despertados e conduzidos à Estação Velha de Coimbra. O destino ainda lhes é desconhecido, mas cedo verificam estar de regresso a casa. O regente fora, também, libertado mas preferira que o mantivessem recluso até ao fim dos festejos, receando ser inculpado de algum eventual desacato às manifestações religiosas com que a agitada multidão retaliasse a ofensa feita na véspera à Banda do Troviscal, e a quem a convidara. No trajecto para a estação, ouvem-se do alto das casas sobranceiras apupos e insultos contra as forças policiais. Os pálidos reflexos nas luzentes baionetas caladas dos guardas sobressaltados emprestam ao cortejo um ambiente sinistro que os músicos jamais esquecerão. As reacções a estes incidentes14 não se fazem esperar, primeiro na imprensa coimbrã, onde há tira-

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Cf. Anexos 15-25. Pierre Sanchis traça, dos acontecimentos, um quadro bastante divergente deste, mais em consonância com a versão oficiosa do episcopado. Cf. Pierre Sanchis, Arraial: Festa de um Povo, as Romarias portuguesas, Lisboa: Publicações D. Quixote, 1983, pp. 205-6.

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gens especiais em pelo menos um periódico15, depois na imprensa nacional, mormente Lisboa e Porto. A atitude do Bispo de impedir pela força a banda de tocar, sob pena de ter de cancelar todos os actos religiosos ao arrepio do estipulado no seu próprio decreto, é severamente criticada nos jornais. O governador civil e o comissário da polícia são apodados de esbirros do Santo Ofício. O pretexto dado pelas autoridades era que a banda se preparava para tomar parte na procissão, que decorria. O exemplo de serenidade e compostura que a banda dera dois anos antes não era, porém, de molde a justificar tal acção preventiva. Aliás, com a banda deportada e o seu chefe no calabouço, a procissão acabou por não chegar ao fim, tal era o nervosismo que se havia instalado na multidão. Bastou para tanto que alguém, sentindo-se aliviado da carteira tivesse gritado “Ó da guarda!” Mas nem assim o procedimento do Bispo deixou de ser incoerente com a sua ameaça: a música, afinal, estivera a tocar durante parte da tarde e as cerimónias religiosas não foram canceladas, como tantas vezes tinha sido exigido e acontecera por essas aldeias fora. É que, ali em Coimbra, os efeitos de uma tal recusa teriam sido imprevisíveis, face à grandiosidade dos preparativos feitos — anunciara-se que naquele ano haveria mais de mil “anjinhos” na procissão. Aquele acto de pura prepotência fora, afinal, um gesto gratuito para distrair as atenções. 15

Cf. Anexo 11.

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Lancemos um olhar sobre o que então se escreveu sobre estes memoráveis sucessos. Logo no número do Alma Popular que imediatamente se segue aos acontecimentos, A. Oliveira conclui assim um artigo, todo ele ecoando as imagens, as ideias e o estilo do Junqueiro da Velhice: E assim é que, em Coimbra, pela Rainha Santa, o governador civil, receando o anátema do céu, imbecilmente, se entregou nas mãos do bispo, que fez dele o chanfalho policial com que impediu que a Filarmónica do Troviscal tocasse durante os festejos e com que prendeu, arbitrariamente, o insigne regente da referida filarmónica e ilustre professor, sr. José de Oliveira (Alma Popular, 23.7.26). Depois de tecer alguns comentários sobre o que considera o ridículo da excomunhão nos tempos modernos, excomunhão que confere foros de nobreza até a quem dela é alvo, pois até os primeiros reis de Portugal foram excomungados, o articulista de O Mundo, numa peça intitulada Em plena idade média: O bispo de Coimbra excomunga quem lhe desagrada transcreve da Vida Nova: O sr. bispo de Coimbra concitou por esta forma, bem como o sr. governador civil, a antipatia de toda a massa culta, e até de alguns católicos militantes, donde se conclui que nem um nem outro estão à altura do cargo em que foram investidos. A Filarmónica do Troviscal — saiba-o o sr. 42


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governador e o sr. Bispo — veio há dois anos tomar parte nos festejos da Santa Isabel! Mas como então estava alguém no Governo Civil que tinha a cabeça no seu lugar, impediu toda e qualquer violência. A Filarmónica do Troviscal, há dois anos, tocou e retirou-se bendizendo da hospitalidade de esta cidade (Alma Popular, 23.7.1926). Sob o título “O Nosso Protesto” Tito, aliás Tiago Ribeiro, colaborador regular de Alma Popular, interroga-se: A filarmónica do Troviscal não está ainda desinterdita porque a teimosia do sr. Bispo de Coimbra é mais política do que religiosa. Então a música do Troviscal tem tocado e assistido até a actos religiosos nos bispados do Porto e Viseu e Patriarcado de Lisboa e não pode assistir em Coimbra a actos meramente profanos? (Alma Popular, 23.7.1926). Depois de responder ponto por ponto a uma nota oficial dimanada do Seminário, em que os músicos do Troviscal são acusados de apóstatas, de bárbaros agressores do pároco de Bustos, de bombistas da casa do padre Abel de Oiã, de fingirem que iam tocar na tourada, quando de facto a verdadeira e oculta intenção era tocar na procissão, nota oficial em que se pretende justificar a prisão e subsequente deportação da banda, Celas termina desta forma uma peça intitulada “Um Governador Civil, esbirro do Santo Ofício”:

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[...] aonde está a coerência do sr. bispo, essa coerência que o levou a ameaçar de não fazer a procissão desde que a filarmónica tocasse em Coimbra e fazendo-a depois de saber que tocou? Não, a coerência do sr. bispo estava satisfeita desde que, cristãmente, a filarmónica e o seu regente foram presos com gáudio dos padres que ali foram para assistir à expiação de tão horrível crime e que amanhã beatificarão o sr. Vieira Coelho. E ele bem o merece (Alma Popular, 23.7.1926).

Sede da Assembleia Republicana de Instrução, Recreio e Beneficência do Troviscal. Inaugurada em 20 de Dezembro de 1925, foi palco privilegiado dos mais importantes acontecimentos cívicos e recreativos da freguesia.

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E no mesmo número do periódico oliveirense anuncia-se já uma jornada de desagravo para o dia 25 seguinte que protagonizará uma numerosa comissão de liberais de Coimbra, Figueira da Foz, Aveiro, Porto, Lisboa, etc., etc. que tenciona ir ao Troviscal cumprimentar a filarmónica dali, agravada pela atitude violenta e antidemocrática do governador civil de Coimbra. Será uma tocante prova de solidariedade,” continua o anúncio, que patenteará bem alto a repulsa pelas manobras encapotadas da reacção e dos fradalhões de sobrecasaca e chapéu alto. E termina incitando os liberais das povoações vizinhas a que não faltem com o seu apoio moral e com a sua comparência naquele dia no Troviscal. O que foi essa jornada de desagravo encontra-se descrito, mais uma vez, no Alma Popular.16 Sob um sol radioso, juntam-se de novo milhares de pessoas, para quem o novo salão da Assembleia Republicana do Troviscal deve ter sido pequeno. A mesa é constituída por notáveis liberais de Coimbra e Figueira da Foz, e o número de oradores, que inclui alguns estudantes, redactores e colaboradores de jornais académicos, duplica o dos que três anos antes haviam intervindo no mesmo local. Os discursos sucedemse sob fortes aplausos e vivas, e são lidos dezenas de telegramas e cartas, que, dos mais variados pontos do país, trazem ao povo do Troviscal e à sua banda o consolo reconfortante da sua solidariedade, do seu sincero repúdio pelo agravo de que em Coimbra foram 16

Alma Popular, n.º 203 (06.08.1926). Ver também anexos 11 a 24.

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vítimas pela nova Santíssima Trindade: Bispo, Governador Civil e Polícia. Para encerrar os discursos, toma a palavra Tomaz da Fonseca, figura muito popular no Troviscal, onde contava alguns amigos pessoais. Começa o ilustre orador por saudar a mulher, saudando assim uma grande força que muito contribuirá para o engrandecimento da Pátria e da Liberdade. A jornada ao Troviscal, diz, significa alguma coisa de grande, que os nossos adversários não negarão o seu valor, porque é um abraço de solidariedade de gente que vem de longe não olhando ao sacrifício, jogando a vida se preciso for pela Liberdade. Dirigindo-se ao povo do Troviscal, diz: Vós, povo, não estais sós, tendes aqui os vossos irmãos de longe que vos vêm saudar. Os excomungados de agora, diz, não são tratados como outrora. Agora até as crianças nos acarinham, nos deitam pétalas de flores. Agora só há uma liberdade, que é da razão e do trabalho de cada um (Alma Popular, 6.8.26). De salientar a ênfase que o orador põe no papel da mulher na nova sociedade, fundada na liberdade e na razão. A presença significativa do sexo feminino no encontro justificava esta referência a uma ideia que Tomaz da Fonseca desenvolveria largamente em, entre outras obras, A Mulher: Chave do Céu ou Porta do Inferno. José de Oliveira agradece esta magnífica jornada de solidariedade e propõe que se dê à rua onde se 46


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encontra implantada a Assembleia Republicana, e que hoje ostenta o seu nome, o nome de Rua dos Liberais.

Grupo de Republicanos reunidos no Troviscal. Esta foto foi provavelmente obtida em 1926 quando da Jornada dos Liberais de Coimbra ao Troviscal. A ser assim, a foto pode também ter sido realizada por Tomás Branquinho da Fonseca, que se viria a tornar no conhecido escritor Branquinho da Fonseca. Um dos artigos que relata o acontecimento dá-nos conta da sua presença munido de uma máquina fotográfica. A verdade é que também se tornou conhecido o seu interesse pela fotografia.

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Panfleto expressando o apoio dos Liberais de Coimbra ao Povo da Mealhada por este não ter cedido às exigências do clero em 1 e 2 de Agosto de 1926.

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Ainda na esteira destes acontecimentos, um grupo de liberais do Porto promove, poucos dias volvidos, uma “romagem de desagravo” a Coimbra onde, no Largo da Portagem, descerra uma lápide alusiva aos incidentes ocorridos nas Festas da Rainha Santa, lápide que, diga-se desde já, as autoridades saídas da revolução do 28 de Maio desse ano, não deixariam permanecer no local por muito tempo. Alguns dias depois a Banda do Troviscal vai à Mealhada a fim de participar nas festas religiosas em honra de Sant’Ana, padroeira da então vila, que nesse ano de 1926 tinham o seu ponto alto em 1 de Agosto. Os Liberais de Coimbra expressam, através da distribuição de panfletos, o seu apoio ao Povo da Mealhada. Também aqui, o clero declarara não realizar as solenidades religiosas se a Banda do Troviscal actuasse no dia seguinte, o que estaria de acordo com o procedimento seguido em Coimbra, mas contrariava o decreto episcopal de 7 de Janeiro de 1924, ainda não revogado. Também um grupo de liberais da Mealhada, em idêntico panfleto, datado de 1 de Agosto, convida, em tom moderado mas enérgico, todo o povo a ir no dia seguinte pelas 14 horas esperar a Banda à estação de caminho de ferro e manifestar-lhe o seu apoio. Os festejos religiosos não se realizaram, mas tão só a tourada abrilhantada pela Banda do Troviscal e o concerto para que a Banda tinha sido contratada. Sobre o assunto pode ler-se em A Defesa: Na segunda-feira, um grande número de liberais de Coimbra, ao saber da atitude do povo da 49


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Mealhada, dirigiu-se ali em automóveis, no comboio e outros meios de transporte, a levar-lhe as suas saudações, sendo imponentíssima a recepção feita à música do Troviscal e ao seu chefe sr. José d’O1iveira (A Defesa, n.º 103, [06-08-1926], p.1).17 Não há notícia de actos violentos. Estes incidentes, principalmente os de Coimbra, tiveram enormes repercussões a norte do Tejo, mas muito particularmente nas Beiras. Por onde quer que passasse, a Banda recebia calorosas manifestações de apreço e carinho. Muitas vezes, grupos de populares juntavam-se no trajecto da Banda nas suas deslocações e solicitavam a sua paragem para a vitoriarem e poderem escutar embevecidos uma ou outra peça. Um importante depoimento sobre os estrondosos incidentes das festas da Rainha Santa em 1926 pode encontrar-se no livro de memórias de um dos principais intervenientes, o Dr. Adriano Vieira Coelho, o Governador Civil de então.18 Escrito à distância de cerca de 25 anos dos acontecimentos que relata, é natural que o livro enferme de naturais imprecisões quando se apoia inteiramente na memória. Do ponto de vista factual, verificam-se algumas contradições entre os próprios factos narrados e entre estes e os testemunhos de terceiros. Escreve assim, a páginas 38, o então Governador Civil de Coimbra: 17

Cf. Anexo 26.

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Adriano Vieira Coelho, Memórias de um Revolucionário, Subsídios Para a História do Movimento de 28 de Maio, Lisboa: 1951, pp. 35-50. Cf. Anexo 27.

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Uma tarde, depois do almoço, ainda dentro do período religioso, ou seja na antevéspera da procissão de retorno ao Convento de Santa Clara19, na Praça da República entra ofegante o Padre Estrela, prior da minha freguesia, que se me dirige nos seguintes termos: — Vinha precisamente procurar o doutor para lhe comunicar que anda pelas ruas da Baixa a banda do Troviscal. — Tem a certeza disso? — Absoluta. Não proferi mais palavra. Apeio-me na Praça 8 de Maio e, efectivamente, observo que, pouco antes de se entrar na Rua Visconde da Luz, nas proximidades da farmácia Donato, vinha a banda tocando uma marcha. Para me informar bem, quando se aproximava, parei, precisamente defronte do estabelecimento comercial «Neves». […] Segui directamente para o café Lusitano – já não existe – e, ligando para o Comando da Guarda Republicana, ordenei ao major Mota, comandante, que mandasse uma força deter a banda do «Troviscal», e lhe apreendesse os instrumentos e os depositasse em qualquer parte. Foram para uma casa da Rua da Sofia. Não mandei prender os executantes, pois poderia dar-se o caso de desconhecerem o que anteriormente se havia combinado. Entendo que se não poderia ser mais tolerante nem mais benévolo (Op. cit. pp. 38-39). 19

Isto é, sexta-feira, dia 9 de Julho de 1926, dia da primeira das duas procissões, a que acompanha a imagem da Rainha Santa do Convento de Santa Clara para a Igreja de Santa Cruz.

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Silas Granjo

Quando escreve “Foram para uma casa na Rua da Sofia” não fica bem claro se o autor se refere aos instrumentos ou aos músicos. O estilo é sempre um pouco prolixo. Na rua da Sofia, situava-se, num antigo quartel, a sede da delegação de Coimbra do Partido Republicano, onde os músicos jantaram. Deve então querer dizer que foram os músicos que foram para aquele edifício. E então os instrumentos, para onde foram? É que pelos testemunhos dos músicos, estes nunca se separaram deles, e foi por essa razão que foram mais tarde presos, passaram a noite no calabouço da Rua dos Lóios e foram metidos no comboio para Oliveira do Bairro, debaixo de escolta, na madrugada do dia seguinte. Logo se registam pressões, por parte dos liberais, para que o Dr. Vieira Coelho reconsidere e autorize a banda a tocar na tourada, que teria lugar na margem sul do Mondego. A todas as pressões resiste, embora alguns dos que o pressionaram sejam também camaradas do Movimento de 28 de Maio. Interrompida esta ligação [telefónica], recebo logo outra a informar-me que a banda tinha saído e se dirigia para Santa Clara a tocar o Hino Nacional. Pedi ligação urgente para a Guarda Republicana e disse ao comandante que mandasse imediatamente uma força de cavalaria prender a banda, metê-la no primeiro comboio para Oliveira do Bairro, e, caso houvesse manifestações de desagrado ou desobediência, espadeirá-la. Houve, de facto, pranchada, instrumentos amolgados e costas contusas. 52


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Como não fossem atingidos os fins, lançaram mão de boatos aterradores: bombas à passagem da procissão, desrespeito ao bispo, etc. Chegaram esses boatos ao Paço Episcopal que mandou colher informações minhas. A minha resposta foi que não se intimidasse S. Ex.a Reverendíssima porque a ordem seria mantida e o bispo defendido com segurança. O pálio foi ladeado por força militar e pelas ruas do trajecto houve rigoroso policiamento. Eu próprio andei pela Baixa em trem descoberto. Tudo correu na melhor ordem. Concluídos os festejos, recebo do Episcopado uma carta de agradecimento e, pouco tempo depois desta recebida, apeava-se à minha porta o Bispo para me agradecer pessoalmente e presentear minha mulher com uma jóia. Nunca me comprimiram tanto as paredes da minha casa pequenina! (Op. cit. p. 40). Então se os instrumentos tinham sido apreendidos, como aparecia agora a Banda a tocar o Hino Nacional? O que na verdade aconteceu foi que só à ida para Santa Clara é que a Banda foi pela primeira vez interceptada, sucessivamente, por três forças militares ou militarizadas, acabando por ser detida pela última, um destacamento de cavalaria da Guarda Republicana, já que as duas anteriores, devido ao denso aglomerado de pessoas que rodeavam a Banda, e não a qualquer resistência por parte desta, não conseguiram chegar ao contacto com os músicos. “Pranchada, instrumentos amolgados e costas contusas,” aconteceram apenas na imaginação do Dr. 53


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Vieira Coelho, que neste seu livro gosta de mostrar algum desembaraço no uso da violência. Houve sim a montra partida duma relojoaria da Rua Visconde da Luz pelo movimento sobressaltado do homem do bombo, sentindo-se acossado por um cavalo da Guarda.20 O capítulo dedicado ao assunto é marcado por uma extrema candura, com a qual o Dr. Vieira Coelho procura demonstrar o equilíbrio da sua actuação. Porém, o enlevado remate do episódio com a oferta de uma jóia a sua esposa, feita por sua excelência reverendíssima, como reconhecido penhor pela sua actuação, não deixa dúvida nenhuma sobre as simpatias do nosso revolucionário e o carácter das pessoas que integraram o Movimento de 28 de Maio. O Dr. Vieira Coelho deve ter sido pessoa importante no Movimento, pois foi ele o encarregado de convidar e persuadir Salazar a integrar o governo saído do golpe. Porém, mais importante do que o duvidoso testemunho factual que o livro de Vieira Coelho nos trás, é o relato das consequências desagradáveis que a sua atitude lhe acarretou. Dirigindo-se a Lisboa para explicar a sua actuação ao Ministro do Interior, de quem dependia, e passando primeiro pelo Ministério da Justiça, foi informado pelo Chefe de Gabinete que o ministro desta pasta estava aborrecidíssimo com a sua actuação no caso da Rainha Santa.21 20

Testemunho em registo sonoro de Amadeu Rato, um dos componentes da Banda, que viveu de perto estes acontecimentos.

21

Op. cit. p. 42.

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O seu ministro da tutela, o do Interior, recebe as explicações e reforça-lhe o seu apoio, pelo menos verbalmente, mas pouco tempo depois de regressar a Coimbra, verifica que lhe querem retirar o Governo Civil deste distrito. Propõem-lhe sucessivamente uma Conservatória do Registo Predial em Lisboa, que alega não poder aceitar por falta de concurso; uma Conservatória do Registo Civil no Porto, que recusa; a seguir uma Conservatória do Registo Civil em Lisboa, que aceita, mas depois o Ministro do Interior não lhe concede a demissão e tem de voltar para Coimbra. Pouco depois é o Ministro das Colónias que o quer fazer Governador de Moçambique. Não aceita, ao verificar que já haviam telefonado para Coimbra a dar a notícia da sua saída iminente para África, quando não haviam expirado ainda as quarenta e oito horas que pedira para ponderar uma resposta. Compreendendo que “a ânsia pelo Governo Civil de Coimbra cada vez era mais ardente e os desejos dos pseudoliberais também cada vez mais fortes para me verem pelas costas”22 pede de novo a demissão, que o ministro desta vez lhe concede, mas quere-o para o Governo Civil de Santarém, que se vem a revelar um presente envenenado. É que neste Distrito queriam um militar para ocupar esse cargo. Devido a tudo isto, ou ao facto de se sentir desapoiado no caso da Reforma da Polícia, como alega Vieira Coelho,23 o Ministro do Interior, Dr. Ribeiro Castanho, pediu a demissão. Apresentando 22

Op. cit. p. 45.

23

Op. cit. p. 48.

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ele próprio a sua demissão ao novo ministro, coronel Adriano da Costa Macedo, é por este convidado para seu Chefe de Gabinete. E assim parecem ter terminado por algum tempo as apoquentações do Governador Civil de Coimbra que mandou prender a Banda de Troviscal quando esta se dirigia para a improvisada praça de touros, para onde fora convidada. Legalmente, parece não ter havido suporte para as decisões do Governo Civil, sinal precoce de uma forma de actuar do regime do chamado Estado Novo, à margem do estado de direito sempre que disso precisasse. Foi por isso que o regente da Banda do Troviscal, apoiado por personalidades liberais de Coimbra, instaurou, ou tentou instaurar, um processo ao Governador Civil, por abuso de poder24. Não ameaçando a Banda perturbar os actos puramente religiosos, não havia lei que impedisse a banda de actuar: um concerto num coreto ou uma actuação numa tourada não se podem considerar actos religiosos, agora como então. Se o Bispo de Coimbra, ao arrepio das suas próprias determinações de 7 de Janeiro de 1924, ainda vigentes em Julho de 1926, ameaçava não autorizar as cerimónias religiosas, isso era uma decisão que ele teria decerto de justificar perante os crentes e o povo de Coimbra, decisão que ele não quis tomar em 1924, e para a qual arranjou atempadamente uma escapatória, como já vimos, através do sobredito decreto. Poder-se-á alegar piedosa ignorância do Dr. Vieira Coelho sobre a situação semelhante ocorrida em 1924, 24

Cf. Anexo 22.

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e mais concretamente sobre o teor do decreto episcopal, ainda vigente. Mas, mesmo que não soubesse, a representação dos Liberais que ele diz ter recebido no seu gabinete, na mesma altura em que diz ter recebido os Mesários da Rainha Santa, não se esqueceria de lho recordar. Segundo o Dr. Vieira Coelho, Mesários da Rainha Santa e comissão de Liberais de Coimbra teriam chegado a um acordo segundo o qual “a banda do Troviscal poderá vir tocar, concluídas as festas religiosas,”25 bastando para isso que ele próprio subscrevesse “com 50$00 escudos para a banda vir tocar nos dias por mim indicados.”26 Nenhum dos outros intervenientes alguma vez mencionou tal acordo.

25

Vieira Coelho, op. cit. p. 38.

26

Vieira Coelho, op. cit. p. 37.

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