Uma terra lá longe…

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UMA TERRA LÁ LONGE...


FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: VÍRGULA TÍTULO: UMA TERRA LÁ LONGE... AUTOR: OSVALDO ÉNIO PAGINAÇÃO: PAULO RESENDE CAPA: PATRÍCIA ANDRADE 1.ª EDIÇÃO LISBOA, NOVEMBRO 2012 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: PUBLIDISA ISBN: 978‐989‐8413‐74‐1 DEPÓSITO LEGAL: 348301/12 © OSVALDO ÉNIO PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 - 1.º dt | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


OSVALDO ÉNIO

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I – Porra meu Aspirante, o Samuel está ferido! berrou o maqueiro André desconcertado entre o fazer fogo ou socorrer o colega atingido. A patrulha que já vinha caminhando há horas e pensava em fazer um pequeno alto para descanso, caíra na emboscada! Era algo já esperado, mas no momento tudo se tornou indeciso, confuso, enredador. A travessia da mata densa para chegarem ao objetivo definido pelo Setor tinha-se revelado cada vez mais penosa. Apenas pelo trilho há muito abandonado era possível continuar a progressão. O esfalfamento que os rostos denotavam era um eximido companheiro. Aquela quase impenetrável floresta do Maiombe que tornava o dia cada vez mais escuro, e que só por espaços raros deixava lobrigar o céu, engolia aquele grupo de homens, em número de doze, que esgotados aguardavam ansiosamente uma paragem para renovarem o ânimo. Embora na sua maioria naturais de Angola, brancos, pretos e mestiços, a sua juventude havia-se desenrolado na região sul onde

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predominavam os grupos étnicos nhanecas, hereros, ambos e nganguelas, os descendentes dos colonos madeirenses e os “portugas”. Nesta região ao contrário do que sucedia no enclave de Cabinda, predominam o deserto, as anharas e as chanas a que estavam afeitos, pelo que a grandeza do Maiombe com os seus fetos que pareciam árvores e os colossais troncos de pau-preto, ébano, sândalo africano, pau-ferro e outros, cujas copas atingem mais de cinquenta metros, parecendo roçar o céu, os esmagava a cada passo percorrido como se fossem inocentes e timoratas formiguinhas escapando a oculto látego. O disparo das velhas armas de repetição mauser e o matraquear da metralhadora dreyse que os equipavam e provenientes da segunda guerra mundial, a que se juntava a nossa pistola-metralhadora FBP, todo um material obsoleto mas trabalhado com mestria, ecoavam por toda a zona tornando o momento ainda mais excitante e ensurdecedor. Pela floresta corria o eco célere deste ruído macabro que punha em alvoroço os membros das várias comunidades ainda pouco habituados a tal mudança. Só algum tempo volvido a distribuição de novo fardamento e equipamento (camuflado e espingardas automáticas) veio melhorar o “ego” de todos e sua capacidade de resposta, notando-se uma maior apetência para um cumprimento mais eficaz das missões de guerra e paz que perseguiam. Aproveitando as benesses da natureza tornadas esconderijo ideal, a emboscada foi bem preparada e teve resultados compen-


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sadores. A vantagem está sempre do lado de quem executa a primeira flagelação, tal como ensinam os estrategas e agora, infelizmente, confirmado. Quando debaixo de fogo intenso o soldado procura também imaginar como será a dor se atingido por um ou mais disparos. Motivação ou apenas receio? A reação depende de múltiplos fatores e muitos mesmo aleatórios, e faltava-lhes a experiência, pois era a primeira vez que estavam perante uma situação com esta gravidade. O comportamento coletivo e disciplinado torna-se difícil, e assim o que desponta normalmente é a ação individual, imprevisível e baseada mais nos conhecimentos e atitudes consumidos durante a juventude e no estilo de vida seguido. Aí assoma a figura do líder ou comandante que faz carrear para si todas as diversas ansiedades criadas. – Pereira, bate a zona em frente – mandou o comandante para o soldado que manobrava a metralhadora. Injetavam-se os invólucros, os projeteis rasgavam a floresta. O matraquear cadenciado e intrusivo empolgou os soldados. – Chega, mandou o oficial decorrido breve tempo. Perante a reação fulgurante e compacta o inimigo parecia ter debandado, procurando tugúrio em local previamente escolhido e preparado para esse efeito. Batendo a zona com o olhar o oficial apercebeu-se de que os elementos da patrulha se iam erguendo, perscrutando o lado do IN, procurando aperceber-se melhor da situação que a todos en-

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volvia. E fazendo sinal ao grupo que se postava a seu lado esquerdo avançaram em linha de ataque, ocupando a zona onde se havia acoitado o inimigo. Apenas vestígios da sua presença confirmavam que ali tivessem estado já há algum tempo preparados para emboscar. – Bolas, nem um apenas, exclamou com alguma desilusão um dos soldados. – Normalmente não deixam ficar os mortos ou os feridos. É um dos princípios da guerrilha. Têm de se habituar a isto – elucidou o comandante com alguma lenidade procurando acalmar o soldado. – Vamos montar uma guarda! – Façam um círculo o mais afastado possível, mas sempre a verem o companheiro da esquerda e o da direita! e cuidado a fazer fogo – ordenou o jovem Aspirante, demonstrando calmaria, saber e convicção. Depois correu para o ferido e observou, raivoso, que o mesmo havia sido atingido no peito. Começava a ter dificuldades em respirar, saindo da boca bolhas de ar sanguinolentas o que indiciava uma lesão pulmonar. – E agora, o que vamos fazer? interrogou com ar cruciante o soldado que apertava uma compressa tapando o orifício da bala, procurando talvez suster uma hemorragia que não era ainda visível. – Já lhe ministrei um antibiótico e um anti-hemorrágico, respondeu o maqueiro perante o olhar inquiridor dos camaradas que parecia exigir mais e melhores explicações.


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– Liga para a companhia – mandou o aspirante – quero falar com o nosso capitão. Ao fim de algum tempo e com má qualidade de audição conseguiu-se a ligação com a companhia fazendo uso dum ultrapassado rádio portátil atribuído ao pelotão, tendo sido exposta com minúcia a ocorrência. Foi dada ordem para a patrulha regressar de imediato ao ponto cujas coordenadas foram definidas, onde estariam viaturas para recolherem a patrulha e principalmente o ferido. Encontravam-se porém distantes da picada ainda utilizada pelas potentes viaturas dos madeireiros, que com avareza iam destruindo a floresta almejando o lucro rápido para a Companhia de exportação que serviam. No mínimo, umas três horas teriam de ser gastas para cumprirem esse trajeto. Em outra ocasião poderiam deleitar-se com o cenário acolhedor de tons verdes que os rodeava. Porém o aspirante sabia bem que outros perigos mais estariam à espreita para tombarem implacáveis sobre a patrulha. – Isto é que me lixa, lamentou ele em voz baixa, não poder aqui chegar uma viatura... e já nem falo num helicóptero... na instrução é tudo muito lindo... aparece tudo... mas aqui no mato e quando as coisas acontecem... é o que se vê! ia desabafando enquanto se debruçava já sobre o momento seguinte, procurando vencer o tempo que parecia correr demasiado veloz. O jovem aspirante a oficial do quadro complemento ou vulgarmente miliciano do chamado recrutamento da Província, havia

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feito o seu COM (Curso Oficiais Milicianos) na EPI Mafra para onde fora enviado com mais cinco amigos e companheiros de estudo e estroinice a bordo de um Super Constellation 329-CS, pois no ultramar tal curso não era realizado. Terminado o mesmo, regressavam como aspirantes, sendo promovidos a alferes após um ano de serviço ao contrário dos aspirantes do continente que eram promovidos a alferes logo que fossem mobilizados para o ultramar, independentemente do tempo de serviço militar já prestado. Tal disposição veio dar origem a que houvesse nestas companhias alferes de cursos posteriores, portanto com menos tempo de serviço do que os aspirantes, pelo que por vezes eclodiam situações em que era difícil conciliar entendimentos e procedimentos. – Bem pessoal, vamos preparar o regresso... rápido e com todo o cuidado... pois os gajos ainda podem andar por aqui e virem chatear. Comecem por montar duas sentinelas – acautelou o aspirante. O cabo Francisco ficou responsável por esta ação, fazendo de seguida a nomeação dos elementos necessários. – Para já temos que improvisar uma maca para levarmos o Samuel – orientou. Quatro companheiros de imediato começaram a preparar as suas espingardas para fazerem uma maca, tal como haviam apreendido na recruta feita no RI22. Em Angola havia na altura três regimentos de infantaria situados em Luanda, Nova Lisboa e Sá da Bandeira e os Batalhões de Caçadores n.º 1 em Cabinda e nº 3 em Carmona, um Grupo de


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Cavalaria em Silva Porto, Bié, e um Batalhão de Engenharia e Transmissões em Luanda. Para Cabinda, primeiro Comando Territorial de Cabinda depois Bat.Caç n.º 1, a seguir Bat.Caç. n.º 248 e a partir de 1967 Bat. Caç. n.º 11, fora destacada a 1.ª Companhia das quatro formadas no CIOE (Centro de Instrução de Operações Especiais) que se distinguiam pelo uso de boina vermelha, sob o comando do capitão Soares Carneiro, natural de Cabinda, que mais tarde se iria destacar como militar comando brioso, decidido e competente, com funções governativas em Angola até ao 25 de Abril, e depois ainda como chefe militar e político em Portugal após a sua detenção em Caxias no seguimento do 11 de março 75. – Vocês estão parvos ou quê? zangou o aspirante, não devemos desperdiçar essas armas pois podem ser precisas mais à frente. Arranjem aí dois ramos que aguentem bem o peso. E assim fizeram, tendo iniciado num repente as ações necessárias, utilizando também os panos de tenda para que tudo ficasse em condições de evacuarem o camarada ferido o mais comodamente que fosse possível. Com tudo meticulosamente pronto deitou-se com cuidado o Samuel, que continuava a lamentar a sua pouca sorte e o ter vindo para a tropa. – Eu bem dizia que iam marrar comigo – lamentava o ferido. – Vamos aproveitar comer qualquer coisa mas sempre a andar – disse o aspirante dando o exemplo ao tirar do bornal uma pequena caixa que continha um pacote de bolachas de água e sal, uma lata de CCMel, uma lata de sardinhas e um chocolate, alimen-

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tos destinados ao jantar, ração de combate esta que após algum tempo viria a ser abandonada com a criação da ração de tipo E e de outras e outras que ao longo do tempo de guerra foram sendo melhoradas, tal como sucedeu com o armamento e equipamento. Como era já usual, comeram apenas as bolachas e ingeriram a bebida, pois como afirmavam, sentiam-se enfartados e assim poderiam passar mais algumas horas ignorando a sensação de fome. Os outros componentes eram aproveitados para melhorar as refeições tomadas nos aquartelamentos. Nesse tempo usavam ainda a conhecida farda de caqui amarelo e capacete de aço pesado e incómodo, razão que os levava a sujar o vestuário com lama para se confundirem um pouco mais com a mata e a mascarrar a face para evitar constituir um alvo tão visível e facilmente atingível e derrubado. Para seu contentamento o armamento do IN (inimigo) também era deficiente e desajustado à guerra de guerrilha, ao contrário do que se veio a constatar quando a insurreição eclodiu na Guiné Bissau, onde os soldados do PAIGC surgiram utilizando armas mais modernas que as empunhadas pelas nossas Forças Armadas, chegando mesmo a disparar mísseis terra ar a partir de certa altura, o que colocou em perigo todas as importantes ações cometidas à FAP e deste modo diminuir o empolgamento, a agressividade e o controlo exercido pelas NT (nossas tropas) sobre o terreno. Viam por tal com muito desagrado e até alguma latente indignação, os elementos que chegavam da considerada Metrópole (cidade mãe em grego) envergando os camuflados próprios para esta guerra feita no mato e exibindo as novas armas automáticas e


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semiautomáticas G3 e FN e a pistola-metralhadora israelita leve e rápida da marca Uzi. Só alguns meses depois foram as unidades, as chamadas do recrutamento local, contempladas com estes novos equipamentos e fardamentos. Ao fim de desgastante marcha em ritmo quase forçado dir-se-á mesmo, depararam no local ajustado com a força motorizada que os iria recolher. Protegidos pela mata ali estavam um jeep Willys, muito leve e prático para aquele terreno, e os famosos unimogs, ou como apelidavam os extraordinários e polivalentes “burros do mato”, desconfortáveis mas operacionais. Mais calmos já e gozando um repouso rápido que os revigorava, embarcaram nas viaturas rumando para a companhia, cumprindo as normas estipuladas para um deslocamento noturno. Assim com os ocupantes em atenção redobrada e posição de atuação rápida, as viaturas puseram-se em marcha fazendo apenas uso dos chamados olhos de gato ou faróis mínimos, para não exporem os combatentes a um risco maior. Na sede da companhia, localizada nas instalações de uma das dependências que a grande empresa Forte Faria e Compª dedicada à extração e exportação de madeiras construíra na Chiaca, aguardavam com impaciência a chegada de entre outros, o comandante da mesma, capitão Azevedo e o médico, dr. Magalhães. O jovem médico ainda muito inexperiente como nos dissera em conversas anteriores, de imediato ocupou-se do ferido levan-

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do-o para a enfermaria, uma pequena dependência onde se faziam consultas e tratamentos não só aos militares como também a alguns, poucos, elementos da população civil, que se abrigavam nas imediações do improvisado quartel. – O Samuel está em perigo e por isso necessita de ser evacuado com urgência para Luanda, esclareceu o médico respondendo assim à legítima e impaciente curiosidade de todos. – Já está medicado e logo que esteja estabilizado pode seguir para Cabinda, informou o mesmo. – Alferes Rodrigues como ia sair amanhã em patrulha para o Belize, altera-se e vai antes para Cabinda. Eu já vou mandar uma mensagem para o Comando a explicar o sucedido de maneira a prepararem a evacuação aérea para o hospital militar, se assim o entenderem – decidiu o comandante da companhia. Era madrugada e ainda distantes os alvores que começariam a tingir o novo dia, partiu o alferes Rodrigues com o seu pelotão em direção à sede do Batalhão, distante cerca de cem quilómetros, a maior parte com mau piso, com realce para o barro que faz mesmo atolar por vezes as viaturas militares, tornando demorados e esgotantes estes trajetos. O médico militar, geralmente escuso em participar nas patrulhas ou deslocamentos, lá seguiu também para prestar os cuidados que fossem necessários ao atingido, de sorte a manter as melhores condições fisiológicas e mentais para a compelida evacuação. Chegados à sede do Batalhão e após um exame rápido às funções vitais, o Samuel foi colocado no avião militar que a meio da manhã rumou ao Hospital Militar.


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Nesta altura apenas na cidade de Cabinda existia um aeródromo, não havendo em todo o resto do enclave uma pista para qualquer tipo de aeronaves que pudessem valer a ocorrências deste género ou minimizar as suas gravosas consequências. Os helicópteros em ação na Província eram poucos e estavam todos empenhados na zona norte, onde as intensas ações militares se desenvolviam em cadência acelerada, sendo por isso reclamados para uma assistência e apoios mais numerosos, diretos e imediatos. Só tempos mais tarde os próprios militares meteram mãos à obra desbravando e nivelando os terrenos, construíram pequenas pistas destinadas principalmente aos dorniers (DO) esse pequeno e lento avião que tantos e bons serviços prestou a todos e cujos pilotos mereceram sempre toda a geral consideração e estima pela sua coragem, perícia, espírito de sacrifício e abnegação. Igualmente os T-6 Harvard monomotores de hélice introduzidos em Portugal no ano de 1946, atuaram como aviões de reconhecimento e de caça-bombardeiro equipados com metralhadora, mísseis e bombas. A sua cor metálica (alumínio) com algumas partes pintadas de amarelo alaranjado sobressaindo no céu azul de Angola eram sempre aguardados com impaciência pelas forças terrestres empenhadas em combate. Era “o ânimo vindo do céu” como frequentemente se disseminava por entre os jovens combatentes. Este ânimo auto revigorava-se quando depois surgiram os PV2, F-84 e Fiats, além de outros mais. Merecem também reconhecimento e gratidão os pilotos civis

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que se mobilizaram e passaram a cruzar todo o norte de Angola, transportando víveres e correio e por vezes também feridos e doentes, manobrando com sabedoria e estoicismo os frágeis monomotores Austers cedidos pela Força Aérea, pousando em picadas e pistas traiçoeiras, formando a Esquadrilha dos Voluntários do Ar (EVA). Atuavam como um corpo auxiliar da FAP, passando mais tarde a designar-se como Formações Aéreas Voluntárias (FAV). Estes voluntários nas primeiras operações no norte de Angola (1961) chegaram a realizar operações de combate e reconhecimento apoiando a deslocação das forças de superfície. Foram apenas quatro destes pequenos aviões que deram início à BA3, no Negage, que tanto se distinguiu na execução das múltiplas e arriscadas missões que lhe foram pedidas. A manhã seguinte trouxe uma confirmação que não desejavam, mas que andava suspensa desde a partida: o Samuel não resistira aos ferimentos, tendo falecido durante as primeiras horas do dia. A consternação e o ímpeto colérico apoderaram-se de todos. Estavam perante a primeira baixa da companhia, ficando no ar a interrogação sobre quem seria a seguir, ou quantas vezes mais seriam confrontados com iguais revezes. Ninguém escondia a sensação emanada da sua exposição frequente ao perigo. O soldado Samuel era natural de uma aldeia situada nos arredores da Vila da Chibia, pertencente à etnia dos nhanecas humbe, grupo étnico dos gambos, reconhecidos como excelentes criadores de gado, bons agricultores, aguerridos caçadores e amantes


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do saber. Uma etnia outrora guerreira e uma região onde os primeiros confrontos com os portugueses se deram no segundo quartel do séc. XVII, ficando conhecida, pelos resultados obtidos, a chamada “Guerra do Nano”. Porém, uma vez alcançada a paz em toda a zona assim como nas regiões circundantes por volta dos anos de 1919, se passou a viver em comunhão harmoniosa, buscando o desenvolvimento participativo na agricultura, na educação e na saúde. Para dar conhecimento do sucedido o capitão enviou um telegrama à autoridade concelhia local, solicitando a efetivação das diligências junto da família do militar em causa, tal como já fizera através da rede rádio para o Regimento a que pertencia. À companhia depois de muitas considerações, pareceres e diatribes sobre o sucedido, o incessante rodar do tempo fez regressar as rotinas. Era imperativo ocupar o espirito dos mais desfalecidos com o vigor suficiente para perseguir os objetivos. Se não surgissem factos novos ou ordens específicas do Comando do Batalhão, normalmente planeadas com base nas informações prestadas pela PIDE ou diretamente do Comando Chefe da Região Militar, havia uma escala de serviços que contemplava não só os serviços internos diários mas também uma intensa atividade operacional, já que a companhia tinha à sua responsabilidade uma área que ia do posto de Necuto até ao de Miconje, ambos situados junto à fronteira com a República do Congo e República Democrática do Congo, presentemente.

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Dois atos importantes marcavam o iniciar de todos os dias: o primeiro, o hastear solene da bandeira nacional junto ao edifício do comando feito por uma força constituída pelo pessoal que integrava a escala de serviço desse dia, comandada pelo sargento de dia com a presença do oficial de dia; o segundo ato, tinha a ver com a libertação do stress e das tensões que se iam acumulando ao terem conhecimento dos combates que se iam travando em toda a zona norte, e que os juntava na “parada” em animado e ruidoso encontro de futebol ou volley, a que só o enervante miruí conseguia por termo, marcando-os com as suas picadas, a que o repelente não tinha capacidade de contrariar, assim que o sol preguiçoso se preparava para descansar, fazendo do dia a noite. Por vezes, para vencerem a aragem rotineira, davam um salto até ao bar improvisado do senhor Alberto, que mais não era que um quarto da casa construída anos antes pela empresa Forte Faria e destinada àquele trabalhador. Estava localizada a poucos metros da vedação da companhia e antes do início da guerra fazia parte do complexo industrial que mais tarde foi transformado no quartel da Companhia 3 de Caçadores. Ali vivia com a sua família autóctone, mulher e filhos, como observador e controlador do abate de árvores para a Companhia de Madeiras a que aliava, clandestinamente em relação ao patrão, a pesquisa de pepitas de ouro chefiando um grupo de garimpeiros. Fazia-se notar a atuação dos combatentes da FNLA que mais tarde se retiraram, e do MPLA que se manteve até ao 25 de Abril 74, embora afetada com muitos hiatos mas também contrariada


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pela reduzida ação da FLEC (Frente de Libertação do Enclave de Cabinda), movimento que a partir de princípios de 1963 passou a lutar pela independência desligada de Angola sob a direção de Alexandre Tati, cuja presença e atividade política já era assinalada em 1961. O povo cabinda sempre se apresentou separado dos movimentos estabelecidos nas zonas de Luanda e Norte, não desejava nem fomentava a luta armada, pugnando apenas pelo cumprimento integral do Tratado de Simulambuco, adotando para esse desiderato o lema “ Cabinda para os Cabindas” e reconhecendo como único interlocutor válido Portugal. Para os dirigentes da FLEC, cujo alvo ambicionado a partir da independência é a secessão do território, foi sempre asseverado que a aspirada concretização estaria diretamente ligada à potência colonizadora, conforme deveria ser inferido do conteúdo expresso no tratado de Simulambuco, artigos 2.º,3.º e 9.º de entre outros, assinado pelo capitão tenente e comandante da corveta “Rainha de Portugal”, Guilherme Brito Capelo e Ibiala Mamboma, rei de Cabinda, e demais elementos de ambas as partes, na manhã do dia um de fevereiro de 1885 e que especificavam: – Artigo 1.º – Os príncipes e mais chefes do país e seus sucessores declaram voluntariamente reconhecer a soberania de Portugal, colocando sob o protetorado d’esta nação todos os territórios por eles governados; – Artigo 2.º – Portugal reconhece e confirmará todos os chefes que forem reconhecidos pelos povos segundo as suas leis e usos, prometendo-lhes auxílio e proteção; – Artigo 3.º – Portugal obriga-se a fazer manter a integridade dos

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territórios colocados sob o protetorado; – Artigo 9.º – Portugal respeitará e fará respeitar os usos e costumes do país. Mas os ilusórios da descolonização aviltaram o querer e a pertinência dos cabindas, envolvidos pela mesma demagógica euforia revolucionária que os levou a desprezar a vontade dos povos africano e português, compelindo-os para situações de miséria moral e económica. – Olvidaram acintosamente o nosso Acordo. O antigo regime de protetorado continua e exigimos de Portugal que assuma a sua responsabilidade – afirmava em público um dos dirigentes independentistas, enquanto o povo em euforia gritava “abaixo a ocupação angolana”. Cabinda foi declarada livre e independente de Angola em 01.08.1975 sendo considerado seu presidente Luís de Gonzaga Ranque Franque e tal situação reconhecida pelo Togo, Gabão, RCA, Uganda e RDCongo (ex Zaire). Em Portugal, o governo revolucionário fingia ignorar o tratado e a razão do povo de Cabinda. Durante o ano de 1963 já três organizações, Movimento para a Libertação do Enclave de Cabinda (MLEC), Comité de Ação da Ação Nacional de Cabinda (CAANC) e a Aliança Nacional Mayombe (ALLIAMA) fundiram-se para formar a FLEC (Frente de Libertação do Enclave de Cabinda). A 4 de janeiro de 1976 o enclave de Cabinda foi brutalmente retomado por soldados do MPLA com o apoio de tropas cubanas para ali deslocadas em elevado número.


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Atualmente, e após várias disputas pela sua representatividade, existe a combater por Cabinda a FLEC–FLAC, uma resultante como lídima representante do seu povo, válida, credível e duradoira. Ao tempo da eclosão dos “acontecimentos na zona norte”, (ZN) considerados como o início da guerra do ultramar ou da guerra de libertação nacional de acordo com cada uma das partes em confronto, o exército português contava com 6.500 elementos sendo 5.000 negros e mestiços angolanos provenientes dos diversos grupos étnicos e 1.500 brancos angolanos e metropolitanos, que constituíam a guarnição normal ou unidades territoriais. A ocupação militar mantinha ainda o dispositivo estabelecido a partir de 1950, sendo a ideia base das chefias treinar, preparar, organizar e manter esses elementos de modo a poderem reforçar as tropas metropolitanas em caso de guerra na Europa, a exemplo do que já haviam feito nas guerras mundiais passadas e outras mais recentes, a Espanha, França, Itália e Inglaterra. Em 1960 o edifício militar em Angola é reforçado com três companhias de caçadores especiais prevendo-se já qualquer alteração de comportamentos face ao eclodir dos movimentos independentistas africanos, e perante a independência do Congo ex Belga, país vizinho cuja população pertencia ao mesmo grupo étnico tal como o povo cabinda – o Bakongo. Por ausência duma alicerçada visão estratégica político militar os dirigentes de então não percecionaram os depois chamados “ventos da história” que tiveram o seu vórtice no pan-africanismo moderado e tolerante, brotado e soprado do território americano

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pelos escravos e seus descendentes no dealbar de 1900, e que iriam conduzir as colónias ou províncias à auto determinação e independência, augurando para mais tarde a criação dos “Estados Unidos de África” mas que não se veio a concretizar, surgindo porém em 1963 a OUA (Organização da Unidade Africana) que procurou assumir e infundir os mesmos princípios como movimento politológico negro. Nos princípios dos anos cinquenta alinhando com os ideais contidos e preconizados pela doutrina que enformava o pan-africanismo, foram surgindo os movimentos emancipalistas ou independentistas que deram causa ao emergir de novos países no continente negro, fazendo terminar assim muitas das colónias francesas, italianas, espanholas e inglesas. Anos mais tarde ramificava-se a “negritude” proclamada pelo presidente Leopold Senghor, opondo-se às ideias revolucionárias da moda arvoradas por marxistas, católicos progressistas, anarquistas, trotskistas, bondiguistas e socialistas. Em Portugal, considerado a terceira maior potência colonial em África, mais uma vez os dirigentes políticos deambulam por trevas pensantes que não os deixam perscrutar o futuro de forma clarividente mas sim nebulosa, mesmo especiosa e obscurantista. Perante o pedido de conversações visando a auto determinação ou independência proposto pelos principais representantes dos chamados “movimentos de libertação das colónias portuguesas”, a resposta foi uma recusa redutora, inibidora duma solução pacífica e equitativa para ambos os povos e que parecia ainda nesse tempo tocada pela plausibilidade.


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Mesmo após a eclosão da luta armada foi novamente tentada uma solução política que evitaria o desperdício de vidas humanas e bens materiais, a que Salazar retorquiu com o silêncio dos amantes das verdades inanes, anulando a pré aceitação duma recíproca legitimidade de posições que poderia desembocar num aliciante tratado de paz. Esta impassibilidade dos políticos mesmo perante o trágico desenrolar dos acontecimentos, provocou sequelas irrecuperáveis no território e na intemporalidade das suas populações, afinal os elos mais sofredores e desprotegidos. Ao invés, os efetivos militares a partir de 1961 foram sendo aumentados de acordo com o incremento das ações político militares conduzidas pelos movimentos independentistas, atingindo-se no início dos anos setenta o limite crítico da capacidade de mobilização dos recursos humanos para as três frentes de guerra que Portugal mantinha. As colónias eram tidas como um elemento fundamental e congregante dum nacionalismo extremado, âncora de orgulho nacional e empreendimento histórico civilizacional, que todos deviam aglutinar, mas escondendo convictamente o grande alicerce financeiro que elas representavam para o progresso do país e evolução do seu povo. Tal como a História já ensinara, a fraca ocupação das terras descobertas e ocupadas a partir do século XVI determinou o seu abandono parcial, uma hodierna falta de recursos humanos iria trazer muitas alterações ao desenvolvimento da atividade militar, política e social.

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No presente, a denominada globalização vem gerar novos efeitos, tornando os recentes soldados em profissionais da guerra e ações de paz, indo servir para outras zonas do globo sem qualquer ligação sentimental ou fraterna com a Pátria Mãe, como a Sérvia, Croácia, Afeganistão, Iraque, etc., regressando como “embaixadores” de valor e prestígio, o que foi negado aos combatentes do ultramar mobilizados para irem combater pela defesa e integridade do Portugal africano. Para exercer toda a sua complexa ordem operacional a companhia da Chiaca, tal como as outras, dispunha de três pelotões de atiradores ou caçadores, tendo cada pelotão três secções de caçadores e outra de apoio, cada uma comandada por um cabo miliciano ou sargento, e um quarto pelotão de reforço e serviço, sendo a maioria dos seus elementos do recrutamento da província. Quando o movimento do inimigo cresceu, passou a ser destacado um pelotão em regime de rotatividade, que se dividia em duas secções e o comandante para a Vila de Buco Zau, sede do concelho e centro comercial de relativa importância, e a terceira para o posto do Necuto, um aprazível local situado na margem do rio Chiloango que serve de fronteira com a RDC e onde se recolhiam com alguma facilidade pepitas de ouro e diamantes, que teriam já proporcionado riqueza a muitos aventureiros que por ali deambulavam. Contudo na área do desativado posto do Miconge, mais propriamente nas antigas e exíguas instalações do posto sanitário Sanga Planície onde se encontravam ainda talvez esquecidos, uma


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vez que a sua ação era totalmente nula e despromovida de credibilidade, dois elementos da policia fiscal, estava destacado um grupo de duas secções da companhia que constituíam apenas uma presença militar, pois era quase impossível praticarem outras tarefas interligadas com a atividade operacional. Ao sabor do tempo, sem qualquer previsibilidade, o local era flagelado com tiros de armas diversas submetendo estes elementos a desgaste físico e psicológico intenso. Permitia é certo esta dispersão de efetivos o aumento do contacto direto, o apoio e por vezes a confiança das populações. Aqui merece evidência e realce a beleza da mulher cabinda ou bakongo sempre bem apresentada, usando inclusivamente alguma pintura na face e normalmente com lábios pintados quando circulavam em locais mais movimentados. O homem cabinda tem um comportamento familiar diverso do homem do resto de Angola, pois além da caça e do derrube das árvores, dedica-se com muito empenho e perfeição aos trabalhos de casa, sendo igualmente excelentes costureiros, relegando para a mulher os trabalhos agrícolas que sustentam o agregado e tidos como indignos, a educação dos filhos e as relações familiares. Trata-se dum povo com tradições muito próprias e bem marcantes e uma cultura muito acima da encontrada em outros povos de Angola. No decurso das patrulhas, a orografia sofria alterações pois alguns quilómetros à frente quer para norte (Buco Zau) quer para sul (Dinge), a floresta dava lugar à savana, para voltar a surgir novamente logo que se aproxime do Belize.

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Este facto provocava em todos uma benéfica alteração de comportamento, diminuindo a sua ansiedade e expetativa, pois no deslocamento ao longo da savana as emboscadas eram em menor número, menos eficientes e dava-lhes uma melhor capacidade para reagirem. A atuação guerrilheira do IN teve o seu início no dia 11 de Abril na região de Tando Zinze (Mankama Nzila que quer dizer em fiote “cem caminhos”), povoação de Kakata, tendo provocado muitas baixas às nossas tropas vindas da sede do Batalhão e ali em ação de patrulhamento. Esta emboscada foi minuciosamente preparada a partir do então Congo Leopoldville, concretamente na aldeia de Yema Liyanga, sendo o local de ação por ventura simbolicamente escolhido, pois ali se situou a sede do antigo Reino do Congo. Mas conforme foi possível depois apurar junto da população regressada, não foram motivos políticos a sua causa primeira mas tão somente a reivindicação contra o trabalho em excesso e mal retribuído nas roças de café e palmares e a criação imediata de escolas para os seus filhos poderem estudar. De Belize para o posto do Miconge era o trajeto que mais temiam devido não só ao declive mas também à sua sinuosidade, feita de curvas muito fechadas, cavadas no meio de barreiras altas terminando por cerrada floresta, marcadores propícios a destroçantes emboscadas, onde, como ironizavam em conluio, mas não muito longe da verdade, “era possível um dia sermos caçados à mão”. Neste percurso foram postos à prova muitas vezes, sendo frequentes as emboscadas à ida ou à volta, quando se procedia ao im-


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prescindível reabastecimento de víveres para alimentação do pessoal ali destacado ou quando se promovia à substituição do grupo. No entanto, a partir da independência assiste-se a uma mudança total de atitude, pois o MPLA ao não reconhecer e obviamente nem aceitar a FLEC, vai combater com veemência estas populações, que são novamente obrigadas a refugiar-se nos territórios vizinhos para garantir a sua sobrevivência. – Felizmente o número de baixas sofrido pela companhia é baixo, pelo que devemos agora passar a ter mais cuidado com as minas, não só as anti carro mas as anti pessoal, as chamadas “viúvas negras” – alertava os seus homens o agora alferes Silvestre após a sua promoção em Ordem de Serviço, acontecimento que foi comemorado na dita messe dos oficiais com jantar melhorado e a presença de todos os companheiros, incluindo o comandante da companhia. De acordo com o calendário consensualmente aceite, coube ao grupo do alferes Silvestre ir substituir os camaradas em Buco Zau. O grupo ficava instalado numas dependências do edifício onde funcionava a administração do concelho que o Administrador, natural de Cabo Verde, de nome Reis Borges, havia cedido no prolongamento das boas relações e entendimento que permanentemente mostrava com a parte militar. Importa referir que grande número de funcionários do quadro administrativo de Angola eram naturais de Cabo Verde, exercendo as suas funções com brio e muito mérito até 1975, tendo alguns regressado à sua terra de origem, passando a colaborar com

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eficiência e saber no desenvolvimento do novo país, que desta maneira iniciou de imediato um caminho de paz e progresso que surpreendeu os mais céticos. Longas horas de conversa e troca de opiniões sobre os mais diferentes motivos, mas com realce para os emergentes relacionados com a situação política na província e na Metrópole foram vertidas, criando-se entre os dois uma cadeia de estima e consideração. – Está-me a custar bastante suportar esta situação. A minha família, mulher e filhas, estão em Luanda. Estão elas sempre em cuidado comigo e eu sempre temendo o que lhes possa acontecer lá sozinhas – lamentava-se o administrador. Não sei como esta situação vai evoluir... mas vai ser muito difícil isto regressar ao normal. A partir de agora Angola será sempre uma terra diferente. Vão ser gerados ódios difíceis de serem entendidos e perdoados. Muitos passos terão de ser praticados para se encontrar um ambiente propício ao desenvolvimento e bem estar geral – disse a terminar. O alferes com um movimento de cabeça mostrava a sua concordância. Eram palavras duras, penetrantes, mas verdadeiras. Após uma explosão não seria fácil juntar as mesmas pedras no mesmo local. Procurou mudar o pensamento. – Não consegui dormir nada esta noite incomodado com uma forte dor de dentes – queixou-se passando a mão pela face dorida e levemente túmida. – Se quiser, vamos à fazenda Alzira falar com o Dr. Príncipe.


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Ele é especialista nessa matéria e noutras mais afinal – opinou o Administrador. A fazenda Alzira da Fonseca, além dum enorme e magnífico edifício de primeiro andar com todas as comodidades, comportava um fecundo palmar a que se juntava extensa plantação de café e também floresta, encontrava-se excelentemente equipada para garantir uma boa produção e apoio aos seus muitos trabalhadores. No pequeno hospital, com a colaboração de um enfermeiro, prestava cuidada assistência a todas as ocorrências, praticando algumas cirurgias como apendicites, cesarianas e hidrocelectomias, atos cirúrgicos muito comuns na zona e bastante procurados e bem aceites pela população que ali acorria em grande número. Outro exemplo a atentar surgia mais a sul, na zona da Gabela, distrito de Quanza Sul, onde em 1919 começou a ser construída uma enorme herdade a que se chamou CADA – “Boa Entrada” – (Companhia Angolana de Agricultura) pertença da Família Espirito Santo, que chegou a ser considerada a terceira maior cidade privada do mundo. Por mor da sua enorme extensão gozava dum aperfeiçoado serviço de vigilância e segurança, feito com elementos recrutados nas populações vizinhas e que em função do seu elevado número era dirigido por um major do exército português na reserva. Possuía uma linha férrea particular preparada para escoar a volumosa e apreciada produção de café para o porto de Porto Amboim. Dispunha ainda dum excelente hospital destinado aos trabalhadores e familiares, e que era facultado ainda ao resto da população,

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que contava com participação de sete médicos de especialidades diversas. Ainda inserido no apoio social havia bairros com moradias para todos e nestes várias escolas onde estudaram inúmeros jovens de entre os quais muitos dos atuais quadros do país. Para prosseguimento dos estudos, ali dispunham igualmente dum colégio com internamento para os necessitados, com aulas até ao quinto ano. Atualmente as províncias do Kuanza Norte, Uíge e Bengo em conjunto não ultrapassam ainda as cifras de produção cafeícola alcançadas pela CADA antes da independência. Consta que a mesma seja hoje propriedade de altos dirigentes políticos. – Isso já não tem remédio, não vale a pena pensarmos em tratar. Vamos extraí-lo ou o Alferes tem medo? – desafiou com alguma jocosidade. – Oh doutor... doer por doer... vamos a isso – concordou o Silvestre. – Vocês devem ter muito cuidado. As diversas situações que têm de enfrentar nesta guerra dão cabo da cavidade bucal, que é uma zona bastante vascularizada e repleta de micro organismos. Podem surgir muitas infeções como por exemplo a endocardite bacteriana que afeta as válvulas do coração. Aconselho-o a consultar um especialista logo que lhe for possível – lembrou. Para ocupar os seus tempos de lazer e procurando simultaneamente captar o crédito e o afeto da população local, o alferes


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Silvestre organizou uma classe de ginástica para os alunos da escola primária e amigos até aos quinze anos. Assim, todas as manhãs ele ou o furriel ali estavam no amplo largo da administração para darem início às aulas, com predomínio para os jogos infantis, já aguardados por muitas crianças em alegre expetativa. – “Senhor professor”, vamos começar já – gritavam os alunos logo que os viam aproximar-se. Várias vezes, durante muitas horas, estavam os dois responsáveis locais agarrados ao rádio procurando acompanhar melhor os acontecimentos, bons e maus, que se iam difundindo por várias áreas que tinham sido atingidas pela ação dos “turras” e que os velhos e gastos P19 iam transmitindo e escutados de acordo com as condições atmosféricas ou a inconstante carga das baterias. Foi numa destas alturas que o alferes Silvestre teve a alegria de contactar com o irmão, chefe do posto em Macocola, de quem há muito não recebia notícias. – Alô, mano, como estás? Como vão as coisas por aí? Eu neste momento estou na administração do Buco Zau... e está tudo a correr bem por aqui – gritou o alferes Silvestre julgando assim ser ouvido melhor naquela distante zona de Sanza Pombo – Quimbele, onde sabia haver grande intensidade de confrontações. – Que bom ouvir-te... isto hoje está mais sossegado, mas ontem tivemos um dia agitado... estivemos cercados durante muitas horas... consegui organizar aqui uma defesa... mas somos poucos... valeu um PV2 que nos mandou a FAP... fez aqui uns bombardeamentos... e os gajos fugiram... vamos ver agora o que se

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passará – informou o irmão do outro lado. Olha, dá um grande abraço aí ao administrador pois conheço-o... já trabalhámos juntos... e tu também tem cuidado... não facilites – pediu e recomendou o mano mais velho. E foi assim por mais vezes. Palavras de ânimo e incentivo se trocavam quando as circunstâncias o permitiam. Os contactos serviam para recíproco apoio, matar saudades e lembrar da família que continuava no Lubango a sofrer com a situação dos dois. O pai procurava mostrar-se sereno, calmo, pois não queria tornar mais sombrio o ambiente que se vivia em casa, mas que por vezes as informações ouvidas mais ansiedade traziam, alterando as rotinas. A mãe sempre em sobressalto, temendo receber notícias menos boas dos seus “meninos”, procurava na oração o lenitivo e a razão para viver os dias com aparente normalidade. Mas o seu meigo coração de mãe não enganava quem com ela conversava. Faltava alegria na sua voz e sobrava tristeza no olhar. Os outros irmãos, todos na altura a residir no Lubango, um como enfermeiro chefe no hospital distrital e os outros funcionários do CFM, procuravam partilhar com serenidade os relatos que iam chegando e que muitas vezes anunciavam dolorosos acontecimentos e tragédias que enlutavam as famílias, muitas delas conhecidas e amigas. Numa urbe relativamente pequena, onde a maioria da sua população exibia relações familiares profundas ou conhecimentos cimentados, tudo o que ocorria nas zonas de guerra tinha reper-


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cussão no deslizar dos dias, alterando a sua decorrência normal. – Meu Alferes, eu gosto muito de fazer estas visitas mas acho que nós devíamos conhecer melhor a vida desta gente, os usos, costumes, a religião, tudo. Podemos estar a fazer coisas de que eles não gostam e nós não sabemos – lembrou bem um dos soldados da patrulha. – Tens toda a razão. Eu por acaso procuro manter o maior cuidado nas conversas com eles e na condução das vossas atitudes. Temos que ser muito observadores pois podemos estar a ofendê-los sem saber – advertiu – e um pequeno erro pode estragar tudo – concluiu o alferes Rodrigues. Terminado o período que lhe competia para a missão em Buco Zau, o grupo regressou ao comando da companhia tendo deixado um excelente trabalho junto da população cabinda e dos poucos elementos brancos ainda ali a residir. Mal chegou o alferes Silvestre alertado pelas palavras do camarada Rodrigues que lhe confessara não pretender dar forma à ideia generosa do seu soldado, foi falar com o capitão. – Meu capitão, houve um soldado que solicitou a nossa atenção por não conhecermos um pouco mais os costumes dos cabindas e desta maneira os nossos contactos pessoais não resultarem tão bem, e por tal serem as metas atingidas demasiadamente reduzidas. Eu conheço alguma coisa deste povo e por isso pensei fazer umas palestras para todos, o que acha? O capitão meditou por breves instantes, olhou o seu subordi-

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nado e exclamou: – Boa ideia, conhecendo mais e melhor as pessoas, principalmente as tradições e anseios, conseguiremos conquistar a sua confiança e mantê-las do nosso lado. Faça um fluxograma para as palestras e traga para acertarmos, e podemos começar já. Quero para toda a gente, os oficiais, sargentos e praças. Olhe, não se esqueça do Doutor Magalhães pois ele bem precisa de saber estas coisas. Elaborada e aprovada a esquematização, que faseadamente incluía todos os militares da companhia, aproveitando as mesas e os bancos do refeitório já transformado em sala de aulas todas as tardes, o alferes Silvestre deu início ao que ele, compenetrado mas eufórico, designou sem qualquer disfemismo de “Colóquio sobre o povo Cabinda”. Para emprestar mais seriedade à ação, o capitão Azevedo desceu do gabinete para vir esclarecer em género de abertura solene: – Meus senhores, para conhecermos melhor a população e assim podermos ter mais êxitos na nossa missão principal que é consolidar a paz e desta maneira passarmos este tempo melhor com a possível diminuição da atividade inimiga, o nosso alferes Silvestre vai falar-nos sobre algumas coisas que sabe. E como têm muito interesse, agradeço a vossa atenção e participação. Após explicar os motivos que o levaram a encetar estas conversas, usando a sua costumada elocução dissertou o alferes, sem laivos de petulância: – Vamos conhecer um pouco da história deste enclave e suas gentes, e com esse fim começo por vos dizer que antes da chegada


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dos portugueses em finais de 1482 chefiados por Diogo Cão, existiam ocupando uma grande superfície conhecida como o Reino do Congo três pequenas unidades políticas, a saber: Kakongo, Loango e N´Goio. Seguiram-se ao longo dos anos muitas peripécias que consolidaram a aceitação e colaboração dos chefes regionais. A 1 de fevereiro de 1885 é assinado pelas diversas autoridades do Reino e os representantes do governo português o Tratado de Simulambuco que colocou cabinda (no dialeto local tchiowa) sob protetorado português, vetor politicamente importante e a não escamotear perante qualquer alteração política que se viesse a registar em Angola – continuou perante a atenção de todos. Os Cabindas pertencem ao grupo Banto, etnia bakongo, grupo Fiote, oriundos dos territórios do rio Cuango, e ao grupo etnolinguístico kikongo, cuja língua é o ibinda. Continuam a ter as suas tradições próprias bem interiorizadas e uma cultura superior à maioria das populações vizinhas. Almada Negreiros considerou-os como “os melhores marinheiros da Africa portuguesa e indivíduos de índole pacífica, muito morigerados nos costumes, respeitadores e dedicados”. Anos antes a cidade de Cabinda fora um importante centro de escravos (porto de embarque) feito por franceses e ajudados pelos poderosos locais – os Mani – destinados principalmente ao Brasil. E peço agora a atenção para dois aspetos que reputo de muita importância para a nossa atuação – disse o alferes olhando todos – a principal figura da família é a mãe – ela trabalha a terra para o sustento de todos e é a base familiar porque gera os filhos que são

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a maior riqueza do clã. É o que se designa como sistema de descendência matrilinear. O pai é somente o progenitor, não tem direitos nem deveres relativamente aos filhos, sendo substituído pelo irmão mais velho da esposa, por conseguinte o tio. Quando morre, a mulher e os filhos não herdam os seus bens. O segundo aspeto e também muito importante como disse, e agora aí para a malta mais jovem e cheia de energia, o casamento é sempre entre duas famílias diferentes, chama-se exogamia, o que como sabem não é comum a muitas zonas de Angola. É uma sociedade muito cumpridora, e infringir os códigos da moral sexual é uma falta gravíssima, com castigos muito pesados para os seus prevaricadores. E atenção, a prática de relações sexuais nunca deve ser feita em local aberto, não vedado ou não coberto, sobre o solo ou com raparigas ainda ”não iniciadas”, acontecimento a que se dá o nome de “chicumbe”. Portanto devemos ter muito cuidado nesta questão das relações sexuais, não só devido à transmissão de doenças venéreas mas aos atos de retaliação que elas propiciam estuar. Podemos estragar os resultados de muito tempo de trabalho, de muito empenho, se ignorarmos estes princípios – aconselhou. A palestra foi seguindo sempre animada com perguntas e respostas, estimulando uma intervenção mais alargada e concludente. A finalizar o alferes Silvestre passou a referir: – Um pouco rapidamente vamos ver o que se passa com a religião, que como é do vosso conhecimento, trata-se dum conjunto


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de sentimentos que ditam ou pautam o comportamento das pessoas. Lembrem-se de que a religião pode tornar um cidadão pacífico, moderado, num assassino destemido. A religião de alguém nunca deve constituir motivo ou causa para ditos ou brincadeiras. Aqui podemos considerar o animismo, isto é, a atribuição de espíritos ou alma às coisas e seres, o feiticismo e também as práticas cristãs. O deus dos bakongos é N´Zambi, criador e supervisor do universo e coadjuvado por outros deuses menores, como da fecundidade, da pesca, da caça, das chuvas, etc. A religião tradicional estimula uma estreita ligação entre a crença e a vida, dando assim origem a muitas divindades. Para os bantos não existe a morte mas apenas “uma mudança”, daí a oferta de bens e veneração aos defuntos e uma forte ligação e respeito aos antepassados. Acreditam em divindades com identidade própria que designam por “inkinces” e os brasileiros por orixás. Tal como já vos disse também, em todas as nossas conversas ou atuações que possam apresentar qualquer relacionamento com a religiosidade dos povos, devemos ter o maior cuidado, e muitas vezes até evitar falar disso poderá ser o melhor caminho – comentou martelando bem as palavras. A terminar, entendeu debruçar-se sobre uma variante política de grande acuidade: – Nós estamos a fazer uma guerra porque queremos conquistar a paz. Não podemos por isso fomentar o ódio e a vingança en-

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tre as populações. A maioria de vocês vem da parte sul de Angola, pois esta companhia pertence ao RISB, mas isto não quer dizer que não respeitem as populações daqui. Faz parte da nossa missão manter a concórdia entre todos os povos. Em Angola consideram-se duas raças – a negra e a branca. A negra subdivide-se em etnias várias. Isto não é uma guerra entre etnias ou raças, entre o sul e o norte. Isso passou-se na América por razão dum colonialismo precito e de um racismo fecundo e envilecendo que marcaram de modo soez toda a sociedade. E agora não esqueçam nunca o que todos devem fazer, individual ou coletivamente. Devemos secar o IN, isto é, não o deixar atuar, não ter terrenos para se movimentar, não permitir a fala com as populações, não deixar que encontre ali apoio ou ajuda, e por último causar-lhe insegurança camuflando as nossas posições e poder ser confrontado em qualquer terreno ou em local imprevisível. E importante... para não se esquecerem... estamos em guerra... uma guerra diferente daquela que conhecíamos... mais perigosa... mais astuta... mais desgastante... mas não devemos querer ser anjos, santos ou muito menos imitar Cristo. Quando atacados temos de reagir e de imediato, sem vacilações ou dúvidas... naquela altura certa... não podemos deixar passar o momento... para respondermos mais tarde... procurando outras condições... uma hesitação ainda que momentânea... poderá ser a diferença en-


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tre a vida e a morte... e ninguém deseja mortos na Companhia... atenção a isto, nunca se esqueçam – concluiu categoricamente o palestrante. Outras palestras se seguiram nos dias imediatos e consoante a operacionalidade de companhia até ao cumprimento integral do calendário estipulado. O grupo ora resultante do fracionamento do pelotão comandado pelo alferes Silvestre, após uma permanência breve na sede da companhia, iria proceder à substituição dos elementos que se encontravam deslocados no posto do Miconje. Iniciaram-se os preparos para deslocação, tendo o alferes mandado ver cuidadosamente o estado das viaturas, uma vez que a estrada a ser utilizada tinha troços comparáveis à pior picada, e era extremamente perigoso ficar com uma viatura avariada no meio da mata. – Fernando, já sabes que vais ver tudo com cuidadinho e se precisares de alguma coisa diz – mandou o alferes que conhecia bem os conhecimentos de mecânica que aquele furriel mecânico possuía. Era verdade que o furriel tinha por costume exagerar na velocidade da sua condução, atitude que já havia sido comentada pelos restantes elementos que pareciam bonecos saltitantes na caixa da viatura, ou se agarravam como gatos nas curvas apertadas, quase roçando as enormes árvores que tapando o sol tornavam o piso mais escorregadio – Um dia destes ele espalha-se por aí e nós é que nos lixamos –

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alertavam alguns dos costumados ocupantes do unimog. – Da próxima vez o meu furriel vai sozinho... nem que eu tenha de ir a pé. Não morro dum tiro... e vou morrer com o unimog em cima de mim, não? – desfrutou ironicamente um dos soldados. – Eu quero é vê-lo a ganhar uma dessas corridas de velocidade que fazem nas grandes cidades – remenicava outro. – Vou fazer a requisição da comida que vamos levar – e o alferes dirigiu-se a uma arrecadação onde estavam guardados os géneros destinados à alimentação da companhia. Requisitados estes, com o predomínio do arroz, massa, feijão, batatas, enchidos e enlatados vários, foram os mesmos devidamente acondicionados para serem carregados no dia seguinte. Tomado o mata-bicho habitual na tropa, pão com manteiga ou marmelada e café com leite, o grupo preparou-se para a partida. Como era normal muitos dos militares presentes na sede vieram despedir-se de quem partia, desejando sorte, pois ninguém escamoteava os perigos que a todos espreitavam, não só durante o trajeto mas igualmente ao longo da sua permanência naquele destacamento distante e isolado de todos, e que correntemente exigia a superação dos pensamentos feitos de negativismo. O posto administrativo do Miconje e o posto fiscal, rodeados por lindas árvores localmente conhecidas por benjes, ocupavam antes de 61 um mesmo edifício, amplo e bem construído, situado na ponta do enclave entre o Congo Brazzaville e Congo Leopoldville, atualmente República do Congo e República Democrática do Congo.


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Na imensa savana que se estendia para a RC, a escassa distância da nossa fronteira, situava-se a povoação de Kimongo onde se instalara uma base do MPLA, dirigida e treinada por conselheiros cubanos. Aquelas instalações foram abandonadas, sendo os seus elementos (um administrativo, dois agentes fiscais e uma secção do efetivo da companhia) deslocados para as exíguas instalações do posto sanitário situado num local denominado Sanga Planície, a cerca de dez quilómetros da fronteira, presumivelmente pelo local, um morro isolado, exibir melhores condições de defesa. Aí, por ausência de acomodamentos, bastas vezes alguns militares foram obrigados a dormir em tendas ou mesmo ao relento, olhando meigamente as estrelas como parodiavam e por tal hoje ainda apreciarem dormir com as janelas abertas, olhando o firmamento pintado de pontos brancos. As instalações abandonadas foram destruídas e incendiadas a 23 de agosto de 1961 pelas forças do MPLA. O destacamento militar no Miconje – Sanga Planície manteve-se até 1974 beneficiando de alguns melhoramentos, vindo a ser depois ocupado pelas FAPLA, ali funcionando hoje uma escola, um posto de saúde e uma barragem hídrica, estando em construção um apreciado complexo turístico. Para arrostar os comportamentos bélicos e cruentos originados pela guerrilha, a natureza brindara aquele local com um rio mavioso, serpejando por entre luxuriante floresta – o Lutchiaba – após se fazer ouvir nas quedas de Tiéte. Já com Angola independente, o regedor desta região Paulo

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Mabiala afirmava que a povoação deveria ser reconhecida como o berço da independência, uma vez que um bem resguardado esconderijo escavado na rocha servira de abrigo durante algum tempo, por volta do ano de 63, a Agostinho Neto e outros militares superiores que o acompanhavam. Eram aproximadamente quinze horas quando na sede todos se inquietaram – o alferes Silvestre fora atacado e ainda estavam debaixo de fogo. A notícia correu célere trazendo uma emoção inquietante. – Julgo que há feridos – informou o capitão sentado na central rádio, procurando saber mais pormenores. – Eles estão numa das curvas da serra do Muabi... tinha de ser... e os feridos devem evacuá-los para o Belize logo que puderem – concluiu o capitão para os restantes oficiais que ali estavam a seu lado procurando seguir melhor a ocorrência e suas consequências. Esta decisão foi de pronto transmitida, ficando-se a aguardar mais pormenores quando o grupo chegasse ao Belize. Para o socorro mais rápido e consequente foi aberta tempos depois uma pista destinada ao pouso de pequenas aeronaves, derrubando-se parcialmente para o efeito o laranjal que ornamentava a zona lateral do edifício do posto administrativo. Em maio de 1972 tem lugar no Belize um emotivo espetáculo com a presença de Amália Rodrigues, que se havia deslocado a Angola a fim de animar e motivar os militares, cantando para eles. Soube-se algum tempo decorrido que a emboscada após intensa e demorada troca de tiros havia sido repelida, registando-se


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efetivamente dois feridos, mas que pareciam não apresentar muita gravidade. A cilada havia sido feita na área onde a picada se abria por entre dois pequenos morros e que mais tarde passou a ser designada como a “curva da morte”. As curvas, os alcantilados e a floresta constituíam a trilogia que neles fazia despertar todos os instintos defensivos e otimizar a qualidade dos cinco sentidos. Mas tudo isso nunca era suficiente. Durante a emboscada o cenário transforma-se em irrealidade. Nunca é coincidente com o que haviam idealizado. Só quando regressa o silêncio se vive a existência dos factos. Os sentimentos infandos acalmam e brota então a lucidez. – Alferes Sierra vou mandar o pelotão de Buco Zau para transportar os feridos para a sede e você, depois de estarem todos recuperados, siga para Mike (Miconje) antes que se faça noite. E nada de facilitações – resolveu o capitão. – Alferes Rodrigues, prepare o seu pelotão e vá a Buco Zau guarnecer temporariamente as instalações e buscar os feridos para aqui – determinou o capitão para o seu oficial ali ao lado. Nesta altura o que devia ser já uma lenitiva evacuação de feridos, apresentava-se incipiente, demorada, cheia de riscos diversos que punham em causa uma adequada recuperação, o que muito entorpecia o ânimo dos combatentes. – O doutor também vai consigo para prestar já assistência e minimizar os efeitos da deslocação. Depois resolvemos o que fazer. Agora acalmem o pessoal e vamos esperar que não sofram nova

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emboscada – aconselhou o comandante da companhia. – E se for eu o próximo ferido, como serei evacuado? Haverá tempo para isso? Nem a merda dum socorro rápido ou em condições um gajo tem – propalava-se pela parada, na camarata ou em outro qualquer lugar. Congeminações mais ou menos reservadas, mas que balizavam muitos dos procedimentos tidos em palcos de combate. A garantia dum socorro eficaz, acurado, promove a fortaleza do combatente. Contudo, mesmo consciente desse direito adiado, o soldado português combatia! A noite tombou, o dia surgiu e nada de anormal mais se registou em toda zona de ação da companhia. Temia-se agora o regresso do grupo substituído, pelo que as zonas julgadas mais propícias à montagem de nova emboscada eram ultrapassadas a pé, de maneira a conseguir-se assim uma maior capacidade de resposta com recurso ao tiro instintivo, e deste modo tornarem-se para o inimigo esconso e abrigado alvos mais imprecisos e reativos. O estreitamento das relações com as populações locais que muitas vezes se abrigavam nas imediações dos aquartelamentos, furtando-se às pressões exercidas pelos rebeldes, e passando a usufruir do apoio generalizado das forças militares, foi uma atitude comummente aceite pelas partes. Uma das suas questionáveis consequências foi o relevo atribuído à figura da lavadeira, a quem se entregava a roupa para lavar e


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passar, acabando por vezes no incremento de relações sexuais que os homens da sanzala tinham como uma afronta, sendo mesmo julgado como uma atitude criminosa por algumas etnias. Consoante se veio a apurar através dos tempos, esta ligação promíscua entre os militares e as mulheres foi a origem de muitos atos e ações de retaliação e vingança, que vieram a marcar negativamente a presença da tropa em alguns locais. Não foi assim causa de estranheza o furriel Marques começar a ter contactos mais íntimos com a sua lavadeira, uma jovem bonita e de corpo perfeito, que o levava a cometer a infração de abandonar sub-repticiamente as instalações, valendo para tal a cumplicidade dos camaradas mais chegados que tudo faziam para mascarar a sua ausência. A empatia entre eles foi crescendo de tal maneira, que passados meses o furriel Marques veio surpreender o comando apresentando uma petição para passar a dormir fora do quartel, tal como afinal se observava noutras unidades e mesmo na cidade de Cabinda, sede do Batalhão, com a classe de sargentos. Com um esgar nevrótico o capitão agarrou no papel, deu dois murros na secretária, chamou os oficiais ao pequeno gabinete e vociferou: – Olhem o que estava guardado para mim! isto está tudo maluco! leiam o que este gajo quer e digam o que pensam. Os oficiais, incluindo o médico, entreolharam-se primeiro estupefactos, depois exibindo um leve sorriso, para argumentar desta vez o doutor, sempre abstraído das coisas da companhia ou pior ainda, dos preceitos a seguir militarmente:

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– Eu acho que não tem mal algum o furriel dormir fora do quartel, pode é ser perigoso para ele. Os homens da sanzala não devem gostar muito de o ver lá. Mas por outro lado até pode escutar informações preciosas sobre a manobra guerreira nesta zona. Parece-me haver interesse para a companhia. – Pois o problema é esse. Se lhe fazem mal ou mesmo se o matam? ainda vou decidir se ponho o caso para análise e decisão do comando... mas ainda gozam comigo quando lerem isto – disse inquieto o capitão, sempre tão lesto a decidir as missões operacionais e agora indeciso entre o cumprimento das normas, muitas vezes incompatibilizadas ou desconexas da realidade, o desejo do seu subordinado, militar aprumado e de grande valia, e a apreciação chistosa que poderia ser feita no comando do batalhão ao analisarem aquela inusitada petição. Dois dias passados o capitão manda chamar o furriel e em voz grave e face carregada exclama: – Não, não posso autorizar um pedido destes. Além de ser um mau exemplo para a companhia você iria estar em constante risco... e se acontecesse algo de mal... seria eu o responsável. Por isso pense bem... e esqueça este pedido que eu faço de conta que nunca existiu. O furriel, de aspeto sereno, olhou fixamente o superior e respondeu: – Meu capitão, sinto muito que não entenda o meu pedido... nunca iria prejudicar o serviço nem a companhia... e acho que ninguém me faria mal... antes pelo contrário... seria também um bom exemplo de fraternidade e amor. Assim sinto-me discrimi-


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nado... peço desculpa mas não concordo com a sua decisão. – Ó homem, veja lá onde se vai meter! isto na tropa não é brincadeira nenhuma! quer então reclamar... pois reclame... e já! Mas sabe qual é a minha informação – amedrontou o capitão desferindo um murro na secretária. O furriel fez respeitosamente a continência e saiu do gabinete sem mais delongas. Ao descer as escadas a sua cabeça estava povoada dos mais díspares pensamentos, memórias e incertezas. O que fazer? abandonar a ideia da reclamação e voltar ao comportamento anterior, ou manter a decisão de continuar a dormir em casa de sua namorada, uma vez que esta se negava a abandonar o seu povo para irem viver noutro local, caso lhe fosse dada a transferência para uma unidade distante? Para se acalmar um pouco e ajudar a encontrar uma resolução, foi procurar conhecer a opinião dos camaradas mais amigos. A maioria convenceu-o a deixar fluir calmamente o tempo, aguardando uma melhor oportunidade para decidir sobre tão difícil situação, enquanto a relação amorosa prosseguiria dentro do que era tido como aceitabilidade. Durante uns dias via-se o furriel Marques passeando sozinho pela parada, afastado das atividades desportivas, sorumbático, meditabundo, possivelmente congeminando etapas a ultrapassar para um futuro breve e coerente com o que havia idealizado. Será esta uma manifestação amorosa tão pouco plausível? interrogava-se amiúde o militar. Os companheiros respeitavam a atitude assumida, tentando de

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vez em quando entabular uma conversa sobre temas normais e aliciantes como o futebol e a música, de sorte a trazer o seu interesse e vontade para coisas mais reais e comuns. Quando tudo parecia já olvidado, perceberam a razão do pedido que havia sido feito ao escutarem o furriel dar a conhecer que a sua namorada estava grávida de três meses. – Estás arrumado... arranjaste um grande sarilho... a família nunca mais te vai largar, foi a expressão usada como resposta imediata de quem recebia tal informação. Porém mais aliviado com a confissão dirige-se velozmente ao posto médico. – Doutor... peço desculpa, mas preciso da sua ajuda – confessou. – Então o que se passa? perguntou o médico que procurando tornar o posto médico mais apelativo exibia a sua bata branca, estetoscópio ao pescoço, aparelho medidor da tensão arterial sobre a mesa e por vezes luvas. – A minha namorada está grávida... julgo que de três meses... e eu pedia que o doutor a observasse para ver se está tudo bem... o doutor já viu que elas não sabem tratar da gravidez como deve ser – lembrou a justificar o pedido feito. – Está bem... mas é melhor ela vir aqui ao posto... eu não tenho essa especialidade, mas não será difícil acompanharmos a gravidez. Sim... porque eu não quero que seja só hoje. Vamos fazer um calendário de consultas que você vai ajudá-la a cumprir – combinou o médico. E assim passou a fazer-se. Nos dias determinados pelo calen-


UMA

TERRA

L O N G E ...

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dário lá estavam o furriel Marques e sua namorada, silenciosa, desconfiada, incrédula mesmo, para mais uma consulta pautada pelos princípios tidos por correntes e afins. – Está tudo normal. O bebé mexe-se bem... o coração parece forte... a barriga tem aumentado normalmente... faltam umas análises... mas não podemos ter tudo... devem ter muita atenção... se ele deixar de mexer... ou ela não sentir movimentos... ou se começar a perder sangue... ou aparecerem dores fortes .. tem de vir imediatamente ao posto – aconselhou. Presentemente o feto deveria ter seis meses, o que provocava ao pai momentos de angústia e desanimo, pois aproximava-se a data da rendição, a qual teria lugar antes do nascimento do filho, menino ou menina, não se sabia. – O que fazer? Interrogava-se frequentemente o furriel vislumbrando alguns ânditos, mas de escolha estorvada. Cumprir o tempo de rendição e regressar ao Regimento e posterior passagem à disponibilidade ou “peluda” e o consequente regresso a casa, abandonando a namorada e o filho sem perspetivas, sem futuro, ou ficar ali mais um ano por troca com um camarada, com a intensão única de acompanhar o nascimento e seguir as etapas do crescimento no local dos seus ancestrais e nas tradições e costumes das suas gentes? Muitas inquietações velozes povoavam a sua mente, tornando mais longas as noites, pois o sono reparador a muito custo chegava. Mais magro, pálido e deprimido, a sua atividade diária começou a ser afetada e o interesse e alegria que punha no cumprimento das mais variadas missões começaram a declinar, originando comen-

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tários pouco abonatórios da parte dos seus soldados. Para recuperar o furriel desmotivado e arredio, o alferes Rodrigues nomeou-o como responsável de um projeto que priorizava a aproximação do pelotão com as populações, o que ao fim do tempo de deslocação mostrou efeitos compensadores, alterando para melhor o comportamento das funções psíquicas do furriel em causa. Durante os dias que permanecia na companhia de acordo com a escala de serviço e patrulhamento, o furriel Marques aproveitava para acompanhar mais de perto a companheira e o desenvolvimento cuidado da sua gravidez. Esta constância fez gerar no seio da comunidade local a aceitação plena do militar, o qual passou a ser considerado como seu membro muito ouvido e estimado. Igualmente apareceu a compreensão dos seus camaradas, quando o mesmo pediu para continuar na companhia por mais um ano, prescindindo ser substituído e colocado numa zona militar mais calma, pedido que foi sancionado pelo comando agora já mais reconciliado mercê dos proveitosos trabalhos realizados nos mais diversos instantes, e depois ser também merecedor da anuência do comando do Batalhão tal como impunham as normas em vigor.


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